UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
PROGRAMA DE PÓS‐GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO
LUCIANO ABBAMONTE DA SILVA
A FORMA (IN)DOMÁVEL:
O lugar das águas no processo de urbanização de São Paulo
SÃO PAULO
2020
A FORMA (IN)DOMÁVEL:
O lugar das águas no processo de urbanização de São Paulo
Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós‐Graduação em Arquitetura e Urbanismo, da Universidade Presbiteriana Mackenzie – São Paulo – para concessão do título de doutor em arquitetura e urbanismo, na área de concentração Urbanismo Moderno e Contemporâneo.
Orientadora: Profa. Dra. Angélica Aparecida Tanus Benatti Alvim
SÃO PAULO
2020
S586f Silva, Luciano Abbamonte da.
A forma (in)domável: o lugar das águas no processo de urbanizaçăo de Săo Paulo / Luciano Abbamonte da Silva.
252 f. : il. ; 30 cm
Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade
Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2020.
Orientadora: Angélica Aparecida Tanus Benatti Alvim.
Bibliografia: f. 243‐252.
1. Bacia hidrográfica. 2. Tijuco Preto. 3. Tiquatira, 4. Cocaia. 5.
Patrimônio ambiental construído. I. Alvim, Angélica Aparecida Tanus Benatti. II. Título.
CDD 711 Bibliotecária responsável: Paola Damato CRB‐8/6271
Autor: Luciano Abbamonte da Silva
Programa de Pós‐Graduação Stricto Sensu em Arquitetura e Urbanismo
Título do Trabalho: A FORMA (IN)DOMÁVEL: o lugar das águas no processo de urbanização de São Paulo
O presente trabalho foi realizado com o apoio do Instituto Presbiteriano Mackenzie, com Isenção integral de Mensalidades e Taxas
À força da vida, presente em todos os fenômenos e a cada momento À minha mãe, Lenilélia Abbamonte da Silva
Ao meu pai, Luiz Gonzaga da Silva
À minha companheira, Juliana Okuda Campaneli À minha orientadora, Angélica Tanus Benatti Alvim
À Universidade Presbiteriana Mackenzie
RESUMO
Esta pesquisa discute a temática das águas em um meio urbano, e objetiva delinear qual é o lugar das águas no processo de urbanização de São Paulo, um problema composto, porque trata de definição de limites, mas que encontra, no caráter fluido das águas, o limiar da dissolução. A hipótese lançada é a de que tal lugar pode ser caracterizado a partir da sobreposição de três temporalidades: da natureza, da técnica e do afeto, sendo que cada uma destas implicam em diferentes atribuições para este mesmo lugar. Para testar esta hipótese, foram definidas as seguintes estratégias projetuais: focar nos métodos de registrar e cartografar o lugar das águas; observar o lugar das águas ao longo do tempo, nas diversas fases da história; considerar o lugar das águas como um patrimônio; analisar o lugar das águas metrópole contemporânea de São Paulo; propor um lugar teórico e afetivo das águas como fator de transformação. O referencial teórico apresenta o estado da arte de uma breve retrospectiva histórica de São Paulo, ao mesmo tempo em que justifica o enfoque que será dado, nos procedimentos metodológicos, à relação entre tecido urbano e bacia hidrográfica. A pesquisa realizada buscou fazer um rebatimento prático sobre as proposições teóricas, e elencou três estudos de caso para análise, a saber, as seguintes microbacias hidrográficas:
Córrego Tijuco Preto; Córrego Tiquatira; Ribeirão Cocaia. A discussão dos resultados se dá a partir da construção de um quadro comparativo, demonstrando as similaridades e diferenças entre as bacias hidrográficas e seus compartimentos de relevo, a saber, cumeeiras, encostas e anfiteatros de nascentes, e fundos de vale. Em suma, a tese revela a rica e variada constituição de uma relação conflituosa e problemática entre cidade e natureza.
Palavras‐chave: bacia hidrográfica, patrimônio ambiental construído, Tijuco Preto, Tiquatira, Cocaia
This research discusses the theme of water in an urban environment, and aims to outline which is the place of waters in the São Paulo urbanization process, a compound problem, because it deals with the definition of limits, but which finds, in the fluid character of the waters, the dissolution threshold. The hypothesis launched is that such a place can be characterized by the overlapping of three temporalities: of nature, of technique and of affection, each of which implies different attributions for this same place. To test this hypothesis, the following design strategies were defined: focus on the methods of registering and mapping the place of the waters; observe the place of the waters over time, in the different phases of history; consider the place of water as a heritage; analyze the place of waters in the contemporary metropolis of São Paulo; propose a theoretical and affective place for water as a factor of transformation. The theoretical framework presents the state of the art of a brief historical retrospective of São Paulo, while justifying the focus that will be given, in the methodological procedures, to the relationship between urban tissue and watershed. The research carried out sought to make a practical impact on the theoretical propositions, and listed three case studies for analysis, namely, the following watersheds: Córrego Tijuco Preto;
Córrego Tiquatira; Ribeirão Cocaia. The discussion of the results takes place from the construction of a comparative matrix, demonstrating the similarities and differences between the watersheds and their site compartments, namely, ridges, slopes and amphitheaters of springs, and valley bottoms. In short, the thesis reveals the rich and varied constitution of a conflictive and problematic relationship between city and nature.
Keyword: watershed, built environmental heritage, Tijuco Preto, Tiquatira, Cocaia
LISTA DE FIGURAS
LISTA DE FIGURAS
LISTA DE FIGURAS
LISTA DE TABELAS
INTRODUÇÃO ... 15
1. SÃO PAULO (DE PIRATININGA): BREVE RETROSPECTIVA HISTÓRICA ... 22
1.1. Das toponímias indígenas às imposições coloniais ... 22
1.2. A malha ferroviária como vetor de crescimento urbano ... 27
1.3. A instalação do sistema de geração de energia hidroelétrica ... 39
1.4. A estruturação metropolitana e a diversificação das infraestruturas ... 57
1.5. A ambiguidade da condição atual ... 88
2. UMA PERSPECTIVA TEÓRICA SOBRE O PATRIMÔNIO DE SÃO PAULO ... 109
2.1. Sobre a noção de patrimônio ambiental construído: uma revisão ... 120
2.2. As temporalidades diversas do patrimônio de São Paulo ... 128
2.3. O patrimônio ambiental de uma bacia metropolitana ... 131
3. O LUGAR DAS ÁGUAS: A CONSTRUÇÃO DO MÉTODO E ESTUDOS DE CASO ... 136
3.1. Procedimentos metodológicos ... 141
3.2. Tijuco Preto: prelúdio entre a favela e o bairro ... 147
3.3. Tiquatira‐Penha: o desmonte de um bairro fluvial ... 161
3.4. Cocaia: uma entre tantas outras bacias do sistema Guarapiranga ‐ Billings ... 188
3.5. Discussão dos resultados ... 224
4. APROFUNDANDO O LUGAR DAS ÁGUAS A PARTIR DA PERSPECTIVA TEÓRICA ... 227
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 241
REFERÊNCIAS ... 243
INTRODUÇÃO
A temática das águas é um assunto abrangente e diversificado, em especial as águas em um meio urbano e, nesta pesquisa, buscou‐se entender qual é o lugar das águas em São Paulo, e de que modo seria possível revelar seu caráter determinante. Assim, primeiramente, a pesquisa enfrentou um problema de dimensionamento, de agrimensura, de estabelecer limites para o lugar das águas. Um problema interessante, pois faz parte do comportamento das águas, em certos momentos, não se deixar limitar. A hipótese lançada para enfrentar tal problema é a de que esse lugar pode ser caracterizado a partir da sobreposição de três temporalidades: da natureza, da técnica e do afeto. E por que essa hipótese? Porque a investigação partiu do pressuposto de que somente imbuindo‐se de espírito afetivo pelo objeto de pesquisa é que se torna possível atribuir um valor minimente ponderado para aquilo que seriam os atributos da natureza articulados aos desígnios da técnica. Para testar essa hipótese tripartida, foram adotadas as seguintes estratégias metodológicas: focar nos métodos de registrar e cartografar o lugar das águas; observar o lugar das águas ao longo do tempo, nas diversas fases da história; considerar o lugar das águas como um patrimônio; analisar o lugar das águas metrópole contemporânea de São Paulo; propor um lugar teórico e afetivo das águas como fator de transformação.
