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Lucíola e a figura feminina na narrativa de José de Alencar

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Academic year: 2021

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Lucíola e a figura feminina na narrativa de José de Alencar

Lidiane Cossetin Alves (UNIOESTE) José Carlos da Costa (UNIOESTE) lidicossetin@yahoo.com.br

Resumo: Neste texto, exporemos argumentações teóricas sobre a construção da figura feminina prostituída sob o olhar masculino desenvolvido na obra Lucíola, de José de Alencar. As reflexões iniciais acerca de uma pesquisa de graduação abarcam as discussões de gênero sob um viés feminista que englobam os questionamentos: “quais são os papéis reproduzidos pela figura feminina de Lúcia durante a narrativa de José de Alencar?” “Quais são as influências da sociedade sobre o desenvolver da narrativa que envolve a vida da personagem principal Lucíola?” Destarte, pretendemos analisar esta obra da Literatura Brasileira com argumentações embasadas em escritoras que dissertam sobre as relações de gênero na sociedade ocidental, numa tentativa de destacar a personagem Lúcia. Para tal finalidade, recorreremos às autoras Luciana Gruppelli Loponte (2008), Heleieth Iara Bongiovani Saffioti (2009) e (2011), também Mirla Cisne (s/a), Sheila Jeffreys (2004) e, por fim, Carole Paterman (1993). Como resultado, esperamos contribuir com os estudos realizados acerca do entendimento sobre a idealização da figura feminina contida na obra Lucíola, de José de Alencar.

Palavras-chave: Lucíola; Literatura Brasileira; Feminino em Lucíola.

Abstract: In this text, we will expose theorical argumentations about the construction of the female prostitute figure under the male look developed on the composition Lucíola, by José de Alencar. The initial reflections about a graduation research embrace the discussions of gender under a feminist bias which encompass the questionings: "what are the roles reproduces by the female figure of Lúcia during the José de Alencar's narrative?" “What are the influences of the society that involves the life of the main character Lucíola?". Therefore, we intend to analyze this composition of the Brazilian Literature with argumentations based on writers who discourse about the gender relations on the western society, in an attempt to highlight the character Lúcia. For this purpose, we will refer to the authors Luciana Gruppelli Loponte (2008), Heleieth Iara Bongiovani Saffioti (2009) and (2011), also Mirla Cisne (w/y), Sheila Jeffreys (2004) and, Carole Paterman (1993). As result, we hope to contribute to the studies developed about the understanding about the idealization of the female figure contained on the composition Lucíola, by José de Alencar.

Palavras-chave: Lucíola; Brazilian Literature; Female in Lucíola.

Introdução

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passagens em que o personagem principal e narrador da obra tece comentários sobre uma figura feminina durante a narrativa, junto dos discursos literários desenvolvidos para a contribuição na construção do estereótipo da mulher brasileira que se prostitui.

Através da exploração da obra Lucíola, que discute o desenvolver de um relacionamento entre um rapaz da corte e uma prostituta, utilizamos as teorias levantadas por autoras feministas para podermos interpretar e discorrer sobre uma análise dessa obra, que aborda o delineamento do papel social desempenhado por uma mulher, enfatizando os valores e a época em que a narração está ambientada.

Salientamos, ainda, que não pretendemos tecer teorias ligadas ao autor, mas sim ao modo de vida, convicções e relações entre gêneros descritas na obra em questão, ambientada no século XIX, apontando criticamente o papel subjugado de uma personagem feminina da literatura brasileira durante tal narrativa, relacionando tais recortes à textos teóricos feministas da atualidade. Portanto, acrescentamos que não é nossa intenção cairmos no anacronismo, por se tratar de uma (re)leitura crítica com olhares atuais.

Desenvolvimento

1. A obra e suas características: Lucíola

A obra Lucíola, de José de Alencar, publicada em 1862, é um romance urbano. Na obra, o autor utiliza os ganchos para prender a atenção do leitor e fazê-lo retomar a leitura nos próximos capítulos, o que era muito comum nos romances da época.

Sendo assim, cada capítulo desenvolve seu acontecimento de alta movimentação, que desperta a curiosidade do leitor, como também possui variadas retomadas dos acontecimentos nos capítulos anteriores a fim de situar este leitor: são características destacáveis com aspectos folhetinescos.

O narrador em primeira pessoa traz os acontecimentos com muito sentimentalismo, como relatos de uma carta a uma senhora, que somente é revelada após muitos capítulos já desenvolvidos, trazendo uma sensação de nostalgia para a narrativa e a enlaçando no entendimento dos acontecimentos do enredo, que também é uma característica que guarda e zela a atenção do leitor.

