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– PósGraduação em Letras Neolatinas

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Academic year: 2018

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Danielle Grace de Almeida

F. P.: AS PANÓPLIAS DO POETA E O ARSENAL DA CRÍTICA

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quisito parcial à obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas - Literaturas de Língua Francesa.

Orientador: Prof. Doutor. Marcelo Jacques de Moraes.

Rio de Janeiro Faculdade de Letras da UFRJ

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2 F. P.: AS PANÓPLIAS DO POETA E O ARSENAL DA CRÍTICA

Danielle Grace de Almeida

Orientador: Professor Doutor Marcelo Jacques de Moraes

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos quisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas – Literaturas de língua francesa.

Examinada por:

_________________________________________________ Presidente, Prof. Doutor Marcelo Jacques de Moraes

_________________________________________________ Profa. Doutora Paula Glenadel Leal – UFF

_________________________________________________ Prof. Doutor Adalberto Müller – UFF

_________________________________________________

Prof. Doutor João Camillo Penna – PPG Ciências da Literatura – UFRJ

_________________________________________________ Prof. Doutor Edson Rosa da Silva – PPG Letras Neolatinas – UFRJ

_________________________________________________ Profa. Doutora Masé Lemos – UNIRIO, suplente.

_________________________________________________

Prof. Doutor Marcelo Diniz – PPG Ciências da Literatura – UFRJ, suplente.

Rio de Janeiro Faculdade de Letras da UFRJ

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3 Danielle Grace de Almeida

F. P.: AS PANÓPLIAS DO POETA E O ARSENAL DA CRÍTICA

Rio de Janeiro Faculdade de Letras da UFRJ

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4 AGRADECIMENTOS

Ao Professor Marcelo Jacques de Moraes, companheiro de uma trajetória de crescimento intelectual. Para mim, um modelo inigualável de trabalho, comprometimento e leveza.

Ao Professor Michel Collot, da Universidade de Paris III, pela acolhida gentil e por abrir um canal de interlocução entre mim e seu trabalho sobre Francis Ponge e a poesia francesa.

Ao professor Jean Vigne, da Universidade de Paris VII, pela oportunidade que me deu de falar sobre minha pesquisa.

A Emna, que fez os meus dias parisienses bem mais coloridos. E que junto com Hichem nos recebeu em sua casa e nos fez conhecer lugares lindos e pessoas maravilhosas. A Foufa e Fifi, pelas risadas e pelos momentos inesquecíveis nos cafés de Paris e nas acomodações do 42, rue du Père Guérin.

A Bruno e Elo, pela doçura e as conversas ainda sem fim.

A Camila e Ana, a prova da astúcia dos acasos, pelos lugares que conhecemos e pelas conversas sempre deliciosas.

A Jorge e Solange, pela hospitalidade e o carinho inesquecíveis.

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5 DEDICATÓRIA

Dedico esta tese ao Dido, meu interlocutor ideal e imprescindível

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6 Je dois, en effet, me présenter. Vous entendez un homme qui a choisi, voici longtemps, de vivre d’une certaine manière,

d’agir d’une certaine manière. Quelle manière ? L’écriture.

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7 RESUMO

Esta tese tem como objetivo em um primeiro momento pensar a imbricação entre escrita e política na representação do poeta na obra de Francis Ponge. No seu projeto literário, a relação entre o poético e o político difere do modo como ela era concebida na era romântica, e mesmo na sua época, pelos escritores politicamente engajados. Ponge construiu ao longo de sua carreira uma verdadeira fábrica de armas, bombas explosivas, todas compondo suas panóplias poéticas. Em um segundo momento, partindo do tratamento particular das coisas em Ponge, serão investigadas as diversas visões críticas em torno de sua obra. Ora através de uma perspectiva “literalista”, ora a partir de uma leitura que identifica um novo lirismo, um “lirismo objetivo”, a crítica parece ter desenvolvido um arsenal poderoso para mostrar como a obra pongiana põe em questão a própria ideia que se tem de modernidade.

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8 RÉSUMÉ

L'objectif de cette thèse est dans un premier temps de penser l’enchevêtrement entre écriture et politique dans la représentation du poète dans l'œuvre de Francis Ponge. Dans son projet poétique, le rapport entre le poétique et le politique diffère de la façon dont il était conçu pendant la période romantique et, à son époque, par les écrivains engagés. Ponge a bâti tout au long de sa vie une véritable fabrique d'armes, de bombes explosives comme en témoignent ses panoplies poétiques. Dans un second temps, partant du traitement particulier des choses chez Ponge, ce travail vise à étudier les diverses visions critiques autour de son œuvre. La critique semble avoir développé, soit à travers une démarche “littéraliste”, soit à partir d'une lecture qui identifie un nouveau lyrisme, c'est-à-dire un “lyrisme objectif”, un puissant arsenal pour montrer à quel point l'œuvre pongienne remet en question l'idée même de modernité.

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9 SUMÁRIO

INTRODUÇÃO... 9

CAPÍTULO I POESIA EM TEMPOS DE CRISE... 29

1.1 – A tribuna e o profeta: um olhar para a tradição... 31

1.2 – Da modernidade e das “raisons d’écrire”... 52

1.3 – Ponge, “révolutionnaire” e “suscitateur”... 77

CAPÍTULO II AS PANÓPLIAS DO POETA E O ARSENAL DA CRÍTICA ...108

2.1 – Do partido e das coisas: a “impregnation” pongiana ...110

2.2 – “Et tu me serviras, et tu serviras aux hommes” ………...…134

2.3 – F.P ou o Fabricador de Pedras: a “bombe”, o “galet” e o “savon”... 168

CONCLUSÃO ... 192

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10 INTRODUCÃO1

São inúmeras as representações do poeta e da poesia ao longo da história literária francesa. Desde a era barroca, passando pela poesia clássica e pelo romantismo, a literatura, na figura emblemática do poeta, exerceu um papel importante na construção da língua e da identidade nacional. O fim do século XVIII e o início do XIX, como sabemos, trouxeram mudanças definitivas à relação do homem com o mundo. O Iluminismo e a expansão do processo de industrialização resultaram em um rearranjo dos modos de produção do capital e de distribuição da riqueza que impuseram também outras formas de se relacionar com a escrita e a arte. Nesse contexto de inovações, o lugar de prestígio antes concedido ao poeta também sofre abalos significativos, e esse personagem se encontra às voltas com uma crise que diz respeito à própria definição de poesia.

Sendo assim, no âmbito dessa pesquisa, a questão que se desdobra é a seguinte: como pensar o lugar do poeta na tradição literária francesa a partir das figuras encarnadas por ele desde os primórdios do século XIX até o final do século XX, quando se consolida a obra de Francis Ponge? Ao longo destes quase dois séculos que estão em questão nesta tese, irei, em um primeiro momento, ao longo do primeiro capítulo, assinalar o nascimento e o aprofundamento da crise da poesia e do lugar do poeta. Este desempenhou diversos e contraditórios papéis na sociedade, evidenciando assim uma ruptura brusca em relação a um modelo mais ou menos constituído por uma dada tradição romântica. Analisando a atuação desse personagem a partir de alguns recortes da história literária francesa, discutirei primeiramente de que modo a função do poeta se insere em um imaginário específico, referenciado por muito tempo pela figura do poeta-profeta encarnada por Victor Hugo, isto é, uma espécie de mentor e guia espiritual de seu povo.

Chegando à era moderna, a imbricação entre o trabalho poético e as questões sociais se dará de modo completamente diferente, apontando para um novo tipo de interferência da arte na realidade. Já nos primeiros anos do século XX, as razões de ser da literatura sofrem uma reconfiguração drástica, encenando as transformações do olhar do Homem sobre si próprio, que será colocado em questão. Após as destruições e o horror da primeira Guerra Mundial, o lugar do poeta ligado à sua função de guia

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11 espiritual parecia perder completamente o sentido. Como pensar então o papel da arte nesse contexto de descrença em relação ao ser humano e ao seu processo civilizatório?

