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PROGRAMA DE PÓS‐GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO   

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Academic year: 2022

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE 

PROGRAMA DE PÓS‐GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO   

       

LUCIANO ABBAMONTE DA SILVA 

     

A FORMA (IN)DOMÁVEL: 

O lugar das águas no processo de urbanização de São Paulo 

                        SÃO PAULO 

2020 

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A FORMA (IN)DOMÁVEL: 

O lugar das águas no processo de urbanização de São Paulo 

     

Tese  de  doutorado  apresentada  ao  Programa  de  Pós‐Graduação  em  Arquitetura  e  Urbanismo,  da  Universidade  Presbiteriana Mackenzie  –  São Paulo  – para concessão do título de  doutor  em  arquitetura  e  urbanismo,  na  área  de  concentração  Urbanismo  Moderno e Contemporâneo. 

Orientadora:  Profa.  Dra.  Angélica  Aparecida Tanus Benatti Alvim 

      SÃO PAULO 

2020 

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S586f   Silva, Luciano Abbamonte da. 

      A forma (in)domável: o lugar das águas no processo de urbanizaçăo  de Săo Paulo  / Luciano Abbamonte da Silva. 

      252 f. : il. ; 30 cm   

      Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade 

Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2020. 

      Orientadora: Angélica Aparecida Tanus Benatti Alvim. 

      Bibliografia: f. 243‐252. 

 

      1. Bacia hidrográfica. 2. Tijuco Preto. 3. Tiquatira, 4. Cocaia. 5. 

Patrimônio ambiental construído. I. Alvim, Angélica Aparecida Tanus  Benatti.  II. Título. 

   

      

      CDD  711   Bibliotecária responsável: Paola Damato  CRB‐8/6271 

 

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Autor: Luciano Abbamonte da Silva 

 

Programa de Pós‐Graduação Stricto Sensu em Arquitetura e Urbanismo 

 

Título  do  Trabalho:  A  FORMA  (IN)DOMÁVEL:  o  lugar  das  águas  no  processo  de  urbanização de São Paulo 

 

O  presente  trabalho  foi  realizado  com  o  apoio  do  Instituto  Presbiteriano  Mackenzie,  com Isenção integral de Mensalidades e Taxas 

 

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À força da vida, presente em todos os fenômenos e a cada momento  À minha mãe, Lenilélia Abbamonte da Silva 

Ao meu pai, Luiz Gonzaga da Silva 

À minha companheira, Juliana Okuda Campaneli  À minha orientadora, Angélica Tanus Benatti Alvim 

À Universidade Presbiteriana Mackenzie 

   

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RESUMO 

 

         

Esta pesquisa discute a temática das águas em um meio urbano, e objetiva delinear qual  é o lugar das águas no processo de urbanização de São Paulo, um problema composto, porque  trata de definição de limites, mas que encontra, no caráter fluido das águas, o limiar da  dissolução. A hipótese lançada é a de que tal lugar pode ser caracterizado a partir da  sobreposição de três temporalidades: da natureza, da técnica e do afeto, sendo que cada uma  destas implicam em diferentes atribuições para este mesmo lugar. Para testar esta hipótese,  foram  definidas  as  seguintes  estratégias  projetuais:  focar  nos  métodos  de  registrar  e  cartografar o lugar das águas; observar o lugar das águas ao longo do tempo, nas diversas  fases da história; considerar o lugar das águas como um patrimônio; analisar o lugar das águas  metrópole contemporânea de São Paulo; propor um lugar teórico e afetivo das águas como  fator de transformação. O referencial teórico apresenta o estado da arte de uma breve  retrospectiva histórica de São Paulo, ao mesmo tempo em que justifica o enfoque que será  dado, nos procedimentos metodológicos, à relação entre tecido urbano e bacia hidrográfica. A  pesquisa realizada buscou fazer um rebatimento prático sobre as proposições teóricas, e  elencou três estudos de caso para análise, a saber, as seguintes microbacias hidrográficas: 

Córrego Tijuco Preto; Córrego Tiquatira; Ribeirão Cocaia. A discussão dos resultados se dá a  partir da construção de um quadro comparativo, demonstrando as similaridades e diferenças  entre as bacias hidrográficas e seus compartimentos de relevo, a saber, cumeeiras, encostas e  anfiteatros de nascentes, e fundos de vale. Em suma, a tese revela a rica e variada constituição  de uma relação conflituosa e problemática entre cidade e natureza. 

Palavras‐chave:  bacia  hidrográfica,  patrimônio  ambiental  construído,  Tijuco  Preto,  Tiquatira, Cocaia 

 

   

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This research discusses the theme of water in an urban environment, and aims to  outline which is the place of waters in the São Paulo urbanization process, a compound  problem, because it deals with the definition of limits, but which finds, in the fluid character of  the waters, the dissolution threshold. The hypothesis launched is that such a place can be  characterized by the overlapping of three temporalities: of nature, of technique and of  affection, each of which implies different attributions for this same place. To test this  hypothesis, the following design strategies were defined: focus on the methods of registering  and mapping the place of the waters; observe the place of the waters over time, in the  different phases of history; consider the place of water as a heritage; analyze the place of  waters in the contemporary metropolis of São Paulo; propose a theoretical and affective place  for water as a factor of transformation. The theoretical framework presents the state of the art  of a brief historical retrospective of São Paulo, while justifying the focus that will be given, in  the methodological procedures, to the relationship between urban tissue and watershed. The  research carried out sought to make a practical impact on the theoretical propositions, and  listed three case studies for analysis, namely, the following watersheds: Córrego Tijuco Preto; 

Córrego  Tiquatira;  Ribeirão Cocaia. The  discussion  of the  results takes  place  from  the  construction of a comparative matrix, demonstrating the similarities and differences between  the watersheds and their site compartments, namely, ridges, slopes and amphitheaters of  springs, and valley bottoms. In short, the thesis reveals the rich and varied constitution of a  conflictive and problematic relationship between city and nature. 

Keyword: watershed, built environmental heritage, Tijuco Preto, Tiquatira, Cocaia 

 

   

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LISTA DE FIGURAS   

 

 

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LISTA DE FIGURAS   

 

 

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LISTA DE FIGURAS   

   

LISTA DE TABELAS   

   

   

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INTRODUÇÃO ... 15 

1. SÃO PAULO (DE PIRATININGA): BREVE RETROSPECTIVA HISTÓRICA ... 22 

1.1. Das toponímias indígenas às imposições coloniais ... 22 

1.2. A malha ferroviária como vetor de crescimento urbano ... 27 

1.3. A instalação do sistema de geração de energia hidroelétrica ... 39 

1.4. A estruturação metropolitana e a diversificação das infraestruturas ... 57 

1.5. A ambiguidade da condição atual ... 88 

2. UMA PERSPECTIVA TEÓRICA SOBRE O PATRIMÔNIO DE SÃO PAULO ... 109 

2.1. Sobre a noção de patrimônio ambiental construído: uma revisão ... 120 

2.2. As temporalidades diversas do patrimônio de São Paulo ... 128 

2.3. O patrimônio ambiental de uma bacia metropolitana ... 131 

3. O LUGAR DAS ÁGUAS: A CONSTRUÇÃO DO MÉTODO E ESTUDOS DE CASO ... 136 

3.1. Procedimentos metodológicos ... 141 

3.2. Tijuco Preto: prelúdio entre a favela e o bairro ... 147 

3.3. Tiquatira‐Penha: o desmonte de um bairro fluvial ... 161 

3.4. Cocaia: uma entre tantas outras bacias do sistema Guarapiranga ‐ Billings ... 188 

3.5. Discussão dos resultados ... 224 

4. APROFUNDANDO O LUGAR DAS ÁGUAS A PARTIR DA PERSPECTIVA TEÓRICA ... 227 

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 241 

REFERÊNCIAS ... 243   

   

