1. SÃO PAULO (DE PIRATININGA): BREVE RETROSPECTIVA HISTÓRICA
1.2. A malha ferroviária como vetor de crescimento urbano
Esse quadro predominantemente rural, algo bucólico e propriamente caipira de São Paulo (CÂNDIDO, 1964) vai mudar a partir de 1867, quando começa a ser instalada a malha ferroviária da São Paulo Railway Company, ligando Jundiaí ao Porto de Santos, tornando‐se São Paulo o principal entreposto dessa rota (Figura 6). A ferrovia é uma infraestrutura que vai literalmente revolucionar a noção de tempo e de produção no território paulista, antes predominantemente rural e, a partir daí, progressivamente urbano. Diz‐se revolucionar, porque a ferrovia traz consigo toda a noção do pensamento iluminista, então em voga na Europa, na qual a primazia da razão encontra no progresso técnico sua principal justificativa. Um trem é muito mais rápido que uma mula, e carrega muito mais que uma tropa de mulas. Porém, não é à toa que a então medida de energia de uma “Maria Fumaça”, a locomotiva carro‐chefe de uma composição de vagões de trem, tenha sido definida primeiramente como
“horse Power”: a força de cavalos como unidade de medida para um motor a vapor (na
pesquisa de James Watt).
Figura 6 – Galpões da São Paulo Railway, 1867
Fonte: Lavander e Mendes, 2005, p. 26
As áreas em “branco” do novo território paulista, parcialmente atravessado por uma malha ferroviária, longe de ser um espaço abstrato, na verdade se referem a lugares simplesmente ainda desconhecidos, selvagens, onde reina outra lógica que não a de um “estado em expansão”, São Paulo, com todas as linhas de estrada de ferro em tráfego, construção e projetadas. Era assim no extremo oeste do Planalto Paulista em 1886 (Figura 7), com os chamados “Terrenos Despovoados”: terras ainda não catalogadas nas quais ainda viviam populações indígenas, estes sempre sendo empurrados para o interior pela “locomotiva do progresso”. Os “pontos importantes”, por outro lado, aonde o progresso chegara na forma da ferrovia, eram medidos em função da distância em quilômetros do Porto de Santos, reforçando o caráter predominantemente extrativista ao qual as culturas de produção agrícola e agropastoril se relacionavam: tudo girava em torno de um escoamento crescente de produção em um território em franca expansão. Destacam‐se também os rios navegáveis, em especial um grande trecho do Rio Tietê, começando no povoado de Porto Feliz e indo até o ponto geográfico conhecido como Salto de Avanhandava, próximo à uma Colônia Militar de mesmo nome, o posto mais avançado a oeste construído pelo Império em 1858.
Figura 7 – Estado de São Paulo, 1886
Paralelamente à instalação da malha ferroviária, modal de transporte que vai reconfigurar a noção de velocidade no território paulista e ocasionar uma polarização entre o rural e o urbano, com o crescimento de ambos os modos, articulados, fez‐se necessária a criação de uma força‐tarefa que pudesse justamente, mensurar esse crescimento. É nesse contexto que se dá, sob o aval do então Visconde de Pinhal, cafeicultor e político do Vale do Paraíba, Antônio Carlos de Arruda Botelho, a criação do Instituto Geográfico e Geológico ‐ IGG, em 1886, órgão que seria liderado pelo pesquisador canadense Orville Adalbert Derby (SÃO PAULO, 2010b). Já no ano seguinte, em 1887, o trabalho de campo do IGG compreendia expedições pelo Planalto Paulista, com o registro de pontos notáveis da paisagem num horizonte a se perder de vista: formas acentuadas de relevo como morros, pontas, vales... Entre estes, a Serra do Japi (Figura 8). Nesse momento, a principal ferramenta de registro eram desenhos feitos à mão em cadernetas de bolso, os quais tem o poder de esquadrinhar um território vasto, e sintetizá‐lo em pequenas folhas de papel, simplesmente porque estabelecem relações entre estes pontos notáveis, revelando proporções e distâncias que já estão lá, impressas no relevo, mas que, quando registradas, demonstram as características próprias do território.