Francis Ponge nasce e cresce justamente nessa conjuntura sócio-política e artística. A modernidade poética que caracteriza a geração de 1870, como o próprio poeta gosta de lembrar, a de Lautréamont, Rimbaud e Mallarmé, aponta para uma nova direção, qual seja, a do trabalho sobre a língua como estratégia de intervenção na realidade. Mas Ponge parece deslocar a questão, como irei investigar em um segundo momento deste estudo, ou seja, no decorrer do segundo capítulo, ao privilegiar a coisa nessa relação entre a linguagem e o mundo. Dessa maneira, o poeta acaba por fundar uma moral da escrita que privilegiará a relação do homem com o mundo concreto em um face a face com a língua, com a materialidade das palavras postas em funcionamento para seu bem-estar. Trata-se, então, de arrancar as palavras do uso automatizado a que a sociedade moderna tende a condená-las. Ou, poderíamos dizer, para me valer da expressão cunhada pelo poeta, em 1952, em “Entretien avec Breton et Reverdy”, que todo o projeto poético de Ponge consiste em tirar a língua do “manège”2, em que ela se encontra, orbitando quase que exclusivamente em torno da lógica utilitária do mercado.

Ao percorrer essa trajetória, espero entender como Francis Ponge, encarnando o poeta moderno, aponta para um método distinto de interferência da poesia na sociedade. Ponge é um poeta moderno como afirma a crítica, mas que, a meu ver, consegue perceber as incongruências desta modernidade. É o que o leva, por exemplo, a criticar a escrita automática dos surrealistas, alegando que, com esse tipo de prática, a poesia não se voltaria para a própria linguagem, no intuito de trabalhá-la a favor do indivíduo. Os “ditados do inconsciente”, como Breton define sua técnica, acabam por não contribuir para tirar o homem destes “manèges” que servem apenas para encarcerá-lo em argumentos, expressões e sentimentos viciados pela sordidez dos sistemas políticos e econômicos.

Para Ponge é preciso continuar a partir da intuição de Lautréamont e Rimbaud, a de que cada homem deve inventar seu próprio modo de se expressar, recusando significados estabelecidos que continuam a produzir sempre os mesmos ruídos. Além desses poetas, Ponge deseja seguir também o projeto de modernidade fundado por Mallarmé, ou seja, o trabalho incessante com a língua, forçando suas estruturas,

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12 expondo seus brancos e seus vazios. Entretanto, Ponge também aponta uma imperfeição do projeto mallarmeano. É justamente nos meandros em que a língua se perderia da realidade, em que a escrita se tornaria um maquinário hermético completamente fechado em si, é ali que Ponge deseja intervir por meio de sua obra. Ora, a escrita pongiana assume “l’amour”3 do “coupd’épée fatal”4 do texto pelo leitor. Ela o deseja, insinua-se para ele, chama-o para perto dela e o beija a boca, como ele dirá em um de seus textos.

Eis o modo pongiano de mudar o mundo. Sob este aspecto, sua poesia se mostra, portanto, política. E, de acordo com Jacques Rancière, não poderia deixar de ser, pois a literatura está sempre empreendendo, são as palavras do filósofo, um rearranjo “da partilha do sensível”5. Essas redefinições do modo de ver e de sentir o mundo são, para o filósofo, um ato político por excelência, como desenvolverei melhor no decorrer da tese. Nesse sentido, acredito que o projeto de modernidade de Ponge se completa na relação entre escrita, homem e política. Ele uniu esses três temas em um só propósito poético, em uma só moral. Ponge não fala explicitamente de política, mas sabe que, mesmo não o fazendo, ou talvez justamente por essa razão, a sua poesia tem interferência política. O poeta, parece-me, está consciente de que, através de sua arte, ele realiza necessariamente um reagenciamento do “sensível”, e, por isso, trabalha para potencializar seus argumentos, transformá-los em armas extremamente explosivas, ou como ele mesmo diz, suas “panoplies” 6.

A espada e a lira

Segundo Antoine Compagnon, em La Littérature française: dynamique et histoire II, um acontecimento em especial foi importante para um novo momento da história da literatura, na virada do século XIX para o XX. Diria até mesmo que este evento se tornou bastante emblemático para se pensar como se configura o lugar do escritor no decorrer do novo século, e as razões que o motivaram a escrever, questões que percorrerão todo o primeiro capítulo desta tese. Valioso também para refletir sobre o modo como a obra de Francis Ponge vai reagir ao par sempre polêmico constituído pela aproximação entre poesia e política. Assim, passo às palavras de Compagnon:

3Proêmes (1948), In. PONGE, 1999, p. 190.

4 La Rage de l’expression (1952), In. PONGE, 1999, p. 341.

5 RANCIÈRE, 2000, p. 12.

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Para marcar o início do século, 1898 parece de repente tão ou mais significativo que 1914, é o ano crucial do caso Dreyfus, após a publicação por Zola de Eu acuso em janeiro; é o ano do nascimento e da mobilização dos “intelectuais” (...).1898 marca assim o início do “engajamento” da literatura, questão política que devia atravessar quase todo o século”7.

Recordemos, então, alguns fatos que nos possibilitarão repensar a relação que, no novo século, iria se desenvolver entre literatura e lutas sociais. Em janeiro, o jornal L’Aurore publica a carta-manifesto J’accuse, dirigida por Émile Zola ao presidente da República e a alguns militares. Nela, o escritor expressa sua indignação pela injustiça cometida contra um capitão judeu, Alfred Dreyfus, acusado erroneamente de espionagem contra o governo francês, depois julgado e condenado à prisão perpétua. De fato, a interferência de Zola contribuiu para tornar o episódio um escândalo nacional, que resultou em sua condenação e exílio.

Apesar desse destino trágico do escritor, o caso Dreyfus, como ficou conhecido, ganhou a adesão de uma classe nascente que se tornaria muito influente nessa interação entre literatura, ciência e política. Trata-se dos “intelectuais”, como passaram a ser chamado aqueles escritores, professores e cientistas consagrados em suas áreas que se mobilizaram a favor da libertação do militar. A repercussão pública e a intervenção desses homens foram tão significativas que dois grupos dissidentes nasceram desse embate, formados por alianças entre pessoas que lutavam a favor ou contra a libertação de Dreyfus – os antidreyfusards e os dreyfusards – e que transformaram o caso em um pretexto para o engajamento em causas político-sociais.

As represálias advindas da acusação de Zola contribuíram, na verdade, para a sua consagração como escritor e herói do povo, e para concessão aos intelectuais de um poder de intervenção na cena pública que justificaria, inclusive, o próprio surgimento dessa nova classe. Através da literatura, por exemplo, a denúncia e o ativismo político ganham grande repercussão entre os estudantes universitários. De acordo com Benoît Denis, em Littérature et engagement, de Pascal à Sartre, isso se explicaria porque

o intelectual é aquele que, invocando a competência que lhe reconhecem na sua disciplina, deseja “abusar” dela para uma boa causa, ou seja, para tomar posição no debate público (...). O intelectual tem portanto a posição do árbitro e do franco-atirador, e usa da sua

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posição de exterioridade com relação à esfera política para proferir uma palavra ao mesmo tempo autorizada e carismática.8

Diferentemente do poeta Victor Hugo, Zola não era um atuante stricto sensu da política. Ele não ocupava cargos, não organizava manifestações a favor de sua causa, mas se serviu do lugar de distinção atribuído, em geral, ao autor, na cultura francesa, para mobilizar toda uma sociedade e instaurar um novo espaço de atuação. Pierre Bourdieu, ao afirmar que teria sido a intervenção de Zola no caso Dreyfus a responsável pelo surgimento dessa nova figura que chamamos de intelectual, explica assim sua gênese e funcionamento:

O intelectual constitui-se como tal intervindo no campo político em nome da autonomia e dos valores específicos de um campo de produção cultural que chegou a um alto grau de independência em relação aos poderes (e não, como o político com forte capital cultural, com base em uma autoridade propriamente política, adquirida à custa de uma renuncia à carreira e aos valores intelectuais). 9

E esse campo de atuação do intelectual de que fala Bourdieu se fortalecerá ainda mais ao longo do século XX. Na verdade, como irei mostrar na seção 1.1, intitulada “A tribuna e o poeta: um olhar para a tradição”, a relação entre arte e causas sociais e políticas, já se havia estreitado em diversos momentos da história literária da França. Com o romantismo, por exemplo, passava-se a vincular a imagem do escritor a uma missão social e redentora. Antes mesmo de o termo “literatura engajada” ser popularizado, a idealização do poeta missionário já parecia personificada na figura de grande poeta encarnada por Victor Hugo. Depois, aproximando-se da passagem para o novo século, em meio a tantos conflitos e guerras, o escritor se verá destituído de um lugar que lhe era próprio. Com Charles Baudelaire, por exemplo, a figura do poeta será tomada de uma melancolia ambígua. Isso ocorre quando, simbolicamente, o autor de Les Fleurs du mal afrouxa as cordas da lira, ao deixar na lama sua “auréola” sagrada, para enfim se perder nas esquinas de uma vida mundana, rumo aos desígnios do poeta maldito. Por tudo isso, a reflexão sobre poesia e política no decorrer do século XIX e início do XX estará também bastante presente nessa seção. Além disso, discutirei as ideologias que embalaram as gerações de românticos, chegando ao desinvestimento e ao decadentismo do final do século.

