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Bonecas da moda Um estudo sobre o corpo através da moda e da beleza Revista Feminina 1915 - 1936 MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Gisele Bischoff Gellacic

Bonecas da moda

Um estudo sobre o corpo através da moda e da beleza

Revista Feminina

1915 - 1936

MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL

Dissertação apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação da Profa. Dra. Denise Bernuzzi Sant’Anna.

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Resumo

A dissertação Bonecas da Moda: um estudo sobre o corpo através da moda e da

beleza, de Gisele Bischoff Gellacic, trabalha com artigos da Revista Feminina,

periódico de grande difusão no Brasil entre 1915 e 1936. Dialogando com a história do corpo e das mulheres, é analisado o corpo feminino por meio de suas representações da moda e da beleza, e suas funções, métodos e utilidades. As imagens de mulher esbelta e bem vestida aparecem às leitoras da Revista como uma forma de se apresentarem e estarem inseridas na sociedade do período. São abordados todos os mecanismos que a

Revista utilizava para convencer suas leitoras a exercerem sua feminilidade através de

tais representações. O diálogo entre os discursos da modernidade, médico-higienista e urbanista aparecem fortemente entre os artigos como justificativas para uma aparência bela e na moda.

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Abstract

This research is a revision of articles from the Revista Feminina, a periodical of large circulation in Brazil between the years of 1915 and 1936. Based on the history of the body and of women, an analysis is made of the female figure based on representations of fashion and beauty, and their functions, methods and utilities. The ideal of a slender and well dressed woman is presented to the readers of the Revista as how they should present themselves to fit in with the society of that period. An analysis is made of the means used by the Revista to convince its readers to exert their femininity by presenting this image. The dialogue between modernity, medical/hygiene and urban discourses is intensively used in the articles to justify a beautiful and fashionable appearance.

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Sumário

AGRADECIMENTOS... 6

INTRODUÇÃO... 9

PARTE I – CORPOS VESTIDOS... 24

1. A modernidade dos corpos... 32

2. O espetáculo da moda feminina... 46

3. Modas perigosas... 58

PARTE II – CORPOS BELOS... 68

1. A construção da brasileira esbelta: modernidade X morenidade... 70

2. Métodos embelezadores... 93

3. Comportamento controlado... 104

CONSIDERAÇÕES FINAIS... 111

FONTES E BIBLIOGRAFIA... 115

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Agradecimentos

Não é fácil desenvolver um trabalho desses. Requer primeiro de tudo, muita coragem, uma grande quantidade de paciência, de tempo, de intuição, entre outras coisas. Desenvolver uma pesquisa dessa forma não é algo que se decida de uma hora para outra, precisa vir uma vontade lá de dentro. Algo verdadeiramente seu.

Esta dissertação foi sonhada e esperada como um filho em gestação. Tiveram momentos difíceis e muito solitários, onde apenas eu e a Revista Feminina conversamos, rimos, nos emocionamos e até brigamos. Tiveram momentos maravilhosos em que me sentia como o primeiro arqueólogo a entrar em uma tumba faraônica recém descoberta. Momentos esquisitos principalmente durante a pesquisa nos arquivos, onde só tinha a companhia de ácaros e pessoas um tanto esquisitas. Mas podem ter certeza de que fiz meu melhor.

Apesar deste trabalho ser por muitas vezes solitários, muitas pessoas estavam ao meu redor me apoiando e acreditando que o que eu fazia era muito importante. E aqui, mostro meu mais sincero agradecimento.

Agradeço à CNPq pela bolsa de estudos durante todo o ano de 2007, afinal dinheiro não é tudo, mas é imprescindível.

Agradeço imensamente à minha orientadora Profa. Dra. Denise Bernuzzi Sant’Anna, que acreditou no meu trabalho e em minha capacidade como historiadora, e que com um bom humor inigualável me orientava de forma leve, inteligente e sagaz.

Aos professores do Programa de Pós-Graduação em História Social da Puc-SP, meu agradecimento, afinal todos vocês tiveram enorme participação em meu amadurecimento intelectual desde a graduação.

Aos meus colegas mestrandos, principalmente aqueles que entraram junto comigo no início de 2006. Apesar de cada um de nós seguirmos caminhos tão distintos, levo cada um de vocês em minha memória. E tenham certeza de que torço muito por cada um de vocês.

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Às minhas amigas queridas: Rita, Marina (huge thanks for the abstract), Flávia, Camila e Carol. Vocês fazem parte de praticamente toda a minha vida, sendo sempre amigas maravilhosas. Adoro vocês.

Às “perversinhas” Dani e Tati que eu adoro demais. Vocês são amigas muito especiais e sinceras.

Aos colegas do Colégio Sérgio Buarque de Holanda, Octagon e Espaço Educacional (obrigada pela revisão de texto Lu). Obrigada por acreditarem em meu potencial e em minha capacidade de ensinar.

Aos meus alunos, que me ensinam demais, e que me tornam uma pessoa mais paciente, amorosa, bem humorada e até mais jovem. Vocês me fazem sentir uma “menina” grande.

Meu irmão fofo Ricardo (para mim Ricklis), te amo do fundo meu coração. Obrigada por ser tão carinhoso, e sempre me ajudar quando preciso de favores “cibernéticos”. Você sabe que muito desta dissertação existe graças a você!

Aos meus pais, Wilson e Margarete. É difícil achar palavras para descrever meu amor, minha gratidão, meu orgulho e minha satisfação por ser filha de vocês. Obrigada! Obrigada! Obrigada!

Agradeço ao Deus e a Deusa, por terem me dado à chance da vida, e através dela experimentar e vivenciar coisas tão maravilhosas. Obrigada por cada amanhecer, cada sorriso, cada lágrima e cada pessoa que passa pela minha vida, e me transforma em uma pessoa melhor. Obrigada por uma vida tão abençoada.

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Introdução

Estudar a história sobre uma ótica feminina é sempre um desafio. Por muito tempo afastada dos grandes acontecimentos, a história das mulheres tendeu durante décadas a figurar como coadjuvante das demais histórias. No entanto, principalmente a partir da década de 1960 inúmeros estudos1 sobre a história das mulheres e a história do gênero procuram compreender as práticas, as vivências e a importância do universo feminino para a construção da vida social.

Engravidar, ter filhos, amamentar e se preocupar com o bem-estar da família são experiências especificamente femininas, correspondentes ao que Naomi Wolf chamou

de cultura de massa feminina2. Ou seja, as mulheres enquanto sujeitos históricos

possuem um conjunto de práticas vividas e sentidas, sobretudo por elas. Estas experiências estão intimamente relacionadas com o “ser mulher”, e foram muitas vezes entendidas como supérfluas e secundárias, principalmente, quando os homens falavam sobre elas. Afinal, quando trabalhamos a história pela perspectiva das mulheres, o primeiro grande desafio que surge é o de identificar fontes sobre essas experiências femininas, que não passem por um olhar reducionista, e às vezes até preconceituoso.

Quantitativamente escasso, o texto feminino é estritamente especificado: livros de cozinha, manuais de pedagogia, contos recreativos ou morais constituem a maioria. [...] Militante, ela tem dificuldade de se fazer ouvir pelos seus camaradas masculinos, que consideram normal serem seus porta-vozes. A carência de fontes diretas ligadas a essa mediação perpétua e indiscreta, constitui um tremendo ocultamento. Mulheres

enclausuradas, como chegar até vocês?3

Ainda é grande a dificuldade de se encontrar um número significativo de documentos produzidos por mulheres narrando suas próprias experiências. Na maior parte das vezes, encontramos homens escrevendo sobre tais vivências, o que nos dá uma

1

Como exemplo, destacamos os trabalhos: de Betty Friedan lançado em 1963 a Mística Feminina, o de Germaine Greer lançado em 1970, Mulher Eunuco.

2

Wolf, Naomi. Mito da Beleza. RJ: Rocco, 1992. P. 95.

3

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visão reduzida. Se quisermos trazer à tona as mulheres como sujeitos históricos, devemos estar atentos a quem está narrando suas impressões do passado. Afinal, muitas experiências femininas são diferentes das práticas masculinas, e por isso, talvez difíceis de serem compreendidas e sentidas por eles.