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2.1. Paulo Silva

O perfil masculino do personagem Paulo Silva é retratado através de seus sentimentos descritos como narrador das cartas enviadas à senhora. Nessas cartas ele tenta demasiadamente descrever, aos mínimos detalhes, o que estava sentindo em cada momento em que narrava os acontecimentos descritos no romance:

Calando-me naquela ocasião, prometi dar-lhe a razão que a senhora exigia; e cumpro o meu propósito mais cedo do que pensava. Trouxe no desejo de agradar-lhe a inspiração; e achei voltando a insônia de recordações que despertara a nossa conversa. Escrevi as páginas que lhe envio, as quais a senhora dará um título e o destino que merecerem. […]. Desculpe, se alguma vez a fizer corar sob os seus cabelos brancos, pura e santa coroa de uma virtude que eu respeito (ALENCAR, 1862, p. 2).

E, por mais que se apresente como um rapaz que possuía muitos sentimentos pela moça Lúcia, notamos a incrível lábia manipulativa para alcançar os desejos que desenvolvia acerca do corpo dessa mesma moça. Aos poucos, conforme se apresenta como apaixonado por Lúcia, Paulo disserta com argumentações convenientemente construídas e relacionadas com a intencionalidade de fazer com que se compadeçam de sua situação de “paixão extrema”, ao invés de revelar que era um homem comum que manipulava uma moça para satisfazer suas próprias fantasias sexuais, a ponto de fazê-la mudar toda a sua vida e forma de se relacionar com outras pessoas, acreditando salvá-la de uma “maldição” denominada prostituição, explorada no subcapítulo a seguir.

Em dado momento, notamos que Paulo desencadeia um sentimento de posse sobre o corpo e as escolhas de Lucíola, mesmo sabendo de suas ocupações profissionais sexuais e, a respeito disso, utilizamos a opinião da autora Luciana Gruppelli Loponte, em Pedagogias Visuais do Feminino: Arte, Imagens e Docência, que disserta sobre o imagético feminino nas artes visuais, que muito se assemelha e acompanha o desenvolver das – e nas – literaturas:

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da mulher na arte refletem e contribuem para reproduzir certas premissas aceitas pela sociedade em geral, [...] sobre o poder e a superioridade dos homens sobre as mulheres [...]. Trata-se de premissas acerca da debilidade e passividade da mulher; de sua disponibilidade sexual; seu papel como esposa e mãe; sua íntima relação com a natureza; sua incapacidade para participar ativamente na vida política. Todas estas noções, compartilhadas, em maior ou menor grau pela maior parte da população até nossos dias constituem uma espécie de subtexto que subjaz quase todas as imagens envolvendo mulheres (LOPONTE, 2008, p.154-155).

Dessa maneira, Loponte aponta que as artes, sejam elas visuais ou literárias, refletem os anseios e estereótipos construídos pela sociedade, criando duas possibilidades femininas, num intuito dualista do ser: a boa moça “virgem, mãe, amante e esposa” bem aceita socialmente e; a “prostituta, bruxa e mulher fatal” que, obrigatoriamente, deve ser passível de recondução de caráter ou pela figura religiosa ou pela figura masculina, incessantemente a fim de se encaixar no estereótipo primeiro de boa moça. O intuito dessa recondução da mulher que não está encaixada nos perfis preestabelecidos pelo patriarcado é o de agradar ao homem e de constituir uma família, conforme Paterman (1993). Assim, é instalada a “debilidade e passividade da mulher”, e negada à figura feminina os espaços restritamente reservados a homens, como aponta Loponte.

2.2 Lúcia

A personagem Lúcia é descrita durante a narrativa da obra Lucíola sob o olhar de outro personagem, masculino: o protagonista Paulo Silva. Tal personagem masculino está inserido no espaço discursivo de homem, cristão, com poderes aquisitivos considerados como confortáveis – não eram pobres –, em uma sociedade patriarcal e machista. Isto posto, entendemos que as descrições da moça Lúcia durante a narrativa não levaram em consideração o ponto de vista dela, mas de seu personagem-narrador, Paulo Silva.

As primeiras descrições da personagem são românticas e doces, mas aludem apenas ao corpo e a beleza de Lúcia, não desenvolvendo seu psicológico ou seus sentimentos como aconteceu com o personagem Paulo. Observemos o “entender masculino” sobre a figura de Lúcia, desenvolvida pelo psicológico de Paulo:

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esquisito realce a um desses rostos suaves, puros e diáfanos, que parecem vão desfazer-se ao menor sopro, como os tênues vapores da alvorada. Ressumbrava na sua muda contemplação doce melancolia e não sei que laivos de tão ingênua castidade, que o meu olhar repousou calmo e sereno na mimosa aparição. […] A expressão cândida do rosto e a graciosa modéstia do gesto […] (ALENCAR, 1862, p. 3-5).

Enquanto Paulo não possuía conhecimento sobre a vida que a personagem Lúcia levava prostituindo-se, a encarava como uma mulher comum de beleza estonteante. O rapaz fixava-se em olhar para a beleza e o corpo da moça. Entretanto, a continuidade da narrativa deste romance de Alencar faz o olhar de Paulo mudar, modificando-se conforme ele conhece a cortesã e, se interessa pelos agrados que ela pode lhe oferecer em tempos ociosos.

