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3.   O   LUGAR   DAS   ÁGUAS:   A   CONSTRUÇÃO   DO   MÉTODO   E   ESTUDOS   DE   CASO

3.1.   Procedimentos   metodológicos

A bacia hidrográfica foi definida como unidade de análise para enquadramento de  amostras de tecido urbano que vão definir os estudos de caso: se o foco de análise é a Região  Metropolitana de São Paulo, há de se enquadrar o seu perímetro juntamente com o da Bacia  do  Alto  Tietê;  se  o  foco  são  os  mananciais  da Zona  Sul  da Região Metropolitana,  o  enquadramento deve ser feito a partir do perímetro do conjunto de bacias que formam os  reservatórios Guarapiranga e Billings; se o foco for um bairro específico, deverá ser observada  a microbacia que ocupa, e assim por diante. Definir a bacia como unidade de análise permite  evidenciar os seus compartimentos, bem como características relevantes: cumeeiras e fundos  de vale alternam as áreas mais altas e baixas; enquanto que as linhas de talvegues indicam  declividades que tendem ao ponto mais baixo; assim também são as encostas com anfiteatros  de nascentes; bem como com as áreas de cabeceiras que seguem até uma foz comum, o ponto  crítico da bacia no sentido de ser o lugar de saída do conjunto das suas águas, e podendo aí  ocorrer espelhos d´água perenes e transitórios conforme ocorram modificações na bacia,  sejam estas naturais ou antrópicas. 

A decomposição sistêmica do tecido urbano é um procedimento proposto por Coelho  (2013) para observação dos elementos urbanos – relevo e hidrografia, traçado, edificações,  parcelário – alternadamente, sendo possível estabelecer também outras subcategorias de  análise: por exemplo, é possível classificar as unidades do parcelário em função do tamanho  do lote; e o traçado urbano em função da escala dos seus elementos, que variam de tecidos  locais às infraestruturas metropolitanas (Figura 78). Tal procedimento possibilita a análise dos  padrões que incidem sobre uma determinada amostra de tecido a partir da própria evidência  material expressa em sua forma e na relação entre suas partes. 

Nesse sentido, momentos de inflexão entre camadas constituem a porosidade do tecido  urbano, ou seja, “a proporção entre o volume devotado aos fluxos e a área total” (SECCHI, 

VIGANÒ,  2011,  p.  96).  Ao  mesmo  tempo,  quando  há  porosidade  ocorre  também 

permeabilidade, que é a medida da conectividade entre os poros. Em outras palavras, a  porosidade do tecido urbano é a quantidade de poros numa determinada camada, enquanto  que a permeabilidade é a conectividade destes poros entre as diversas camadas (Figura 79). 

A  partir  da  decomposição  sistêmica  do  tecido  urbano  e  da  observação  da  sua  porosidade, é possível estabelecer relações específicas entre relevo e traçado, traçado e  parcelas – perímetros, quadras, lotes, edificações – assim como elencar subcategorias dentro  de cada elemento: por exemplo, com relação ao traçado, é possível observar uma diferença  clara de escalas entre aquilo que aqui se convencionou chamar infraestruturas metropolitanas  – rotas de cumeeiras consolidadas, grandes vias de fundos de vale, viadutos e pontes, a malha  ferroviária, as linhas de transmissão elétrica e as rotas de transporte hidroviário – e tecidos  locais, compostos de um conjunto de quadras e ruas com características similares e cuja  integração maior se dá justamente em função das infraestruturas metropolitanas. 

Figura 78 – Decomposição sistêmica do tecido urbano 

Figura 79 – Diagrama de Porosidade (1) + Conectividade (2) + Permeabilidade (3) 

Fonte: elaborado por Heraldo Borges, 2015 

Inversamente, a decomposição elementar é um procedimento que destaca amostras  significativas ou exemplares de elementos a fim de evidenciar sua singularidade ou revelar um  caráter especial. A singularidade refere‐se à constatação de algo que, mesmo sendo discreto,  não é comum, como na pesquisa de Pereira (2013), ao  analisar a chafarizes e  igrejas  construídas em Portugal no século XVIII. Inversamente, longe de ser apenas discreto, o caráter  inusitado dos elementos urbanos pode ser mais “comum” do que se imagina, apresentando  bastante diversidade e mesmo potencialidades poéticas, como nas incursões realizadas por  Domingues sobre as “ruas da estrada” (2009), ou quando este autor observa e relata as  transformações da paisagem rural e sua hibridização com o processo de urbanização em  Portugal: “São paisagens transgênicas, que acumulam traços de variegada origem e os re‐