De todo modo, ainda havia muito por se fazer. Dos registros dessa época, final do século XIX, ficam evidentes tanto a relevância do conjunto de elementos delineados, como também todo espaço “em branco”, ou seja, aquilo que não era registrado e permanecia devidamente indefinido, não só pela simples limitação dos levantamentos de campo, mas, sobretudo, como opção estética. É assim se olharmos, por exemplo, para a Freguesia de Santo Amaro (Figura 9), em 1888, ao Sul de São Paulo: conhecido como “o celeiro da capital” (ZENHA, 1977, p. 56), esta localidade passou a contar com um ramal ferroviário instalado pela Companhia Carris de Ferro de São Paulo, em 1886, conectando Freguesia e Capital. Um pequeno povoado de imigrantes europeus, com produção agrícola de subsistência, e que foi registrado então como um núcleo urbano com uma ermida ao centro e um cemitério ao lado para louvar os mortos, uma estrada principal pontuada por pequenas edificações dispersas e uma estrada transversal que levava à ferrovia, alguns cursos d’água, enfim, mais além um espaço em branco de campo, capoeiras e Grande Vargem... Porém, esse mesmo ramal ferroviário foi adquirido pela São Paulo Tramway
Light and Power Company Ltda, em 1900, e garantiu o transporte de materiais e mão de obra
necessária, ao mesmo tempo em que funcionou como um vetor de expansão urbana da cidade de São Paulo para o sentido sul4, implicando também o paulatino desmonte no modo de vida predominantemente rural de Santo Amaro (MENDES, CARVALHO. 2000).
Desse modo, a malha ferroviária ramifica‐se pelo território como uma trepadeira sobe pela parede, galho por galho, numa escala local, mas também como uma grande relva, “rizomática”, numa escala regional, consolidando‐se como um modal em franca expansão: partindo de São Paulo, já não é só até Jundiaí que o trem vai, mas até Uberaba, em Minas Gerais, e até o Rio de Janeiro, passando pelo Vale do Paraíba, pela Estrada de Ferro Dom Pedro II, que viria a mudar seu nome pouco depois, devido à Declaração da República, em 1889: já em 1890, a então Estrada de Ferro Central do Brasil articulava uma comunicação interestadual (Figura 10), por meio da rede de telégrafos, bem como o transporte de cargas e pessoas, entre
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À época, Santo Amaro era um município independente, mas foi incorporado ao município de São Paulo
como suas reentrâncias, vai implicar em maior ou menor factibilidade para implantação de novos ramais, conforme as situações que se apresentem, na medida em que sua constituição vai se tornando mais esquadrinhada, e que a demanda pelo escoamento de uma produção extrativista, tanto agrícola quanto mineral, se faz imperativa. E aí os avanços tecnológicos na área da mecânica dos solos se fazem notar, assim como as obras de arte da engenharia, uma vez que muitas linhas projetadas passam literalmente por cima de acidentes geográficos significativos na escala regional.
Figura 8 – Pontos notáveis do Planalto Paulista, entre estes a Serra do Japi, 1887
Fonte: São Paulo, 2010a, p. 42
Figura 9 – Freguesia de Santo Amaro, 1887
Figura 10 – Estrada de Ferro Central do Brasil, 1890
Santos (Figura 11), foi um marco significativo do avanço tecnológico proporcionado pelo engenho da técnica: o trajeto, do centro de São Paulo, na estação Brás, passando por São Bernardo do Campo até a estação Alto da Serra, seguia por sistema funicular até Cubatão, e daí para Santos5. Em 1896, já havia estudos para outros ramais, o que indicava uma demanda crescente para o escoamento da produção. De todo modo, toda a infraestrutura característica da linha férrea, com seus galpões, casas de máquinas, parques de estacionamento, entre outros elementos constitutivos, determinou uma estruturação técnica da Serra do Mar, reconfigurando a relação de escala entre o processo de urbanização e a monumentalidade natural, pois já aqui se evidencia um primeiro indício do que viria a se tornar uma macrometrópole poucas décadas depois.