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INTRODUÇÃO 

A temática das águas é um assunto abrangente e diversificado, em especial as águas em  um meio urbano e, nesta pesquisa, buscou‐se entender qual é o lugar das águas em São Paulo,  e de que modo seria possível revelar seu caráter determinante. Assim, primeiramente, a  pesquisa enfrentou um problema de dimensionamento, de agrimensura,  de  estabelecer  limites para o lugar das águas. Um problema interessante, pois faz parte do comportamento  das águas, em certos momentos, não se deixar limitar. A hipótese lançada para enfrentar tal  problema é a de que esse lugar pode ser caracterizado a partir da sobreposição de três  temporalidades: da natureza, da técnica e do afeto. E por que essa hipótese? Porque a  investigação partiu do pressuposto de que somente imbuindo‐se de espírito afetivo pelo  objeto de pesquisa é que se torna possível atribuir um valor minimente ponderado para aquilo  que seriam os atributos da natureza articulados aos desígnios da técnica. Para testar essa  hipótese tripartida, foram adotadas as seguintes estratégias metodológicas: focar nos métodos  de registrar e cartografar o lugar das águas; observar o lugar das águas ao longo do tempo, nas  diversas fases da história; considerar o lugar das águas como um patrimônio; analisar o lugar  das águas metrópole contemporânea de São Paulo; propor um lugar teórico e afetivo das  águas como fator de transformação. 

De uma perspectiva mais abrangente, esta tese se destina a lançar luz sobre a seguinte  questão: qual o lugar das águas no processo de urbanização de São Paulo? Por que esse  processo se dá e como determina esse lugar, se é que, de fato, o faz? De modo que, mais  especificamente, busca‐se entender quais são as principais características de um e de outro,  lugar e processo, e como ambos são determinantes na constituição de uma identidade própria  para a porção de território específica denominada São Paulo. A escolha de seguir por esse  caminho  se  deve  a  uma  observação  reiterada  da  condição  diversificada,  e  também  contraditória, que a presença das águas assume conforme o ponto de vista em que se observe,  e considera‐se que seja possível e necessário, ainda que hipoteticamente, delinear um campo  de conhecimento que permita tornar mais nítida a multiplicidade e, sobretudo, relevância  deste lugar. Portanto, ainda que a entrada para a questão inicial parta da consideração de que  a presença das águas possa ser observada de maneira peculiar e distinta conforme varie o  ponto de vista, parte‐se da hipótese de que há um vínculo causal nessa diversidade, uma  conexão que torna aquilo que é variado e distinto em comum e partilhado, o que nos  permitiria falar de um lugar de origem, ancestral: “reconheço o lugar das águas, já estive aqui”. 

Nada faz mais sentido, se considerarmos a água como um líquido vital para o ciclo da  vida no Planeta Terra, e daí que se evidencia também a sua condição contraditória, uma vez  que, sendo tratada principalmente de forma utilitária, a conveniência acaba, também, por  tornar preterida a presença da água enquanto elemento não só útil, mas propriamente  valoroso e afetivo. Visto desta perspectiva, o lugar das águas passaria então pelo tempo  técnico – de captação, tratamento e abastecimento dos espaços urbanos – residências,  comércios, serviços, indústrias, equipamentos institucionais, entre várias outras tipologias –  bem  como  de  extensas  áreas  rurais  e  de  mineração.  Tais  espaços  são  abastecidos  continuamente por um sistema regional de infraestruturas, de caráter estatal e estratégico,  determinando que esse tempo técnico, integrado e ao mesmo tempo multissetorial, estruture  o  território  para  o  fornecimento  não  só  de  água  potável,  mas  energia  elétrica,  gás, 

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telecomunicação. Nesse cenário, a predominância de um vínculo estritamente funcionalista  com as águas implica que seu lugar seja considerado ora estratégico e indispensável, se a sua  função  principal  for  prover  abastecimento  para  consumo  humano;  ora  preterido  e  desvalorizado, se a sua função não for outra que ser um destinatário de efluentes de fundo de  vale de uma sub‐bacia hidrográfica qualquer, como muito se observou nesta pesquisa, como,  por exemplo, uma represa que se destina exclusivamente a produzir energia elétrica, ao invés  de congregar múltiplas funções, situação definida como “hipertelia”, conforme Santos e  Silveira (2001, p. 70). 

Enfim, a observação reiterada do território de São Paulo, e subsequentes reflexões,  tornaram imperativo recalcular a rota da pesquisa, retomando incursões que datam de longa  data, visto que o lugar das águas trata tanto de uma terra natal quanto de um lugar factível de  reinvenção. Desse modo, para conduzir esta investigação, que tem como ponto de partida a  multiplicidade do lugar das águas, foi preciso reconstituir o percurso realizado, tanto teórico  quanto prático, o qual foi movido por afetos, com o registro de evidências e análises  subsequentes, produzidas em circunstâncias diversas. E no que consistiu a reconstituição  desse olhar investigativo? Por um lado, na medida em que ocorreram as incursões no  território, situações mais relevantes se cristalizaram, e foram elencadas como estudos de caso,  pois puderam passar por uma bateria de testes similar, em termos de abordagem, e porque  partiram  de  premissas  comuns,  em  especial  o  enfoque  na  observação  reiterada  dos  compartimentos da bacia hidrográfica – fundos de vale, encostas, anfiteatros de nascentes e  cumeeiras – ainda que tenham sido aplicadas variações nos procedimentos metodológicos  entre os casos realizados. Por outro lado, o aprofundamento no campo teórico, junto com a  sedimentação das principais idéias desenvolvidas, trouxe à tona o desafio de entender o que  há de comum e partilhado e o que há de específico e peculiar no lugar das águas, seja no  processo de urbanização como um todo, seja em função de uma de suas partes, ou na relação  entre o conjunto de partes. E esse aprofundamento foi se dando, principalmente, quando do  encerramento de cada etapa da pesquisa, com a finalização da bateria de análise de cada  estudo de caso, pois foi aí que se deram os momentos de reorganização, tão caros ao  aprofundamento do método, e os quais tornaram significativo, especialmente, o seu processo. 

Doravante, o objetivo geral desta pesquisa é endereçar qual é o lugar das águas no  processo de urbanização, primeiro de uma perspectiva mais abrangente, da relação entre a  natureza e a técnica, na qual o artifício do que é urbano e, portanto, técnico, modifica a  dinâmica das águas, um fenômeno natural; assim como, inversamente, a água condiciona  aquilo que é urbano, criando‐se aí como que uma contingência entre ambas as partes, técnica  e natureza, urbano e água. Dizer que o lugar das águas seria uma forma (in)domável é lançar  um questionamento (poético) acerca dessa ambivalência entre natureza e técnica que foi  observada no decorrer da pesquisa, da capacidade humana de transformar o território, que  não é de modo algum separada da própria vontade da natureza de transformar‐se a si mesma,  daí que se percebe uma aparente coesão, “domável”, ainda que o fatos possam ocorrer à  revelia de ambas às partes, “(in)”. 