misturam em combinações inusitadas” (2011, p. 39). Os variados matizes que compõem o 

tecido urbano estão então como que imbricadas nesse binômio comum/ singular, especial/  ordinário, e assim,  da  mesma  forma,  aquilo  que  na  escala  monumental  possa  passar  despercebido, como  algo indistinto, na  escala local pode assumir um caráter único de  excepcionalidade. O que se propõe então é um olhar cuidadoso para cada estudo de caso,  variando os critérios conforme a situação que se apresente, e orientando esse olhar por um  “princípio da incerteza” (Domingues, 2011, p. 30), capaz de distinguir aquilo que é singular  mesmo nas comunidades, e vice‐versa. 

Diferentemente dos procedimentos de decomposição sistêmica e elementar, uma bacia  hidrográfica pode apresentar diferentes “regiões fisiográficas” (MCHARG, 1967, p. 127) e  também  muitas  e  diversificadas unidades de  paisagem, que  vão indicar,  por exemplo,  diferentes padrões de edificações ou diferentes culturas agrícolas. Isso posto, torna‐se não só  necessário mas, sobretudo, oportuno, alternar a análise entre os exercícios de escrivaninha –  revisão bibliográfica, redação e editoração de textos, produção de desenhos, organização de  documentos e a sistematização de compilações iconográficas, sejam estas fotografias, mapas  ou gráficos – com visitas de campo, onde é possível viver experiências efetivas do lugar,  observando in loco suas características e peculiaridades. 

todos os casos, pois só com um reconhecimento local e particularizado é que, de fato, se torna  possível reconhecer o lugar das águas no processo de urbanização. Por mais que inúmeros  registros – como fotografias, mapas e desenhos – possibilitem uma percepção do território  como uma relação entre a natureza e a técnica, é nas visitas de campo que essa relação ganha  sentido propriamente, possibilitando um entendimento sensível sobre a constituição do relevo  e das características variáveis dos seus compartimentos: subir ou descer uma ladeira, uma  escadaria, mirar a outra margem de um curso d’água em chão de terra ou em cima de um  deque, caminhar ao longo de um fundo de vale são experiências efetivas que permitem  vivenciar o lugar das águas em diferentes aspectos. Cabe ressaltar que acessar certas porções  do território é um desafio, quando não uma tarefa periculosa, e, para viabilizar as várias  incursões  que  se  deram,  foi  imprescindível  um  bom  trânsito  de  relacionamento  com  integrantes de grupos de pesquisa diversos, moradores e lideranças de bairro, funcionários  públicos, e companheiros de aventura pura e simplesmente. 

O  caráter  especial  da  realização  de  um  percurso,  de  trajetória  e  rastreamentos  intrínsecos às visitas de campo, pode ser observado nos trajetos realizados por gatos à noite,  registrados por Global Positioning System – GPS (Figura 80), e que resultaram em curiosos  desenhos, que levantam questões: andarão os gatos à deriva, à noite? Ou seguem cheiros,  sons, intuições? Planejam, no sono diurno, futuras incursões para lugares desconhecidos?  Difícil saber. Mas foi à imagem e semelhança desses desenhos que o reconhecimento das  áreas de estudo de caso se deu, testemunhando a condição de um relevo sinuoso, composto  de penínsulas, várzeas, morros e colinas, condição esta que poderia ser definida como  “rugosa” (DELEUZE, GUATTARI, 1985) e “dobrável” (EISENMANN, 1992). E, sobretudo, o que é  relevante aqui é a possibilidade de deslocamento contínuo entre esses elementos, ir de um  platô a outro como um “pulo do gato”, ou como a água da chuva que percorre toda a bacia  hidrográfica. Nesse sentido, é o trajeto de uma linha que vai articular situações separadas, mas  unidas por uma idéia de continuidade, de fluxo e de percurso, lembrando, inclusive, que é  possível chegar num mesmo lugar por diferentes caminhos. 