Como historiadora, encontrei na história das mulheres uma possibilidade de compreender as relações entre os sexos, e até da forma como o mundo em geral lida com as mulheres e a feminilidade. Durante a graduação, me aproximei de mulheres celtas em lendas arturianas, de grandes guerreiras da Guerra Civil Americana, de mulheres queimadas vivas nas fogueiras da Inquisição, e até da poderosa Cleópatra. Todas essas mulheres passaram por minha formação demonstrando que a história das mulheres é realmente uma outra história, muito rica e cheia de peculiaridades, e que deve ser buscada para um maior entendimento da história social.

Como forma de contribuir para o aprofundamento da história das mulheres no Brasil, esta dissertação de mestrado objetiva historicizar algumas experiências femininas, inseridas na cultura das primeiras décadas do século XX. Analisando a

Revista Feminina, periódico de grande repercussão no momento, pretende-se perceber

algumas questões sobre o corpo feminino, suas transformações e permanências, através de um período de grandes mudanças políticas e econômicas, que inauguram novos hábitos e olhares sobre este corpo. Entendemos o corpo como uma construção simbólica, recortado conforme os quadros de referência de uma sociedade, ele fornece

um cenário às ações que esta sociedade privilegia – maneiras de se comportar, de falar, de se lavar, de fazer amor, etc4. Assim, a moda e a beleza tendem a erigir uma das

melhores formas de se chegar às transformações do corpo feminino ao longo do tempo. E por isso estas serviram como fios condutores para fazermos a análise corporal da história das mulheres.

Desde o final do século XIX, São Paulo passava por uma grande transformação. Com a ascensão das oligarquias, a capital paulista passou a ser o grande centro político-econômico do Brasil.

O café, diferentemente dos ciclos econômicos que o antecederam, permitiu que o capital fosse revertido internamente sob diferentes formas de investimentos e

4

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projetos de modernização para a cidade, com evidente

beneficiamento da população mais abastada. 5

Intensificado desde o surgimento da República, o projeto de modernização era colocado em prática na cidade de São Paulo, e nos grandes centros urbanos deste país. Este projeto era inspirado pela modernidade de cidades européias como Londres e Paris, urbanizando cidades, investindo em projetos arquitetônicos e em novas tecnologias. Mas não era só isso. Afinal não adiantava modernizar as cidades, se as pessoas que lá moravam não passassem por uma reforma nelas mesmas. Ou seja, os hábitos e comportamentos deveriam também ser modernizados, porém, nem toda a sociedade estava incluída neste projeto. Apenas as pessoas das classes abastadas faziam parte desta modernização.

Através de um projeto modernizador emergente no início da República, justificado principalmente por médicos, educadores e autoridades públicas, inicia-se uma busca pela civilidade no Brasil. Algo considerado, até o posto momento, não atingido pela sociedade brasileira. É neste momento que se inicia a busca por novas formas de organização familiar, de novas funções sociais tanto para o homem, quanto para a mulher. O comportamento burguês, a industrialização, o individualismo e o reforço do sentimento do eu, existentes desde o século XIX nas grandes capitais européias, se tornavam parte do referencial para a sociabilidade da elite brasileira.

O avanço médico-científico presente a partir do século XIX, trouxe aos médicos uma autoridade quase indiscutível, e esta iria definir a mulher através de uma predestinação à maternidade, justificando o “ser mãe”, e a própria fragilidade do corpo feminino, que legitimaria a presença vigilante masculina (pai/marido) e da sociedade em geral. Assim são constituídas as funções femininas no início do século XX: mãe/esposa/dona de casa. Sendo as representações de mãe e esposa já terem sido analisadas em outras pesquisas6, procuraremos trazer à tona esta mulher que valoriza a higiene, os cosméticos, as roupas, os esportes, enfim, um conjunto de formas de tratar e de mostrar o corpo. Esta dissertação analisa o que é moda e beleza para o período, as

5

Fyskatoris, Anthoula. O varejo da moda na cidade de S. Paulo (1910-1940). A democratização da moda e a inserção do consumo de baixa renda. SP: PUC-SP (Dissertação de Mestrado), 2006. P. 38.

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formas de se tratar o corpo, o porquê de figuras ligadas à moda e à beleza serem incessantemente direcionadas às mulheres, sendo todas essas frutos da incessante busca pela modernização dos hábitos e comportamentos no início do século XX. Para analisarmos tais representações, dialogaremos com a história do corpo, compreendido como algo não criado ou apenas pertencente ao campo da biologia, mas gerado e tratado no interior da cultura. Definimos o período de 1915 a 1936 como o recorte temporal desta pesquisa, por ser uma época de significativas mudanças em vários segmentos no Brasil, e pela presença de fontes durante todo esse período. Apesar dessas mudanças acontecerem nacionalmente, estipulamos a cidade de São Paulo como palco para analisarmos tais mudanças. Esta escolha se deve à importância que a capital paulista tem para o início do século XX, e ainda pelas fontes se apresentarem de forma mais concreta nesta cidade.

Apesar da chegada tardia da imprensa no Brasil7, durante as primeiras décadas do século XX ela assume um papel de grande importância na difusão das novas idéias trazidas com a modernidade. Principalmente em São Paulo, muitas revistas de variedades começaram a ser produzidas com o intuito de passar esses novos ideais aos mais variados segmentos da sociedade paulista e brasileira.

O movimento de crescimento e circulação dos materiais impressos em São Paulo, principalmente da Imprensa periódica, acompanha o próprio ritmo de desenvolvimento da cidade. 8

A imprensa antes com um caráter acadêmico e elitizado, volta-se neste momento para outros personagens da cidade, surgindo então, a imprensa dedicada às camadas populares dando vozes a novos sujeitos9, marcando um novo momento na história da cidade de São Paulo. Apesar da imprensa direcionada às elites existir em tempos anteriores, nem todos os sujeitos eram representados, como foi o caso das mulheres. A imprensa feminina brasileira teve um início discreto, e se caracterizava por encartes de culinária e de corte e costura. Será no período em questão que surgiria revistas

7

Segundo Nelson W. Sodré em História da Imprensa no Brasil, tem-se o século XIX, com a vinda da família real portuguesa para o Brasil em 1808 o início da imprensa brasileira com o Jornal Gazeta do Rio de Janeiro.

8

Cruz, Heloisa de F. São Paulo em papel e tinta. SP: Educ, 2000. P. 77.

9

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direcionadas exclusivamente para elas. Em 1914 tem início a publicação da revista A

Cigarra e da Luta Moderna (primeiro nome da Revista Feminina), ambas direcionadas

para as mulheres abastadas, e com uma edição que abrangia todo o território nacional. Porém a revista A Cigarra consistia em uma revista de variedades que não tratava exclusivamente questões femininas, diferente de sua concorrente.

Dulcília S. Buitoni em seu livro a Imprensa Feminina a chamou de a primeira

grande revista feminina, por ser uma das primeiras revistas dedicada inteiramente ao

público feminino no Brasil, devido a sua forma inovadora que reunia em seu formato com uma média de 35 páginas por revista, totalmente ilustrada, com uma circulação mensal que abrangia todo o território nacional, e uma vendagem de 20 a 25 mil exemplares mensais, sendo ainda vinculada com a indústria nascente e à publicidade. Além de todo seu formato inovador, a Revista foi muito bem sucedida, conseguindo se manter em circulação de junho de 191410 até março de 1936, algo realmente grandioso para uma época em que algumas revistas não conseguiam ultrapassar os primeiros exemplares11. Destacando-se entre as outras revistas de sua época, devido a sua formulação de qualidade, a Revista Feminina, como o próprio nome diz, era inteiramente dedicada ao público feminino. Mas esse público feminino alfabetizado era muito restrito, ou seja, nem todas as mulheres tinham acesso à sua leitura.

A Revista era distribuída em sua maioria por meio de assinaturas. Apesar de seu principal público estar na cidade de São Paulo, cartas de leitoras vindas de todas as partes do Brasil mostram que a revista circulava nacionalmente.