Em 1899, o centro de São Paulo despontava então como principal entreposto de várias rotas (Figura 12), não só da chamada Estrada de Ferro Jundiaí ‐ Santos, ligando o “Portal do Cerrado” ao “Porto Internacional”, mas de estradas consolidadas entre os vários povoamentos circundantes: Penha, Santana, Lapa, Pinheiros, Vila Mariana, Ipiranga, Vila Prudente e, mais além, São Bernardo, Santo Amaro, Osasco, Tremembé, Guarulhos, São Miguel... Também o centro se consolida justaposto ao Rio Tietê, a grande vértebra hídrica que segue até os confins do Planalto Paulista, incorporando também, em um primeiro momento, a foz de um dos seus principais afluentes, o Tamanduateí. Assim se estabeleceu o chamado sítio urbano de São
Paulo, como um epicentro rodeado de núcleos urbanos não independentes, mas
relativamente autônomos, separados cada qual por um considerável “mar de colinas”, espaços em branco ainda por se ocupar. Nas palavras do geógrafo Ab’Saber (1957):
A originalidade geográfica principal do sítio urbano de São
Paulo reside na existência de um pequeno mosaico de colinas,
terraços fluviais e planícies de inundação, pertencentes a um
compartimento restrito e muito bem individualizado do relevo
da porção sudeste do Planalto Atlântico Brasileiro. [...] Na
realidade a área de relevo que interessa ao estudo do sítio
urbano de São Paulo fica praticamente restringida ao sistema
de colinas, terraços e planícies do ângulo interno de
confluência dos rios Tietê e Pinheiros. (AB’SABER, 1957, p. 13) Ora, a limitação da perspectiva que vai enquadrar a escala que de fato caracteriza São Paulo vai mudar progressivamente, uma vez que a capacidade crescente de produção de bens de consumo, sobretudo agrícolas, e o escoamento de matérias primas oriundas do planalto paulista, no descortinar do século XX, implicou também num imperativo de primeira ordem: um aumento na capacidade de geração de energia. E aqui, o advento da Usina Hidroelétrica de Santana do Parnaíba, construída em 1901 para além da confluência entre os rios Tietê e Pinheiros, com obra conduzida também pela Companhia Light, significou o começo de uma segunda mudança de rumo na estruturação do território, e, de fato, tão revolucionária quanto foi a progressiva implantação da malha ferroviária.
5 “O traçado da ferrovia seguiu na serra o mesmo delineamento da antiga Trilha Tupiniquim, pelo Vale
do Rio Mogi, enquanto que o roteiro das Trilhas do Padre José, o Novo Caminho para o Cubatão,
Calçadão do Lorena e o Caminho para o Mar situaram‐se mais ao Sul, entre os Vales do Rio das Pedras e
O início da prospecção tecnológica acerca do aproveitamento dos recursos hídricos para geração de energia elétrica ocorre junto com outros projetos de intervenção nos cursos d’água da bacia hidrográfica do Alto Tietê. Tais projetos podem ser observados desde o final do século XIX, quando foi instituída a Comissão de Saneamento das Várzeas, que elaborou, em 1893, o primeiro projeto de retificação do Rio Tamanduateí. Em 1894, a Comissão apresenta o “Projeto de Regularização do Rio Tietê e Dique Marginal”, cujas obras só teriam início mais de quarenta anos depois (TRIPOLONI, 2008, p. 76). Em 1904, tem início as obras de intervenção nas várzeas do Tamanduateí e no vale do Anhangabaú, onde ambos os rios tornaram‐se objeto de projetos urbanos e obras de infraestrutura e saneamento (TRAVASSOS, 2004, p. 23‐29). Este conjunto de intervenções nos cursos d’água e nas áreas de várzea como um todo consistiu na formulação de um paradigma que pressupõe que quanto maior o desempenho técnico dessas áreas, no sentido de minimizar as interferências do sítio precedente e tirar partido dos seus atributos, maior será o aproveitamento urbano que se poderá realizar, em termos de apropriação fundiária. Segundo Franco:
Tão ou mais importante do que as novas frentes de
urbanização, a intervenção nas várzeas equacionava de forma
conjunta uma série de questões estruturais: saneamento,
drenagem, abastecimento, geração de energia e circulação
automotora. Seriam reunidas à ferrovia para ampliar a infra‐
estrutura básica sem a qual o crescimento, sobretudo
industrial, seria insustentável. Entre todos os sistemas
implantados, o de transportes desempenharia o papel
fundamental de possibilitar a articulação entre os setores
produtivos e aglutinar a constelação de bairros definidos por
um modelo de ocupação cada vez mais extensivo. [...] Nesse
momento a questão já estava formulada: transformar o
território das várzeas pela ocupação das infra‐estruturas