8 DENIS, 2000, p. 203.

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15 Mas fiquemos, por enquanto, no âmbito da repercussão da iniciativa de Zola e do modo como ela colaborou para o surgimento e o fortalecimento dos intelectuais. Denis explica que,

com Zola e o Eu acuso, o intelectual torna-se uma figura heroica, já que essa intervenção se efetiva pondo em perigo a pessoa mesmo que a assume: Zola é perseguido, condenado, constrangido ao exílio, escarnecido por uma parte da opinião e morre10 em circunstâncias

suspeitas.11

Esses fatos mostram uma entrada marcante da figura do escritor no cenário político, não através do exercício de cargos públicos, como já dissemos, mas da formação de atitudes e ideologias que vinham embasar os debates políticos, formadores de opinião, e ganhavam os espaços universitários, as livrarias, as ruas. Zola levou a sua causa até as últimas consequências, e por causa dela foi, ao mesmo tempo, perseguido e admirado. A sua história foi exemplo da imbricação entre arte, política e vida. Por isso, o autor se tornou a figura paradigmática dessa relação entre escrita e ideologia política que, como afirmou Compagnon, “atravessa[rá] quase todo o século”12.

Na virada do século XIX, grandes adventos tecnológicos e científicos anunciavam outras formas de o homem estar no mundo, e a literatura acompanhou esse movimento. Trata-se de uma era muito peculiar na literatura francesa e europeia: a das vanguardas, que contribuíram para modificar a relação entre literatura e engajamento, como vamos ver na seção 1.2, intitulada “Da modernidade e das ‘raisons d’écrire’”. O surrealismo, por exemplo, em sua primeira fase (1919-1930), visava, sobretudo, à subversão dos valores morais, transformando, definitivamente, a relação privilegiada da era romântica entre poesia e sociedade. Por outro lado, parece-me que com aqueles jovens se reataria o senso de ação política ligada à atividade literária.

Francis Ponge irá, porém, em uma direção contrária da que escolheram os surrealistas. As suas razões para se expressar poeticamente serão outras, como discutirei nessa seção. Por isso, cabe desde já formular a seguinte pergunta: de que forma a obra de Ponge, mesmo distante de engajar sua arte em um ideal propriamente político, apontaria para uma responsabilidade do escritor que visa a transformar, a seu modo, os mecanismos sociais e políticos estabelecidos?

10 Émile Zola morre em 29 de setembro de 1902 asfixiado em seu apartamento em Paris. 11 DENIS, 2000, p. 203.

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16 Ponge parece tratar do político por perspectivas distintas das oferecidas pelos modos de articulação então vigentes entre literatura e política. Para intervir na realidade e transformar a ordem das coisas no mundo, o poeta realiza um trabalho que, como ressalta Jean-Marie Gleize em Littéralité não incidiria diretamente sobre a “representação, a imagem, mas [sobre] as condições da representação, o que ele chama de ‘figures’”13. O que importa, então, para o poeta, é modificar os modos de figurar a realidade, de maneira a possibilitar ao homem se relacionar com as coisas de um modo mais criativo.

Para seguir nesse caminho, as reflexões de Rancière, que pensa a escrita como mecanismo de redefinição do real, de agenciamento do que é visível e dizível no interior de um grupo social, nos ajudam a pensar uma outra definição do ato político. Em Politique de la littérature, o filósofo explica a expressão que intitula seu livro da seguinte forma:

A expressão “política da literatura” implica que a literatura faz política enquanto literatura. Ela indica que não se deve perguntar se os escritores devem fazer política ou se consagrar preferencialmente à pureza de sua arte, mas se a própria pureza tem a ver com a política. Ela indica que há uma ligação essencial entre a política como forma específica da prática coletiva e a literatura como prática definida da arte de escrever.14

Ora, o que Rancière mostra com essas palavras é que a literatura enquanto arte da escrita redefine o modo como os indivíduos percebem o mundo. Isso é político na medida em que essas transformações são partilhadas socialmente e transformam as condições de vida dos seres em sua coletividade. Diferentemente do que acredita Jean-Paul Sartre, como discutirei na seção 1.3.: “Ponge, ‘révolutionnaire’ e ‘suscitateur’”, o escritor, para Rancière, não precisa necessariamente adotar uma atitude declaradamente política, no sentido de ação coletiva, para interferir nos acontecimentos. A sua intervenção não se daria, tampouco, por meio de uma prosa que se pretendesse clara e objetiva.

Para Sartre, a prosa deve servir à luta, mas a poesia não, pois acredita que somente a primeira teria o poder de transformar palavra em significado, enquanto a poesia, assim como outras formas de representação artística, seria muda, opaca, não

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17 produziria significados, e por isso não poderia interferir na esfera política. Ele explica sua visão da seguinte forma, em Qu’est-ce que la littérature?:

Não se pintam significados, não se transformam significados em música; sendo assim, quem ousaria exigir do pintor ou do músico que se engajem?

O escritor, ao contrário, lida com os significados. Mas é preciso distinguir: o império dos signos é a prosa; a poesia está lado a lado com a pintura, a escultura, a música.15

Tanto a música quanto a pintura não poderiam, então, produzir um discurso claro, visto que seu impacto se realizaria por vias subjetivas. Mas o escritor de prosa usa as palavras para esclarecer suas ideias, para convencer, argumentar. Ao desacreditar a poesia da possibilidade de um discurso político engajado, Sartre argumenta que entre poesia e prosa existe apenas um ponto de aproximação: ambas têm como material artístico as palavras. No entanto, a distância que as separa seria enorme, uma vez que o poeta “se afastou por completo da linguagem-instrumento [e] escolheu de uma vez por todas a atitude poética que considera as palavras como coisa e não como signo”. Para Sartre, ao transformar palavra em coisa o poeta desprezaria a potência comunicativa da língua, pois ela se tornaria turva como são também as coisas, não podendo dizer de si nem explicar-se: “A emoção se tornou coisa, passou a ter a opacidade das coisas; é turvada pelas propriedades ambíguas dos vocábulos em que foi confinada.” 16

De acordo com a concepção sartriana, escrever se transforma em um ato político somente quando se objetiva em um discurso que visa a desvelar uma verdade e a expô-la cexpô-laramente: “À medida que o prosador expõe sentimentos ele os escexpô-larece”. Sendo assim, a linguagem seria o instrumento através do qual a prosa pode construir significados políticos. Por outro lado, os poetas, como “se recusam a utilizar as palavras”, não estão aptos a produzir uma arte politicamente engajada: “o poeta, ao contrário, quando vaza suas emoções em seus poemas, deixa de reconhecê-las; as palavras se apoderam delas, ficam impregnadas por elas e as metamorfoseiam; não as significam, mesmo aos seus olhos.”17. Dessa forma, Sartre acaba por concluir a ineficiência da poesia em produzir um discurso claro que sirva ao engajamento, e convoca, então, o prosador para essa missão: “o fato de ao poeta ser vedado engajar-se

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18 será razão suficiente para dispensar o prosador de fazê-lo?” 18. Nessa perspectiva, a poesia não está apta ao engajamento político porque não produz um discurso “esclarecedor”, os sentidos das palavras escapam ao controle do poeta e “metamorfoseiam” suas emoções. Elas produzem significados à sua revelia e por isso não podem transmitir a mensagem política, já que esta, para ser bem sucedida, deve expor as ideias do autor com limpidez. Distanciando-se da visão de Sartre, Rancière nos permitirá repensar a questão do político em Ponge. Para o poeta, sendo a poesia uma das artes da escrita, ela intervém nos modos de ver, sentir e pensar do grupo de indivíduos alcançado, e, dessa forma, a linguagem poética se transformaria também em linguagem política.