De uma perspectiva mais abrangente, esta tese se destina a lançar luz sobre a seguinte questão: qual o lugar das águas no processo de urbanização de São Paulo? Por que esse processo se dá e como determina esse lugar, se é que, de fato, o faz? De modo que, mais especificamente, busca‐se entender quais são as principais características de um e de outro, lugar e processo, e como ambos são determinantes na constituição de uma identidade própria para a porção de território específica denominada São Paulo. A escolha de seguir por esse caminho se deve a uma observação reiterada da condição diversificada, e também contraditória, que a presença das águas assume conforme o ponto de vista em que se observe, e considera‐se que seja possível e necessário, ainda que hipoteticamente, delinear um campo de conhecimento que permita tornar mais nítida a multiplicidade e, sobretudo, relevância deste lugar. Portanto, ainda que a entrada para a questão inicial parta da consideração de que a presença das águas possa ser observada de maneira peculiar e distinta conforme varie o ponto de vista, parte‐se da hipótese de que há um vínculo causal nessa diversidade, uma conexão que torna aquilo que é variado e distinto em comum e partilhado, o que nos permitiria falar de um lugar de origem, ancestral: “reconheço o lugar das águas, já estive aqui”.
Nada faz mais sentido, se considerarmos a água como um líquido vital para o ciclo da vida no Planeta Terra, e daí que se evidencia também a sua condição contraditória, uma vez que, sendo tratada principalmente de forma utilitária, a conveniência acaba, também, por tornar preterida a presença da água enquanto elemento não só útil, mas propriamente valoroso e afetivo. Visto desta perspectiva, o lugar das águas passaria então pelo tempo técnico – de captação, tratamento e abastecimento dos espaços urbanos – residências, comércios, serviços, indústrias, equipamentos institucionais, entre várias outras tipologias – bem como de extensas áreas rurais e de mineração. Tais espaços são abastecidos continuamente por um sistema regional de infraestruturas, de caráter estatal e estratégico, determinando que esse tempo técnico, integrado e ao mesmo tempo multissetorial, estruture o território para o fornecimento não só de água potável, mas energia elétrica, gás,
telecomunicação. Nesse cenário, a predominância de um vínculo estritamente funcionalista com as águas implica que seu lugar seja considerado ora estratégico e indispensável, se a sua função principal for prover abastecimento para consumo humano; ora preterido e desvalorizado, se a sua função não for outra que ser um destinatário de efluentes de fundo de vale de uma sub‐bacia hidrográfica qualquer, como muito se observou nesta pesquisa, como, por exemplo, uma represa que se destina exclusivamente a produzir energia elétrica, ao invés de congregar múltiplas funções, situação definida como “hipertelia”, conforme Santos e Silveira (2001, p. 70).
Enfim, a observação reiterada do território de São Paulo, e subsequentes reflexões, tornaram imperativo recalcular a rota da pesquisa, retomando incursões que datam de longa data, visto que o lugar das águas trata tanto de uma terra natal quanto de um lugar factível de reinvenção. Desse modo, para conduzir esta investigação, que tem como ponto de partida a multiplicidade do lugar das águas, foi preciso reconstituir o percurso realizado, tanto teórico quanto prático, o qual foi movido por afetos, com o registro de evidências e análises subsequentes, produzidas em circunstâncias diversas. E no que consistiu a reconstituição desse olhar investigativo? Por um lado, na medida em que ocorreram as incursões no território, situações mais relevantes se cristalizaram, e foram elencadas como estudos de caso, pois puderam passar por uma bateria de testes similar, em termos de abordagem, e porque partiram de premissas comuns, em especial o enfoque na observação reiterada dos compartimentos da bacia hidrográfica – fundos de vale, encostas, anfiteatros de nascentes e cumeeiras – ainda que tenham sido aplicadas variações nos procedimentos metodológicos entre os casos realizados. Por outro lado, o aprofundamento no campo teórico, junto com a sedimentação das principais idéias desenvolvidas, trouxe à tona o desafio de entender o que há de comum e partilhado e o que há de específico e peculiar no lugar das águas, seja no processo de urbanização como um todo, seja em função de uma de suas partes, ou na relação entre o conjunto de partes. E esse aprofundamento foi se dando, principalmente, quando do encerramento de cada etapa da pesquisa, com a finalização da bateria de análise de cada estudo de caso, pois foi aí que se deram os momentos de reorganização, tão caros ao aprofundamento do método, e os quais tornaram significativo, especialmente, o seu processo.
Doravante, o objetivo geral desta pesquisa é endereçar qual é o lugar das águas no processo de urbanização, primeiro de uma perspectiva mais abrangente, da relação entre a natureza e a técnica, na qual o artifício do que é urbano e, portanto, técnico, modifica a dinâmica das águas, um fenômeno natural; assim como, inversamente, a água condiciona aquilo que é urbano, criando‐se aí como que uma contingência entre ambas as partes, técnica e natureza, urbano e água. Dizer que o lugar das águas seria uma forma (in)domável é lançar um questionamento (poético) acerca dessa ambivalência entre natureza e técnica que foi observada no decorrer da pesquisa, da capacidade humana de transformar o território, que não é de modo algum separada da própria vontade da natureza de transformar‐se a si mesma, daí que se percebe uma aparente coesão, “domável”, ainda que o fatos possam ocorrer à revelia de ambas às partes, “(in)”.
Cabe dizer que o termo “lugar” foi encarado, nessa pesquisa, a partir de uma perspectiva trans‐escalar, e essa concepção, que buscou um embasamento, sobretudo filosófico, na tentativa de observar o objeto de pesquisa de maneira fluída e não linear. É um posicionamento que difere de uma abordagem geográfica das escalas, na qual o lugar seria como que uma escala mínima do território, enquanto que o “espaço” consistiria numa escala intermediária, onde se daria o conjunto do locus social (SANTOS, 1996). De modo geral, foi um desafio para a pesquisa delinear um lugar das águas que está entre as escalas regional e metropolitana – urbana – local. Do mesmo modo, ao longo do tempo, a pesquisa foi tomando forma, a partir das escolhas dos estudos de caso, elencando uns, outros não, e configurando um processo multifacetado e lento, de seis anos, entre 2014 a 2019, segundo um escopo que também foi mudando. Assim, os estudos de caso realizados, ainda que tenham sido produzidos em circunstâncias específicas, foram revisados à luz da tese, e constituem análises de microbacias hidrográficas urbanizadas, no contexto da Região Metropolitana de São Paulo, a saber: bacia do Córrego do Tijuco Preto, na região do Itaim Paulista1; bacia do Córrego Tiquatira, na região da Penha2; bacia do Ribeirão Cocaia, no contexto dos reservatórios Guarapiranga e Billings3 (Figura 1).