 

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Cabe  dizer  que  o  termo  “lugar” foi  encarado,  nessa  pesquisa,  a  partir  de  uma  perspectiva  trans‐escalar,  e  essa  concepção,  que  buscou  um  embasamento,  sobretudo  filosófico, na tentativa de observar o objeto de pesquisa de maneira fluída e não linear. É um  posicionamento que difere de uma abordagem geográfica das escalas, na qual o lugar seria  como que uma escala mínima do território, enquanto que o “espaço” consistiria numa escala  intermediária, onde se daria o conjunto do locus social (SANTOS, 1996). De modo geral, foi um  desafio para a pesquisa delinear um lugar das águas que está entre as escalas regional e  metropolitana – urbana – local. Do mesmo modo, ao longo do tempo, a pesquisa foi tomando  forma, a partir das escolhas dos estudos de caso, elencando uns, outros não, e configurando  um processo multifacetado e lento, de seis anos, entre 2014 a 2019, segundo um escopo que  também  foi  mudando.  Assim,  os  estudos  de  caso  realizados,  ainda  que  tenham  sido  produzidos em circunstâncias específicas, foram revisados à luz da tese, e constituem análises  de microbacias hidrográficas urbanizadas, no contexto da Região Metropolitana de São Paulo,  a saber: bacia do Córrego do Tijuco Preto, na região do Itaim Paulista1; bacia do Córrego  Tiquatira, na região da Penha2; bacia do Ribeirão Cocaia, no contexto dos reservatórios  Guarapiranga e Billings3 (Figura 1). 

  Figura 1 – Bacias escolhidas como estudo de caso: Tijuco Preto, Tiquatira, Cocaia 

Fonte: elaborado pelo autor a partir de fontes diversas, 2019 

      

1 O caso se deu em 2014, no contexto de uma atividade denominada Atelier Ensaios Urbanos,  promovida pela Prefeitura de São Paulo em parceria com 17 instituições de ensino em arquitetura e  urbanismo, visando a proposição de idéias para a revisão da Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do  Solo, no eixo temático “Áreas de vulnerabilidade Socioambiental: instrumentos e desenho urbano” e  com uma metodologia focada em formas alternativas de ocupação urbana, a partir da escala micro,  diferenciando‐se da padronização conhecida, dos grandes conjuntos de habitação social. 

2 O caso se deu, inicialmente, no contexto do Workshop Atelier Terrain, atividade organizada pela  Cátedra da UNESCO, entre 2014 e 2015, numa parceria universitária entre quatro países – Brasil,  Canadá, Japão e Itália; e, posteriormente, na dissertação de mestrado (SILVA, 2016). 

3 O caso foi o escopo da pesquisa em 2018, e que, devido à magnitude de sua área, contou com uma  abordagem polivalente, entre peregrinações a pontos notáveis e uma análise planificada dos padrões de  forma urbana presentes na área. 

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algo de unitário e verdadeiro no lugar das águas, mas também algo à revelia, um paradoxo. 

Para superá‐lo, seria preciso observar, articuladamente, as três temporalidades sucessivas que  incidem sobre tal lugar: natural, técnica e afetiva. Desse modo, esse lugar poderia ser  caracterizado segundo uma decomposição dessas temporalidades, e criticado em função das  condições específicas que cada temporalidade revelar, seja para o problema de pesquisa como  um todo, seja para cada estudo de caso. A temporalidade natural, que consiste dos processos  geológicos e orgânicos que perfazem todo o globo terrestre e constitui o solo, o húmus e todo  o suporte fundamental para que aí se deem todas as formas de vida. Tantas quanto “Deus  quiser”, diga‐se de passagem, mas que é de fato a humanidade que reivindica teimosamente a  decisão de manipulá‐las, colocando em risco a própria sobrevivência da espécie. Esse quadro,  que é discutido por Mcharg (1967) e retomado por Diamond (2005), é evidenciado por Santos  (2001) como uma disputa: não se trata tanto de saber quem vai ganhar e quem vai perder no  jogo de forças entre a (divina) natureza e a técnica humana, mas que a própria construção de  significado acerca dessa relação é que é decisiva. A temporalidade técnica, que consiste de  todo artifício que evidencia a manipulação da natureza pelo engenho humano, gerando uma  dinâmica, uma polarização em relação à natureza, tornando mesmo, por vezes, como que  obscura ou opaca a possibilidade de se contemplarem as sutilezas de uma e outra, e isso pela  simples dureza dos fatos: o rompimento de uma barragem, o refluxo dos rios nas sazonais  enchentes metropolitanas e as eventuais crises em um sistema de abastecimento de água são  urgências que se fazem imperativas quando vistas de uma perspectiva global. Daí que,  justamente, há uma necessidade, também urgente, de falar sobre uma temporalidade afetiva,  que possibilitaria ver sentido no lugar das águas, em que pese toda essa problematização. 

Aceitar ser como que contagiado, deixar‐se afetar por um rio, permitir‐se sensibilizar pelo  nome que intitula a sua história, que guarda memórias: Tietê, Tiquatira, Tijuco Preto... Afinal, o  que são esses lugares? 

A fim de esmiuçar essa relação entre natureza, técnica e afeto de uma perspectiva  teórica, para o contexto de São Paulo, partiu‐se de uma discussão acerca da noção de 

“patrimônio ambiental construído” (MENESES, 2006; YÁZIGI, 2012; TOURINHO, RODRIGUES,  2016), buscando discutir quais seriam os seus componentes básicos: os cursos dos rios e a  dinâmica  das  bacias  hidrográficas,  assim  como  as  rotas  estabelecidas,  entre  ferrovias,  rodovias, entrepostos logísticos e zonas de escoamento; os vários núcleos urbanos, com suas  escalas diversas, caráter comum de ambos e as peculiaridades de cada um; o rural e o  florestal. De modo que aquilo que permanece e resiste, assim como o que se adapta e  transforma, constitui o legado desse processo de urbanização, e também a ausência de tudo o  que se perdeu. Em suma, deseja‐se estabelecer, para o lugar das águas de São Paulo, uma  noção de patrimônio que possa ser observada em diferentes escalas, porque resultante de um  processo comum entre a natureza fluída da água e a técnica do fazer urbano. Para tanto, foi  necessário estabelecer um quadro teórico minimamente consistente, a fim de permitir que o  conjunto de conceitos que serão expostos propicie um deslocamento contínuo sobre o campo  de conhecimento, um intercâmbio entre questões mais amplas e problemas mais específicos,  para que seja possível aprofundar um entendimento pormenorizado sobre a amplitude, tanto  do lugar das águas quanto do processo de urbanização. 

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De uma perspectiva teórica, mas também temporal, há um ir e vir entre as questões  balizadoras da pesquisa, assim como entre os estudos de caso; do mesmo modo, o referencial  teórico foi se reorganizando, até chegar ao formato atual. Esta observação preliminar é  importante, pois pretende enfatizar o processo do método, uma vez que envolve a própria  dinâmica da pesquisa, qual seja, a indagação constante sobre estar se fazendo ou não as  perguntas certas, a dúvida persistente se o caminho trilhado levará a um bom termo. Quais  seriam então os referenciais necessários para estabelecer uma base consistente de diálogo? 

Numa tentativa de responder esta questão, a bacia hidrográfica foi tomada como unidade de  análise, ainda que esta não implique, necessariamente, em limites para o processo de  urbanização, que tem na escala regional e na dispersão metropolitana uma das suas principais  características (SCHUTZER, 2012a, 2012b; MEDRANO, CASTRO, 2014). Inversamente, uma  mesma  bacia  hidrográfica  pode  apresentar  muitas  unidades  de  paisagem  “variadas  e  discretas” (MCHARG, 1967 p. 127). De todo modo, é a natureza como um todo que designa  quais seriam os lugares aptos ao processo de urbanização, assim como o lugar das águas,  estando ambos inseridos em um processo natural maior. Ainda que o princípio da técnica  demonstre insubmissão aos ditames da natureza, manipulando‐a e transformando‐a (SANTOS,  1996; SANTOS, SILVEIRA, 2001), esta também se mostra insubmissa ao controle humano. 

Ocorrem então sondagens, rebatimentos, impactos, amortecimentos e recalibrações que  evidenciam uma problemática propriamente orgânica, de um “organismo urbano” que se  apropria de um “compartimento do relevo” (AB’SABER, 1957). 

