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Ran zan i, Marcelo Fern an do, et al.
Pn eu mon ia lipoídica associada à forma digest iva da doen ça de Chagas
Pneumonia lipoídica associada à forma dig estiva da
doença de Chagas*
Dig e stive Chag as dise ase w ith co nco m itant lipo id pne um o nia
MARCELO FERNANDO RANZANI, NILSON SEBASTIÃO MIRANDA, ULISSES FREDERIGUE JUNIOR, SÉRGIO MARRONE RIBEIRO, JUSSARA MARCONDES MACHADO
Mu lh er d e 5 0 a n o s co m m eg a esô fa g o e m eg a có lo n chagásico apresentou quadro clínico de tosse seca, dor t orácica e dispn éia leves. O raio X de t órax most rou o p a cid a d e d o t ip o a lve o la r b ila t e ra l su g e st ivo d e pn eu mon ia. Após biópsia a céu abert o chegou - se ao diagnóstico de pneumonia lipoídica. A doença foi causada pelo u so crôn ico de laxan t es à base de óleo min eral, utilizados nos últimos três anos. Os autores discutem a associação da forma digestiva da doença de Chagas com pneumonia lipoídica, e apresentam recomendações sobre o uso de produtos que contenham óleo mineral.
J Bras Pneum ol 2 0 0 4 ; 3 0 ( 5 ) 4 9 2 - 5
A 50- year- old woman with chagasic esophageal achalasia and megacolon presented with nonproductive cough, chest pain and dyspnea. A chest X- ray showed bilateral opacity suggestive of lobar pneumonia. Open lung biopsy revealed lipoid pneumonia resulting from aspiration of mineral oil from a mineral oil- based laxative that the patient had been taking regularly for the last three years. The authors d iscu ss co n co m it a n ce o f ch a g a sic m e g a co lo n a n d esophageal achalasia with lipoid pneumonia and make recommendations regarding the use of mineral oil- based products by these patients.
Descritores: Pneumonia lipóidica/ etiologia. Pneumonia aspirativa/etiologia. Acalásia esofágica/patologia. Doença de Chagas/complicações.
.Key words: Pneumonia, aspirtion/etiology. Pneumonia, lipid/ et iology. Esophageal achalasia/ pat hology. Chagas disease/complications.
* Trabalho realizado n a Facu ldade de Medicin a de Bot u cat u – UNESP.
En dereço para correspon dên cia: - Depart amen t o de Doen ças Tropicais e Diagn óst ico por Imagem. Hospit al das Clín icas - Facu ldade de Medicin a d e Bo t u cat u - UNESP. Dist rit o d e Ru b ião J u n io r S/ No - CEP 1 8 61 8 - 9 7 0
Recebido para publicação, em 1 7 / 8 / 0 3 . Aprovado, após revisão, em 2 0 / 11 / 0 3 .
INTRODUÇÃO
Os pou cos relat os de pn eu mon ia lipoídica da lit era t u ra d escrevem q u e essa é u m a d o en ça oligossin t omát ica ou t ot almen t e assin t omát ica, s e n d o d e s c o b e r t a p o r a c a s o , e m e x a m e s radiológicos de rot in a.(1- 3)
Em n o sso m eio , p o d e est a r a sso cia d a a o megacólon chagásico. Nessa doen ça, observa- se con st ipação in t est in al progressiva, e os pacien t es cost u mam perman ecer dias ou at é seman as sem evacu ar. Po r isso q u ase sem p re fazem u so d e laxantes ou clisteres, para reduzir o intervalo entre as evacu ações, sen do o óleo min eral bast an t e u t iliz a d o p a ra e st e fim , p o r se r d ist rib u íd o
grat u it amen t e pela rede pú blica de saú de.(4)
O objet ivo dest e t rabalho é relat ar u m caso de pneumonia lipoídica, em um paciente com a forma digest iva da doen ça de Chagas, associada ao u so crôn ico de óleo min eral.