Figura 1 – Bacias escolhidas como estudo de caso: Tijuco Preto, Tiquatira, Cocaia
Fonte: elaborado pelo autor a partir de fontes diversas, 2019
1 O caso se deu em 2014, no contexto de uma atividade denominada Atelier Ensaios Urbanos, promovida pela Prefeitura de São Paulo em parceria com 17 instituições de ensino em arquitetura e urbanismo, visando a proposição de idéias para a revisão da Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo, no eixo temático “Áreas de vulnerabilidade Socioambiental: instrumentos e desenho urbano” e com uma metodologia focada em formas alternativas de ocupação urbana, a partir da escala micro, diferenciando‐se da padronização conhecida, dos grandes conjuntos de habitação social.
2 O caso se deu, inicialmente, no contexto do Workshop Atelier Terrain, atividade organizada pela Cátedra da UNESCO, entre 2014 e 2015, numa parceria universitária entre quatro países – Brasil, Canadá, Japão e Itália; e, posteriormente, na dissertação de mestrado (SILVA, 2016).
3 O caso foi o escopo da pesquisa em 2018, e que, devido à magnitude de sua área, contou com uma abordagem polivalente, entre peregrinações a pontos notáveis e uma análise planificada dos padrões de forma urbana presentes na área.
algo de unitário e verdadeiro no lugar das águas, mas também algo à revelia, um paradoxo.
Para superá‐lo, seria preciso observar, articuladamente, as três temporalidades sucessivas que incidem sobre tal lugar: natural, técnica e afetiva. Desse modo, esse lugar poderia ser caracterizado segundo uma decomposição dessas temporalidades, e criticado em função das condições específicas que cada temporalidade revelar, seja para o problema de pesquisa como um todo, seja para cada estudo de caso. A temporalidade natural, que consiste dos processos geológicos e orgânicos que perfazem todo o globo terrestre e constitui o solo, o húmus e todo o suporte fundamental para que aí se deem todas as formas de vida. Tantas quanto “Deus quiser”, diga‐se de passagem, mas que é de fato a humanidade que reivindica teimosamente a decisão de manipulá‐las, colocando em risco a própria sobrevivência da espécie. Esse quadro, que é discutido por Mcharg (1967) e retomado por Diamond (2005), é evidenciado por Santos (2001) como uma disputa: não se trata tanto de saber quem vai ganhar e quem vai perder no jogo de forças entre a (divina) natureza e a técnica humana, mas que a própria construção de significado acerca dessa relação é que é decisiva. A temporalidade técnica, que consiste de todo artifício que evidencia a manipulação da natureza pelo engenho humano, gerando uma dinâmica, uma polarização em relação à natureza, tornando mesmo, por vezes, como que obscura ou opaca a possibilidade de se contemplarem as sutilezas de uma e outra, e isso pela simples dureza dos fatos: o rompimento de uma barragem, o refluxo dos rios nas sazonais enchentes metropolitanas e as eventuais crises em um sistema de abastecimento de água são urgências que se fazem imperativas quando vistas de uma perspectiva global. Daí que, justamente, há uma necessidade, também urgente, de falar sobre uma temporalidade afetiva, que possibilitaria ver sentido no lugar das águas, em que pese toda essa problematização.
Aceitar ser como que contagiado, deixar‐se afetar por um rio, permitir‐se sensibilizar pelo nome que intitula a sua história, que guarda memórias: Tietê, Tiquatira, Tijuco Preto... Afinal, o que são esses lugares?
A fim de esmiuçar essa relação entre natureza, técnica e afeto de uma perspectiva teórica, para o contexto de São Paulo, partiu‐se de uma discussão acerca da noção de
“patrimônio ambiental construído” (MENESES, 2006; YÁZIGI, 2012; TOURINHO, RODRIGUES, 2016), buscando discutir quais seriam os seus componentes básicos: os cursos dos rios e a dinâmica das bacias hidrográficas, assim como as rotas estabelecidas, entre ferrovias, rodovias, entrepostos logísticos e zonas de escoamento; os vários núcleos urbanos, com suas escalas diversas, caráter comum de ambos e as peculiaridades de cada um; o rural e o florestal. De modo que aquilo que permanece e resiste, assim como o que se adapta e transforma, constitui o legado desse processo de urbanização, e também a ausência de tudo o que se perdeu. Em suma, deseja‐se estabelecer, para o lugar das águas de São Paulo, uma noção de patrimônio que possa ser observada em diferentes escalas, porque resultante de um processo comum entre a natureza fluída da água e a técnica do fazer urbano. Para tanto, foi necessário estabelecer um quadro teórico minimamente consistente, a fim de permitir que o conjunto de conceitos que serão expostos propicie um deslocamento contínuo sobre o campo de conhecimento, um intercâmbio entre questões mais amplas e problemas mais específicos, para que seja possível aprofundar um entendimento pormenorizado sobre a amplitude, tanto do lugar das águas quanto do processo de urbanização.
De uma perspectiva teórica, mas também temporal, há um ir e vir entre as questões balizadoras da pesquisa, assim como entre os estudos de caso; do mesmo modo, o referencial teórico foi se reorganizando, até chegar ao formato atual. Esta observação preliminar é importante, pois pretende enfatizar o processo do método, uma vez que envolve a própria dinâmica da pesquisa, qual seja, a indagação constante sobre estar se fazendo ou não as perguntas certas, a dúvida persistente se o caminho trilhado levará a um bom termo. Quais seriam então os referenciais necessários para estabelecer uma base consistente de diálogo?
Numa tentativa de responder esta questão, a bacia hidrográfica foi tomada como unidade de análise, ainda que esta não implique, necessariamente, em limites para o processo de urbanização, que tem na escala regional e na dispersão metropolitana uma das suas principais características (SCHUTZER, 2012a, 2012b; MEDRANO, CASTRO, 2014). Inversamente, uma mesma bacia hidrográfica pode apresentar muitas unidades de paisagem “variadas e discretas” (MCHARG, 1967 p. 127). De todo modo, é a natureza como um todo que designa quais seriam os lugares aptos ao processo de urbanização, assim como o lugar das águas, estando ambos inseridos em um processo natural maior. Ainda que o princípio da técnica demonstre insubmissão aos ditames da natureza, manipulando‐a e transformando‐a (SANTOS, 1996; SANTOS, SILVEIRA, 2001), esta também se mostra insubmissa ao controle humano.
Ocorrem então sondagens, rebatimentos, impactos, amortecimentos e recalibrações que evidenciam uma problemática propriamente orgânica, de um “organismo urbano” que se apropria de um “compartimento do relevo” (AB’SABER, 1957).