Toda essa discussão me fará refletir, ainda na seção 1.3, sobre o modo como o escritor vê a sua poesia nessa relação com o político. Ponge diz a Philippe Sollers, em uma série de doze entrevistas ao Office de Radio-Télévision Française19, que não gostaria de ser considerado um poeta. Uma recusa que, a meu ver, deve ser problematizada, quando menos pelo modo raivoso como o escritor a expõe, mas também por certas asserções que, presentes aqui e ali em sua obra, apontariam para uma representação afirmativa do poeta.

Dentre elas, poderia citar, a do poeta revolucionário, que trabalharia justamente como especifica Rancière, ou seja, com a finalidade de intervir no modo como os indivíduos (se) expressam e (se) percebem no mundo. Ele se empenharia em oferecer ao homem novos argumentos, outros sentimentos, meios criativos de se comunicar: uma verdadeira revolução do modo como o homem se vê como parte do mundo. Desse modo, Ponge parece deslocar a questão do lugar da literatura na sociedade e do agir politico através da escrita. Em Le Parti pris des choses, o termo “parti pris”, mesmo com toda a sua carga política, não se refere a um ideal político mas a uma obsessão nova, direcionada para as coisas, como desenvolverei mais profundamente no segundo capítulo desta tese.

Enfin, Ponge vint

A obstinação de Ponge pelas coisas e pelo modo como elas tangem também à linguagem não é, nem de longe, um questionamento novo quando se trata de sua poesia,

18 SARTRE, 1948, p. 25.

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19 pelo contrário, ela tem sido uma das principais portas de entrada da crítica para a obra do escritor. Podemos até dizer que a relação entre objeto e linguagem que Ponge traz à cena literária francesa continua a pautar reflexões caras à poesia propriamente contemporânea, do final do século XX e deste início do XXI. Ela é, por exemplo, o pretexto para expor um funcionamento linguístico que se volta sobre si mesmo, como preconiza o estruturalismo dos anos 1960, ou a evidência da inscrição de um sujeito no mundo, se quisermos pensar em termos fenomenológicos. No segundo capítulo deste estudo, como mostrarei a partir de agora, examinarei essas características primordiais da escrita de Ponge à luz de perspectivas críticas que nos ajudarão a pensar a importância da obra pongiana para a redefinição da própria ideia que temos de modernidade.

Poderíamos dizer que, no século XX, a literatura francesa se configurou como uma arte multifacetária. Ela é conservadora e engajada, e, ao mesmo tempo, inovadora e descomprometida. Como define Compagnon, trata-se de uma literatura da “crise”, do “novo” e do “moderno”20, e que atravessará uma era repleta de adventos científicos e transformações político-ideológicas. Segundo o crítico, tomando por referência os eventos políticos e literários que marcaram a França do ponto de vista de uma história cultural, o ano de 1898 deveria ser considerado como a data inicial do novo século, como vimos há pouco. De acordo com suas reflexões, entre os eventos mais importantes estaria a morte de Mallarmé, cujo legado da crise da linguagem vai se configurar como peça fundamental para a construção de um ideal de modernidade a percorrer todo o século.

A proposta de Compagnon nos incita, então, a um debate sobre a relevância de certos acontecimentos para a história literária do século XX. Sendo assim, e para relacionar a reflexão sobre a construção de uma modernidade poética e a poesia pongiana, sugiro avançarmos um pouco na data do crítico francês, alguns meses apenas, até 1899: ano do nascimento de Francis Ponge. O poeta nasce em 27 de março na cidade de Montpellier, região francesa de Languedoc, de onde se muda após alguns meses para a região da Provence. Em relação a sua cidade natal, podemos intuir um impacto pouco significativo nas memórias do poeta, já que sua saída definitiva se deu logo depois de seu nascimento. Para Gleize, “Francis Ponge nasceu em Montpellier”, “mas isso não significa nada”21. As suas “déterminations”22, que discutirei mais aprofundadamente na

20 COMPAGNON, In. DELON et al, 2007, p. 555. 21 GLEIZE, 1988, p. 14.

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20 primeira seção do segundo capítulo, intitulada “Do partido e das coisas: a ‘imprégnation’ pongiana”, viriam, então, de outro lugar.

De família “nîmoise”, adjetivo que por sinal gosta de atribuir a si mesmo: “FRANCISCVS PONTIUS / NEMAUSENSIS POETA”23, Ponge vive suas primeiras experiências marcantes na região de Provence. Ele explica, na já referida entrevista a Philippe Sollers, que isso ocorre entre Nîmes, “la ville la plus romaine de la France”24, e Avignon, “c’est-à-dire la ville, non plus la plus romaine, mais la plus italienne de France” 25. Esse tema é em diversas ocasiões explorado pelo escritor. Os anos de sua infância e as cidades onde passou a maior parte dela ganham proporções extraordinárias.

Durante as primeiras décadas do novo século, a literatura não somente se inseria cada vez mais em um contexto moderno, como reafirmava sua posição de manifesto, de recusa das convenções literárias e sociais. Estas eram percebidas como empecilhos às possibilidades criativas de existência, como denunciaram as vanguardas europeias: o futurismo, o dadaísmo e, é claro, o surrealismo. Ponge também se encontra nesse contexto com o mesmo sentimento de raiva dos jovens poetas de sua geração, como atestam seus tempos de anarquista, nos anos 1920, relatados a Sollers. Durante esse período, ele elaborava meticulosamente seu método subversivo, manipulando as palavras de seu dicionário Littré como um terrorista26 manipula as peças de seu “engin”: “armes”27 apontadas para a ordem “sordide”28 das coisas. Uma longa preparação, engendrada “soigneusement et dans le secret”29. Um trabalho que remonta a um início longínquo, desde as impregnações advindas de seus primeiros anos de vida, e que marcaram profundamente sua escrita, como vamos ver ao longo de todo o segundo capítulo. Como o próprio poeta diz, ele foi, desde os primeiros anos de sua vida, afetado pelas palavras em sua materialidade, a exemplo das estelas de inscrições romanas, pelas quais ele passava frequentemente:

J’ai eu aussi sous les yeux, au début de mon enfance, des paysages et des architectures, et des inscriptions sur les dalles ou les stèles

23Comment une figue de paroles et pourquoi ? (1977), In. PONGE, 2002, p. 878. 24 PONGE, 1970, p. 37.

25 PONGE, 1970, p. 37.

26A imagem é de Gleize, cf. GLEIZE, 1988. 27 PONGE, 1970, p. 62.

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romaines, à Nîmes ou ailleurs, qui ont certainement marqué ma personnalité. 30

No início dos anos 1920, o jovem faz suas primeiras aparições entre os escritores de sua geração, em especial com a publicação do texto31 “Esquisse d’une parabole” (Le Mouton Blanc, 1922). A aceitação em seguida de “Trois Satires” pela Nouvelle Revue Française lhe confere um “succès” importante, que “ce n’était pas mal, à ce moment-là”. Nessa época, Ponge começa a frequentar o círculo literário, e apesar de sua entrada promissora, opta por outra via: “je me suis rétiré”. Trata-se de um momento de, são suas palavras, consternação contra o mundo “répugn[ant]” da “politique littéraire”. Ele relata essa experiência do seguinte modo: “J’ai été employé dans les bureaux des Editions Gallimard (...). Je m’occupais de la fabrication des livres, et là, évidemment j’avais affaire à un tas d’écrivains, de poètes, etc., qui me répugnait plutôt”32.