Diferentemente de um delineamento formal, essa ação sucessiva de condicionamento  entre processo de urbanização e transformação do relevo pode ser um indício determinante  acerca de um tempo da natureza, de um panorama mais abrangente, bem como das diversas  temporalidades  do  processo de  urbanização. De modo emblemático, essa  sucessão  de  temporalidades específicas que atuaram na formação da  São Paulo contemporânea  foi  esmiuçada, primeiro, por Langenbuch (1962) e, mais recentemente por Franco (2005). Porém,  é o trabalho de Botechia (2017) o que melhor enfatiza a sobreposição de temporalidades do  processo de urbanização a começar pela ancestralidade das trilhas indígenas como um  primeiro momento de estruturação do território. Assim, partindo de uma retrospectiva  histórica, observamos que a estruturação do traçado de São Paulo se dá, num segundo  momento, na perspectiva de um urbanismo de colinas (COSTA LOBO, SIMÕES JR., 2007),  quando as principais rotas coloniais e caminhos de tropeiros se estabelecem, por meio de  linhas de cumeeira e platôs intermediários de boa declividade, muitas vezes sobrepondo‐se às  trilhas indígenas, enquanto que os núcleos urbanos coloniais buscaram instalar‐se, sobretudo,  em áreas altas, em especial em topos de colina. Depois, num terceiro momento, fundos de  vale e áreas de várzea e planícies recebem, conforme “demanda”, a implantação de uma  malha ferroviária, criando as bases para aquilo que poderia se chamar de “urbanismo de fundo  de vale” (TRAVASSOS, 2004; FRANCO, 2005). Finalmente, num quarto momento, uma malha  rodoviária  se  instala  como  que  indistintamente  e  de  modo  diverso,  ocasionando  o  espraiamento de manchas urbanas e a consolidação da chamada Região Metropolitana de São  Paulo. Vislumbrar este território em sua dimensão espaço‐temporal é perceber essa gama de  temporalidades sucessivas e que vão se sobrepondo, entendendo que há aí uma dinâmica, um  modo de operação, mas também exceções e fugas da norma, ou seja, algo de “unitário  verdadeiro, mas também um paradoxo” (SANTOS, 2001, p. 116). 

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problema de pesquisa apresentado, bem como da hipótese proposta. Portanto, não se trata  tanto de verificar se tal hipótese é verdadeira ou falsa, mas o quanto pode ser significativa, no  sentido de fomentar novas informações sobre o território, reconectando pontos heterogêneos  e aparentemente fragmentados. Deste modo, os procedimentos metodológicos utilizados  funcionam como exercícios  de  aprofundamento da hipótese. Assim é com a varredura  documental, que consiste no ofício de procurar e organizar uma compilação de textos,  cartografias, fotografias, legislações, periódicos e trabalhos acadêmicos sobre o tema da  pesquisa, extraindo o que for mais conveniente para referenciar o campo de conhecimento  enquanto tal.  Isto  também  vale  para as  visitas de  campo, pois adentrar no  território,  propriamente, é muito diferente do que vê‐lo por mapas, fotografias, ou outros meios de  representação documental; observar in loco as minúcias do território, a condição de moradia  das pessoas, o modo como se dá o deslocamento de pedestres em meio aos automóveis, as  torres de alta tensão, os viadutos e seus baixios, as calhas dos rios, a condição suburbana e  periférica da metrópole... São, efetivamente, manifestações de um afeto, de se ter vivenciado  situações ímpares. Finalmente, para ponderar sobre esse misto de experiências teóricas e  práticas, é fundamental proceder com uma caracterização do território por meio da produção  de desenhos, de croquis, de notas e fichamentos, de recomposição de bases cartográficas,  bem como da formação de um acervo de fotografias, quando das visitas de campo. Afinal, o  diferencial da abordagem híbrida em arquitetura e urbanismo é a capacidade de realizar  sínteses visuais sobre situações ambíguas, complexas e mesmo contraditórias. 

Doravante, o Capítulo 1 – São Paulo (de Piratininga): breve retrospectiva histórica, busca  tecer  algumas  considerações iniciais  sobre as principais características dessa porção de  território em diferentes escalas – Estado, Metrópole, Capital – e tem o lugar das águas como  fio condutor de um processo de transformação que culmina no quadro atual. Trata‐se de uma  narrativa que destaca o amálgama entre o relevo e os principais modais de traçado –  hidrográfico, ferroviário e rodoviário, os quais foram sendo implementados em sucessivos  períodos. O primeiro é o indígena, pré‐existente e pré‐histórico, mas cuja cultura oral nomeou  todo o território, assim como dominou um conhecimento milenar sobre a fauna e a flora. O  segundo  é  o  período  colonial,  no  contexto  de  um  urbanismo  de  colinas  de  tradição  portuguesa, com toda a imposição violenta de controle dos corpos, que foi determinada aos  povos indígenas e africanos, reconfigurando o território e imprimindo a estas populações uma  sujeição histórica. O terceiro período é constituído pela implantação de tecnologia inglesa,  sobretudo, com destaque para a malha ferroviária e as grandes infraestruturas de geração de  energia hidroelétrica, que vão determinar também as bases para o crescimento urbano de São  Paulo. O quarto período consiste na escolha por um modal hegemônico de transporte –  estradas de rodagem para automóveis – o qual vai pautar uma estruturação metropolitana do  território, alternando, numa configuração em rede, áreas de concentração e dispersão urbana; 

um urbanismo rodoviarista, american way of life. Assim, a ambiguidade da condição atual, no  caso de São Paulo, estaria expressa na disparidade de valores com a qual cada um desses  períodos estaria vinculado, formando um quadro heterogêneo e diversificado. 

O Capítulo 2  ‐ Uma perspectiva teórica sobre o patrimônio de São Paulo, faz um  delineamento da noção de patrimônio ambiental – construído e urbano – a fim de relacionar  as temporalidades diversas – indígena, colonial, urbana e metropolitana – que articulam a 

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relação entre natureza e técnica. Busca‐se, com isso, propiciar um reconhecimento acerca da  condição atual do lugar das águas, como dotado de valor para além de uma concepção  meramente utilitária. O caráter de afetividade proposto na hipótese se revelaria, então, como  um sentimento de pertença, que justificaria a noção de patrimônio, em função de uma  atribuição de valor baseada nas qualidades observáveis nas ambiências formadas entre os  elementos naturais e construídos. A partir da discussão sobre a noção de patrimônio, torna‐se  possível conceber o processo de urbanização como um grande artefato cultural, dotado de  valor intrínseco, onde a própria bacia hidrográfica pode ser encarada como um patrimônio  ambiental, tendo como foco o acoplamento da Região Metropolitana de São Paulo à Bacia do  Alto Tietê.  

O Capítulo 3 – O lugar das águas: a construção do método e estudos de caso, apresenta  a base conceitual que vai definir os procedimentos metodológicos para caracterizar o lugar das  águas frente ao processo de urbanização, observando diferentes microbacias hidrográficas. 

Basicamente, os procedimentos consistem da alternância entre exercícios de escrivaninha –  revisão bibliográfica, produção de desenhos, definição de categorias de análise e classificação  dos dados; e também de visitas de campo, quando é possível vivenciar experiências efetivas de  imersão no território. Para aplicação destes procedimentos, a bacia hidrográfica foi definida  como unidade de análise, e foram escolhidos três estudos de caso. O primeiro é a bacia do  Córrego Tijuco Preto, um prelúdio do lugar das águas, considerando‐se a favela como um  ambiente seminal para a sua problematização, pois revela a urgência pela habitação, e, ao  mesmo tempo, a insuficiência da ação reguladora do Estado. O segundo caso, a bacia do  Córrego Tiquatira, na Região da Penha, faz uma análise da transformação do traçado urbano e   do  desmonte  desse  bairro  fluvial,  um  exemplo  emblemático  da  sobreposição  de  temporalidades que será discutida no Capítulo 1. O terceiro caso, a bacia do Cocaia, ocorre no  contexto dos reservatórios Guarapiranga  e Billings,  e explora uma porção do território  bastante heterogênea,  pois se configura ao mesmo tempo suburbana, lacustre, rural e  florestal. Uma vez relatados os casos, procede‐se então com um balanço dos resultados,  discutindo‐se a contribuição que a aplicação do método proporcionou, discutindo quais foram  os ganhos, as descobertas e as limitações para o campo de conhecimento que se procurou  delinear. 