Diferentemente de um delineamento formal, essa ação sucessiva de condicionamento entre processo de urbanização e transformação do relevo pode ser um indício determinante acerca de um tempo da natureza, de um panorama mais abrangente, bem como das diversas temporalidades do processo de urbanização. De modo emblemático, essa sucessão de temporalidades específicas que atuaram na formação da São Paulo contemporânea foi esmiuçada, primeiro, por Langenbuch (1962) e, mais recentemente por Franco (2005). Porém, é o trabalho de Botechia (2017) o que melhor enfatiza a sobreposição de temporalidades do processo de urbanização a começar pela ancestralidade das trilhas indígenas como um primeiro momento de estruturação do território. Assim, partindo de uma retrospectiva histórica, observamos que a estruturação do traçado de São Paulo se dá, num segundo momento, na perspectiva de um urbanismo de colinas (COSTA LOBO, SIMÕES JR., 2007), quando as principais rotas coloniais e caminhos de tropeiros se estabelecem, por meio de linhas de cumeeira e platôs intermediários de boa declividade, muitas vezes sobrepondo‐se às trilhas indígenas, enquanto que os núcleos urbanos coloniais buscaram instalar‐se, sobretudo, em áreas altas, em especial em topos de colina. Depois, num terceiro momento, fundos de vale e áreas de várzea e planícies recebem, conforme “demanda”, a implantação de uma malha ferroviária, criando as bases para aquilo que poderia se chamar de “urbanismo de fundo de vale” (TRAVASSOS, 2004; FRANCO, 2005). Finalmente, num quarto momento, uma malha rodoviária se instala como que indistintamente e de modo diverso, ocasionando o espraiamento de manchas urbanas e a consolidação da chamada Região Metropolitana de São Paulo. Vislumbrar este território em sua dimensão espaço‐temporal é perceber essa gama de temporalidades sucessivas e que vão se sobrepondo, entendendo que há aí uma dinâmica, um modo de operação, mas também exceções e fugas da norma, ou seja, algo de “unitário e verdadeiro, mas também um paradoxo” (SANTOS, 2001, p. 116).
problema de pesquisa apresentado, bem como da hipótese proposta. Portanto, não se trata tanto de verificar se tal hipótese é verdadeira ou falsa, mas o quanto pode ser significativa, no sentido de fomentar novas informações sobre o território, reconectando pontos heterogêneos e aparentemente fragmentados. Deste modo, os procedimentos metodológicos utilizados funcionam como exercícios de aprofundamento da hipótese. Assim é com a varredura documental, que consiste no ofício de procurar e organizar uma compilação de textos, cartografias, fotografias, legislações, periódicos e trabalhos acadêmicos sobre o tema da pesquisa, extraindo o que for mais conveniente para referenciar o campo de conhecimento enquanto tal. Isto também vale para as visitas de campo, pois adentrar no território, propriamente, é muito diferente do que vê‐lo por mapas, fotografias, ou outros meios de representação documental; observar in loco as minúcias do território, a condição de moradia das pessoas, o modo como se dá o deslocamento de pedestres em meio aos automóveis, as torres de alta tensão, os viadutos e seus baixios, as calhas dos rios, a condição suburbana e periférica da metrópole... São, efetivamente, manifestações de um afeto, de se ter vivenciado situações ímpares. Finalmente, para ponderar sobre esse misto de experiências teóricas e práticas, é fundamental proceder com uma caracterização do território por meio da produção de desenhos, de croquis, de notas e fichamentos, de recomposição de bases cartográficas, bem como da formação de um acervo de fotografias, quando das visitas de campo. Afinal, o diferencial da abordagem híbrida em arquitetura e urbanismo é a capacidade de realizar sínteses visuais sobre situações ambíguas, complexas e mesmo contraditórias.
Doravante, o Capítulo 1 – São Paulo (de Piratininga): breve retrospectiva histórica, busca tecer algumas considerações iniciais sobre as principais características dessa porção de território em diferentes escalas – Estado, Metrópole, Capital – e tem o lugar das águas como fio condutor de um processo de transformação que culmina no quadro atual. Trata‐se de uma narrativa que destaca o amálgama entre o relevo e os principais modais de traçado – hidrográfico, ferroviário e rodoviário, os quais foram sendo implementados em sucessivos períodos. O primeiro é o indígena, pré‐existente e pré‐histórico, mas cuja cultura oral nomeou todo o território, assim como dominou um conhecimento milenar sobre a fauna e a flora. O segundo é o período colonial, no contexto de um urbanismo de colinas de tradição portuguesa, com toda a imposição violenta de controle dos corpos, que foi determinada aos povos indígenas e africanos, reconfigurando o território e imprimindo a estas populações uma sujeição histórica. O terceiro período é constituído pela implantação de tecnologia inglesa, sobretudo, com destaque para a malha ferroviária e as grandes infraestruturas de geração de energia hidroelétrica, que vão determinar também as bases para o crescimento urbano de São Paulo. O quarto período consiste na escolha por um modal hegemônico de transporte – estradas de rodagem para automóveis – o qual vai pautar uma estruturação metropolitana do território, alternando, numa configuração em rede, áreas de concentração e dispersão urbana;
um urbanismo rodoviarista, american way of life. Assim, a ambiguidade da condição atual, no caso de São Paulo, estaria expressa na disparidade de valores com a qual cada um desses períodos estaria vinculado, formando um quadro heterogêneo e diversificado.
O Capítulo 2 ‐ Uma perspectiva teórica sobre o patrimônio de São Paulo, faz um delineamento da noção de patrimônio ambiental – construído e urbano – a fim de relacionar as temporalidades diversas – indígena, colonial, urbana e metropolitana – que articulam a
relação entre natureza e técnica. Busca‐se, com isso, propiciar um reconhecimento acerca da condição atual do lugar das águas, como dotado de valor para além de uma concepção meramente utilitária. O caráter de afetividade proposto na hipótese se revelaria, então, como um sentimento de pertença, que justificaria a noção de patrimônio, em função de uma atribuição de valor baseada nas qualidades observáveis nas ambiências formadas entre os elementos naturais e construídos. A partir da discussão sobre a noção de patrimônio, torna‐se possível conceber o processo de urbanização como um grande artefato cultural, dotado de valor intrínseco, onde a própria bacia hidrográfica pode ser encarada como um patrimônio ambiental, tendo como foco o acoplamento da Região Metropolitana de São Paulo à Bacia do Alto Tietê.
O Capítulo 3 – O lugar das águas: a construção do método e estudos de caso, apresenta a base conceitual que vai definir os procedimentos metodológicos para caracterizar o lugar das águas frente ao processo de urbanização, observando diferentes microbacias hidrográficas.
Basicamente, os procedimentos consistem da alternância entre exercícios de escrivaninha – revisão bibliográfica, produção de desenhos, definição de categorias de análise e classificação dos dados; e também de visitas de campo, quando é possível vivenciar experiências efetivas de imersão no território. Para aplicação destes procedimentos, a bacia hidrográfica foi definida como unidade de análise, e foram escolhidos três estudos de caso. O primeiro é a bacia do Córrego Tijuco Preto, um prelúdio do lugar das águas, considerando‐se a favela como um ambiente seminal para a sua problematização, pois revela a urgência pela habitação, e, ao mesmo tempo, a insuficiência da ação reguladora do Estado. O segundo caso, a bacia do Córrego Tiquatira, na Região da Penha, faz uma análise da transformação do traçado urbano e do desmonte desse bairro fluvial, um exemplo emblemático da sobreposição de temporalidades que será discutida no Capítulo 1. O terceiro caso, a bacia do Cocaia, ocorre no contexto dos reservatórios Guarapiranga e Billings, e explora uma porção do território bastante heterogênea, pois se configura ao mesmo tempo suburbana, lacustre, rural e florestal. Uma vez relatados os casos, procede‐se então com um balanço dos resultados, discutindo‐se a contribuição que a aplicação do método proporcionou, discutindo quais foram os ganhos, as descobertas e as limitações para o campo de conhecimento que se procurou delinear.