(...) a revista era lida por mulheres de uma classe mais alta, da classe melhor, mulheres de fazendeiros, professoras, mulheres de delegados, de prefeitos. 12

Através deste trecho retirado de uma entrevista de D. Avelina de Souza Haynes, filha da fundadora da Revista, percebemos que apesar desta procurar dar um tom de refinamento às leitoras da revista, notamos a presença de vários tipos de mulheres representadas e nem todas pertencentes a um mesmo grupo social. Entendemos assim que as leitoras/consumidoras da Revista pertenceriam não apenas ao seleto grupo de

10

Neste período incial a revista ainda era chamada de Luta Moderna.

11

Informações obtidas em Buitoni, Dulcilia S. Imprensa Feminina. SP: Ática, 1986. P. 43 e 44.

12

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esposas e filhas de ricos comerciantes, mas de mulheres de funcionários públicos, de altos funcionários do governo, e até de educadores. Dessa forma percebemos que as leitoras da Revista Feminina eram em sua maioria esposas e filhas dos vários segmentos da elite, e até da nascente classe média brasileira, e principalmente paulista.

A Revista Feminina foi fundada em 1915 por Virgilina de Souza Salles

descendente de uma tradicional família paulista. Esta foi fruto de uma outra revista de D. Virgilina chamada Luta Moderna que perdurou durante o ano de 1914, e foi através desta que foram conseguidas as primeiras assinaturas para a Revista Feminina. Seu nome é bastante sugestivo para uma revista em que o público alvo eram as mulheres. A escolha do nome “Luta Moderna”, nos remete a pensar de que consistia realmente uma luta possuir uma revista apenas para mulheres, ou ainda que seus assuntos fossem considerados “ousados” para uma época onde as transformações aconteciam paulatinamente. Interessante notar o uso da palavra “moderna” para o periódico, demonstrando que uma revista para mulheres, e sobre mulheres era uma marca dos novos tempos que se instauravam. Porém D. Virgilina e sua família optam por modificar esse nome para apenas “Revista Feminina”, algo talvez menos agressivo, e mais adequado para aqueles tempos.

A Revista Feminina contava com a participação do irmão de D. Virgilina, o Dr.

Cláudio de Souza que além de médico, era teatrólogo e membro da Academia Brasileira de Letras, o que provavelmente auxiliou em algumas presenças ilustres nos artigos da

Revista, como o poeta Olavo Bilac e a escritora Júlia Lopes de Almeida. A participação

do irmão da fundadora, o Dr. Cláudio de Souza que aparentemente seria trazer presenças ilustres para a Revista, além de alguns artigos de sua autoria, foi “desmascarada” pela Profa. Sonia de Amorim Mascaro em sua dissertação de mestrado

A Revista Feminina: imagens de mulher (1914-1930), quando através de uma entrevista

com a filha da fundadora do periódico, D. Avelina de Souza Haynes, foi contado que seu tio tinha o pseudônimo feminino Anna Rita Malheiros, que assinou os editoriais da

Revista até o ano de 1922. Esses editoriais sempre muito bem escritos, defendiam a

(15)

O mascaramento de um homem como principal porta-voz da Revista Feminina, não tira o mérito das causas defendidas, mas torna seu pensamento ilegítimo, sem autenticidade e até certo ponto impositivo. 13

O fato de possuir um homem escrevendo como uma mulher em uma revista exclusivamente feminina, legitima o lugar secundário delas dentro da sociedade, e talvez até sua incapacidade de falar sobre alguns assuntos. Percebemos ao longo dos editoriais, que apesar de serem na verdade escritos por um homem, falavam sobre causas femininas, como a questão da proteção da mulher contra maus tratos, e um assunto muito utilizado e defendido pela Revista, a questão do sufrágio feminino. Assim, a Revista Feminina se intitulava porta-voz das causas femininas e vangloriava-se por vangloriava-ser feita por mulheres para mulheres. Contudo sabemos hoje que tais aspectos não eram totalmente verdadeiros devido à Anna Rita Malheiros/Dr. Cláudio de Souza.

Além do editorial, o Dr. Cláudio de Souza contribuía à Revista com pequenos contos e artigos que normalmente falavam sobre a importância da mulher na sociedade brasileira que se queria moderna. É importante ressaltar que em nenhum momento foi encontrada uma relação direta entre o Dr. Cláudio de Souza e o higienismo/eugenia tão presentes no início do século XX, porém em inúmeros artigos notamos a presença dos discursos higiênicos e até eugênicos. A presença desses ideais podem ser apenas vestígios de um pensamento muito presente na época, que fazia parte do discurso da modernidade, ou talvez, seria uma campanha presidida e forjada pelo co-autor da

Revista Dr. Cláudio de Souza, para introduzir tais idéias nas leitoras.

Os artigos da Revista eram em sua maioria anônimos ou assinados por mulheres. Mas como o caso do editorial descrito há pouco, não temos certeza de quem eram as pessoas responsáveis por eles. Pelo caráter “familiar” da Revista e até pela prática do uso de pseudônimos ser muito comum na imprensa da época, talvez com exceção de alguns artigos, todos fossem produzidos pela família proprietária da Revista, ou ainda apenas traduções de artigos vindos da Europa ou Estados Unidos. Apesar desses vestígios, não possuímos certeza de quem eram as “mulheres” que recheavam a Revista

Feminina com informações, conselhos e entretenimento às leitoras.

13

(16)

A Revista possuía uma série de seções e artigos com a função de orientar,

educar e distrair a mulher brasileira14, cobrindo assim os assuntos pertencentes à

cultura da elite feminina do início do século XX. Discutiam-se temas como o papel da esposa e da dona de casa, educação das crianças, culinária, contos, trabalhos manuais, moda, e ainda trazia diversas reportagens de conhecimentos gerais e curiosidades sobre outras culturas, ou seja, todos os assuntos que eram considerados úteis para as leitoras, e para o bom cumprimento de sua função como mulher.

Durante toda a existência da Revista, procurou-se afirmar seu caráter formador e informativo, enquanto leitura saudável para mulheres, sendo esses justificados através de cartas mandadas por membros masculinos da sociedade como os da Academia Brasileira de Letras, e ainda de membros da Igreja Católica, como é o caso do Cardeal Arcoverde e do Arcebispo Duarte.

Em sua longa existência algumas colunas se mantiveram clássicas como o Menu

do meu marido - seção de culinária que contém um nome que valoriza a posição da

mulher enquanto esposa dedicada. Ser uma revista feminina, durante as primeiras décadas do século XX, significa, obviamente, tratar apenas de assuntos para mulheres. E durante este período ser mulher significaria exercer corretamente sua função enquanto mãe amorosa, esposa fiel e dona de casa dedicada, por isso notamos ironicamente uma coluna para o marido, em uma revista para a mulher/esposa15.

Outras colunas que existiram durante todo o percurso da Revista foram: Como

enfeitar minha casa – decoração para a casa; Moda – com as últimas tendências do

vestuário; Trabalhos Femininos – seção destinada a incentivar as leitoras a produzirem algum tipo de artesanato para ser vendido pela redação da Revista; Jardim Fechado – teve início em fevereiro de 1918 e era destinado a cartas de leitoras; Vida Feminina – sobre feitos e conquistas de mulheres no Brasil e no exterior. Interessante notar que diferente da maioria das revistas direcionadas ao público feminino, a Revista Feminina nunca possuiu seções de consultórios sentimentais ou de cartas de amor, não sendo em nenhum momento relatado o porquê desta escolha pelos organizadores da Revista. Sendo a ausência ou o silêncio também uma forma de fonte para a interpretação histórica, arriscamos dizer que a falta de um consultório sentimental aponte que, pelos

14

Mascaro, Sonia de A. A Revista Feminina: imagens de mulher (1914-1930). SP: Dissertação (mestrado) ECA – USP, 1982. P. 12.

15

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responsáveis da Revista, seria algo desnecessário. Ou seja, para as mulheres leitoras da

Revista Feminina um local para reclamações dos cônjuges e do próprio casamento era

algo impensável. Na função da mulher/esposa não caberia reclamações do marido, mas sim encontrar formas de driblar crises no casamento. Esta responsabilidade seria exclusivamente da esposa.