O Capítulo 4 – Aprofundando o lugar das águas a partir da perspectiva teórica, retoma  algumas reflexões que foram feitas no decorrer da pesquisa, e que serviram de subsídio para  pensar o lugar das águas a partir de um olhar imbuído de afeto. Porque este olhar não poderia  se dar apenas como algo afirmativo, como um reconhecimento forçado, “esse lugar é dotado  de valor”; mas, antes, como uma ponderação sobre a subjetividade intrínseca à própria  investigação  científica,  que  envolve,  inclusive,  um  posicionamento político, e  não mais  pretensamente objetiva e neutra, abrindo‐se aí espaço para outros conceitos e abordagens: as  nuances que derivam de uma observação que alterna proximidade e distanciamento para  delinear um lugar, imbuí‐lo de desejo, de prazer, das sutilezas das percepções do corpo, e da  sua duplicidade ambiental; os indícios que estão presentes em tal lugar, até a constatação de  um fato que pode ser terrível; e o enunciado da própria concepção de lugar. São alguns tópicos  que foram considerados oportunos de apontamento, ainda que brevemente, a fim de se  reiterar, inclusive, uma incerteza sobre tudo o que se afirmou. 

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Este capítulo apresenta, de maneira sintética, os principais fatores que definiram a  configuração territorial de São Paulo, tanto em nível regional, observando‐se a escala do  Estado como grande porção de terra pactuada, quanto em nível local, onde é possível  perceber como as sobreposições, desdobramentos e intersecções entre as temporalidades  diversas da natureza e da técnica definem lugares específicos e diversificados. Em especial  para o lugar das águas, pois, se por um lado, observa‐se uma variedade de paisagens e  elementos naturais, por outro há um leque de técnicas comuns na ocupação deste lugar, ainda  que tais técnicas assumam feições diversas conforme o ponto de vista que se observe. Tendo  isto em vista, e por escolha metodológica, este capítulo propõe uma retrospectiva histórica  sob a perspectiva do lugar das águas, e busca estabelecer uma narrativa baseada em uma  seleção cronológica de documentos cartográficos, fotografias e numa revisão bibliográfica. Um  elenco de evidências que sejam significativas, de fato, para demonstrar minimamente o  quadro abrangente e diversificado que se revela quando o olhar se volta do lugar das águas  para São Paulo, assim como toda força e potência que foram necessárias para realizar uma  empreitada de caráter tão monumental. 

A história de São Paulo – Estado, Metrópole, Capital – já foi contada muitas vezes,  segundo vários enfoques e a partir de suas várias localidades, de modo que este capítulo busca  fazer essa retrospectiva histórica que tem, como fio condutor, uma narrativa que alterna  eventos locais e regionais, buscando evidenciar, por meio de um entendimento “orgânico” do  território (AB’SABER, 1957; FLUSSER, 1987; GUERREIRO, 2012), como o crescimento de São  Paulo é propriamente o desenvolvimento de um corpo “híbrido” (LATOUR, 1991), e mesmo de  um “corpo sem órgãos” (DELEUZE, GUATTARI, 1980). Afinal, São Paulo se assenta em num  meio natural, mas também é dotado de próteses e toda a sorte de propriedades artificiais  (DOMINGUES, 2009). Aqui, a visão peripatética, aquela que se movimenta marginalmente, por  bordas e frestas, se vincula a um sentido de alteridade, ou seja, de enxergar no lugar das águas  o reflexo de si mesmo. Afinal, tratar o processo de urbanização como “orgânico” possibilita a  percepção de um “devir animal” para este processo, fazer com que São Paulo se torne  novamente pira, “peixe”, até porque nunca deixou de ser; e não sem antes ter ocorrido um 

“devir‐europeu” desse mesmo lugar das águas, pois não à toa, tantas santas que deram nomes  aos núcleos de colonos, diz‐se popularmente que foram achadas nas águas: Nossa Senhora da  Penha, de Santana, da Conceição de Guarulhos, entre outras. 

1.1. Das toponímias indígenas às imposições coloniais 

O Aldeamento de Piratininga foi fundado em 1554 e marcou o início da conquista do  Planalto Paulista pelos portugueses, com o lançamento da pedra fundamental conhecida como 

“Pátio do Colégio”: a construção da primeira edificação “oficial” do novo território, uma escola  de catequese jesuíta com a finalidade de espoliação das populações indígenas de sua cultura,  impondo a estas populações outro sistema moral; antes disso, porém, foi necessário subjugá‐

las pela força da violência das comitivas de bandeirantes. Independente disso, o território  antigo já se encontrava nomeado na língua Tupi por essas populações originárias, tendo esses 

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nomes indicações notórias das características dos lugares que foram sendo, a partir de então,  apropriados pelos colonos europeus. 

Piratininga era então a “Terra do peixe seco” (Figura 2), a grande planície aluvial do Rio  Tamanduateí, a “baixada do tamanduá”, lugar onde se dava uma cadeia alimentar propiciada  pela sazonalidade entre os períodos de cheias do rio, com o alagamento de toda a área de  várzea, e estiagem, quando o nível das águas baixava e muitos peixes “encalhavam”, secando  depois ao sol e sendo consumidos por formigas, prato predileto do tamanduá, o “caçador de  formiga”. Essa precedência dos nomes indígenas dos lugares, bem como todo o conhecimento  dessa cultura, vai ser incorporada pelos colonos, num movimento inverso da expropriação que  a conquista do território implicava. É nesse contexto que, em 1585, a Vila de São Paulo é  criada: um novo ponto de polarização, um quartel militar com uma instituição religiosa que vai  permitir o estabelecimento de núcleos satélites, ou seja, novos assentamentos de colonos,  com ocupações marginais operando em volta desse centro organizador. São Paulo, o santo que  se converteu ao cristianismo depois de perseguir cristãos; santo que carrega um livro, a  Palavra de Deus, e uma espada apoiada ao chão (Figura 3), indicando a conquista do território  pela força, agora perseguindo indígenas, com o posterior estabelecimento de uma nova lei. 