O Capítulo 4 – Aprofundando o lugar das águas a partir da perspectiva teórica, retoma algumas reflexões que foram feitas no decorrer da pesquisa, e que serviram de subsídio para pensar o lugar das águas a partir de um olhar imbuído de afeto. Porque este olhar não poderia se dar apenas como algo afirmativo, como um reconhecimento forçado, “esse lugar é dotado de valor”; mas, antes, como uma ponderação sobre a subjetividade intrínseca à própria investigação científica, que envolve, inclusive, um posicionamento político, e não mais pretensamente objetiva e neutra, abrindo‐se aí espaço para outros conceitos e abordagens: as nuances que derivam de uma observação que alterna proximidade e distanciamento para delinear um lugar, imbuí‐lo de desejo, de prazer, das sutilezas das percepções do corpo, e da sua duplicidade ambiental; os indícios que estão presentes em tal lugar, até a constatação de um fato que pode ser terrível; e o enunciado da própria concepção de lugar. São alguns tópicos que foram considerados oportunos de apontamento, ainda que brevemente, a fim de se reiterar, inclusive, uma incerteza sobre tudo o que se afirmou.
Este capítulo apresenta, de maneira sintética, os principais fatores que definiram a configuração territorial de São Paulo, tanto em nível regional, observando‐se a escala do Estado como grande porção de terra pactuada, quanto em nível local, onde é possível perceber como as sobreposições, desdobramentos e intersecções entre as temporalidades diversas da natureza e da técnica definem lugares específicos e diversificados. Em especial para o lugar das águas, pois, se por um lado, observa‐se uma variedade de paisagens e elementos naturais, por outro há um leque de técnicas comuns na ocupação deste lugar, ainda que tais técnicas assumam feições diversas conforme o ponto de vista que se observe. Tendo isto em vista, e por escolha metodológica, este capítulo propõe uma retrospectiva histórica sob a perspectiva do lugar das águas, e busca estabelecer uma narrativa baseada em uma seleção cronológica de documentos cartográficos, fotografias e numa revisão bibliográfica. Um elenco de evidências que sejam significativas, de fato, para demonstrar minimamente o quadro abrangente e diversificado que se revela quando o olhar se volta do lugar das águas para São Paulo, assim como toda força e potência que foram necessárias para realizar uma empreitada de caráter tão monumental.
A história de São Paulo – Estado, Metrópole, Capital – já foi contada muitas vezes, segundo vários enfoques e a partir de suas várias localidades, de modo que este capítulo busca fazer essa retrospectiva histórica que tem, como fio condutor, uma narrativa que alterna eventos locais e regionais, buscando evidenciar, por meio de um entendimento “orgânico” do território (AB’SABER, 1957; FLUSSER, 1987; GUERREIRO, 2012), como o crescimento de São Paulo é propriamente o desenvolvimento de um corpo “híbrido” (LATOUR, 1991), e mesmo de um “corpo sem órgãos” (DELEUZE, GUATTARI, 1980). Afinal, São Paulo se assenta em num meio natural, mas também é dotado de próteses e toda a sorte de propriedades artificiais (DOMINGUES, 2009). Aqui, a visão peripatética, aquela que se movimenta marginalmente, por bordas e frestas, se vincula a um sentido de alteridade, ou seja, de enxergar no lugar das águas o reflexo de si mesmo. Afinal, tratar o processo de urbanização como “orgânico” possibilita a percepção de um “devir animal” para este processo, fazer com que São Paulo se torne novamente pira, “peixe”, até porque nunca deixou de ser; e não sem antes ter ocorrido um
“devir‐europeu” desse mesmo lugar das águas, pois não à toa, tantas santas que deram nomes aos núcleos de colonos, diz‐se popularmente que foram achadas nas águas: Nossa Senhora da Penha, de Santana, da Conceição de Guarulhos, entre outras.
1.1. Das toponímias indígenas às imposições coloniais
O Aldeamento de Piratininga foi fundado em 1554 e marcou o início da conquista do Planalto Paulista pelos portugueses, com o lançamento da pedra fundamental conhecida como
“Pátio do Colégio”: a construção da primeira edificação “oficial” do novo território, uma escola de catequese jesuíta com a finalidade de espoliação das populações indígenas de sua cultura, impondo a estas populações outro sistema moral; antes disso, porém, foi necessário subjugá‐
las pela força da violência das comitivas de bandeirantes. Independente disso, o território antigo já se encontrava nomeado na língua Tupi por essas populações originárias, tendo esses
nomes indicações notórias das características dos lugares que foram sendo, a partir de então, apropriados pelos colonos europeus.
Piratininga era então a “Terra do peixe seco” (Figura 2), a grande planície aluvial do Rio Tamanduateí, a “baixada do tamanduá”, lugar onde se dava uma cadeia alimentar propiciada pela sazonalidade entre os períodos de cheias do rio, com o alagamento de toda a área de várzea, e estiagem, quando o nível das águas baixava e muitos peixes “encalhavam”, secando depois ao sol e sendo consumidos por formigas, prato predileto do tamanduá, o “caçador de formiga”. Essa precedência dos nomes indígenas dos lugares, bem como todo o conhecimento dessa cultura, vai ser incorporada pelos colonos, num movimento inverso da expropriação que a conquista do território implicava. É nesse contexto que, em 1585, a Vila de São Paulo é criada: um novo ponto de polarização, um quartel militar com uma instituição religiosa que vai permitir o estabelecimento de núcleos satélites, ou seja, novos assentamentos de colonos, com ocupações marginais operando em volta desse centro organizador. São Paulo, o santo que se converteu ao cristianismo depois de perseguir cristãos; santo que carrega um livro, a Palavra de Deus, e uma espada apoiada ao chão (Figura 3), indicando a conquista do território pela força, agora perseguindo indígenas, com o posterior estabelecimento de uma nova lei.
