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4 HISTÓRIAS DE UMA HISTÓRIA

4.1.3 Al-Nakba: a-versão palestina

Para os judeus, a guerra de 48 foi a guerra da independência, o marco inaugural de sua autodeterminação, para os palestinos ela marcou o início de um pesadelo. O termo que a designa é al-Nakba - a catástrofe. Pappé (2007), embora compreenda a escolha do termo, considera seu uso inadequado, pois a ideia de

123 Para informações sobre as revoltas palestinas e as relações

políticas entre a administração britânica e a comunidade judaica durante o período do mandato britânico, ver Pappé, 2007, p. 13-15.

124 Tradução minha. Trecho no original: “include whole villages”

catástrofe sugere um evento trágico, uma fatalidade sem autoria ou responsáveis, o que, segundo o autor, não foi o caso. De toda forma, al-Nakba designa o momento em que os palestinos foram desapossados de suas casas, vilas e cidades e marca o início de um processo que atravessou gerações e perdura até hoje.

A expulsão e destruição das vilas e cidades palestinas em 48 foi acompanhada de um processo de recriação e renomeação desses locais que buscou apagar qualquer vestígio da presença palestina.125 O único registro remanescente da existência das vilas e cidades originais são os mapas dos “arquivos das vilas” usados pelo exército em 48. Conforme Pappé (2007), houve uma orientação “estética” na construção de Israel: “manter o país judeu, uma aparência europeia e verde”126 (p. 227). A solução encontrada fundiu os três objetivos em um: em cima de cada casa, de cada vila destruída foi plantado um bosque. Conforme Pappé (2007), “onde quer que se encontrem amendoeiras, figueiras e oliveiras, ou grupos de cactos, houve uma aldeia palestina”127 (p. 228). Por essa razão, os bosques de Israel contém apenas “onze por cento de espécies nativas e [...] apenas dez por cento de todas as florestas datam de antes de 48”128 (p. 227).

125 Cf. PAPPÉ, 2007, p. 225-226.

126 Tradução minha. Trecho no original: “[…] keeping the country

Jewish, European-looking and Green […]” (PAPPÉ, 2007, p. 227)

127 Tradução minha. Trecho original: “[...] wherever almond and fig

trees, olive groves or clusters of cactuses are found, there once stood a Palestinian village: still blossoming afresh each year, these trees are all that remain.” (PAPPÉ, 2007, p. 227)

128 Tradução minha. Trecho original: “eleven per cent of indigenous

species and why a mere ten per cent of all forests date from before 1948” (PAPPÉ, 2007, p. 227).

Said (2013) oferece um depoimento preciso sobre a forma como a experiência de 48 foi vivida e é elaborada pelos palestinos:

Menciono talvez o óbvio para sublinhar a base existencial da qual, acredito, depende nossa experiência como povo. Estávamos na terra chamada Palestina; como se pode justificar que nos despossuam e nos apaguem do mapa, com quase um milhão de nós forçados a abandonar a Palestina e nossa sociedade reduzida à inexistência, ainda que fosse para salvar o que restou dos judeus europeus que haviam sobrevivido ao nazismo nazista? Em nome de que agenda moral ou política se espera que deixemos de lado a reivindicação de nossa existência nacional, a nossa terra e os nossos direitos humanos? Em que mundo faltam argumentos para responder quando se diz a um povo que ele é legalmente inexistente, mas ao mesmo tempo se lançam exércitos contra ele, campanhas são realizadas até contra o seu nome e a história é alterada para "demonstrar" a sua inexistência? Por mais que todas as questões que envolvam os palestinos sejam complexas e envolvam a política das grandes potências, disputas regionais, lutas de classes e tensões ideológicas, o poder estimulante do movimento palestino está ciente dessas questões, simples mas de enormes consequências.129 (p. 49)

129 Tradução minha. Trecho no original: “Menciono lo que quizá

resulta obvio a fin de subrayar la base existencial de la que creo que depende nuestra experiencia como pueblo. Nosotros estábamos en la tierra llamada Palestina; ¿acaso estuvo justificado que se nos desposeyera y borrara del mapa, con casi un millón de nosotros obligados a abandonar Palestina y nuestra sociedad reducida a la

A violência extrema do fato em si foi acompanhada de outra: uma sistemática negação do ocorrido. Conforme Pappé (2007), no rescaldo da guerra, os palestinos, ou quem quer se dispusesse a representá- los precisavam se confrontar com dois tipos de negação: A primeira foi a negação exercida pelos negociadores internacionais da paz na medida em que eles consistentemente marginalizavam, quando não eliminavam totalmente, a causa palestina e suas reivindicações de qualquer acordo de paz futuro. A segunda foi a categórica recusa dos israelenses em reconhecer a Nakba e sua absoluta falta de vontade em ser responsabilizado, legal e moralmente, pela limpeza étnica que eles cometeram em 1948130 (p. 236).

