2 0 9 Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical 3 8 ( 2 ) :2 0 9 -2 1 0 , mar-abr, 2 0 0 5
NECROLÓGIO/OBTUARY
Mário Rubens Guimarães Montenegro
(
,
1 9 2 3
† 2 0 0 5
)
Co m o fa le c im e n to do Pr o fe s s o r Dr. Má r io Rub e n s Guimarães Montenegro, no dia 1 1 de fevereiro de 2 0 0 5 , a Pato lo gia b r asile ir a pe r de um de se us mais impo r tante s referenc iais. Médic o formado, em 1 9 4 6 , na Fac uldade de Me dic ina da Unive r sidade de São Paulo , o Mo nte , c o mo c ar inho sam e nte e r a c ham ado , lo go apó s sua gr aduaç ão , ingr e sso u c o m o assiste nte no De par tam e nto de Anato m ia Pato ló gic a daq ue la instituiç ão , na é po c a c he fiada pe lo Pr o f. Ludgero da Cunha Motta.
Era homem de personalidade extremamente marc ante e, em muito s aspec to s, b astante pec uliar. Muito inteligente, rápido em apreender e soluc ionar os problemas e desafios, e r a b a s ta n te e d u c a d o , ge n e r o s o e d e c o n ví vi o fá c i l . E u ( Thale s de B r ito ) tr ab alhe i c o m e le c o mo aluno de graduaç ão, a partir do sexto ano e, depois, c omo assistente do mesmo Departamento durante os dez anos seguintes, na mesma sala, em tempo integral, sem nunc a termos tido uma desavenç a. De ac ordo c om ele, nós nos c ompletávamos em vários aspec tos: eu, pessimista, e, ele, um otimista, que assim pe r mane c e u dur ante to da sua vida. Apr e ndi c o m e le o s passos fundamentais da especialidade
e considero-me uma pessoa de muita sorte, uma vez que esta inic iaç ão se de u a pa r tir de pe s s o a h o n e s ta e é tic a, de c onduta profissional reta e extremamente dedic ada ao trabalho. Em par ale lo , o Mo nte c ultivava de maneira excepcional uma vida esportiva ric a, sendo um nadador e velejador competitivo durante grande parte dela. Este c onjunto fez dele um professor bastante popular entre os alunos.
Em 1 9 5 4 , foi agrac iado c om bolsa de a p e r fe i ç o a m e n to n o s Es ta do s Unido s pe la Ke llo gg’s Fo u n d a ti o n, indo trabalhar por quase dois anos c om o Prof. Damin, no Departamento de Patologia do Pe te r Be n t Bri gh a m
Ho sp i ta l ( Ha rva rd Un i ve rsi ty). Sua c ompetênc ia aliada às qualidades pessoais fizeram que ele, em seis meses, deixasse de exerc er naquela instituiç ão atividades semelhantes as de um residente e fosse promovido a assistente do Departamento. Ali, ao lado das atividade s de r o tina, fo i inc luído de ntr o d e u m do s gr u p o s m a i s i m p o r ta n te s e p i o n e i r o s e m Nefropatologia, que teve seu máximo c om Frank J. Dixon e Ro dr igue z, e q ue tr a b a lh o u c o m m o de lo e xpe r im e n ta l da doenç a do soro em c oelhos, estudando e reproduzindo ne fr o patias e xpe r ime ntais q ue c o ntr ib uír am de mane ir a definitiva para a c ompreensão patogenétic a daquelas vistas no homem. Esta linha, fasc inante e importante, não pode ser c o ntinuada aqui no B rasil, fic ando entretanto o no me de Montenegro em um dos trabalhos pioneiros sobre o assunto.
De volta ao B rasil, c ontinuou sua tarefa de formar disc ípulos. Entre muitos, trabalharam c om ele e sofreram sua influê nc ia: Dr. Luiz Ce lso Matto sinho Fr anç a, e ntão residente e aprendiz de Neuropatologia do Departamento; Dr. Adonis de Carvalho, Dr. Zilton Andrade e, posteriormente, Dr. Kiyo shi Ir iya e Dr a. Lo r Cur y. Ne ssa m e sm a é po c a, s u a a tivida de c ie n tífic a pr o s s e guia , c o m r e pe r c us s õ e s internac ionais. O Monte envolveu-se então c om os estudos internac ionais de arteriosc lerose que propic iaram a ele uma sé r ie de viage ns e tr ab alho s e xtr e m am e nte im po r tante s, de c unho epidemiológic o, muito c itados e fazendo inc lusive parte dos livros na époc a. A partir destes c onhec imentos, sur giu sua te se de Livr e -Do c ê nc ia, no De par tame nto de Anato m ia Pato ló gic a da FMUSP, j á dur ante a c áte dr a do P r o f . Co n s ta n ti n o Mi gn o n e . Ne s s a é p o c a , c o m o u m patologista moderno, lutou c ontra-c orrente pela introduç ão e valorizaç ão das biópsias por agulha, partic ularmente de fígado, c omo importante arma diagnóstic a. Posteriormente, desligou-se do Departamento e transferiu-se para a nasc ente Fac uldade de Ciênc ias Médic as e B io ló gic as de B o tuc atu ( FCMB B ), posteriormente, Faculdade de Medicina de Botucatu ( UNESP) , o n d e f o i f u n d a m e n t a l p a r a s u a fundaç ão , e m 1 9 6 2 . Ne sta instituição, ao lado do investigador, Mo nte de m o nstr o u o utr a fac e ta importante de sua personalidade, aquela do administrador.