A estruturação do território a partir da Vila de São Paulo vai se dando então de dois modos: ou seguindo o curso do Rio Tietê, por barco, ou se ligando a núcleos rurais por meio de caminhos de tropeiros, como por exemplo, a Sesmaria da Penha, e daí por sua vez, seguindo mais à Leste, até o Aldeamento de São Miguel, e bifurcando ao norte, rumo à Freguesia da Conceição de Guarulhos, como se pode notar já em 1668 (Figura 4). Destaca‐se aí a proporção entre as distâncias, que marcavam um dia no lombo da mula, distância próxima o bastante para permitir uma comunicação estratégica entre os povoados, com o escoamento de mantimentos, bem como para barrar o deslocamento de pessoas em casos de surtos de doença. A Bacia do Córrego Tiquatira, “cobra grande”, por exemplo, uma das tantas “asas” do grande Rio Tietê, “água verdadeira”, já se encontrava à época atravessada então por essas rotas dos tropeiros, sendo o próprio rio uma via de navegação que vai possibilitar o progressivo adentrar no Planalto Paulista. São essas as infraestruturas de fluxos iniciais que vão configurar um território em expansão, constituído de assentamentos de colonos, e na qual o sentido de ordem vai se dar por uma força militar, dos bandeirantes que picam trilha, descem o rio e subjugam índios, encaminhando‐os então para a força moral‐religiosa dos jesuítas, catequizando‐os e incorporando sua cultura e conhecimento milenar sobre esse território, e conduzindo‐os para o trabalho na lavoura. E assim se estabelece no Planalto Paulista o chamado “urbanismo de colinas de tradição luso‐brasileira”, conforme apontam Costa Lobo e Simões Júnior (2012), com a preferência de ocupação de áreas altas, ao invés de encostas e fundos de vale, com a implantação de uma ermida no outeiro para marcar simbolicamente uma paisagem na qual os elementos urbanos principiam por disciplinar o meio natural em que se inserem:
A expressão “cidade de colina” é de acepção luso‐brasileira, associada à tradição urbanística de se escolherem sítios elevados para a fundação de urbes. Pode ser entendida como decorrente de uma série de princípios e normativas norteadores da prática portuguesa, quando da criação de urbes novas, política esta aplicada tanto em Portugal, na
século XVIII), quanto na política de expansão do império colonial português, ocorrida a partir do século XV em territórios da África, Ásia e América. [...] Difere, portanto, do entendimento de “ocupação de encostas”, expressão mais usualmente utilizada no Brasil, mas com significado mais distinto, pois em geral aplicada a urbanizações informais como favelas e loteamentos ilegais. O termo encosta, na verdade, refere‐se a uma parcela específica da colina – a de suas laterais, não contemplando nem a área do topo, nem a da base da colina, que são precisamente os locais de maior interesse de estudo nas cidades de colina. É no topo que se situa a “cidade alta”, a “acrópole”, o território que é, na verdade, a parte mais relevante da ocupação urbana de Colina, onde se construíam as igrejas, os edifícios públicos e as residências senhoriais. Opondo‐se assim à “cidade baixa”, em geral junto à orla ribeirinha – onde ficava o porto, os estabelecimentos comerciais e as residências populares – firmando a dualidade cidade alta/ cidade baixa como o principal paradigma da urbanística portuguesa. [...] As encostas mereciam, portanto, um status secundário neste processo, uma vez que eram efetivamente ocupadas num momento posterior ao estabelecimento do núcleo urbano. [...]
Razões de segurança e de visão estratégica da engenharia militar portuguesa recomendavam a escolha de sítios elevados para a fundação de urbes. As encostas eram efetivamente ocupadas a partir do momento em que a urbe ia se consolidando e as ligações viárias entre a parte alta e a baixa impunham a construção de ladeiras. É por essas ladeiras, em geral vencendo diagonalmente as curvas de nível, que pedestres, animais e veículos de carga transitariam, favorecendo assim a implantação de construções ao longo do trajeto e, desta maneira, induzindo a ocupação da encosta.
(COSTA LOBO E SIMÕES JÚNIOR., 2012, p. 17‐18)
É esse urbanismo de colinas que vemos ao contemplarmos, por exemplo, uma pintura de Thomas Ender de 1817 (Figura 5), com o Rio Aricanduva em primeiro plano e a Colina de Penha ao fundo; desde o ano anterior, esse artista percorreu e registrou a paisagem de várias localidades entre São Paulo e Rio de Janeiro, e deixou um rico testemunho de um processo de urbanização que se assentou sobre um relevo abundante de cursos d’água, bem como áreas alagadiças e pantanosas, brejos, lavouras e grandes rios com voluptuosos meandros lindeiros à uma vegetação frondosa. Pouco depois, em 1822, ocorre a mudança de regime político no Brasil, de Colônia para Império, com a Capital instituída no Rio de Janeiro, época em que se iniciava o chamado Ciclo do Café, com destaque para a Região do Vale do Paraíba, cujas condições de relevo e clima favoreceram bastante a produção, mas que também foi se consolidando no Planalto Paulista (LIMA, 2003). Porém, diferente do Rio de Janeiro, onde o status de Capital do Império demandou uma série de inovações, em especial no âmbito urbano, em São Paulo ocorre a persistência de um meio predominantemente rural, com
pequenas vilas articulando a distribuição interna da produção agrícola de subsistência, ao mesmo tempo em que o grosso da produção excedente, voltada para a exportação de café no mercado europeu, escoava do Vale do Paraíba para a província fluminense, seguindo para o Porto do Rio de Janeiro ainda no lombo das mulas.
Figura 2 – Piratininga: Peixe Seco sobre piso paulista de Mirthes Bernardes Fonte: elaborado pelo autor, 2014
Figura 3 – São Paulo, o santo
Fonte: desconhecida (imagem de domínio público)
Figura 4 – Sesmaria da Penha e bacia hidrográfica do Tiquatira, 1668 Fonte: SILVA, 2016, p. 100
Figura 5 – Vista da Colina da Penha com o rio Aricanduva em primeiro plano, 1817 Fonte: aquarela de Thomas Ender, domínio público
1.2. A malha ferroviária como vetor de crescimento urbano
Esse quadro predominantemente rural, algo bucólico e propriamente caipira de São Paulo (CÂNDIDO, 1964) vai mudar a partir de 1867, quando começa a ser instalada a malha ferroviária da São Paulo Railway Company, ligando Jundiaí ao Porto de Santos, tornando‐se São Paulo o principal entreposto dessa rota (Figura 6). A ferrovia é uma infraestrutura que vai literalmente revolucionar a noção de tempo e de produção no território paulista, antes predominantemente rural e, a partir daí, progressivamente urbano. Diz‐se revolucionar, porque a ferrovia traz consigo toda a noção do pensamento iluminista, então em voga na Europa, na qual a primazia da razão encontra no progresso técnico sua principal justificativa.
Um trem é muito mais rápido que uma mula, e carrega muito mais que uma tropa de mulas.
Porém, não é à toa que a então medida de energia de uma “Maria Fumaça”, a locomotiva carro‐chefe de uma composição de vagões de trem, tenha sido definida primeiramente como
“horse Power”: a força de cavalos como unidade de medida para um motor a vapor (na pesquisa de James Watt).
Figura 6 – Galpões da São Paulo Railway, 1867 Fonte: Lavander e Mendes, 2005, p. 26
As áreas em “branco” do novo território paulista, parcialmente atravessado por uma malha ferroviária, longe de ser um espaço abstrato, na verdade se referem a lugares simplesmente ainda desconhecidos, selvagens, onde reina outra lógica que não a de um
“estado em expansão”, São Paulo, com todas as linhas de estrada de ferro em tráfego, construção e projetadas. Era assim no extremo oeste do Planalto Paulista em 1886 (Figura 7), com os chamados “Terrenos Despovoados”: terras ainda não catalogadas nas quais ainda viviam populações indígenas, estes sempre sendo empurrados para o interior pela “locomotiva do progresso”. Os “pontos importantes”, por outro lado, aonde o progresso chegara na forma da ferrovia, eram medidos em função da distância em quilômetros do Porto de Santos, reforçando o caráter predominantemente extrativista ao qual as culturas de produção agrícola e agropastoril se relacionavam: tudo girava em torno de um escoamento crescente de produção em um território em franca expansão. Destacam‐se também os rios navegáveis, em especial um grande trecho do Rio Tietê, começando no povoado de Porto Feliz e indo até o ponto geográfico conhecido como Salto de Avanhandava, próximo à uma Colônia Militar de mesmo nome, o posto mais avançado a oeste construído pelo Império em 1858.