inexistencia, por más que fuera para salvar a lo que quedaba de los judíos europeos que habían sobrevivido al nazismo? ¿En virtud de qué pauta moral o política se espera que dejemos de lado la reivindicación de nuestra existencia nacional, nuestra tierra y nuestros derechos humanos? ¿En qué mundo se carece de argumentos para responder cuando se le dice a todo un pueblo que se halla jurídicamente ausente, pero al mismo tiempo se lanzan ejércitos contra él, se realizan campañas incluso contra su nombre y se cambia la historia para «demostrar» su inexistencia? Por más que todas las cuestiones que rodean a los palestinos sean complejas y en ellas intervengan la política de las grandes potencias, las disputas regionales, la lucha de clases y las tensiones ideológicas, el estimulante poder del movimiento palestino es consciente de esas preguntas, sencillas, pero de enormes consecuencias.” (SAID, 2013, p. 49)

130 Tradução minha. Trecho no original: “The first was the denial

exercised by the international peace brokers as they consistently sidelined, if not altogether eliminated, the Palestinian cause and concerns from any future peace arrangement. THe second was the categorical refuses of the Israelis to acknowledge the Nakba and their absolute unwillinness to be held accountable, legally and

Não apenas o evento e as responsabilidades foram negadas, como o discurso e a memória palestina foram e continuam sendo sistematicamente excluídos da narrativa ocidental. Conforme Said (2013), a Palestina não foi ouvida durante o processo de criação do Estado de Israel e continuou sem representação ou sub- representada nas mesas de negociação de paz, nos relatos jornalísticos e históricos e nas análises sobre o conflito:

quando uma voz árabe é ouvida, é selecionada de modo a causar a menor impressão possível, [...] quando se coloca uma visão representativa árabe, ou ela é feita por um especialista ocidental, ou é uma “declaração” árabe quase oficial. Quantidade e qualidade são considerados equivalentes131 (SAID, 2013, p. 92).

Said (2013) afirma que a Palestina, ou os palestinos, só figuram nos discursos se e quando mediados por uma construção ideológica: “uma interpretação com muito menos continuidade e prestígio que Israel” (SAID, 2013, p. 60). Entre uma representatividade artificialmente construída pelos seus opositores e uma interpretação politicamente orientada, a voz palestina propriamente dita nunca se faz presente: morally, for the ethnical cleansing they committed in 1948” (PAPPÉ, 2007, p. 236).

131 Tradução minha. Trecho no original: “Cuando se escucha una

voz árabe, se selecciona de modo que cause la menor impresión posible, […], cuando se plantea una visión representativa árabe, o bien lo hace un experto occidental, o bien se trata de una ‘declaración’ árabe cuasi oficial [sic]. Cantidad y calidad se consideran equivalentes” (SAID, 2013, p. 92).

Os termos do debate são empobrecidos, uma vez que […] os palestinos só são conhecidos como refugiados, ou como extremistas, ou como terroristas. Um importante número de “experts” em Oriente Médio tendem a monopolizar a discussão, principalmente por meio de jargões sociológicos e clichés ideológicos mascarados de conhecimento. Sobretudo, acredito que existe um atitude cultural arraigada em relação aos palestinos fruto de preconceitos ocidentais ancestrais sobre o islã, os árabes e o oriente. Esta atitude, da qual o sionismo, por sua parte, extraiu sua visão sobre os palestinos, tem nos desumanizado, tem nos reduzido ao estado apenas tolerado de um aborrecimento132 (SAID, 2013, p. 46). Ainda segundo o autor:

epistemologicamente o nome Palestina, e sem dúvida a própria presença de habitantes nela, foi transmutado – devido a tão pesada carga imaginativa e doutrinal que Palestina carrega – de uma realidade

132 Tradução minha. Trecho no original: “Los términos del debate se

han empobrecido, puesto que […] a los palestinos se les ha conocido solo como refugiados, o como extremistas, o como terroristas. Un importante número de «expertos» en Oriente Próximo han tendido a monopolizar la discusión, principalmente utilizando jerga sociológica y clichés ideológicos enmascarados de conocimiento. Sobre todo, creo que existe una arraigada actitud

cultural hacia los palestinos derivada de ancestrales prejuicios

occidentales sobre el islam, los árabes y Oriente. Esta actitud, de la que el sionismo, por su parte, extrajo su visión de los palestinos, nos ha deshumanizado, nos ha reducido al estado apenas tolerado de una molestia” (SAID, 2013, p. 42).

em uma irrealidade, de uma presença em uma ausência133 (SAID, 2013, p. 60). Para Said (2013) ser palestino no Ocidente “é, em termos políticos, o mesmo que ser uma espécie de proscrito, ou, ao menos, ser em grande parte um estrangeiro”134 (p. 51).