A estruturação do território a partir da Vila de São Paulo vai se dando então de dois  modos: ou seguindo o curso do Rio Tietê, por barco, ou se ligando a núcleos rurais por meio de  caminhos de tropeiros, como por exemplo, a Sesmaria da Penha, e daí por sua vez, seguindo  mais à Leste, até o Aldeamento de São Miguel, e bifurcando ao norte, rumo à Freguesia da  Conceição de Guarulhos, como se pode notar já em 1668 (Figura 4). Destaca‐se aí a proporção  entre as distâncias, que marcavam um dia no lombo da mula, distância próxima o bastante  para permitir uma comunicação estratégica entre os  povoados, com  o  escoamento  de  mantimentos, bem como para barrar o deslocamento de pessoas em casos de surtos de  doença. A Bacia do Córrego Tiquatira, “cobra grande”, por exemplo, uma das tantas “asas” do  grande Rio Tietê, “água verdadeira”, já se encontrava à época atravessada então por essas  rotas dos  tropeiros,  sendo o próprio  rio uma  via de navegação que vai possibilitar  o  progressivo adentrar no Planalto Paulista. São essas as infraestruturas de fluxos iniciais que  vão configurar um território em expansão, constituído de assentamentos de colonos, e na qual  o sentido de ordem vai se dar por uma força militar, dos bandeirantes que picam trilha,  descem o rio e subjugam índios, encaminhando‐os então para a força moral‐religiosa dos  jesuítas, catequizando‐os e incorporando sua cultura e conhecimento milenar sobre esse  território, e conduzindo‐os para o trabalho na lavoura. E assim se estabelece no Planalto  Paulista o chamado “urbanismo de colinas de tradição luso‐brasileira”, conforme apontam  Costa Lobo e Simões Júnior (2012), com a preferência de ocupação de áreas altas, ao invés de  encostas e fundos de vale, com a implantação de uma ermida no outeiro para marcar  simbolicamente uma paisagem na qual os elementos urbanos principiam por disciplinar o meio  natural em que se inserem:

 

A expressão “cidade de colina” é de acepção luso‐brasileira,  associada  à  tradição  urbanística  de  se  escolherem  sítios  elevados para a fundação de urbes. Pode ser entendida como  decorrente  de  uma  série  de  princípios  e  normativas  norteadores da prática portuguesa, quando da criação de  urbes novas, política  esta aplicada tanto em Portugal, na 

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século XVIII),  quanto  na política  de expansão  do império  colonial  português,  ocorrida  a  partir  do  século  XV  em  territórios da África, Ásia e América. [...] Difere, portanto, do  entendimento de “ocupação de encostas”, expressão mais  usualmente  utilizada  no Brasil,  mas  com  significado  mais  distinto, pois em geral aplicada a urbanizações informais como  favelas e loteamentos ilegais. O termo encosta, na verdade,  refere‐se a uma parcela específica da colina – a de suas  laterais, não contemplando nem a área do topo, nem a da  base da colina, que são precisamente os locais de maior  interesse de estudo nas cidades de colina. É no topo que se  situa a “cidade alta”, a “acrópole”, o território que é, na  verdade,  a  parte  mais  relevante  da  ocupação  urbana  de  Colina, onde se construíam as igrejas, os edifícios públicos e as  residências senhoriais. Opondo‐se assim à “cidade baixa”, em  geral  junto  à  orla  ribeirinha  –  onde  ficava  o  porto,  os  estabelecimentos  comerciais  e  as residências populares  –  firmando  a  dualidade  cidade  alta/  cidade  baixa  como  o  principal  paradigma  da  urbanística  portuguesa.  [...]  As  encostas  mereciam, portanto,  um  status  secundário neste  processo, uma vez que eram efetivamente ocupadas num  momento posterior ao estabelecimento do núcleo urbano. [...] 

Razões de segurança e de visão estratégica da engenharia  militar portuguesa recomendavam a escolha de sítios elevados  para a fundação de urbes. As encostas eram efetivamente  ocupadas  a  partir  do  momento  em  que  a  urbe  ia  se  consolidando e as ligações viárias entre a parte alta e a baixa  impunham a construção de ladeiras. É por essas ladeiras, em  geral  vencendo  diagonalmente  as  curvas  de  nível,  que  pedestres,  animais  e  veículos  de  carga  transitariam,  favorecendo assim a implantação de construções ao longo do  trajeto e, desta maneira, induzindo a ocupação da encosta. 

(COSTA LOBO E SIMÕES JÚNIOR., 2012, p. 17‐18) 

É esse urbanismo de colinas que vemos ao contemplarmos, por exemplo, uma pintura  de Thomas Ender de 1817 (Figura 5), com o Rio Aricanduva em primeiro plano e a Colina de  Penha ao fundo; desde o ano anterior, esse artista percorreu e registrou a paisagem de várias  localidades entre São Paulo e Rio de Janeiro, e deixou um rico testemunho de um processo de  urbanização que se assentou sobre um relevo abundante de cursos d’água, bem como áreas  alagadiças e pantanosas, brejos, lavouras e grandes rios com voluptuosos meandros lindeiros à  uma vegetação frondosa. Pouco depois, em 1822, ocorre a mudança de regime político no  Brasil, de Colônia para Império, com a Capital instituída no Rio de Janeiro, época em que se  iniciava o chamado Ciclo do Café, com destaque para a Região do Vale do Paraíba, cujas  condições de relevo e clima favoreceram bastante a produção, mas que também foi se  consolidando no Planalto Paulista (LIMA, 2003). Porém, diferente do Rio de Janeiro, onde o  status de Capital do Império demandou uma série de inovações, em especial no âmbito  urbano, em São Paulo ocorre a persistência de um meio predominantemente rural, com 

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pequenas vilas articulando a distribuição interna da produção agrícola de subsistência, ao  mesmo tempo em que o grosso da produção excedente, voltada para a exportação de café no  mercado europeu, escoava do Vale do Paraíba para a província fluminense, seguindo para o  Porto do Rio de Janeiro ainda no lombo das mulas. 

 

Figura 2 – Piratininga: Peixe Seco sobre piso paulista de Mirthes Bernardes  Fonte: elaborado pelo autor, 2014 

   

 

Figura 3 – São Paulo, o santo 

Fonte: desconhecida (imagem de domínio público) 

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Figura 4 – Sesmaria da Penha e bacia hidrográfica do Tiquatira, 1668  Fonte: SILVA, 2016, p. 100 

 

 

Figura 5 – Vista da Colina da Penha com o rio Aricanduva em primeiro plano, 1817  Fonte: aquarela de Thomas Ender, domínio público 

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1.2. A malha ferroviária como vetor de crescimento urbano 

Esse quadro predominantemente rural, algo bucólico e propriamente caipira de São  Paulo (CÂNDIDO, 1964) vai mudar a partir de 1867, quando começa a ser instalada a malha  ferroviária da São Paulo Railway Company, ligando Jundiaí ao Porto de Santos, tornando‐se  São Paulo o principal entreposto dessa rota (Figura 6). A ferrovia é uma infraestrutura que vai  literalmente revolucionar a noção de tempo e de produção no território paulista, antes  predominantemente rural  e, a partir  daí, progressivamente urbano.  Diz‐se revolucionar,  porque a ferrovia traz consigo toda a noção do pensamento iluminista, então em voga na  Europa, na qual a primazia da razão encontra no progresso técnico sua principal justificativa. 

Um trem é muito mais rápido que uma mula, e carrega muito mais que uma tropa de mulas. 

Porém, não é à toa que a então medida de energia de uma “Maria Fumaça”, a locomotiva  carro‐chefe de uma composição de vagões de trem, tenha sido definida primeiramente como 

“horse Power”: a força de cavalos como unidade de medida para um motor a vapor (na  pesquisa de James Watt). 

 

Figura 6 – Galpões da São Paulo Railway, 1867  Fonte: Lavander e Mendes, 2005, p. 26 

 

As áreas em “branco” do novo território paulista, parcialmente atravessado por uma  malha ferroviária, longe de  ser um  espaço abstrato,  na  verdade se referem  a  lugares  simplesmente ainda desconhecidos, selvagens, onde reina outra lógica que não a de um 

“estado em expansão”, São Paulo, com todas as linhas de estrada de ferro em tráfego,  construção e projetadas. Era assim no extremo oeste do Planalto Paulista em 1886 (Figura 7),  com os chamados “Terrenos Despovoados”: terras ainda não catalogadas nas quais ainda  viviam populações indígenas, estes sempre sendo empurrados para o interior pela “locomotiva  do progresso”. Os “pontos importantes”, por outro lado, aonde o progresso chegara na forma  da ferrovia, eram medidos em função da distância em quilômetros do Porto de Santos,  reforçando o caráter predominantemente extrativista ao qual as culturas de produção agrícola  e agropastoril se relacionavam: tudo girava em torno de um escoamento crescente de  produção em um território em franca expansão. Destacam‐se também os rios navegáveis, em  especial um grande trecho do Rio Tietê, começando no povoado de Porto Feliz e indo até o  ponto geográfico conhecido como Salto de Avanhandava, próximo à uma Colônia Militar de  mesmo nome, o posto mais avançado a oeste construído pelo Império em 1858. 