Figura 7 – Estado de São Paulo, 1886 Fonte: São Paulo, domínio público
Paralelamente à instalação da malha ferroviária, modal de transporte que vai reconfigurar a noção de velocidade no território paulista e ocasionar uma polarização entre o rural e o urbano, com o crescimento de ambos os modos, articulados, fez‐se necessária a criação de uma força‐tarefa que pudesse justamente, mensurar esse crescimento. É nesse contexto que se dá, sob o aval do então Visconde de Pinhal, cafeicultor e político do Vale do Paraíba, Antônio Carlos de Arruda Botelho, a criação do Instituto Geográfico e Geológico ‐ IGG, em 1886, órgão que seria liderado pelo pesquisador canadense Orville Adalbert Derby (SÃO PAULO, 2010b). Já no ano seguinte, em 1887, o trabalho de campo do IGG compreendia expedições pelo Planalto Paulista, com o registro de pontos notáveis da paisagem num horizonte a se perder de vista: formas acentuadas de relevo como morros, pontas, vales...
Entre estes, a Serra do Japi (Figura 8). Nesse momento, a principal ferramenta de registro eram desenhos feitos à mão em cadernetas de bolso, os quais tem o poder de esquadrinhar um território vasto, e sintetizá‐lo em pequenas folhas de papel, simplesmente porque estabelecem relações entre estes pontos notáveis, revelando proporções e distâncias que já estão lá, impressas no relevo, mas que, quando registradas, demonstram as características próprias do território.
De todo modo, ainda havia muito por se fazer. Dos registros dessa época, final do século XIX, ficam evidentes tanto a relevância do conjunto de elementos delineados, como também todo espaço “em branco”, ou seja, aquilo que não era registrado e permanecia devidamente indefinido, não só pela simples limitação dos levantamentos de campo, mas, sobretudo, como opção estética. É assim se olharmos, por exemplo, para a Freguesia de Santo Amaro (Figura 9), em 1888, ao Sul de São Paulo: conhecido como “o celeiro da capital” (ZENHA, 1977, p. 56), esta localidade passou a contar com um ramal ferroviário instalado pela Companhia Carris de Ferro de São Paulo, em 1886, conectando Freguesia e Capital. Um pequeno povoado de imigrantes europeus, com produção agrícola de subsistência, e que foi registrado então como um núcleo urbano com uma ermida ao centro e um cemitério ao lado para louvar os mortos, uma estrada principal pontuada por pequenas edificações dispersas e uma estrada transversal que levava à ferrovia, alguns cursos d’água, enfim, mais além um espaço em branco de campo, capoeiras e Grande Vargem... Porém, esse mesmo ramal ferroviário foi adquirido pela São Paulo Tramway Light and Power Company Ltda, em 1900, e garantiu o transporte de materiais e mão de obra necessária, ao mesmo tempo em que funcionou como um vetor de expansão urbana da cidade de São Paulo para o sentido sul4, implicando também o paulatino desmonte no modo de vida predominantemente rural de Santo Amaro (MENDES, CARVALHO. 2000).
Desse modo, a malha ferroviária ramifica‐se pelo território como uma trepadeira sobe pela parede, galho por galho, numa escala local, mas também como uma grande relva,
“rizomática”, numa escala regional, consolidando‐se como um modal em franca expansão:
partindo de São Paulo, já não é só até Jundiaí que o trem vai, mas até Uberaba, em Minas Gerais, e até o Rio de Janeiro, passando pelo Vale do Paraíba, pela Estrada de Ferro Dom Pedro II, que viria a mudar seu nome pouco depois, devido à Declaração da República, em 1889: já em 1890, a então Estrada de Ferro Central do Brasil articulava uma comunicação interestadual (Figura 10), por meio da rede de telégrafos, bem como o transporte de cargas e pessoas, entre
4 À época, Santo Amaro era um município independente, mas foi incorporado ao município de São Paulo
por meio do Decreto Estadual 6983, de 1935.
como suas reentrâncias, vai implicar em maior ou menor factibilidade para implantação de novos ramais, conforme as situações que se apresentem, na medida em que sua constituição vai se tornando mais esquadrinhada, e que a demanda pelo escoamento de uma produção extrativista, tanto agrícola quanto mineral, se faz imperativa. E aí os avanços tecnológicos na área da mecânica dos solos se fazem notar, assim como as obras de arte da engenharia, uma vez que muitas linhas projetadas passam literalmente por cima de acidentes geográficos significativos na escala regional.
Figura 8 – Pontos notáveis do Planalto Paulista, entre estes a Serra do Japi, 1887 Fonte: São Paulo, 2010a, p. 42
Figura 9 – Freguesia de Santo Amaro, 1887 Fonte: São Paulo, 2010a, p. 37
Figura 10 – Estrada de Ferro Central do Brasil, 1890 Fonte: Rio de Janeiro, domínio público
Santos (Figura 11), foi um marco significativo do avanço tecnológico proporcionado pelo engenho da técnica: o trajeto, do centro de São Paulo, na estação Brás, passando por São Bernardo do Campo até a estação Alto da Serra, seguia por sistema funicular até Cubatão, e daí para Santos5. Em 1896, já havia estudos para outros ramais, o que indicava uma demanda crescente para o escoamento da produção. De todo modo, toda a infraestrutura característica da linha férrea, com seus galpões, casas de máquinas, parques de estacionamento, entre outros elementos constitutivos, determinou uma estruturação técnica da Serra do Mar, reconfigurando a relação de escala entre o processo de urbanização e a monumentalidade natural, pois já aqui se evidencia um primeiro indício do que viria a se tornar uma macrometrópole poucas décadas depois.
Em 1899, o centro de São Paulo despontava então como principal entreposto de várias rotas (Figura 12), não só da chamada Estrada de Ferro Jundiaí ‐ Santos, ligando o “Portal do Cerrado” ao “Porto Internacional”, mas de estradas consolidadas entre os vários povoamentos circundantes: Penha, Santana, Lapa, Pinheiros, Vila Mariana, Ipiranga, Vila Prudente e, mais além, São Bernardo, Santo Amaro, Osasco, Tremembé, Guarulhos, São Miguel... Também o centro se consolida justaposto ao Rio Tietê, a grande vértebra hídrica que segue até os confins do Planalto Paulista, incorporando também, em um primeiro momento, a foz de um dos seus principais afluentes, o Tamanduateí. Assim se estabeleceu o chamado sítio urbano de São Paulo, como um epicentro rodeado de núcleos urbanos não independentes, mas relativamente autônomos, separados cada qual por um considerável “mar de colinas”, espaços em branco ainda por se ocupar. Nas palavras do geógrafo Ab’Saber (1957):
A originalidade geográfica principal do sítio urbano de São Paulo reside na existência de um pequeno mosaico de colinas, terraços fluviais e planícies de inundação, pertencentes a um compartimento restrito e muito bem individualizado do relevo da porção sudeste do Planalto Atlântico Brasileiro. [...] Na realidade a área de relevo que interessa ao estudo do sítio urbano de São Paulo fica praticamente restringida ao sistema de colinas, terraços e planícies do ângulo interno de confluência dos rios Tietê e Pinheiros. (AB’SABER, 1957, p. 13)
Ora, a limitação da perspectiva que vai enquadrar a escala que de fato caracteriza São Paulo vai mudar progressivamente, uma vez que a capacidade crescente de produção de bens de consumo, sobretudo agrícolas, e o escoamento de matérias primas oriundas do planalto paulista, no descortinar do século XX, implicou também num imperativo de primeira ordem:
um aumento na capacidade de geração de energia. E aqui, o advento da Usina Hidroelétrica de Santana do Parnaíba, construída em 1901 para além da confluência entre os rios Tietê e Pinheiros, com obra conduzida também pela Companhia Light, significou o começo de uma segunda mudança de rumo na estruturação do território, e, de fato, tão revolucionária quanto foi a progressiva implantação da malha ferroviária.