RELATO DO CASO
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Jornal Brasileiro de Pneumologia 3 0 (5 ) - Set/Out de 2 0 0 4Há 30 an os, apresen t ou qu adro de su boclu são in t est in al, sen do diagn ost icado megacólon após laparot om ia. Nest a ocasião, a hem aglu t in ação indireta para Chagas resultou positiva. Permaneceu b em a t é h á 1 5 a n o s, q u a n d o p a sso u a fica r constipada por períodos progressivamente maiores, de até 10 dias. Desde então, acostumou- se a utilizar laxantes diariamente e enemas, semanalmente.
Há três anos, após período de constipação mais prolongado, quando precisou ser internada para lavagem in t est in al, recebeu , por via oral, óleo mineral, prática que manteve após a alta. Com o uso de 40 a 50ml diários dessa substância, a paciente conseguia evacuar a cada 3 ou 4 dias sem necessitar dos enemas. Há quatro meses, passou a apresentar d isp n é ia a o s g ra n d e s e sfo rço s, d o r t o rá cica ventilatório- dependente, leve e esporádica, além de tosse seca, principalmente pela manhã. Foi internada p a ra in ve st ig a çã o d e d o e n ça ca rd ía ca e e m radiografia do tórax foi observada opacidade tipo alveolar, de limit es mal defin idos n o segmen t o posterior do lobo superior direito, lobo inferior direito e opacidade discreta na base esquerda (Figura 1). Nessa ocasião, a paciente não apresentava sinais e s in t o m a s d e in f e c ç ã o o u d e s í n d ro m e consumptivo, comuns em tuberculose e micoses p u lm o n a res. Co m isso , fo i su b m et id a a u m a t o m o g ra f ia co m p u t a d o riz a d a d o t ó ra x q u e
Figura 1 – Raio X do tórax PA com opacidade tipo alveolar, de limit es mal defin idos, n o segmen t o post erior direit o, lobo inferior direito e opacidade discreta na base esquerda.
Figu ra 2 – Tomografia compu t adorizada do t órax com imagem em vidro fosco, de limit es defin idos, en volven do ambos os lobos in feriores, prin cipalmen t e à direit a.
Fig u ra 3 – Lu z a lveo la r co m n u m ero so s m a cró fa g o s con t en do gran de qu an t idade de vacú olos lipídicos n o cit oplasma.
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Ran zan i, Marcelo Fern an do, et al.
Pn eu mon ia lipoídica associada à forma digest iva da doen ça de Chagas
A biópsia de congelação de pulmão a céu aberto foi então indicada, demonstrando no histopatológico tabiques alveolares com ectasia linfática e hiperplasia de pneumócitos.
À luz alveolar, foi observada grande quantidade d e h is t ió c it o s c o m m ic r o va c u o liz a ç ã o c it o p la s m á t ic a . Ha via , t a m b é m , in f ilt r a d o in flam at ório lin focit ário n as áreas próxim as à su perfície pleu ral. Est e qu adro hist ológico in dica pneumonia lipoídica (Figura 3). A paciente evoluiu com melhora da dispnéia, após ter deixado de usar óleo mineral. A correção da constipação intestinal t em sido feit a por meio de diet a adequ ada e, qu an do n ecessário, en emas.