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Figura 7 – Estado de São Paulo, 1886  Fonte: São Paulo, domínio público 

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Paralelamente  à  instalação  da  malha  ferroviária,  modal  de  transporte  que  vai  reconfigurar a noção de velocidade no território paulista e ocasionar uma polarização entre o  rural e o urbano, com o crescimento de ambos os modos, articulados, fez‐se necessária a  criação de uma força‐tarefa que pudesse justamente, mensurar esse crescimento. É nesse  contexto que se dá, sob o aval do então Visconde de Pinhal, cafeicultor e político do Vale do  Paraíba, Antônio Carlos de Arruda Botelho, a criação do Instituto Geográfico e Geológico ‐ IGG,  em 1886, órgão que seria liderado pelo pesquisador canadense Orville Adalbert Derby (SÃO  PAULO, 2010b). Já no ano seguinte, em 1887, o trabalho de campo do IGG compreendia  expedições pelo Planalto Paulista, com o registro de pontos notáveis da paisagem num  horizonte a se perder de vista: formas acentuadas de relevo como morros, pontas, vales... 

Entre estes, a Serra do Japi (Figura 8). Nesse momento, a principal ferramenta de registro eram  desenhos feitos à mão em cadernetas de bolso, os quais tem o poder de esquadrinhar um  território  vasto,  e  sintetizá‐lo  em  pequenas  folhas  de  papel,  simplesmente  porque  estabelecem relações entre estes pontos notáveis, revelando proporções e distâncias que já  estão lá, impressas no relevo, mas que, quando registradas, demonstram as características  próprias do território. 

De todo modo, ainda havia muito por se fazer. Dos registros dessa época, final do século  XIX, ficam evidentes tanto a relevância do conjunto de elementos delineados, como também  todo espaço “em branco”, ou seja, aquilo que não era registrado e permanecia devidamente  indefinido, não só pela simples limitação dos levantamentos de campo, mas, sobretudo, como  opção estética. É assim se olharmos, por exemplo, para a Freguesia de Santo Amaro (Figura 9),  em 1888, ao Sul de São Paulo: conhecido como “o celeiro da capital” (ZENHA, 1977, p. 56), esta  localidade passou a contar com um ramal ferroviário instalado pela Companhia Carris de Ferro  de São Paulo, em 1886, conectando Freguesia e Capital. Um pequeno povoado de imigrantes  europeus, com produção agrícola de subsistência, e que foi registrado então como um núcleo  urbano com uma ermida ao centro e um cemitério ao lado para louvar os mortos, uma estrada  principal pontuada por pequenas edificações dispersas e uma estrada transversal que levava à  ferrovia, alguns cursos d’água, enfim, mais além um espaço em branco de campo, capoeiras e  Grande Vargem... Porém, esse mesmo ramal ferroviário foi adquirido pela São Paulo Tramway  Light and Power Company Ltda, em 1900, e garantiu o transporte de materiais e mão de obra  necessária, ao mesmo tempo em que funcionou como um vetor de expansão urbana da cidade  de São Paulo para o sentido sul4, implicando também o paulatino desmonte no modo de vida  predominantemente rural de Santo Amaro (MENDES, CARVALHO. 2000). 

Desse modo, a malha ferroviária ramifica‐se pelo território como uma trepadeira sobe  pela parede, galho por galho, numa escala local, mas também como uma grande relva, 

“rizomática”, numa escala regional, consolidando‐se como um modal em franca expansão: 

partindo de São Paulo, já não é só até Jundiaí que o trem vai, mas até Uberaba, em Minas  Gerais, e até o Rio de Janeiro, passando pelo Vale do Paraíba, pela Estrada de Ferro Dom Pedro  II, que viria a mudar seu nome pouco depois, devido à Declaração da República, em 1889: já  em 1890, a então Estrada de Ferro Central do Brasil articulava uma comunicação interestadual  (Figura 10), por meio da rede de telégrafos, bem como o transporte de cargas e pessoas, entre        

4 À época, Santo Amaro era um município independente, mas foi incorporado ao município de São Paulo 

por meio do Decreto Estadual 6983, de 1935. 

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como suas reentrâncias, vai implicar em maior ou menor factibilidade para implantação de  novos ramais, conforme as situações que se apresentem, na medida em que sua constituição  vai se tornando mais esquadrinhada, e que a demanda pelo escoamento de uma produção  extrativista, tanto agrícola quanto mineral, se faz imperativa. E aí os avanços tecnológicos na  área da mecânica dos solos se fazem notar, assim como as obras de arte da engenharia, uma  vez que muitas linhas projetadas passam literalmente por cima de acidentes geográficos  significativos na escala regional. 

   

Figura 8 – Pontos notáveis do Planalto Paulista, entre estes a Serra do Japi, 1887  Fonte: São Paulo, 2010a, p. 42 

 

   

Figura 9 – Freguesia de Santo Amaro, 1887  Fonte: São Paulo, 2010a, p. 37 

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Figura 10 – Estrada de Ferro Central do Brasil, 1890  Fonte: Rio de Janeiro, domínio público 

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Santos (Figura 11), foi um marco significativo do avanço tecnológico proporcionado pelo  engenho da técnica: o trajeto, do centro de São Paulo, na estação Brás, passando por São  Bernardo do Campo até a estação Alto da Serra, seguia por sistema funicular até Cubatão, e  daí para Santos5. Em 1896, já havia estudos para outros ramais, o que indicava uma demanda  crescente para o escoamento da produção. De todo modo, toda a infraestrutura característica  da linha férrea, com seus galpões, casas de máquinas, parques de estacionamento, entre  outros elementos constitutivos, determinou uma estruturação técnica da Serra do Mar,  reconfigurando a relação de escala entre o processo de urbanização e a monumentalidade  natural,  pois  já  aqui  se  evidencia  um  primeiro  indício  do  que viria  a  se  tornar  uma  macrometrópole poucas décadas depois. 

Em 1899, o centro de São Paulo despontava então como principal entreposto de várias  rotas (Figura 12), não só da chamada Estrada de Ferro Jundiaí  ‐ Santos, ligando o “Portal do  Cerrado” ao “Porto Internacional”, mas de estradas consolidadas entre os vários povoamentos  circundantes: Penha, Santana, Lapa, Pinheiros, Vila Mariana, Ipiranga, Vila Prudente e, mais  além, São Bernardo, Santo Amaro, Osasco, Tremembé, Guarulhos, São Miguel... Também o  centro se consolida justaposto ao Rio Tietê, a grande vértebra hídrica que segue até os confins  do Planalto Paulista, incorporando também, em um primeiro momento, a foz de um dos seus  principais afluentes, o Tamanduateí. Assim se estabeleceu o chamado sítio urbano de São  Paulo,  como  um  epicentro  rodeado  de  núcleos  urbanos  não  independentes,  mas  relativamente autônomos, separados cada qual por um considerável “mar de colinas”, espaços  em branco ainda por se ocupar. Nas palavras do geógrafo Ab’Saber (1957): 

A originalidade geográfica principal do sítio urbano de São  Paulo reside na existência de um pequeno mosaico de colinas,  terraços fluviais e planícies de inundação, pertencentes a um  compartimento restrito e muito bem individualizado do relevo  da porção sudeste do Planalto Atlântico Brasileiro. [...] Na  realidade a área de relevo que interessa ao estudo do sítio  urbano de São Paulo fica praticamente restringida ao sistema  de  colinas,  terraços  e  planícies  do  ângulo  interno  de  confluência dos rios Tietê e Pinheiros. (AB’SABER, 1957, p. 13) 

Ora, a limitação da perspectiva que vai enquadrar a escala que de fato caracteriza São  Paulo vai mudar progressivamente, uma vez que a capacidade crescente de produção de bens  de consumo, sobretudo agrícolas, e o escoamento de matérias primas oriundas do planalto  paulista, no descortinar do século XX, implicou também num imperativo de primeira ordem: 

um aumento na capacidade de geração de energia. E aqui, o advento da Usina Hidroelétrica de  Santana do Parnaíba, construída em 1901 para além da confluência entre os rios Tietê e  Pinheiros, com obra conduzida também pela Companhia Light, significou o começo de uma  segunda mudança de rumo na estruturação do território, e, de fato, tão revolucionária quanto  foi a progressiva implantação da malha ferroviária. 