Apesar da grande responsabilidade atribuída à mulher neste período através das funções de mãe/esposa/dona de casa, e todos os assuntos abordados pela Revista que auxiliam a boa execução destes, a sexualidade não aparecia dentre eles. Com exceção de pequenas insinuações quanto à “noite de núpcias”, a ausência de temas relacionados ao sexo é completamente nula durante o início do século XX. Analisando a ausência de temas desta natureza, fica claro que, por ser a Revista Feminina educadora da mulher da elite brasileira, em nada assuntos sobre sexo diziam respeito a ela. A preocupação da leitora devia se resumir ao cuidar do filho após seu nascimento, mas não em “como” gerar esse filho. A presença de artigos que buscam ensinar e orientar a mulher em como cuidar dos filhos é grande, porém em nenhum momento o período de gestação ou o dia a dia da gravidez em si é citado pela Revista.

Assuntos relacionados à política não entravam na Revista de forma informativa, apareciam apenas como insinuações a respeito em um artigo ou outro.Acontecimentos como a Primeira Guerra Mundial, a Semana de Arte Moderna, ou as sucessões presidenciais, não parecem ter importância para a Revista Feminina. Assuntos como política não seriam considerados relevantes para a boa execução das funções femininas. Porém percebemos que essa visão não se mantém a mesma durante os vinte anos de sua publicação. Durante o ano de 1929 notamos a existência de vários artigos elogiando Júlio Prestes16 e enfatizando seus feitos. Quando combinamos esses artigos à conjuntura política da época, percebe-se que a partir dos últimos anos da década de 20 começa a existir uma preocupação em “politizar” as mulheres. Talvez essa preocupação passe a existir a partir do momento em que vários países dão o direito do voto às mulheres. Percebendo que o sufrágio feminino brasileiro seria uma questão de tempo, e é claro, as mulheres passariam a ser um grupo importante no momento da votação, os organizadores da Revista notam a necessidade do início da politização de suas leitoras.

16

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Um fator muito inovador da Revista Feminina foi o de combinar a imprensa e um elaborado esquema comercial, o que provavelmente contribuiu para sua sustentação durante mais de vinte anos. A chamada Empreza Feminina Brasileira, que fabricava e comercializava produtos destinados à mulher como cremes para o rosto, tintura para o cabelo e livros de culinária. Podemos perceber o crescimento desta empresa ao longo dos anos, quando comparamos que no ano de 1916, a Revista possuía 2 produtos à venda, já no ano de 1925 possuía mais de 40 produtos. Todos eles sempre foram vendidos através do periódico por meio de propagandas, e por postagem do dinheiro.

Em 1936 a Revista é interrompida, por problemas pessoais da família Souza Salles, que manteve sua direção por todo o período de sua existência. Durante seus vinte anos de circulação, percebemos que ela não se mantém uniforme quanto ao seu formato, seus assuntos e até a forma de abordá-los. Afinal a Revista iria acompanhar todo o avanço e as transformações da sociedade, bem como da mulher inserida nesta sociedade.

... as revistas femininas são os únicos produtos que acompanham as mudanças da realidade da mulher, são em sua maioria escritos por mulheres para mulheres sobre temas femininos e levam a sério as preocupações das mulheres.17

Como veículo de informação e reafimarção de valores, a Revista Feminina e a imprensa feminina em geral, buscam reforçar o papel das mulheres dentro da sociedade, e ainda convencer de que este papel é a única saída, como se “sempre tivesse sido assim”. A natureza da imprensa feminina, enquanto fonte para uma pesquisa sobre a mulher, traz dificuldades próprias, afinal, este tipo de imprensa é um tipo diferente daqueles tradicionais como os jornais diários. A imprensa feminina fala sobre o universo feminino, sobre os problemas da mulher, sobre o que é ser mulher, sua cultura feminina, e o que deve ser feito para atingir tais efeitos. Seus assuntos principais são os relacionados à moda, beleza e cosméticos, culinária, decoração, trabalhos manuais, etiqueta, conselhos de saúde, como cuidar dos filhos, e ainda os chamados consultórios sentimentais que tratam os problemas do coração e a relação homem/mulher. Dessa

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forma percebemos que seus assuntos não são informativos como dos jornais diários, pelo contrário, a imprensa feminina é por natureza interpretativa, estabelecendo, produzindo e reforçando formas de conduta. Em muitos momentos, as revistas são as únicas companhias para as mulheres, uma espécie de janela para o que acontecia fora de seu reservado mundo familiar.

Assim chegamos à grande problemática da utilização da imprensa feminina como fonte: identificar a natureza das idéias transmitidas por seus artigos.

... analisar o conteúdo da imprensa é um exercício de ‘desocultação’, ou seja, buscar através do que ela diz, do modo como diz, e do que ela não diz, qual seu projeto de sociedade. 18

Através de uma aparente neutralidade e até ingenuidade, as revistas direcionadas às mulheres reforçam os modelos, os gostos e as opiniões dominantes, que vão pouco a pouco sendo introjetadas nas leitoras. Na aparente intimidade de uma “conversa entre amigas” ao qual a imprensa feminina utiliza como meio de escrever seus artigos, ela deixa transpassar os valores e os padrões dominantes de consumo e de conduta de uma determinada época.

A imprensa feminina sempre vai procurar dirigir à leitora como se estivesse conversando com ela – intimidade amiga – faz com que as idéias parecessem simples, cotidianas, frutos do bom senso, ajuda a passar conceitos, cristalizar opiniões, tudo de um modo tão natural que praticamente não há defesa. A razão não se arma para uma conversa de amiga. Nem é preciso raciocinar argumentos complicados: as coisas parecem que sempre foram assim. 19

18

Prado, Sabrina G. Imagens Femininas na Revista ‘A Cigarra’ São Paulo 1915-1930. SP: Dissertação de Mestrado PUC-SP, 2003. P. 28.

19

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Sendo, então, a imprensa feminina possuidora de um ideal a ser passado, preocupada em propor e reafirmar modelos de conduta, ajudando as leitoras a se

enquadrarem no mundo em que estão, vivendo melhor neste mundo e exercendo “corretamente” sua “feminilidade” 20.

Identificamos a imprensa feminina como um veículo criador e reprodutor das representações do que se quer para a mulher. Notamos que apesar de muitas vezes as práticas femininas, ou o que é ser mulher e suas funções na sociedade, sejam dadas de forma a parecerem naturais, existe ao longo da história uma construção da feminilidade que ser quer correta. Conforme Simone de Beauvoir inaugura em seu livro O Segundo

Sexo, quando argumenta que para ser mulher, não basta nascer com sua carga genética

feminina. Ser mulher é um aprendizado que se faz através da sociedade e da cultura em que vivemos. Assim, a própria feminilidade seria um produto sócio-cultural, que no início do século XX no Brasil, pode ser identificado em ser mãe, esposa e dona de casa.

Essas representações fundamentais da mulher vão aparecer de forma explícita e implícita nas revistas femininas. A Revista Feminina adota toda essa construção da “feminilidade correta”, ligada ao ser mãe/esposa/dona de casa “por trás e pela frente” de seus artigos. Em uma época em que parecia estar na “moda” exercer tais funções pelas mulheres da elite, a Revista não deixará escapar sua função doutrinadora em seus artigos. E sobre essas representações temos três pesquisas: a tese Espelho de Mulher:

Revista Feminina (1916-1925) de Sandra L. L. Lima pela FFLCH-USP, a dissertação de

Sonia de Amorim Mascaro Revista Feminina: imagens de mulher (1914-1930) pela ECA-USP e o artigo de Marina Maluf e Maria Lucia Mott “Recônditos do mundo feminino” em Nicolau Sevcenko (org) História da Vida Privada no Brasil. Essas pesquisas utilizaram a Revista Feminina como fonte, apresentaram a mulher mãe/esposa/dona de casa, analisaram mês a mês a Revista e suas seções, e ainda mostraram o feminismo, que na época se confundia com a campanha pelo voto feminino. Porém, nas três pesquisas os assuntos relacionados ao tratamento do corpo através da moda e da beleza foram considerados “assuntos gerais”. Este foi um fator incentivador para o desenvolvimento dessa pesquisa, afinal ao analisar a Revista, percebemos que o número de artigos referente às questões da moda e da beleza ultrapassava consideravelmente, aqueles sobre formas de conduta da mãe/esposa/dona de casa.