Em seguida, foram identificadas duas escalas principais de enquadramento do território:  a escala local e micro, onde todo o conjunto dos elementos urbanos podem ser observados  pormenorizadamente – ruas, quadras, edificações, praças, portos, parques, campos de futebol,  piscinas (Figura 81) etc; e a escala monumental e macro, na qual as, enquanto grandes obras  de infraestrutura, sobretudo viárias, se destacam, junto ao meio natural, como principal  ambiência, imponente e visível em toda a sua monumentalidade. E escala local é a contraparte  desse patrimônio construído monumental, a qual que determina o desafio metodológico de  transitar por entre escalas (Figura 82). É então no intermédio entre as duas escalas, que se dão  as ambiências entre os elementos: patrimônio das relações entre o natural e o construído,  “aquilo que se vê” (do francês paysage), mas também o “corpo da terra” (do alemão 

landschaft),  aquilo  que  se  configura  de  uma  maneira  específica,  e  está,  por  isso, 

organicamente  estruturado.  Outra  distinção  que  cabe  ressaltar,  entre  as  escalas,  é  a  ocorrência de padrões e de singularidades. Por padrão entende‐se aquilo que é comum,  porque repetitivo, enquanto que por singularidade temos uma situação atípica, excepcional,  que pode se dar como uma estranheza ou como algo até mesmo extraordinário. Nesse  sentido, cabe destacar a pesquisa conduzida por Monteys (2013), que analisa algumas casas 

lisboetas a partir de tipologias de habitação, onde “destaca‐se o que mais se repete, o que é 

mais comum, isto é , aquilo que é mais difícil de distinguir quando fazemos parte integrante do 

que observamos” (p. 189). Assim, entende‐se aqui que o caráter comum, seja pela ocorrência 

de uma ou mais tipologias ou padrões, constitui a predominância do tecido urbano que se está  a analisar, enquanto que aquilo que se destaca desse padrão constituiria, por diferença, uma  ocorrência ímpar, uma singularidade. 

  Figura 80 – Trajeto noturno de um gato registrado por GPS 

Fonte: Central Tablelands LLS 

De modo geral, podemos resumir os procedimentos metodológicos para caracterização  do lugar das águas no processo de urbanização da seguinte maneira: 

Enquadramento de amostras de tecido a partir da delimitação da bacia hidrográfica;  Decomposição sistêmica e elementar do tecido urbano; 

Observação da porosidade do tecido a partir das articulações entre elementos urbanos;  Definição de categorias de análise conforme a situação que se observe; 

Análise dos compartimentos da bacia em função do tecido urbano existente;  Alternância entre as escalas macro, do monumental, e micro, do local;  Alternância entre exercícios de escrivaninha e visitas de campo. 

Figura 81 – Piscina do SESC Interlagos, torres de alta tensão ao fundo, 2018  Fonte: do autor, 2018 

 

  Figura 82 – Diagrama demonstrando o desafio metodológico de transitar entre escalas 

Fonte: elaborado pelo autor, 2019 

Ressalta‐se que há várias maneiras de realizar esses procedimentos, de modo que esse  método pode ser considerado como um processo factível de refinamento e reelaboração. E é  isso que será  observado nos estudos de  caso, que  contém tanto  similaridades quanto  diferenças entre si, sendo que, nesse sentido, todos são estudos de caso “piloto”. Pode‐se  argumentar que a heterogeneidade dos casos poderia desfavorecer uma análise comparativa, 

pois apresentam desdobramentos específicos, mas considera‐se oportuno a possibilidade de  poder comparar, em diferentes contextos, a relação entre ruas e avenidas, casas e bairros,  pequenas nascentes e grandes cursos d’água. Além disso, há – literalmente – um fluxo  contínuo entre os estudos de caso se considerarmos o próprio percurso das águas, a começar  pela cabeceira do Tijuco Preto, que desaguará à jusante do Tietê e, seguindo à oeste irá  encontrar a foz do Tiquatira, e que daí à frente poderá ser revertida sentido sul pelo canal  Pinheiros até o Reservatório Billings. 

Desse modo, o primeiro estudo de caso, Tijuco Preto, seria então um prelúdio, o início  de um percurso que começa em um lugar marginalizado e desfavorecido. O segundo caso,  Tiquatira – Penha, apresenta uma sobreposição notável dos quatro períodos de São Paulo –  toponímias indígenas, rotas coloniais, malha ferroviária e rodoviarismo. O terceiro caso,  Cocaia, buscou fazer, a partir de uma análise circunscrita, um reconhecimento minimamente  abrangente acerca do sistema Guarapiranga – Billings, sendo as visitas de campo para além  dessa área circunscrita fundamentais para estabelecer uma espécie de contrapeso à análise de  uma microbacia que é parte de um sistema maior de bacias. 

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