Assim, a publicação de seu primeiro livro, Douze petits écrits, em 1926, marca uma posição de reflexão. O formato conciso de textos curtos e aparentemente inacabados e o tom hesitante do interlocutor espelham uma atitude de recuo em relação à cultura literária da época que valorizava principalmente obras consistentes de ideias, e autores que se explicassem sem pestanejos: “Excusez cette apparence de défaut dans mon rapport. Je ne saurai jamais m’expliquer”33. Como reitera Gleize, o autor escolhe dar no “mínimo”, seu “máximo”: “Pode-se pensar que o autor de um primeiro livro deseja dar ao leitor o máximo do que ele sabe fazer. O mínimo é também forte, e até mesmo mais forte”34

Além disso, o livreto de Ponge investe na subversão dos valores capitalistas ao justapor duas imagens: a do poeta e a do “patient ouvrier” 35, que trabalham na contramão da mentalidade mercadológica, do imediatismo editorial, do conteúdo lucrativo, reivindicando o compromisso que o poeta, esse tipo de “ouvrier”-“patient”, tem com o mundo. Ainda nessa perspectiva, a obra não deixa de sinalizar o trato, a economia particular do escritor com as palavras, seu projeto ético, que Gleize define da seguinte forma:

30 PONGE, 1970, p. 37.

31 Trata-se de uma paródia bíblica. Sobre a repercussão dessa publicação, ver nota de “Esquisse d’une

parabole”, In. PONGE, 2002, p. 1494.

32 PONGE, 1970, p. 57. Ponge não justifica essa repugnância, mas atribuo-a a essa “politique littéraire que ele menciona antes.

33Douze petis écrits (1926), In. PONGE, 1999, p. 3. 34 GLEIZE, 1988, p. 41.

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Trata-se de se guardar, simplesmente de se guardar? Não, trata-se de jogar a escrita contra a palavra (...), o trabalho de elaboração sintática, a “sagesse hermétique”, trancado a sete chaves, a paciência do operário-tartaruga-revolucionário: o que ataca em silêncio, com as palavras, com o silêncio entre as palavras, entre os textos, um silêncio rebelde.36

Esse momento de indignação com a sociedade “hideuse de débauche”37 despertou em Ponge um estado de mudez. Período que a crítica aponta como uma fase de “silêncio”38 que é rompida apenas em 1942 com Le Parti pris des choses. No percorrer das décadas de 1930 e 1940, o escritor se envolverá em várias ações políticas, como proletário, líder sindical, membro do partido comunista e resistente durante a guerra. Antes disso, os acontecimentos drásticos que antecederam a Segunda Guerra já haviam contribuído para aproximar ainda mais literatura e política. Nessa época, Ponge se alia ao surrealismo, assina o Surréalisme au service de la Révolution, em 1930, e, a partir de então, passa a frequentar as reuniões do grupo. Ainda assim, para o poeta, essas experiências não acarretarão em um comprometimento de seu trabalho literário com as lutas político-ideológicas. Esses acontecimentos parecem ter marcado a sua escrita, mas, como sabemos, em favor de uma intervenção política, nos termos de Rancière. Essa primeira fase da carreira de Ponge, assim como o período de silêncio que deverá percorrer toda a escrita pongiana serão analisados também na primeira parte do segundo capítulo.

É possível refletir, ainda, no que concerne ao projeto de escrita de Ponge, sobre o modo como o manuseio da língua formaria e transformaria a moral dos homens, engendrando, de certa forma, os valores que regem a sociedade e, consequentemente, o modo como o ser humano se pensa no mundo. Por isso, uma pesquisa como a nossa acompanha uma necessidade essencial, que é a de abrir-se em direção a diversas perspectivas críticas, de onde vamos investigar algumas chaves de compreensão e de indagação da escrita pongiana, daquilo que constitui as “panoplies” 39 poéticas do autor. Começo, então, por uma breve bibliografia crítica, e alguns elementos de seu arsenal

36 GLEIZE, 1988, p, 41. 37 PONGE, 1970, 51.

38 Veremos, por exemplo, que Collot, em Francis Ponge: entre mots et choses”, chamará essa fase de “silêncio”, de “crise da linguagem”. Enquanto que Gleize, em Francis Ponge, a verá como a atribuição principal de um estilo que percorrerá toda a obra, isto é: o de “escrever contra”. Além desses dois críticos, outros também verão um período de silêncio na trajetória do poeta. Todas essas perspectivas serão colocadas em debate na primeira seção do segundo capítulo: “Do partido e das coisas: a ‘imprégnation’

pongiana”.

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23 para pensar, assim, os percursos trilhados pelo poeta, que discutirei ainda nessa primeira seção, mas também na seguinte, intitulada “Et tu me serviras, et tu serviras aux hommes”.

Em 1986, dois anos antes da morte do poeta, a coletânea de ensaios Francis Ponge, Cahiers de l’Herne40, n. 51, foi publicada sob a direção de Jean-Marie Gleize. Nesse interim, muitos outros estudos coletivos importantes foram dedicados ao escritor, dentre eles, podemos citar os seguintes números de revistas literárias: “Ponge à l’étude”, (Revue de Sciences Humaines, 1992); “Francis Ponge”, (C.R.I.N, 1996); “Ponge 26 fois”, (Action poétique, 1999); “Matière, matériau, matérialisme”, (La Licorne, 2000) e “Francis Ponge”, (Europe, 2000). Todos contribuíram, à sua maneira, para colocar em cena os pressupostos do que seria uma “nova poesia francesa”, reavivando a discussão sobre o espaço que a poesia ocupa e como ela deve se pensar em uma época em que as tecnologias e o valor de mercado chegavam às instâncias artísticas e impunham seus termos.

Sendo assim, parece-me bem significativo que, na mesma época, uma coletânea intitulada Figures du sujet lyrique, organizada por Dominique Rabaté em 199641, tenha reunido uma dezena de artigos em torno da “nova” poesia. Além deste, podemos citar outros livros, revistas e Anais de Colóquio, como: Le Sujet lyrique en question (organização de Dominique Rabaté, Joëlle de Sermet e Yves Vadé, 1996); Poétiques de l’objet (por François Rouget e John Stout, 1999); “La nouvelle poésie française”, (Magazine Littéraire, 2001).

Todas essas publicações que citamos aqui têm muito em comum, pois tratam de questões concernentes à poesia francesa contemporânea. O primeiro grupo de obras se pretende uma análise precisamente da poesia pongiana, como sinalizei, enquanto o segundo, por outro lado, refere-se à poesia em geral. Podemos perceber, aliás, que algumas questões que concernem à poesia moderna e contemporânea, e que foram apontadas nessas obras, são, muitas vezes, intermediadas pela obra de Ponge. Ressalto, nesse sentido, a dicotomia entre lirismo e literalidade, uma polêmica com a qual a crítica francesa se ocupará com grande afinco a partir dos anos 1980.

A respeito da importância da obra de Ponge para o debate em torno da poesia, Gleize explica que Ponge é “decididamente o poeta que, no século XX, mais trouxe (com mais obstinação e acuidade crítica) a suspeita em relação à ideia que nos fazemos

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24 da ‘poesia’”42. Nas entrelinhas de textos teóricos publicados na virada do século XX, ainda se pode justamente notar a tensão que divide os julgamentos críticos em torno da poesia moderna.

Se, por um lado, desde Verlaine, Rimbaud, Mallarmé e Apollinaire, o desejo dos poetas de inventar para si uma nova língua está colocado como uma interferência definitiva no modo de pensar e conceber a poesia, por outro, é possível se deparar com uma dificuldade de compreender em que resultaram as sucessivas rupturas que daí decorreram. Na busca por respostas, o diálogo com a tradição poética, assim como o regresso a um certo formato de poesia, parecem assombrar a prática poética e o movimento de teorização em torno dela.