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Sobre a moda e a Revista Feminina existe a pesquisa de Maria Claudia Bonadio

Moda e Sociabilidade: mulheres e consumo na São Paulo dos anos 1920, onde a

historiadora discute a importância da imprensa, da publicidade e do comércio de moda no processo de modernização dos anos 20. E ainda, utilizando a Revista Feminina como fonte secundária, porém relacionando-a com a beleza, temos o trabalho de Mônica Raisa Schpun Beleza em Jogo: cultura física em São Paulo nos anos 20. Apesar de muitos trabalhos terem utilizado a Revista Feminina como documento, nenhum deles analisou todo o período em que esta existiu.

Assim, analisando a historiografia sobre história das mulheres e a importância do corpo em seu processo, e ainda considerando a crescente modernização das primeiras décadas do século XX, pretendemos centrar esta dissertação na questão do corpo feminino que se quer modernizado através da moda, da beleza e do comportamento, valorizados pela imprensa específica e por alguns manuais médicos. Esta dissertação buscará identificar a produção e a reprodução de um comportamento e de um trabalho com o corpo que vai além da estética, dialogando com a própria função feminina historicamente construída na época. Pretende-se portanto refletir sobre o significado do que era a beleza e do “estar na moda”, as mudanças entre os anos de publicação da

Revista, bem como a construção dessas representações. Por isso optamos pela pesquisa

de todo o período de existência da Revista Feminina de 1915 até 1936, para que assim fosse possível analisar as transformações e permanências de algumas questões sobre o corpo feminino.

A pesquisa dos 21 anos da Revista foi realizada no Arquivo do Estado de São Paulo que contém suas publicações de 1917 até 1925. E na Biblioteca Mário de Andrade onde foram encontrados os anos restantes. Infelizmente apesar de nosso esforço para encontrar o maior número de revistas, não foram localizados os anos de 1926, 1927 e 1932. Vale dizer que os artigos estudados não seguem uma linearidade, ou seja, não foram pesquisadas as mesmas colunas na Revista todo o tempo. Ao contrário, foram pesquisados artigos em geral, porém todos ligados ao tratamento do corpo feminino. Acreditamos que o não seguimento de uma só coluna trouxe benefícios para ampliarmos nosso olhar sobre as várias formas do tratamento do corpo.

Esta dissertação está dividida em duas partes, cada uma contendo três capítulos, que se relacionam com o tema principal.

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principais transformações das vestimentas ao longo do século XIX, com a moda e o comportamento valorizados pela ascensão do ideal burguês na Europa, lembrando deste possuir uma forte influência com o Brasil naquele momento. O capítulo 1 Modernidade

dos corpos, explora as condições em que os ideais da modernidade chegam ao Brasil,

suas dificuldades, e principalmente sua influência nas mulheres da elite. O capítulo 2

Espetáculo da moda feminina analisa as vestimentas das mulheres, suas transformações

e permanências ao longo da Revista Feminina. O capítulo 3 Modas Perigosas levanta o discurso contra a moda presente em alguns momentos na fonte.

A segunda parte - Corpos Belos – introduz a beleza como importante fonte histórica, e analisa a beleza como mais um mecanismo de modernização dos corpos das brasileiras. O capítulo 1 A construção da brasileira esbelta: modernidade X morenidade aborda as dificuldades em tornar os corpos brasileiros com uma aparência bela, e ainda demonstra como seria a beleza tão enaltecida pela Revista Feminina. O capítulo 2

Métodos embelezadores explora as dicas, os segredos e as receitas de beleza trazidas

pela Revista, com a esperança de desenvolver a beleza nos corpos femininos. Além de abordar técnicas inovadoras para se alcançar um visual belo. O capítulo 3

Comportamento controlado demonstra que além de possuir uma aparência bela e na

moda, as mulheres da “moderna” elite brasileira deveriam cultivar hábitos refinados, discretos e asseados.

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Parte 1 – Corpos vestidos

Experimentamos as coisas da vida através de nossos corpos. É com ele que nos socializamos e mostramos ao mundo quem somos por meio de marcas e sinais. Por esses motivos, a forma como trabalhamos esse corpo, diz muito sobre nós mesmos, sobre o que queremos parecer aos olhos dos outros, e sobre o momento histórico em que vivemos. Analisar a história de uma perspectiva corporal requer estarmos no limite entre o que é natural e o que é cultural, entre a permanência de um corpo material, e as rupturas e mudanças de um corpo construído e trabalhado historicamente.

... o corpo deve ser encarado, não como um objeto de

‘carne e osso’, mas como uma ‘construção simbólica’.21

O corpo sempre foi lugar de embates e resistências. Quando se trata de um estudo sobre a história vista por meio dos corpos femininos, se torna necessário enfrentar desafios relacionados à antiga tendência de considerar a fisiologia feminina uma espécie de morada misteriosa e polêmica. Assim, por exemplo, engravidar, dar a luz e menstruar, despertam, em várias culturas, a suspeita de que o corpo feminino seria mais singular do que o masculino, uma grande incógnita, alvo de desconfianças e de contrastes constantes. Juntamente com esse caráter de mistério, o fato de vivermos em uma sociedade de tendência androcêntrica acentua ainda mais as diferenças entre o tratamento e as funções dos corpos masculino e feminino. Essas funções, esses símbolos e seus significados são historicamente construídos.

***

A roupa é o invólucro do corpo. Chegamos nus ao mundo, mas logo somos

adornados não apenas com roupas, mas com a roupagem metafórica dos códigos morais, dos tabus, das proibições e dos sistemas de valores que unem a disciplina aos desejos, a polidez ao policiamento 22. As roupas ligam o corpo biológico ao ser social, o

corpo público com o corpo privado. É através das roupas que permitimos esconder ou

21

Porter, Roy. “História do corpo” in: Burke, Peter (org). A Escrita da História. SP: Unesp, 1992. P. 297.

22

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mostrar nossas carnes, e essa decisão diz muito a respeito de nós mesmos e da sociedade em que vivemos.

A primeira leitura que a sociedade faz de cada um de nós é através de como nos mostramos a ela, e por isso as roupas constituem um importante código social. As roupas possuem de forma geral duas funções sociais: uma ligada à individualidade e outra à coletividade. À individualidade, quando expressamos sentimentos e idéias pessoais. À coletividade, quando é identificada pelas roupas a classe social do indivíduo, e/ou o grupo que pertence como, por exemplo, as roupas do “grupo” masculino e as do feminino.

Os códigos que o uso ou até a falta de uso de uma roupa, será interpretado pela sociedade e suas instituições23.

Até a forma de como seremos tratados socialmente é estabelecida muitas vezes através de tais códigos que as roupas manifestam. Essa interpretação social das roupas existe desde tempos remotos, porém cada sociedade em cada época terá seus códigos corporais constituídos no interior da cultura. Como um conjunto de roupas e adereços considerados “certos” para um grupo social em determinado período, a moda é um

mundo encantado de códigos24.

A palavra moda vem do latim mod, que significa medida, e da palavra modus também latina que significa maneira de, ou modo de fazer25. Assim, moda seria um hábito ou estilo geralmente aceito, ou o mais aceito, e variável no tempo. No sentido primordial da palavra moda, ela nada tem a ver com uma coleção de roupas.

Foi ao longo da segunda metade do século XIX que a

moda, no sentido moderno do termo, instalou-se. 26

Durante o século XIX, a moda e o uso de determinadas roupas, por um certo grupo social, passaram a ser sinônimos. Porém, esta idéia não é originalmente brasileira,

23

Priore, Del Mary. Corpo a corpo com a mulher. SP: Senac, 2000. P. 53.

24

Roche, Daniel. Cultura das aparências. Uma história da indumentária (séculos XVII-XVIII). SP: Senac, 2007. P. 60.

25

Significados e origem da palavra moda retiradas de Gomes, Suzana H. de Avelar. Moda – entre a arte e o consumo. SP: PUC-SP (tese de doutorado), 2005. P. 17.