A descrição dos eventos de 48 e seus desdobramentos como uma bem sucedida operação de limpeza étnica da palestina corroboram as premissas de Said (2013) para sua obra A Questão Palestina

Uma delas é a existência de um povo árabe palestino. Outra é que, para compreender a sua experiência, é necessário entender o impasse existente entre sionismo e mundo árabe. Outra ainda, é o próprio Estado de Israel, assim como seus apoiadores, que tentaram apagar as palavras e as obras palestinas porque o Estado judeu se baseia, em muitos aspectos (mas não em todos), na negação da Palestina e dos palestinos. Até hoje, é um fato assombroso que a simples menção dos palestinos ou da Palestina em Israel, ou diante de um convicto sionista, equivale a nomear o inominável: nossa mera existência serve para tão poderosamente acusar Israel do que ele tem feito para nós. Finalmente, parto do

133 Tradução minha. Trecho no original: “[...] epistemológicamente el

nombre de Palestina, y sin duda la propia presencia de habitantes en ella, se han transmutado —debido a que Palestina lleva una carga imaginativa y doctrinal tan pesada—de una realidad a una irrealidad, de una presencia a una ausencia.” (SAID, 2013, p. 60)

134 Tradução minha. Trecho no original: “[…] ser palestino es, en

términos políticos, lo mismo que ser una especie de proscrito, o, cuando menos, que ser en gran medida un extraño.” (SAID, 2013, p. 51)

princípio moral de que os seres humanos, individual e coletivamente, são sujeitos de direitos fundamentais, um dos quais é a autodeterminação. Com isso quero dizer que nenhum ser humano deve ser ameaçado de ser "transferido" para fora de sua casa ou terra; que nenhum ser humano deve ser discriminado por não pertencer a uma religião x ou y; que nenhum ser humano deve ser despojado de sua terra, a sua identidade nacional ou de sua cultura, seja qual for a razão. (p. 48)

A guerra de 48 não apenas expulsou os palestinos, negou-lhes direitos e voz, como sequestrou sua presença, seus nomes, suas narrativas. A política de estado de Israel continua, até hoje, a apagar do território israelense qualquer vestígio da presença palestina. Se o discurso de Israel é pelo direito de existir, a luta palestina é pelo direito de, ao menos, dizer que existiu. A lógica colonialista que moveu as ações em 48 permanece em grande medida a mesma que moveu as operações em 2008/09, apenas dão continuidade a uma política de estado que já dura quase 70 anos.

4.2 2008/09

Nos últimos dias de 2008, Barack Obama se preparava para tomar posse como presidente dos Estados Unidos. Após dois mandatos de George W. Bush nos quais foi declarada e travada boa parte da chamada guerra contra o terror deflagrada após os ataques às Torres Gêmeas em Nova York, Israel iniciava na Faixa de Gaza a operação militar Chumbo Fundido135.

Gaza vivia então sob o cerco militar israelense que controlava suas fronteiras por mar, terra e ar desde 2005, quando Israel desocupou o território de Gaza. A vitória do Hamas nas eleições democráticas de 2006 acirrou o controle das fronteiras. O último cessar fogo mediado pelo Egito136 em junho de 2008 não foi cumprido por nenhuma das partes: Israel manteve o bloqueio a Gaza e foguetes continuaram a ser disparados sobre território israelense. Entre 27 de dezembro de 2008 e 19 de janeiro de 2009, com o objetivo declarado de interromper os ataques de foguetes, as forças de defesa de Israel realizaram uma intensa operação militar que teve por alvos: bases, escritórios e campos de treinamento do Hamas, mas também alvos civis, de onde supostamente teriam sido lançados foguetes, o que, segundo Israel, legitimaria tais ataques. A operação durou 24 dias e recebeu da comunidade árabe outra alcunha: Massacre de Gaza, e foi alvo de investigação por parte de uma comissão da ONU, chefiada por Richard Goldstone, para investigar supostas “violações dos direitos humanos internacionais e do direito humanitários” (GOLDSTONE, 2009, p. 13). A missão concluiu que Israel e Hamas cometeram crimes de guerra e possíveis crimes contra a humanidade.

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