É nesse sentido que debates como o promovido em março de 2001 pela revista Magazine Littéraire, citado acima, nos chegam como um ponto de partida para a compreensão das problemáticas que orbitam o microcosmo da poesia. No primeiro artigo da revista, intitulado “Actualité du moderne”, Jérome Game critica os caminhos percorridos pelos poetas que revindicam um “novo lirismo” enquanto prática crítica e criativa. Para ele, esse ramo da poesia “consiste essencialmente em dizer a vida: [em que] uma voz, uma alma, falam, se manifestam (...) e assim manifestam o mundo.” Ela seria, então, “uma expressão da existência como cosmos infinito, e o poeta um ‘sujeito lírico’” 43. Essa retomada do sujeito lírico na poesia significaria para Game um retrocesso em relação à ruptura com certa tradição lírico-romântica empreendida pela modernidade. O mesmo ponto de vista é partilhado por outros críticos ainda mais enfaticamente. Caso exemplar de Gleize, que, em A noir, poésie et litéralité, de 1992, trata de definir claramente as fronteiras entre essa perspectiva e a de uma poética da literalidade. O crítico explica que, depois do surrealismo e das inovações trazidas pelos poetas modernos, que trabalhavam a linguagem em sua materialidade, o lirismo teria reaparecido portando traços de uma arte “formalmente mais popular”44, fundando-se sobre “valores humanistas, religiosos ou políticos, como a dignidade do homem e a liberdade”. Esse movimento estaria, então, segundo o crítico, dando origem a um tipo de poesia “regressiva.”45.

Em contrapartida, e para citar apenas um dos inúmeros embates em torno do tema, Dominique Rabaté, no artigo “Enunciação poética, enunciação lírica”, ao se

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25 referir a uma poesia de “enunciação lírica”, lança um olhar diferente dos de Game e Gleize. Trata-se, para ele, de um sujeito lírico bem menos coerente e menos seguro de encontrar a solução para as “inadequações” 46 do eu:

De uma forma geral e mais radicalmente crítica é a própria ideia de uma unidade-unicidade do sujeito (lírico ou outro!) que é preciso combater e denunciar. O “sujeito lírico” não é o centro-fonte de uma palavra que o exprime, mas preferencialmente o ponto de tangência, o horizonte desejado de enunciados subjetivos ou não que ele se empenha em reunir. ”47

As obras e autores citados aqui são uma pequena amostra de um dos temas que rondam a crítica pongiana, dos argumentos e das discussões que elas suscitam. Mas se os conceitos de literalidade e de lirismo constituem nós interessantes, eles, além disso, nos abrem para outras questões teóricas com as quais nos deparamos ao abordar a obra de Ponge. Assim, podemos começar por um fato poético, que não é nem de longe uma novidade, mas que mesmo depois de tantos estudos não pode ser tratado com indiferença, isto é: a crise da linguagem, ou melhor dizendo, a crise de expressão48, protagonizada, desta vez, por Francis Ponge.

Ora, observando essas publicações, tudo leva a crer que a obra de Ponge centraliza discussões que vão se tornar pontos de tensão da poesia, em geral a partir da segunda metade do século XX. Como, por exemplo, o debate que tange à recorrente indagação sobre o que é a poesia, e o quanto as rupturas almejadas pelos modernos contribuíram para a redefinição dela. Caminhos teóricos comumente percorridos pela crítica pongiana, e que discutirei ao longo de todo o segundo capítulo, mas, sobretudo, na segunda seção. Para isso, procurarei realizar um diálogo com alguns dos críticos mais importantes em se tratando da obra de Francis Ponge. É o caso, por exemplo, de Michel Collot, Jean-Marie Gleize, Christian Prigent, Bernard Veck, Gérard Farasse e outros. Vale ressaltar, no entanto, que esse debate me interessa na medida em que essas diversas leituras me auxiliarão nas questões principais da tese, a saber: a imbricação entre a poesia e a política e a reflexão sobre o projeto poético de Francis Ponge.

No final dos anos 1980, após a morte de Ponge e os vários estudos que então se sucederam, os críticos pongianos estão, em sua maioria, de acordo em relação a um

46 GAME, 2001, p. 21-22 47 RABATÉ, 2005, p. 67.

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26 ponto: “Ponge está só”49. Gleize afirma isso baseado na constatação de que a “história da poesia francesa não conhece um Hotel onde acolhê-lo”50. Talvez não mesmo. Mas Ponge aponta para uma solução nesse sentido. Longe, porém, dos castelos surrealistas, seus contemporâneos. Situando-se no século XIX, o poeta fabrica para si uma morada: a modernidade engendrada por Lautréamont, Rimbaud e Mallarmé. Sem, todavia, poder se excluir do século seguinte, já que viveu “todas as aventuras da invenção e da modernidade”51, como explicam Gérard Farasse e Bernard Veck em Guide d’un petit Voyage dans l’oeuvre de Francis Ponge, de 1999.

O que esses mestres preconizam como ‘o novo’ para a literatura, e que ressoou longe, mas de modo disperso, no século XX, serão lições que Ponge considerará em seu projeto poético, e que vamos escrutar no decorrer desse capítulo. De qualquer forma, e em uma tentativa antecipada de remediar uma eventual imprecisão52 do tempo, a proposta de Compagnon que expusemos acima parece interessante: bastaria, então, recuar em dois anos a fronteira do século. 1898, morte de Mallarmé, a meses da chegada de Ponge. Isso bastaria para considerar aquele ano como iniciático.

Em entrevista a Sollers, o poeta fala sobre seu trabalho na juventude, as experiências com o surrealismo e a passagem pelas duas grandes guerras. Nesse contexto, Sollers cita o ano de 1917 e as expectativas que poderia ter um jovem escritor cuja vida se iniciava junto com o século. Leiamos um fragmento:

Gostaria que nos dissesse quais eram, para um indivíduo nascido em 1900, os modos pelos quais a “reconversion totale de l’industrie53

logique”, ou ainda segundo outra de suas expressões, “l’exercice énergique de la parole” podia ser vislumbrada: de que língua morta, então, de quais preconceitos sociais, estéticos era preciso sair para responder à exigência do tempo? 54

A questão colocada por Sollers diz respeito às complexidades da época, a virada do século e aos conflitos sociais por toda a Europa, que modificaram o modo de o homem se pensar e conceber a arte. Quanto a Ponge, trata-se de precisar também o seu

49 GLEIZE, 1988, p. 10. 50 GLEIZE, 1988, p. 10.

51 FARASSE, VECK, 1999, p. 16.

52 Para se levar em consideração a queixa de Ponge: “cela n’est pas tout à fait juste, n’est pas non plus tout à fait sincère: c’est moi qui doit venir…” Cf. Pour un Malherbe (1965), In. PONGE, 2002, p. 220. 53 Gérard Farasse assinala nas notas sobre Méthodes que a expressão “insdustrie logique” “deve ser tomada no sentido etimológico (em latim, industria significa ‘atividade’; em grego, logos significa ‘discours’) e designa a atividade do escritor enquanto exercício na e sobre a língua”. Cf. In. PONGE, 1999, p. 1131.

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27 ponto de partida na história da literatura francesa. Por isso, a primeira parte de sua resposta parece enfatizar um dado importante que seu entrevistador deixou escapar:

En effet, il me paraît très utile de revenir, si nous nous plaçons en 1917, à mes déterminations enfantines. D’abord j’ai noté avec amusement que vous me rajeunissez d’un an. Je ne suis pas né en 1900, mais en 1899, et peut-être d’avoir eu ainsi un pied, enfin, ou même les deux, dans le XIXe siècle, n’est-il pas tout à fait indifférent.55

Podemos perceber nas palavras do poeta o interesse em colocar os acontecimentos de sua infância como contribuição pertinente para o seu modo de ver o mundo e de conceber a arte. É o que ele chama aqui de suas “déterminations”, que mencionamos há pouco e que será retomado, a partir de um outro ponto de análise, na última seção da tese, intitulada “F. P. ou o Fabricador de Pedras: a ‘bombe’, o ‘galet’, o ‘savon’” . Por ora, vale tentar entender, nessa passagem, a ênfase dada ao ano de seu nascimento e como ela influiria em sua trajetória poética. Para Ponge, ter nascido ainda no século XIX não é insignificante, pelo contrário, indica um pertencimento: “avoir eu” “les deux” “pied[s]” “dans le XIXe siècle” “n’est-il pas indifférent”.