26

(26)

pelo contrário, ela seria trazida dos grandes centros urbanos europeus como Paris e Londres. Nesta época, a Europa passava por uma grande transformação em sua estrutura social, política, econômica e cultural27, que se manifestava das mais diversas formas. A moda consistia em uma delas.

Após o longo período em que os reis absolutistas dominavam o cenário político da Europa, nos séculos XVII e XVIII, o chamado Ancien Régime chegava ao fim. Durante todo este período, o corpo, a moda e as aparências eram formas de justificar a nobreza como elite social naquele momento histórico. As vestimentas serviam como um aparato mágico do poder absoluto28: vestidos enormes, coletes e mangas exageradas, rendas e cetins, perucas, salto alto, e faces empoadas de pó branco. Nesta fase, onde a elite social era pertencente à aristocracia, tanto as vestimentas femininas, quanto as masculinas apresentam características de exagero e exibicionismo. Entretanto, as mudanças estruturais da sociedade européia em meados do século XIX, não transformariam apenas a conjuntura político-econômica. Assistimos também a uma transformação nos valores e no comportamento, que agora seriam baseados na ascensão da burguesia européia. Isto significaria a negação dos códigos corporais do Ancien

Régime, e a valorização do individualismo, da medicina, e, mais tarde, do conforto. Até

os avanços tecnológicos daquele momento permitiram à sociedade do século XIX, uma nova ligação com seu corpo, por exemplo, por meio da fotografia, e do espelho de corpo inteiro.

A fotografia e o espelho de corpo inteiro permitiam às pessoas a contemplação

de sua própria imagem29. A silhueta completa refletida no espelho, permitia um novo

conhecimento do corpo, nunca antes visto por seu próprio “dono”. O retrato, como forma de guardar a imagem que se tem de si por um longo tempo, permitia notar que a juventude era perdida conforme os anos se passavam. Assim surgia uma nova identidade corporal para a burguesia européia nascente. Além disso, o advento da luz elétrica permitiria um olhar mais detalhado de si próprio, e do corpo do outro. A descoberta do corpo pela burguesia européia, era mais uma novidade trazida com a modernidade de meados do século XIX.

27

Fazemos referência ao movimento da Revolução Industrial, o surgimento do sistema capitalista e até da Revolução Francesa como manifestação prática dos ideais burgueses característicos do Século das Luzes.

28

A este respeito ver Phillippe Perrot em Le travail des apparences. Le corps féminin XVIII-XIX siècle. Paris: Seuil, 1984.

29

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Graças às teorias de Pasteur e Kock, expandiu-se o paradigma microbiano e bacteriológico, que possibilitou outras formas de compreensão das causas das doenças, dos corpos e da higiene, bem como das formas de transmissão das doenças, e da sua cura. Era preciso mudar hábitos e atitudes. 30

Após séculos em que do olhar cristão se mantinha sobre os corpos, enxergando-os com desprezo e temor, acreditando que as carnes eram apenas um meio para a salvação ou danação da alma. As descobertas científicas do século XIX vêm, definitivamente, dar um novo significado ao corpo, e a forma como este deveria ser tratado.

A descoberta dos micróbios permitia o surgimento de novas respostas para a antiga pergunta: Por que as pessoas ficam doentes? Além disso, todo o avanço médico-científico trazia novas descobertas em vários campos da anatomia humana, por exemplo, os mecanismos da transpiração, e até do sistema circulatório. Com isso, rapidamente os médicos deste período ganhariam uma credibilidade indiscutível para diagnosticar formas de doenças, de cura e de prevenção. Após séculos em que o corpo era tratado pelo misticismo, como um reduto do desconhecido e do pecado, este agora pertencia ao campo da ciência, constantemente observado, revelado e tratado.

Philippe Perrot, em seu livro Le Travail des Apparences: le corps féminin au

XVIII –XIX siècle, aponta que na França, foi a epidemia de cólera ocorrida em 1832 que

justificou o movimento higienista e a regulamentação sanitária no país. A partir deste momento a medicina passou a não ser apenas uma ciência para lutar contra doenças, mas também seria responsável pela organização social. Os médicos passaram a medicar não só o corpo físico, mas também o corpo moral e social. Interiorizando na população, de diversas formas, normas de higiene, sobriedade, ordem e família. A partir deste momento a medicina passou a exercer uma autoridade quase absoluta sobre os corpos.

A instituição familiar passaria a ser uma segurança social, uma vez que mantinha o homem, a mulher, e as crianças dentro de um núcleo, que, nos moldes médicos, seria seguro, limpo e higiênico. Desta forma, são definidas funções tanto para homens,

30

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quanto para mulheres exercerem “corretamente” suas funções de pai/provedor e mãe/esposa.

Os papéis sociais e econômicos dos homens e mulheres começaram a divergir mais profundamente; no início do século XIX, o papel das mulheres na sociedade começava a diminuir, a maneira de vestir começava a distinguir os sexos de forma mais acentuada e a moda já não era mais tal como fora nas cortes do século XVII... 31

O aburguesamento da sociedade européia traria novas funções sociais aos homens e as mulheres, e estas seriam manifestadas corporalmente.

Ao homem seria destinada a função do trabalho fora de casa, ao espaço público, ao ganhar dinheiro e proporcionar o sustento da família. Uma nova sociedade

masculina, e sem cor, agora se vestia comme il faut, proclamando seu apego a noções

de decência, correção, esforço, prudência e seriedade32. Surgia a imagem do “homem

de negócios”. Esta nova função se manifestava com cuidados com o corpo, comportamentos e roupas específicas do homem. O corpo masculino através dos códigos da elite burguesa foi caracterizado, principalmente, através do uso do terno. O terno, um tipo de vestimenta composta por três peças de cores sóbrias e originalmente masculino, compõe um tipo de roupa que permanece a mesma por quase 200 anos, salvo pequenos detalhes, como corte e tecido. O terno vai compor praticamente um uniforme para este novo “homem de negócios”, freqüentador do espaço público, que surge com a valorização do ideal burguês de trabalho no contexto do século XIX europeu. Percebemos que este homem sério, trajado com o terno, em nada pode ser comparado com aquele homem ricamente trajado com perucas, faces esbranquiçadas e tecidos brilhosos da aristocracia de séculos anteriores. A historiadora da arte Anne Hollander faz um paralelo interessante ao comparar as vestimentas masculinas, lembrando as antigas armaduras medievais, demonstrando que estas vestimentas também refletiam a função masculina naquela sociedade, onde a guerra se fazia iminente. Durante o século XIX, onde a “guerra” acontecia nos negócios, o terno passa ser a roupa característica dos homens burgueses. Este uniforme de trabalho será a roupa

31

Wilson, E. Enfeitada de sonhos. RJ: Edições 70, 1985. P. 45.

32

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básica do homem burguês em todos os momentos, desde festas, passeios no fim de semana, como na hora de serviço.

A função da mulher na era burguesa também se transformaria por completo, e com ela seus códigos corporais. A função feminina será basicamente a de mãe, justificada principalmente pelo discurso médico e por sua anatomia. A mulher burguesa do século XIX será de várias formas interditada, ou seja, ela será afastada do espaço público, do trabalho fora de casa, de seu desejo individual uma vez que tem em seu corpo o agente da maternidade inata. Segundo os médicos do período, é por este instinto materno que deve se preocupar mais com os outros do que com ela mesma33. A função feminina será então a de manter a ordem dentro de casa, de proporcionar o bem-estar aos filhos e marido. Uma das peças de roupa da mulher do século XIX será o espartilho acompanhado por um grande volume de saia até os pés. O espartilho é uma peça que estrangula o tórax da mulher para afinar sua cintura e avolumar os seios. Metaforicamente, talvez esta interdição vivida pelas mulheres do período em questão, pelo restrito uso do espaço público e pelo afastamento de seu próprio desejo pessoal, possa ser comparada ao uso do espartilho, que interdita o andar, o movimento, a respiração, os órgãos internos, e é claro a natureza do corpo.