DISCUSSÃO
A d o e n ça d e Ch a g a s é ca u sa d a p o r u m
prot ozoário, o Trypan osoma cru zi. A in fecção
a g u d a p o d e p a ssa r d e sp e rc e b id a , o u p o d e det ermin ar doen ça de in t en sidade leve ou grave, esta última diagnosticada principalmente em zona en d êm ica . Sen d o a in fecçã o in a p a ren t e m a is freqü en t e, esses in divídu os podem evolu ir len t a e g rad at ivam en t e p ara as fo rm as crô n icas d a d o e n ç a , e m q u e se m a n if e st a m a lt e ra ç õ e s ca rd ía ca s o u d ig e st iva s. A f o rm a d ig e st iva m a n if e s t a - s e c o m o d is f a g ia , q u a n d o h á megaesôfago e como constipação intestinal grave, n a presen ça de megacólon .(4- 6)
O fen ômen o pat ogên ico básico qu e det ermin a a doen ça digest iva é a desen ervação in t ramu ral d o s p le xo s d o s is t e m a n e rvo s o a u t o n ô m o
mioentérico, especialmente dos parassimpáticos.(7)
A colopat ia crôn ica chagásica é u ma alt eração freq ü en t e n o Bra sil, esp ecia lm en t e n o s m a is i d o s o s , e l e v a à c o n s t i p a ç ã o i n t e s t i n a l p ro g ressiva, q u e se in t ercala co m p erío d o s d e diarréia. Mais t ardiamen t e, qu an do o megacólon est á in st alado, os pacien t es perm an ecem lon gos p erío d o s sem evacu ar, p recisan d o d o au xílio d e laxan t es o u clist eres.(4)
A esofagopat ia chagásica, ou t ra alt eração da f o r m a d ig e s t iva , é t a m b é m f r e q ü e n t e , prin cipalmen t e após a segu n da década de vida, manifestando- se fundamentalmente como disfagia, especialmen t e para alimen t os mais secos, du ros e frios. Esses pacien t es cost u mam in gerir gran des qu an t idades de líqu ido às refeições, para facilit ar
a deglu t ição e melhorar os sin t omas.(4)
À medida qu e a disfu n ção esofágica progride,
há acú mu lo de mat erial in gerido n a su a porção su p e rio r, p o d e n d o o c o rre r a sp ira ç ã o d e sse co n t e ú d o . Est e q u a d ro é m a is co m u m n o s in divídu os com perda ou su pressão do reflexo da t o s s e , e m c o n s e q ü ê n c ia a o s d is t ú r b io s neuromusculares, ou ao uso de drogas e sedativos. Ne s s a s o c a s iõ e s , in s t a la - s e a p n e u m o n ia aspirativa.(8- 10)
O ó le o m in e ra l fre q ü e n t e m e n t e in ib e a s resp o st a s p ro t et o ra s d a s via s a érea s, co m o o fechamen t o da glot e e a t osse, e, ain da, é capaz de resist ir ao t ransport e mu cociliar. Com isso, su a a sp ira çã o p o d e ser im p ercep t ível, leva n d o a o qu adro radiológico qu e se pode con fu n dir com pneumonia. Essa substância é relativamente inerte e não pode ser metabolizada por enzimas teciduais. Ela con sist e de u ma mist u ra de hidrocarbon et os de cadeias longas e saturadas, obtidas do petróleo. Qu a n d o a sp ira d o , o ó le o m in e ra l t o rn a - se emulsificado e aparece como lipídio livre em gotas o u va cú o lo s n o cit o p la sm a d e m a cró fa g o s. Desen vo lve- se, en t ã o , u m a á rea d e a cú m u lo alveolar e in t erst icial de macrófagos replet os de lipídios com in filt rado lin foplasmocit ário ao seu redor. Com o t empo, organ iza- se em fibrose, e célu las gigan t es cheias de óleo rodeiam o local, f o r m a n d o u m a le s ã o q u e é c h a m a d a d e “parafin oma”. Est e t ipo de lesão, em exames de imagem, pode levar ao diagn óst ico de n eoplasia de pulmão. Entretanto, a aspiração do óleo mineral p o d e a c a r r e t a r a c h a d o s r a d io ló g ic o s e t omográficos variados. Os achados radiológicos m a is co m u m e n t e o b se rva d o s n a p n e u m o n ia lip o í d ic a s ã o : o p a c id a d e s e m vid ro - f o s c o , a n o rm a lid a d es in t erst icia is e a co n so lid a çã o pu lmon ar, qu e podem ser en con t rados de forma
isolada, ou associados num mesmo paciente.(2,3,11,12)
P e la p o ssib ilid a d e d e ssa s c o m p lic a ç õ e s, r e c o m e n d a - s e q u e p e s s o a s c o m r is c o d e broncoaspiração evitem utilizar- se do óleo mineral. Outra recomendação importante é a de que o óleo min eral seja apen as prescrit o por períodos cu rt os, menores que uma semana, pois, com o uso crônico, o risco de aspiração t orn a- se maior. Os au t ores su gerem qu e, n o Brasil, se evit e prescrever óleo mineral para indivíduos com megacólon chagásico, pelo risco de o u so, n esses doen t es, t orn ar- se crônico. Esse alerta se torna mais importante para os casos em qu e, ao qu adro in t est in al, se associa
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