5 “O traçado da ferrovia seguiu na serra o mesmo delineamento da antiga Trilha Tupiniquim, pelo Vale do Rio Mogi, enquanto que o roteiro das Trilhas do Padre José, o Novo Caminho para o Cubatão, Calçadão do Lorena e o Caminho para o Mar situaram‐se mais ao Sul, entre os Vales do Rio das Pedras e Perequê” (LAVANDER E MENDES, 2005, p. 10).
O início da prospecção tecnológica acerca do aproveitamento dos recursos hídricos para geração de energia elétrica ocorre junto com outros projetos de intervenção nos cursos d’água da bacia hidrográfica do Alto Tietê. Tais projetos podem ser observados desde o final do século XIX, quando foi instituída a Comissão de Saneamento das Várzeas, que elaborou, em 1893, o primeiro projeto de retificação do Rio Tamanduateí. Em 1894, a Comissão apresenta o “Projeto de Regularização do Rio Tietê e Dique Marginal”, cujas obras só teriam início mais de quarenta anos depois (TRIPOLONI, 2008, p. 76). Em 1904, tem início as obras de intervenção nas várzeas do Tamanduateí e no vale do Anhangabaú, onde ambos os rios tornaram‐se objeto de projetos urbanos e obras de infraestrutura e saneamento (TRAVASSOS, 2004, p. 23‐29). Este conjunto de intervenções nos cursos d’água e nas áreas de várzea como um todo consistiu na formulação de um paradigma que pressupõe que quanto maior o desempenho técnico dessas áreas, no sentido de minimizar as interferências do sítio precedente e tirar partido dos seus atributos, maior será o aproveitamento urbano que se poderá realizar, em termos de apropriação fundiária. Segundo Franco:
Tão ou mais importante do que as novas frentes de urbanização, a intervenção nas várzeas equacionava de forma conjunta uma série de questões estruturais: saneamento, drenagem, abastecimento, geração de energia e circulação automotora. Seriam reunidas à ferrovia para ampliar a infra‐
estrutura básica sem a qual o crescimento, sobretudo industrial, seria insustentável. Entre todos os sistemas implantados, o de transportes desempenharia o papel fundamental de possibilitar a articulação entre os setores produtivos e aglutinar a constelação de bairros definidos por um modelo de ocupação cada vez mais extensivo. [...] Nesse momento a questão já estava formulada: transformar o território das várzeas pela ocupação das infra‐estruturas necessárias para a modernização da cidade. Um projeto ficou estabelecido e, desde então, passou a ser perseguido, ainda que submetido aos conflitos e contradições inerentes a toda ação prolongada no tempo. [...] A decisão de transformar o sítio paulistano pela incorporação dos grandes sistemas de engenharia de escala regional evidencia que a geografia não foi um fator determinador na história da cidade. Na realidade, assim que os instrumentos para isto se tornaram disponíveis, os elementos naturais foram ressignificados por ações deliberadas, que direcionaram o crescimento de São Paulo a partir de interesses. Essas ações, muitas vezes, foram na contramão das condições naturais, como no caso da contenção do caminhamento das águas fluviais e da ocupação indiscriminada das áreas de várzeas. (2005, p. 54)
Figura 11 – Ferrovia entre São Paulo e Santos, 1896 Fonte: Lavander e Mendes, 2005, p. 57
Figura 12 – Município de São Paulo, 1899 Fonte: São Paulo, 2010a, p. 61
Em São Paulo, portanto, a partir da segunda metade do século XIX, principia‐se uma alternância de concentração e dispersão urbana entre as áreas altas, de cumeeiras e encostas de colinas, e áreas baixas, de várzea, sendo que tal configuração é uma consequência direta da implantação da malha ferroviária. Assim, na virada para o século XX, na medida em que os antigos núcleos coloniais vão sendo conectados pela ferrovia, já é possível notar uma sobreposição de temporalidades, tanto no traçado das diferentes infraestruturas quanto nos padrões de edificação, conforme o compartimento do relevo observado: uma predominância de casario baixo ao longo dos topos das colinas e encostas, e a implantação de galpões
até o topo da colina com uma passarela exclusiva para o Palacete Rodovalho (Figura 13), construção que contrastava com a antiga igreja rodeada por ruas estreitas com pequenos sobrados coloniais. Nesse mesmo ano, prosseguiam as expedições do Instituto Geográfico e Geológico na exploração do Rio Tietê, sentido Rio Paraná, na qual vai se tornando mais nítida uma das principais características da hidrografia do Planalto Paulista: seu volume bruto de água. E nesses muitos rincões de território bravo com vegetação indócil, como no Salto do Itapura (Figura 14), a proporção ínfima do elemento humano na paisagem natural, mais do que algo a ser reverenciado, revelava antes um potencial imensurável da terra – e da água – para exploração, apropriação e aproveitamento.
Figura 13 – Palacete Rodovalho, Igreja da Penha e a passarela de acesso ao ramal ferroviário, 1905
Fonte: Memorial Penha de França, acervo digitalizado
De toda forma, para domar esse território em expansão, foram necessárias sucessivas forças tarefas de tropas que eram montadas para seguir os cursos dos grandes rios, não só o Tietê, mas também o Rio Grande ao Norte, na divisa com Minas Gerais, e o Rio Paranapanema, ao Sul, na divisa com o Paraná. Afinal, em 1906, atravessar a Cachoeira da Capivara numa grande canoa, na qual enfrentam a correnteza cerca de trinta homens (Figura 15), era tão difícil quanto é na atualidade. É essa força de desbravamento da terra e das águas que vai como que se imprimir no espírito paulista, tendo na figura ancestral dos indígenas, religiosa dos jesuítas, e militar dos bandeirantes, os elementos formadores de uma identidade híbrida.
Não só isso, mas também a figura técnica do engenheiro militar da agrimensura do território e o conhecimento que foi se avolumando acerca das propriedades dos elementos de solo, flora e fauna, foram se assentando como um repertório de recursos para pronta utilização. Por isso para Deleuze e Guattari, “o mais importante talvez sejam os fenômenos fronteiriços onde a ciência nômade exerce uma pressão sobre a ciência de Estado, e, onde, inversamente, a ciência de Estado se apropria e transforma os dados da ciência nômade” (1980, vol. 5, p. 27).
Figura 14 – Salto de Itapura, 1905 Fonte: São Paulo, 2010a, p. 66‐67