O estabelecimento de diferentes funções sociais para o homem e para a mulher, iria afastá-los consideravelmente, apesar de serem “parceiros” neste novo contexto. Por mais que suas funções fossem complementares, suas experiências seriam totalmente diferentes. Às mulheres caberia o tempo da casa, dos filhos, sendo que ao homem caberia o tempo dos negócios, das fábricas e das indústrias. Ou seja, o tempo da mulher será diferente do homem. Se para o homem burguês “tempo é dinheiro”, para as mulheres o tempo seria constituído pelos nove meses de gestação, pelo preparo do enxoval, a expectativa da espera pelo marido ideal, o noivado, e até o tempo de espera da chegada dos filhos da escola e do marido do trabalho. O ócio da mulher burguesa permitirá que esta encontrasse tempo para se dedicar à aparência.

Para uma sociedade em que os valores da economia e do lucro eram fundamentais, a demonstração de consumo ostentatório representava uma boa publicidade. A mulher era a vitrina do homem; ao fabricar uma aparência

33

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exageradamente feminina, ela proclamava sua segunda posição na ordem social e familiar. 34

O afastamento do homem das questões da moda e a intensa valorização da mulher a esta, demonstra que esta nova sociedade européia do século XIX, além de destinar à mulher as funções de mãe/esposa, também a destina novas funções: estar bonita e bem vestida. Não bastaria a mulher ser boa mãe e esposa, mas deveria aparecer à sociedade bela e com roupas consideradas “na moda”.

O Brasil, ao longe, acompanhava essas mudanças. Apesar da distância, as notícias sobre a instauração de novos hábitos e comportamentos chegava por meio de livros, jornais e viajantes. Alguns autores afirmam a presença dos ideais europeus em terras brasileiras, desde o século XIX35. Porém a Europa e o Brasil eram muito diferentes. A modernidade e os ideais burgueses, pareciam não corresponder à realidade brasileira. Médicos, educadores, autoridades públicas e religiosas, os responsáveis por instaurar tais modelos da modernidade, teriam um grande desafio ao introjetar esses ideais na sociedade brasileira.

34

Roche, op.cit. P. 73.

35

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1 - A Modernidade dos corpos

A sociedade brasileira durante o século XIX, em nada se parecia com a sociedade européia no mesmo período. Sinais do que era moderno, e do que era antigo chocavam-se a todo momento. Vivíamos em uma miscelânea cultural parte indígena, parte africana, parte européia. Mantínhamos traços dos mais de 300 anos que servimos à Metrópole portuguesa, de uma independência tardia e elitista, e ainda de um sistema imperial em declínio. Porém, o crescimento da economia brasileira através da exportação do café, possibilitaria mudanças significativas, trazendo imigrantes, consolidando o capitalismo e incrementando a vida urbana.

Apesar de tantas diferenças, para a elite brasileira nada impediria de trazer a modernidade para essas terras tropicais. Todo o avanço tecnológico, o discurso médico-científico, a urbanização das cidades, e a instauração de novos hábitos e comportamentos chegaram ao Brasil simbolizando os “novos tempos” nos moldes europeus. Os responsáveis pela modernização brasileira concentraram suas atenções a duas grandes questões, que, a seu ver, seriam importantes e definidoras para o sucesso desta campanha: a família e a cidade. Um povo civilizado e limpo, habitando um país civilizado e urbano.

Com a República emergente no final do século XIX, esta busca pela modernidade aumentaria consideravelmente. As primeiras cidades a vivenciarem tais transformações foram Recife e Rio de Janeiro, porém, São Paulo aos poucos as alcançava. Num salto de crescimento, no período que abrange de 1870 até 1920, a

cidade de São Paulo, se transformaria no centro econômico e político do Brasil36.

Durante esse período, artistas, arquitetos, urbanistas, médicos, sanitaristas e intelectuais trabalhavam para a modernização da cidade e de seus habitantes. E logo, era possível notar a diferença da antiga São Paulo rural e pequena, limitada às ruas situadas entre os rios Anhangabaú e Tamanduateí, para o grande centro urbano do Brasil, com ruas movimentadas, fábricas, lojas, cafés, teatros, cinematógrafos, escolas, bondes, e principalmente, energia elétrica. A urbanização da capital paulista podia ser experimentada de várias formas, o que permitiu o surgimento de novas relações sociais através dos novos espaços de convivência37.

36

Cruz, Heloisa de Faria. São Paulo em Papel e Tinta: periodismo e vida urbana 1890-1915. SP: Educ, 2000. P. 60.

37

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Vale dizer que a campanha de modernização não se dava para toda a sociedade paulistana, pelo contrário, ela tinha um forte caráter elitista. Seriam apenas as classes abastadas que realmente se beneficiariam com essas mudanças. Além de se beneficiarem com tais mudanças na estrutura na cidade de São Paulo, seriam esses grupos que deveriam também passar pelas maiores transformações.

A importância econômica dessa fração da classe cafeicultora é medida principalmente pelo montante da sua riqueza e mais, pela diversificação e complexidade dos seus investimentos. Porém, seu ser social só ganha realidade através de um conjunto de marcas e distinções visíveis que indicam a sua posição específica no todo da sociedade. 38

A multidão da cidade dificultava olhares minuciosos. Tornava-se difícil observar os detalhes das próprias pessoas, dos ricos e dos pobres, na massa que circulava pelas ruas movimentadas. E assim, a moda, os hábitos e o comportamento, que já eram utilizados pela burguesia européia como forma de distinção social, seriam também utilizados nos centros urbanos que se modernizavam no Brasil, principalmente em São Paulo. Seria valorizada uma forma de conduta considerada moderna, que implicava num conjunto de características, tais como a valorização da família, e a adoção de hábitos saudáveis e higiênicos. É neste momento que especificamente na imprensa se constrói uma nova imagem da mulher, capaz de acompanhar tais mudanças.

A imprensa periódica paulista, durante a virada do século XIX para o XX, seria um importante meio de divulgar e discutir os novos hábitos da modernidade. A Revista

Feminina sendo um significante veículo de informações às mulheres da elite paulistana

neste período, tentaria ao longo de seus artigos, orientar e ensinar o que era ser uma mulher em tempos de modernidade. As novas formas de sociabilidade, permitiam à mulher perambular pelo espaço público, a ocupação da rua, dos locais de lazer e de

comércio – e, especificamente em relação às mulheres burguesas, dos espaços

38

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dedicados à vida mundana – exige preparação, trabalho prévio a ser realizado sobre o rosto e sobre o corpo. 39

Qual é o papel da mulher na sociedade moderna?

A meu ver, o papel desempenhado pela Mulher até aqui, tem sido deficiente e ao mesmo tempo deprimente... Só no Brasil a Mulher parece conservar-se inactiva... Mas é preciso que ella se faça nympha e crie azas, que alargue o seu horisonte rompendo obstáculos e entraves para conquistar o lugar que lhe compete nas sociedades modernas. E é por isso que saúdo [...] a Exma Sra. D. Virgilina de Souza Salles, pela brilhante iniciativa, fundando um jornal para senhoras que, embora isento de caracter feminista, concorrerá para o preparo do espírito da Mulher brasileira de hoje para que amanhan ella reconquiste o lugar a que tem direito nas sociedades bem organizadas. 40

Em 1915, em um dos exemplares inaugurais da Revista Feminina já percebemos a presença da discussão sobre a função da mulher na sociedade moderna que se forja. Percebemos que para a autora era fato que se viviam novos tempos, e que a mulher deveria acompanhar tais mudanças. Para D. Bartyra, em comparação a outros países, o Brasil estava atrasado em relação à condição feminina, e ainda, que a Revista Feminina seria de extrema importância para revelar à mulher da elite brasileira, e principalmente paulistana, qual deveria ser sua nova função dentro desta nova sociedade. Percebemos um tom ao mesmo tempo romântico e de ousadia nas palavras da autora, ao dizer às mulheres que elas deveriam soltar as amarras dos outros tempos, e se aventurarem ao modernismo. Ressaltamos o uso da palavra “mulher” com a letra maiúscula neste artigo, provavelmente para demonstrar sua grande importância social.

Quando a autora relata que a Revista Feminina não era “feminista”, lembramos que este conceito para a época se traduzia na campanha pelo sufrágio feminino. Ao

39

Schupn, Mônica R. Beleza em Jogo: cultura física e comportamento em São Paulo nos anos 20. SP: Senac, 1999. P. 23.