necessárias para a modernização da cidade. Um projeto ficou
estabelecido e, desde então, passou a ser perseguido, ainda
que submetido aos conflitos e contradições inerentes a toda
ação prolongada no tempo. [...] A decisão de transformar o
sítio paulistano pela incorporação dos grandes sistemas de
engenharia de escala regional evidencia que a geografia não
foi um fator determinador na história da cidade. Na realidade,
assim que os instrumentos para isto se tornaram disponíveis,
os elementos naturais foram ressignificados por ações
deliberadas, que direcionaram o crescimento de São Paulo a
partir de interesses. Essas ações, muitas vezes, foram na
contramão das condições naturais, como no caso da
contenção do caminhamento das águas fluviais e da ocupação
Figura 11 – Ferrovia entre São Paulo e Santos, 1896
Figura 12 – Município de São Paulo, 1899
Fonte: São Paulo, 2010a, p. 61
Em São Paulo, portanto, a partir da segunda metade do século XIX, principia‐se uma alternância de concentração e dispersão urbana entre as áreas altas, de cumeeiras e encostas de colinas, e áreas baixas, de várzea, sendo que tal configuração é uma consequência direta da implantação da malha ferroviária. Assim, na virada para o século XX, na medida em que os antigos núcleos coloniais vão sendo conectados pela ferrovia, já é possível notar uma sobreposição de temporalidades, tanto no traçado das diferentes infraestruturas quanto nos padrões de edificação, conforme o compartimento do relevo observado: uma predominância de casario baixo ao longo dos topos das colinas e encostas, e a implantação de galpões
até o topo da colina com uma passarela exclusiva para o Palacete Rodovalho (Figura 13), construção que contrastava com a antiga igreja rodeada por ruas estreitas com pequenos sobrados coloniais. Nesse mesmo ano, prosseguiam as expedições do Instituto Geográfico e Geológico na exploração do Rio Tietê, sentido Rio Paraná, na qual vai se tornando mais nítida uma das principais características da hidrografia do Planalto Paulista: seu volume bruto de água. E nesses muitos rincões de território bravo com vegetação indócil, como no Salto do Itapura (Figura 14), a proporção ínfima do elemento humano na paisagem natural, mais do que algo a ser reverenciado, revelava antes um potencial imensurável da terra – e da água – para exploração, apropriação e aproveitamento.
Figura 13 – Palacete Rodovalho, Igreja da Penha e a passarela de acesso ao ramal ferroviário, 1905
Fonte: Memorial Penha de França, acervo digitalizado
De toda forma, para domar esse território em expansão, foram necessárias sucessivas forças tarefas de tropas que eram montadas para seguir os cursos dos grandes rios, não só o Tietê, mas também o Rio Grande ao Norte, na divisa com Minas Gerais, e o Rio Paranapanema, ao Sul, na divisa com o Paraná. Afinal, em 1906, atravessar a Cachoeira da Capivara numa grande canoa, na qual enfrentam a correnteza cerca de trinta homens (Figura 15), era tão difícil quanto é na atualidade. É essa força de desbravamento da terra e das águas que vai como que se imprimir no espírito paulista, tendo na figura ancestral dos indígenas, religiosa dos jesuítas, e militar dos bandeirantes, os elementos formadores de uma identidade híbrida. Não só isso, mas também a figura técnica do engenheiro militar da agrimensura do território e o conhecimento que foi se avolumando acerca das propriedades dos elementos de solo, flora e fauna, foram se assentando como um repertório de recursos para pronta utilização. Por isso para Deleuze e Guattari, “o mais importante talvez sejam os fenômenos fronteiriços onde a
ciência nômade exerce uma pressão sobre a ciência de Estado, e, onde, inversamente, a ciência
Figura 14 – Salto de Itapura, 1905
Figura 15 – Expedição pela Cachoeira da Capivara, Rio Paranapanema, 1906
Fonte: São Paulo, 2010a, p. 78
De todo modo, cabe reiterar que essa marcha civilizatória também se deu, em primeiro lugar, com a expulsão ou submissão de populações indígenas e quilombolas – de negros fugidos. Se observarmos, por exemplo, o registro de uma missa celebrada no acampamento Anhumas (Figura 16), em 1907, na exploração do Rio do Peixe, faz‐se notar que não são cajados nem teodolitos que a comitiva empunha, mas rifles, escopetas e carabinas, deixando claro que a luta armada é condição sine qua non para a conquista do território. Não deixa de ser irônico que um pré‐requisito desse ímpeto civilizatório ocorra justamente na forma de violentas desapropriações.
Figura 16 – Missa celebrada no acampamento Anhumas, 1907