      

5 “O traçado da ferrovia seguiu na serra o mesmo delineamento da antiga Trilha Tupiniquim, pelo Vale  do Rio Mogi, enquanto que o roteiro das Trilhas do Padre José, o Novo Caminho para o Cubatão,  Calçadão do Lorena e o Caminho para o Mar situaram‐se mais ao Sul, entre os Vales do Rio das Pedras e  Perequê” (LAVANDER E MENDES, 2005, p. 10). 

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O início da prospecção tecnológica acerca do aproveitamento dos recursos hídricos para  geração de energia elétrica ocorre junto com outros projetos de intervenção nos cursos d’água  da bacia hidrográfica do Alto Tietê. Tais projetos podem ser observados desde o final do século  XIX, quando foi instituída a Comissão de Saneamento das Várzeas, que elaborou, em 1893, o  primeiro projeto de retificação do Rio Tamanduateí. Em 1894, a Comissão apresenta o “Projeto  de Regularização do Rio Tietê e Dique Marginal”, cujas obras só teriam início mais de quarenta  anos depois (TRIPOLONI, 2008, p. 76). Em 1904, tem início as obras de intervenção nas várzeas  do Tamanduateí e no vale do Anhangabaú, onde ambos os rios tornaram‐se objeto de projetos  urbanos e obras de infraestrutura e saneamento (TRAVASSOS, 2004, p. 23‐29). Este conjunto  de  intervenções nos cursos  d’água e nas áreas de várzea como um todo consistiu na  formulação de um paradigma que pressupõe que quanto maior o desempenho técnico dessas  áreas, no sentido de minimizar as interferências do sítio precedente e tirar partido dos seus  atributos, maior  será o aproveitamento  urbano que se poderá  realizar,  em termos de  apropriação fundiária. Segundo Franco: 

Tão  ou  mais  importante  do  que  as  novas  frentes  de  urbanização, a intervenção nas várzeas equacionava de forma  conjunta uma  série  de  questões  estruturais:  saneamento,  drenagem, abastecimento, geração de energia e circulação  automotora. Seriam reunidas à ferrovia para ampliar a infra‐

estrutura  básica  sem  a  qual  o  crescimento,  sobretudo  industrial,  seria  insustentável.  Entre  todos  os  sistemas  implantados,  o  de  transportes  desempenharia  o  papel  fundamental de possibilitar a articulação entre os setores  produtivos e aglutinar a constelação de bairros definidos por  um modelo de ocupação cada vez mais extensivo. [...] Nesse  momento  a  questão  já  estava  formulada:  transformar  o  território  das  várzeas  pela  ocupação  das  infra‐estruturas  necessárias para a modernização da cidade. Um projeto ficou  estabelecido e, desde então, passou a ser perseguido, ainda  que submetido aos conflitos e contradições inerentes a toda  ação prolongada no tempo. [...] A decisão de transformar o  sítio paulistano pela incorporação dos grandes sistemas de  engenharia de escala regional evidencia que a geografia não  foi um fator determinador na história da cidade. Na realidade,  assim que os instrumentos para isto se tornaram disponíveis,  os  elementos  naturais  foram  ressignificados  por  ações  deliberadas, que direcionaram o crescimento de São Paulo a  partir de interesses. Essas ações, muitas  vezes, foram na  contramão  das  condições  naturais,  como  no  caso  da  contenção do caminhamento das águas fluviais e da ocupação  indiscriminada das áreas de várzeas. (2005, p. 54) 

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Figura 11 – Ferrovia entre São Paulo e Santos, 1896  Fonte: Lavander e Mendes, 2005, p. 57 

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Figura 12 – Município de São Paulo, 1899  Fonte: São Paulo, 2010a, p. 61 

 

Em São Paulo, portanto, a partir da segunda metade do século XIX, principia‐se uma  alternância de concentração e dispersão urbana entre as áreas altas, de cumeeiras e encostas  de colinas, e áreas baixas, de várzea, sendo que tal configuração é uma consequência direta da  implantação da malha ferroviária. Assim, na virada para o século XX, na medida em que os  antigos  núcleos  coloniais  vão sendo conectados pela ferrovia, já é possível  notar  uma  sobreposição de temporalidades, tanto no traçado das diferentes infraestruturas quanto nos  padrões de edificação, conforme o compartimento do relevo observado: uma predominância  de casario baixo ao longo dos topos das colinas e encostas, e a implantação de galpões 

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até o topo da colina com uma passarela exclusiva para o Palacete Rodovalho (Figura 13),  construção que contrastava com a antiga igreja rodeada por ruas estreitas com pequenos  sobrados coloniais. Nesse mesmo ano, prosseguiam as expedições do Instituto Geográfico e  Geológico na exploração do Rio Tietê, sentido Rio Paraná, na qual vai se tornando mais nítida  uma das principais características da hidrografia do Planalto Paulista: seu volume bruto de  água. E nesses muitos rincões de território bravo com vegetação indócil, como no Salto do  Itapura (Figura 14), a proporção ínfima do elemento humano na paisagem natural, mais do  que algo a ser reverenciado, revelava antes um potencial imensurável da terra – e da água –  para exploração, apropriação e aproveitamento. 

  Figura 13 – Palacete Rodovalho, Igreja da Penha e a passarela de acesso ao ramal ferroviário, 1905 

Fonte: Memorial Penha de França, acervo digitalizado   

De toda forma, para domar esse território em expansão, foram necessárias sucessivas  forças tarefas de tropas que eram montadas para seguir os cursos dos grandes rios, não só o  Tietê, mas também o Rio Grande ao Norte, na divisa com Minas Gerais, e o Rio Paranapanema,  ao Sul, na divisa com o Paraná. Afinal, em 1906, atravessar a Cachoeira da Capivara numa  grande canoa, na qual enfrentam a correnteza cerca de trinta homens (Figura 15), era tão  difícil quanto é na atualidade. É essa força de desbravamento da terra e das águas que vai  como que se imprimir no espírito paulista, tendo na figura ancestral dos indígenas, religiosa  dos jesuítas, e militar dos bandeirantes, os elementos formadores de uma identidade híbrida. 

Não só isso, mas também a figura técnica do engenheiro militar da agrimensura do território e  o conhecimento que foi se avolumando acerca das propriedades dos elementos de solo, flora e  fauna, foram se assentando como um repertório de recursos para pronta utilização. Por isso  para Deleuze e Guattari, “o mais importante talvez sejam os fenômenos fronteiriços onde a  ciência nômade exerce uma pressão sobre a ciência de Estado, e, onde, inversamente, a ciência  de Estado se apropria e transforma os dados da ciência nômade” (1980, vol. 5, p. 27). 

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Figura 14 – Salto de Itapura, 1905  Fonte: São Paulo, 2010a, p. 66‐67 

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