40

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longo dos anos em que a Revista foi publicada, esta discussão acerca do feminismo irá aparecer, porém, até o momento em que este artigo havia sido escrito, não notamos tal presença.

O artigo atribuído a Sra. D. Bartyra Tybiriça discute com propriedade o assunto, porém, vale lembrar que na época era comum o uso de pseudônimos, e até traduções de textos de outros países, por isso não podemos afirmar com certeza quem seria realmente o autor. Mas a questionável autoria do artigo, em nada afeta sua importância e credibilidade. Afinal a grande importância deste seria sua mensagem, em esta chegar às leitoras da Revista, e em fazê-las crer como uma verdade a ser seguida.

As nossas avós não tinham vontades, nem mesmo no seu amor. Conheciam os noivos no dia do casamento [...] Por uma imposição paterna entregavam a meiga candura da virgindade á nupcia fria de uma conveniência, privada ou social. A reacção da Eva moderna é, portanto, um movimento de reinvidicação, que se vem formando na alma, através dos séculos: suffragettes. 41

Neste artigo do Dr. Cláudio de Souza, percebemos a quem o discurso da modernidade, contido na Revista se opõe. A Revista Feminina como porta-voz das mulheres modernas, se coloca contra a posição das mulheres na sociedade patriarcal das famílias paulistas do século XIX. Enclausuradas nas alcovas familiares, sua única função era cuidar dos filhos, da casa e do marido. O casamento era realizado por conveniência, qualquer tipo de educação ou instrução lhe era negado.

Por isso nesta comparação, o Dr. Cláudio de Souza demonstra claramente que a posição das mulheres na sociedade estaria agora, em 1917, melhorando e evoluindo. Agora as mulheres poderiam ser mais participativas e manifestar suas vontades, ou pelo menos sua participação já era discutida pelos membros da sociedade.

O autor aponta as suffragettes como o reflexo desta “nova mulher” mais ativa socialmente, porém, lembramos que o voto feminino só seria uma realidade em 1934 pela Constituição Varguista. Ressaltamos o uso da palavra “Eva” para se referir à mulher, demonstrando que, apesar da busca em romper com a posição social feminina

41

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de tempos anteriores, a instauração dos “novos tempos” não rompia com a forte presença religiosa no país. Pelo contrário, o discurso da modernidade se alia às regras

de uma moral católica42.

Mas este não é o único momento em que a Revista traria um artigo mostrando os avanços da participação feminina, e de sua posição na sociedade.

As moças de hoje, é innegavel, em nada se parecem com as de vinte annos atraz [...] A sua preoccupação máxima, entre outras, era então, ter uma cinturinha a força de espartilho, a comprimir pulmões e vísceras. Não andavam; tinham o passinho miúdo; não comiam, lambiscavam. O chic era ser pálidas e delgadas... Que mudança se operou d’alli por diante! Quem em tal acreditaria?Com effeito, as jovens de hoje são mais praticas, mais enérgicas, cheia de vida na liberdade de movimentos que adquiriram com os habitos de uma nova era desportiva, toda de gymnastica, que aboliu as torturas do espartilho, pela adopção de uma educação physica moderna. 43

Neste artigo anônimo, a Revista novamente levanta a questão de que as mulheres naquele tempo adquiriram novos hábitos, porém, traz as diferenças entre as mulheres de antigamente, e dos novos tempos. Matronas corpulentas e mocinhas frágeis deveriam

ceder lugar a uma mulher enérgica, vigorosa, delgada, ágil, de aparência jovem e

saudável44. A mulher moderna, no início do século XX, deveria ser prática, ágil,

saudável, com corpos mais livres e trabalhados. Assim como a estrutura da cidade de São Paulo se transformava com o advento da urbanização, os corpos femininos deveriam também, passar por tais transformações através da moda e da aparência. A transformação na estética da cidade, devia refletir na estética dos corpos através do

42

Sant’Anna, Denise B. “Cuidados de si e embelezamento feminino: fragmentos para uma história do corpo no Brasil” in: Políticas do Corpo. SP: Estação Liberdade, 1995. P. 124.

43

“Mulher e a Gymnastica” autor anônimo, em Revista Feminina de dezembro de 1919.

44

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trabalho corporal com o movimento, a adoção de roupas mais leves, e de hábitos mais saudáveis.

As comparações entre as mulheres de décadas anteriores, e as modernas mulheres exaltadas pela Revista Feminina, parecem diminuir ao longo da década de 20. Mantendo apenas as formas de como cuidar da mente e do corpo, para se adquirir tal “personalidade”. Talvez, sendo nos anos 10 uma grande novidade este tipo de mulher, havia a necessidade em explicar às leitoras o que estava havendo com sua sociedade, e ainda o que esta esperava delas. Percebemos ao longo da década de 20 a presença apenas das “receitas” para se adquirir este visual moderno, porém nenhuma justificativa para tal. Provavelmente, já estaria claro às mulheres, do que se tratava a tão almejada modernidade.

Em 1935, o artigo intitulado “Nova Mulher Brasileira”, aponta os resultados desta modernização da posição da mulher na sociedade paulistana e talvez, brasileira.

A classe feminina está se transformando de tal forma que o mundo inteiro observa assustado o alarmante estado de cousas. Alguns ha que declaram já tempo passado para a mulher moderna lembrar-se de sua verdadeira missão e altos deveres, os quaes, dizem, são incompatíveis com os muitos abusos e excessos da vida actual. Acham que a mulher está se dedicando a prazeres frívolos em desaccôrdo com as leis da moral e da família. Outros ha que explicam o caso dizendo que as mulheres ávida de diversões constituem uma grave ameaça á sociedade moderna [...] Não puderam resolver como moderar o modernismo. 45

Neste artigo da década de 30, percebemos que a modernidade tão exaltada trouxe problemas para a sociedade. A autora apresenta com clareza que a modernidade e a liberdade que esta trazia, devia ser simplesmente para beneficiar as mulheres a exercer suas funções e deveres sociais. Porém, essa liberdade trouxe também uma série de possibilidades a elas, como por exemplo, a desta transitar pelas ruas desacompanhadas.

45

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Aos poucos, ocupando lugares que antes eram exclusivamente masculinos, as mulheres passariam a ser vistas em festas, com roupas exageradas, maquiagens mundanas, até alguns vícios. Logo, para uma sociedade que visava a modernização através da civilização dos corpos e da moral, isto seria inaceitável. As “mães da Nação” deveriam usufruir de suas novas liberdades, apenas para beneficiar a pátria, e não prazeres fúteis. Porém, como a própria autora relata, seria impossível, naquele momento, moderar o modernismo. Alguns princípios da modernidade já eram uma realidade.

Ao final deste editorial, a autora lembra que ainda existem avanços consideráveis para as mulheres na sociedade moderna, como sua participação no mercado de trabalho e até em escolas superiores. E que muitas, utilizavam sabiamente os avanços em sua posição social para beneficiar seus deveres sagrados enquanto mãe/esposa/dona de casa.

Entre os anos de 1915 a 1923, aparecem na Revista Feminina, dezenas de artigos que valorizam as funções de mãe/esposa/dona de casa. Como se buscassem responder de forma didática às perguntas formuladas pelas próprias leitoras, sobre como continuar a exercer tais funções, dentro de uma sociedade que se reestruturou.

As moças devem aprender a conhecer sua importancia neste mundo. A obra da mulher; o seu valor para a família, para a comunidade, para a nação e para a raça [...] E´ bom que as moças pensem no casamento e na maternidade, se o fizerem de maneira sensata. 46

Neste artigo de 1916 destinado às jovens leitoras da Revista Feminina notamos seu caráter didático, “ensinando” às moças sua importância para a sociedade. O casamento e a maternidade deveriam continuar sendo sua meta, e que assim, ela estaria contribuindo para o crescimento e desenvolvimento da nação brasileira. Na sociedade do início do século XX, exercer sabiamente sua função como mãe e esposa era uma responsabilidade em benefício não só para a família, mas para toda sociedade brasileira. A mulher como “rainha do lar”, figura como o agente catalisador da família, ou seja, a mulher concentra os filhos e o marido no núcleo familiar. Sendo a família de extrema

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Referências

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