Em B o tuc atu, sua atuaç ão e influê nc ia fo r am tão amplas e m a r c a n te s q u e a c o n gr e ga ç ã o da Faculdade, recentemente, decidiu dar o nome de “Casa de Montenegro” à Instituiç ão, de modo semelhante à FMUSP, que é a “Casa de Arnaldo” ( Prof. Arnaldo Vieira de Carvalho) .
A grande maioria dos doc entes pioneiros do Campus de B otuc atu foi atraída a B otuc atu pelo seu dinamismo e magnetismo. No começo, um pequeno grupo de patologistas, incluindo a Lor, Kunie, Celso, Cristina e Viciany e eu ( Marcello Fabiano de Franco) c omeç amos, sob sua c onduç ão, pratic amente a partir do nada, a c onstruir aquele que viria a ser um Departamento de Patologia e que exerc eu grande influênc ia na história da Patologia brasileira.
So b a visão e e stím ulo do m e str e , tive m o s to das as oportunidades para c resc ermos nas três áreas de atuaç ão acadêmica, docência, assistência e pesquisa. Assim, foi possível c onstruir um departamento moderno, c ontemporâneo, que a glutino u e fo r m o u n um e r o s o s pr o fe s s o r e s , a n á to m o -pato lo gistas e pe squisado r e s, ho j e e spalhado s e m vár io s c entros médic os país afora.
2 1 0 NECROLÓGIO
Ne ste c o nte xto , sa lie nto tr ê s pr o j e to s q ue fo r a m revolucionários e inovadores para todos nós: i) Projeto Nutes-Clattes que nos propiciou treinamento e formação em pedagogia médica; ii) A decisão de escrevermos um livro de Patologia Geral que fosse conciso, objetivo na definição dos conceitos básicos e processos gerais, que pudesse ser utilizado pelos professores e alunos dos vários cursos da área de saúde; este projeto reuniu os principais professores de patologia do país, Dr. Zilton, Dr. Thales, Dr. Barretto Netto e resultou na publicação do livro “Patologia: Processos Gerais”. A filosofia foi a mudança não só do ensino mas do enfoque da Patologia, na época centrada basicamente em necropsias. Com a participação também do Prof. Lopes de Faria, este grupo de trabalho teve papel fundamental na modernização da Patologia no Brasil; iii) Criaç ão do Grupo de Estudo de Paracoccidioidomicose do Campus de Botucatu: Monte foi pioneiro na utilizaç ão de modelos experimentais da mic ose para a integração dos achados morfológicos e da resposta imunológica do hospedeiro. Esta abordagem levou à formação do Grupo Multidisc iplinar de Parac oc c idioidomic ose de Botuc atu, que o rganizo u o s do is primeiro s Enc o ntro s Internac io nais de Paracoccidioidomicose, em Barra Bonita e no Campus de Botucatu, eventos que consolidaram a expressão internacional do Grupo.
O legado que o Monte nos deixa é imenso, como expresso pelos inúmeros depoimentos espontâneos no Patocito, quando de seu falecimento, oriundos de todo o país.
Além de sua inteligência, visão ampla da patologia como espec ialidade multidisc iplinar, sua enorme c apac idade de aglutinar, o Monte foi chefe de escola altamente generoso. Deu todas as chances de crescimento para cada um de nós, estimulou que nos diferenciássemos, que estagiássemos no exterior, que fizéssemos a carreira universitária, sempre sem medo de que ficássemos melhor do que ele. Na verdade, tinha orgulho de nossas vitórias e conquistas.
Nunca lutou por cargos de direção, de poder, mantendo sempre atuação essencialmente acadêmica, universitária. Esta visão marcada pela idéia – mãe da FCMBB, que oferecia um curso básico único, multidisciplinar, a todos os estudantes, que
depois então optavam por medicina, biologia ou veterinária, permitia grande integração entre as áreas básica e aplicada, tendo como paradigma o curso de Agressão e Defesa, onde a anatomia-patológica era ministrada em conjunto com a microbiologia, parasitologia, epidemiologia e imunologia.
Com base neste enfoque, a patologia de Botucatu exerceu papel fundamental na filosofia da Instituiç ão, no sentido da importânc ia da integraç ão anátomo-c línic a, c om ênfase nos mecanismos patogênicos e na fisiopatologia.
Seu último legado acadêmico foi a fundação do Curso de Pós-Graduação em Patologia, do Departamento, que trouxe vigor renovado à pesquisa do Grupo e da Instituiç ão. Ressalta-se que neste projeto foi importante a agregaç ão ao grupo de pesquisadores não médic os, ressaltando a importânc ia da pesquisa em Patologia ter que integrar, atualmente, profissionais de diferentes formações para enfrentar os desafios da moderna Patologia Molecular.
Monte aposentou-se relativamente cedo, para que sua vaga pudesse ser oc upada por uma jovem patologista do grupo. Porém, mesmo após a aposentadoria, continuou trabalhando normalmente participando da rotina das reuniões de autópsia e como consultor em patologia do sistema nervoso central.
Teve ainda, importante atividade na vida da comunidade botuc atuense, tendo sido presidente do setor de nataç ão da Associação Atlética Botucatuense e recebido o título de cidadão botucatuense por sua contribuição para o desenvolvimento do Campus da UNESP, em Botucatu.
Por fim, o Mestre foi um esposo e pai muito dedicado e amado. Foi casado em primeiras núpcias com dna. Maria Silvia Alves de Lima, falecida, e depois com a Dra. Edy de Lello Montenegro, companheira e apoio constante até o fim. Deixa os filhos Roberto, Álvaro e Renata, e os netos Érica, Silvana, Roberto e Karina.
Mais que lamentar a perda do nosso Professor em Patologia e, porque não dizer, de um exemplo a ser seguido na vida universitária, perdemos um grande amigo que será sempre lembrado por todos nós.