Considerando a atenção dada por Ponge a esse fato, vale refletirmos sobre que reivindicação se pode supor nas entrelinhas de sua frase, e como o seu nascimento, logo antes da virada do século, pode ter marcado o seu trabalho poético. Não se pode obviamente acreditar que, com esse gesto, Ponge estaria aproximando as suas práticas poéticas das da tradição romântica, que foi a grande dominante do século XIX. Pelo contrário, o esforço do poeta corrobora o movimento inverso, o de escape do romantismo, que ele considera o avesso de seu propósito de literatura. Gleize, em seu ensaio Francis Ponge, de 1988, referindo-se talvez ao repúdio do poeta pela era romântica, diz que Ponge “é plenamente, claramente, e sem nenhuma nostalgia inútil, um homem do século XX” 56. Podemos, então, arriscar uma semelhança de outra ordem, e que diga respeito aos poetas que, como Mallarmé, estavam comprometidos com um projeto de modernidade. Em Pour un Malherbe57, Ponge diz:

55 PONGE, 1970, p. 36. 56 PONGE, 1970, p.37.

57 François de Malherbe foi um poeta do século XVI cujo trabalho contribuiu para solidificar a língua e a

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Après le romantisme et les mauvais maîtres, la chute, le trébuchement de Hugo, Lamartine et consorts “rendit plus retenus Baudelaire et Rimbaud”. “Enfin Mallarmé vint…” Non, je ne le sais que trop, cela n’est pas tout à fait juste, n’est pas non plus tout à fait sincère : c’est moi qui doit venir…58

Enfim Mallarmé..., e enfim “Malherbe...”. Essa frase é a paráfrase da homenagem que Boileau fez ao poeta Malherbe, este que, segundo Ponge, empreendeu a “démolition de Ronsard”59. Dele e das correntes em voga em sua época, que prezavam uma linguagem que representasse, no caso do preciosismo, a aristocracia, com palavras incomuns, muitas perífrases, circunlóquios e metáforas e recursos retóricos extravagantes. Da poesia barroca, Malherbe parecia criticar as formulações desordenadas, confusas, que, de certa forma, pretendiam refletir as emoções humanas. Boileau, em L’Art poétique, escrito em 1674, expõe as mudanças trazidas por Malherbe:

Enfin Malherbe vint, et, le premier en France, Fit sentir dans les vers une juste cadence, D'un mot mis en sa place enseigna le pouvoir, Et réduisit la muse aux règles du devoir. Par ce sage écrivain la langue réparée N’offrit plus rien de rude à l'oreille épurée.60

Desse modo, Malherbe iniciou uma nova era literária, a do classicismo, instaurando um estilo mais leve e elegante que o dos preciosistas e barrocos. A língua é o principal instrumento de manuseio do poeta pela sua musicalidade e materialidade: “Par ce sage écrivain la langue réparée / N'offrit plus rien de rude à l'oreille épurée.” Certamente, a menção de Ponge ao poema de Boileau sobre Malherbe indica um paralelismo entre os poetas: Malherbe, Mallarmé, e por que não, o próprio Ponge, pois todos executaram, cada um em seu tempo, a “demolição” dos predecessores. E a fabricação do novo. Todos contribuíram para a construção de uma nova era. Essa será a intuição que seguirei ao longo dessa última seção do segundo capítulo.

Trata-se então, para o nosso poeta, de reivindicar seu lugar nesse percurso como sucessor de Mallarmé – “c’est moi qui doit venir” –, na “demolição” da tradição

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29 romântica61. Nesse sentido, Ponge seria aquele que se disporia a continuar a ruptura pretendida pelo seu antecessor através do trabalho com a materialidade das palavras e a atenção dada ao significante em detrimento do significado, e avançando em um projeto de modernidade que avista mais um elemento decisisvo na relação entre o homem e a linguagem, a saber: a coisa. Enfim, Ponge veio, um ano antes do encerramento do século, um ano depois da morte de Mallarmé.

61 Interessante perceber que Victor Hugo também parece parafrasear a frase em que Boileau glorifica

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30 CAPÍTULO I

POESIA EM TEMPOS DE CRISE

Il ne s'agit pas de mettre la poésie au service de la révolution, mais bien de mettre la révolution au service de la poésie.

Guy Debord, Internationale situationniste.

Não se trata aqui de revisitar os meandros percorridos pela literatura no decorrer do século XIX, tampouco de traçar uma história da poesia e da função do poeta. O objetivo desta primeira etapa da tese é pensar a imbricação entre escrita e responsabilidade social do autor na literatura francesa do século XIX e XX, a fim de tentar entender como essas relações são encenadas na poesia moderna de Francis Ponge. Para isso, é preciso considerar o vínculo entre literatura e lutas sociais, que foi mais fortemente estreitado por uma certa tradição romântica. A partir daí, buscarei compreender os tensionamentos entre literatura e política no decorrer do século XX, investigando as consequências dessas tensões para a própria representação simbólica do poeta e da poesia.

Na primeira seção “A Tribuna e o profeta: um olhar para a tradição”, pretendo investigar como o poeta romântico, encarnando sobretudo o papel do poeta-profeta, acaba por desempenhar uma função tanto social quanto espiritual e moral. A escrita poética foi a tribuna de onde autores como Lamartine e Victor Hugo falaram para um público cheio de encantamento, confiança e admiração pela voz inspirada do poeta, como veremos a partir dos estudos de Paul Bénichou em Romantisme français (2004). Todavia, a partir da segunda metade do século XIX, o poeta começa a perder a função de guia do povo. As mudanças trazidas pela consolidação crescente do capitalismo e pelas guerras civis, a exemplo da revolução de 1848, contribuíram para que toda uma geração de poetas desinvestissem da intervenção social via literatura.

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31 um herói desprestigiado, a figura baudelairiana do poeta conseguiu como nenhuma outra denunciar as contradições desse momento da história da literatura francesa.

Na segunda seção deste capítulo, “’Razões de escrever’”, irei refletir sobre como essa modernidade redireciona o debate sobre a interação entre literatura e política. Para isso, será necessário repensar a própria definição do político, o que pretendo fazer à luz das reflexões de Jacques Rancière em Politique de l’écrit (1995) e Le Partage du sensible: Eshétique et politique (2000). Lembremos ainda que, com Mallarmé e os poetas modernos, a noção de intervenção da realidade por via da escrita parece apontar para o trato direto com a língua, visando um trabalho sobre a materialidade das próprias palavras. Entrecruzando esses pressupostos, estudarei a forma de interferência dessa poesia nos modos de organização da sociedade e da política.

Francis Ponge viveu e produziu em um contexto em que parte importante da arte se realizava nas salas sindicais filiadas ao Partido Comunista. Apesar disso, preferiu não se submeter em larga medida à literatura panfletária da geração de escritores engajados, como alguns surrealistas. Trabalhar a partir das formas literárias parece ter sido a sua estratégia para interferir na ordem das coisas, como discutirei em diálogo com Jean-Marie Gleize e Benoît Auclerc. Para Ponge, havia muitas razões para escrever. Em sua trajetória poética, a escrita sempre foi um ato de resistência, uma verdadeira operação de intervenção através da língua.

Na terceira etapa deste capítulo, “Ponge, ‘révolutionnaire’ e ‘suscitateur’”, o par literatura e política permanecerá no centro do debate. Investigarei, primeiramente, a relação que Ponge vai estabelecer no decorrer das décadas de 1920 e 1930 entre as lutas populares e sua prática literária. Refletindo sobre essa questão, deparei-me com a necessidade de situar a importância do escritor engajado na representação do artista na primeira metade do século XX, o que justifica a retomada inicial do papel social e político do poeta romântico. Esse ponto será discutido a partir dos estudos de Benoît Denis, em Littérature et engagement: de Pascal à Sartre (2002). Denis salienta que o engajamento do escritor se tornou, especialmente através da interferência marcante de Jean-Paul Sartre, um “imperativo literário absoluto”62.

O diálogo com os ideais de Sartre no final deste primeiro capítulo pareceu-me primordial para se pensar também a poética pongiana, quando da discussão sobre a função social do poeta e a condição humana na obra de Ponge empreendida pelo

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32 filósofo francês. Em Qu’est-ce que la littérature?, de 1947, e em seu importante artigo sobre Ponge “Les hommes et les choses”, Sartre acredita que a poesia é a arte que desconecta o homem da realidade. Para o filósofo, isso pode ser percebido em Le Parti pris des choses, pois, nos poemas que compõem essa coletânea, o homem teria sido arrancado de sua “condição humana”. Sabemos que a visão de Sartre foi fortemente questionada pelas correntes literárias e filosóficas da segunda metade do séculoXX. Por isso, longe de aderir a um modo específico de pensar a relação entre escrita e política, meu objetivo é mostrar como a obra pongiana, ao invés de negar o humano, aponta para um novo modo de conceber o homem na sua interação com o mundo, primordialmente por meio da relação entre as palavras e as coisas.

1.1. A tribuna e o profeta: um olhar para a tradição

Victor Hugo encarnou intensamente as complexidades da era romântica.

A afirmação acima, dita de diversas formas em estudos e manuais escolares sobre o romantismo, parece mais um lugar-comum. Dispensando o uso de aspas, de referência bibliográfica e desconsiderando diferentes nuances do período, ela se encaixaria de modo satisfatório em praticamente qualquer texto sobre o poeta, seja no início, como uma espécie de fórmula-síntese de sua grandiosidade, ou no final, para lembrar ao leitor da importância desse personagem em seu tempo e para as próximas gerações.

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33 seu atravessamento histórico, no contexto de uma era dominada pelo catolicismo e em uma sociedade que ainda se debatia com as consequências da Revolução de 1789. Portanto, o poeta profeta, em uma primeira definição, seria aquele que, próximo de Deus, e, imbuído desse olhar privilegiado, vê além de seu tempo e prescreve suas diretrizes para o futuro da naçãoe do seu povo.

Paul Bénichou, em Romantismes français II, afirma, referindo-se aos protagonistas do romantismo: “Tanto após quanto antes de 1830, os poetas mantiveram intacta a ideia de sua missão como acompanhadores e guias espirituais da humanidade moderna”63. Esse comprometimento, que foi inegavelmente uma característica marcante da época, não foi, no entanto, a única obsessão dos poetas. A poesia era muitas vezes uma tribuna às avessas, em que a desenvoltura do falante nem sempre era a de um orador a estimular seu público com temas sociais e políticos, mas cedia o lugar a um tipo de confessionário onde ele expunha suas amarguras. Com Alfred de Musset, por exemplo, em “La nuit de mai”, publicado em 1835, a voz que se ergue é a da desolação diante da dor. Nesse poema, o diálogo entre o poeta e a musa expõe a problemática entre o sofrimento e o trabalho criativo:

LA MUSE

Poëte, prends ton luth ; la nuit, sur la pelouse, Balance le zéphyr dans son voile odorant. La rose, vierge encor, se referme jalouse Sur le frelon nacré qu’elle enivre en mourant. Ecoute, tout se tait ; songe à ta bien aimée. Ce soir, sur les tilleuls, à la sombre ramée Le rayon du couchant laisse un adieu plus doux. Ce soir, tout va fleurir : l’immortelle nature Se remplit de parfums, d’amours et de murmure, Comme le lit joyeux de deux jeunes époux. (…)

LE POETE

Est-ce toi dont la voix m’appelle, Ô ma pauvre Muse ! est-ce toi? Ô ma fleur, ô mon immortelle! Seul être pudique et fidèle Ou vive encor l’amour de moi ! Oui, te voilà, c’est toi, ma blonde, C’est toi, ma maîtresse et ma sœur ! Et je sens, dans la nuit profonde, De ta robe d’or qui m’inonde Les rayons glissés de mon coeur 64

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34 Nesse fragmento, a musa parece se esforçar para retirar o poeta de um abismo emocional. O poema começa – e assim será a cada fala da musa – por um vocativo que remete a um tom de chamamento, de convocação. Ele é despertado por essa “voix” que o conclama a reagir contra o seu profundo abatimento: “Poëte, prends ton luth”. Na sequência da frase, o imperativo na segunda pessoa do singular, forma familiar do francês, aproxima leitor e poeta em uma intimidade encenada pela suposição de um “tu”. Esse leitor, atingido pelo pathos do poeta, acompanha e vive sua saga. Ele se sente identificado nessa concomitância de papéis entre o “eu” solitário do “poëte” e a musa conselheira e soberana.

Quanto à problemática da dor que interfere na missão do escritor, não se trata de uma reclusão ou de uma mudez imposta pela musa; como podemos perceber nesse pequeno trecho, o que cala o poeta é, ao contrário, o desespero de um drama pessoal. E mesmo nesse sentido não há perda para a criação poética, pois estando o poeta em silêncio, ela, a musa, “seul être pudique et fidèle”, vem socorrô-lo, legitimando-o e exigindo ao mesmo tempo que ele se reaproprie de seu lugar e lance mão de “[s]on luth”. Logo, longe de estar ameaçada por um abalo emocional, a inspiração do sujeito romântico se dá no mergulho em sua emoção pungente, como se revela, na fala da musa, neste outro trecho do mesmo poema:

LA MUSE

Crois-tu donc que je suis comme le vent d’automne, Qui se nourrit de pleurs jusque sur un tombeau Et pour qui la douleur n’est qu’une goutte d’eau ? Oh poëte, un baiser c’est moi qui te le donne. L’herbe que je voulais arracher de ce lieu, C’est ton oisiveté ; ta douleur est à Dieu. Quel que soit le souci que ta jeunesse endure, Laisse-la s’élargir, cette sainte blessure

Que les noirs séraphins t’ont faite au fond du cœur ; Rien ne nous rend si grand qu’une grande douleur. Mais, pour en être atteint, ne crois pas, ô poëte, Que ta voix ici-bas doive rester muette.

Les plus désespérés sont les chants les plus beaux. (…)65

A musa é a conselheira do poeta, uma espécie de força espiritual que se esforça para motivá-lo ao mesmo tempo em que o faz recordar sua missão, sua responsabilidade moral: “Laisse-la s’élargir, cette sainte blessure /Que les noirs séraphins t’ont faite au

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35 fond du cœur ; / Rien ne nous rend si grand qu’une grande douleur.” A dor é a via pela qual o poeta, esse escolhido divino, deve passar para engrandecer sua alma e estar à altura de seu ofício.

Segundo Bénichou, Musset, dentre os que figuram no quadro do romantismo francês, é o poeta que mais representou o “amor infeliz”66. Os fragmentos acima expostos de “La Nuit de mai” exemplificam isso. Vimos como o poeta dramatiza a força do lirismo romântico, revelando, assim, a propensão a colocar as emoções advindas de experiências individuais como razão de sua escrita. Assim, o poema, como tudo indica, descreve as lamentações relativas a uma ruptura amorosa verídica com George Sand. Sobre esse fato, Bénichou diz: “A ruptura é de 6 de março de 1835; o poema foi publicado no dia 15 de junho seguinte. Parece muito provável então que ‘La Nuit de mai’ seja da primavera de 1835, e que George Sand seja a heroína não nomeada.”67

O pulsar lírico evidenciado nesse poema é, de fato, um pressuposto importante na poesia romântica, mas que se configura de modo bem complexo. Esse eu que fala através da lira é um eu multifacetário e ambíguo que encarna tanto as profundezas da alma quanto uma coletividade social, oscilando entre o sentimento de pertencimento à comunidade e uma individualidade distintiva do comum. Mesmo em meio à sua dor mais íntima, o senso de responsabilidade do poeta com o mundo é um elemento primordial em sua escrita. É possível observar que, no fragmento acima, a musa se faz presente para lembrá-lo de que as tristezas pessoais se revertem em poemas, ou seja, em dádivas para o mundo: “Les plus désespérés sont les chants les plus beaux.

Jean-Michel Maulpoix em Du Lyrisme, um estudo sobre as diversas manifestações líricas na poesia, explica esse movimento do poeta romântico: “Convém aqui lembrar que o sujeito romântico é uma entidade paradoxal, complexa, problemática.”68 Nele, as aflições terrenas e a elevação do espírito, assim como sua responsabilidade como detentor de uma voz e de uma visão privilegiadas, manifestam-se concomitantemente manifestam-sem aparentar incompatibilidades. Como completa o crítico,

ele se pretende uma criatura terrestre, inquieta do aqui e do agora. Mas por outro lado, aspira ao infinito, ao absoluto, ao celeste, ao ideal. Ele cultiva sua intimidade, mas se teatraliza. É solitário e secreto, mas revela com ostentação sua interioridade.69

66 BENICHOU (2), 2004, p. 1567.

67 BENICHOU (2), 2004, p. 1567. (Nota de página). 68 MAULPOIX, 2000, p. 387.

Referências

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