Depois que Lúcia e Paulo tornam-se amigos, notamos que ele ainda buscava na nova colega algum sinal de pureza virginal e, essa tentativa de encontrar “a boa moça” em Lúcia, dividia espaço com o interesse do rapaz de saciar-se sexualmente com ela:

O que porém continuava a surpreender-me ao último ponto, era o casto e ingênuo perfume que respirava de toda a sua pessoa. Uma ocasião, sentados no sofá, como estávamos, a gola de seu roupão azul abriu-se com um movimento involuntário, deixando ver o contorno nascente de um seio branco e puro, que o meu olhar ávido devorou com ardente voluptuosidade. Acompanhando a direção desse olhar, ela enrubesceu como uma menina e fechou o roupão; mas doce e brandamente, sem nenhuma afetação pretensiosa (ALENCAR, 1862, p. 9).

Fica claro, no romance, que Paulo está sempre buscando em Lúcia alguma característica que sugira que a moça se assemelhe ao estereótipo de boa mulher, boa moça, casta, santa e pura. Relembramos que, neste momento, não é Lúcia quem constrói seu papel dentro da narrativa, mas o olhar desejoso de um homem regido pelo sistema patriarcal. Neste trecho, Paulo incutia em Lúcia um desejo de como ela “poderia ser”: “se me voltava para aquela fisionomia doce e calma, perfumada com uns longes de melancolia; se encontrava o seu olhar límpido e sereno; se via o gesto quase infantil, o sorriso meigo e a atitude singela e modesta” (ALENCAR, 1862, p. 9-10).

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moça: de pura e angelical, ela passa a transparecer a mais intensa amante que um homem desejaria ter:

Lúcia não disse mais palavra; parou no meio do aposento, defronte de mim. Era outra mulher. O rosto cândido e diáfano, que tanto me impressionou à doce claridade da lua, se transformara completamente: tinha agora uns toques ardentes e um fulgor estranho que o iluminava. Os lábios finos e delicados pareciam túmidos dos desejos que incubavam. Havia um abismo de sensualidade nas asas transparentes da narina que tremiam com o anélito do respiro curto e sibilante, e também nos fogos surdos que incendiavam a pupila negra. A suave fluidez do gesto meigo sucedeu a veemência e a energia dos movimentos. O talhe perdera a ligeira flexão que de ordinário o curvava, como uma haste delicada ao sopro das auras; […] Era uma transfiguração completa (ALENCAR, 1862, p. 16-17).

Após a descrição desta cena, notamos o quão volúvel é a construção da personagem de Lúcia sob o olhar de Paulo, que a transfigura conforme seus desejos e sentimentos durante sua narrativa.

Até este momento o rapaz não tinha mencionado a idealização de propriedade que desenvolvia sob o corpo da prostituta. Mas, ao decorrer do enredo, Paulo cria sob a Lúcia a intenção de posse, visto que começa a descobrir sentimentos de ciúmes de acordo com as atitudes profissionais da moça. Essa ideia de possuir o corpo da prostituta como uma propriedade privada e íntima faz o rapaz manipular os princípios pré-estabelecidos por Lúcia, fazendo-a acreditar que ela está prestando um desserviço à sua própria imagem perante a sociedade, novamente incutindo-lhe características, cada vez mais agressivas e possessivas, com intencionalidades de diminuí-la para que ela assumisse a culpa de algo até então que não seria culpabilizado.

A cena que segue demonstra a reação possessiva do rapaz ao agir de maneira revoltada quando vê a maneira que se dá o trabalho realizado pela prostituta que ele já havia estereotipado como pura, constatando que ela não o é:

Lúcia saltava sobre a mesa. [...] num requebro sensual, arqueou os braços e começou a imitar uma a uma as lascivas pinturas; mas a imitar com a posição, com o gesto, com a sensação do gozo voluptuoso que lhe estremecia o corpo […]. Revoltou-me tanto cinismo; ergui-me da mesa. […] Abri a porta que dava para o jardim, e saí (ALENCAR, 1862, p. 37).

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psicológica tanto no leitor, que vê a partir dos olhos de Paulo, quanto na moça prostituta que ele julga.

Paulo busca em Lúcia características estereotipadas do que ela não é, numa tentativa de impor-lhe um imaginário de como uma mulher deveria ser, de acordo com seus princípios de homem assegurado pelo sistema patriarcal e cristão. A cena citada em seguida exemplifica a violência de Paulo sobre Lúcia, numa tentativa de narrar a justificativa ao realizar tal observação sob a leitura de seu interlocutor:

Compreenda agora por que a bacante ficou fria e gelada para mim, na sua ardente lascívia. A mulher que com seus encantos cevava outros olhos que não os meus, a estátua animada de desejos que eu não havia excitado, em vez de provocar em mim a admiração, indignou-me. Tive vergonha e asco, eu, que na véspera apertara com delírio nos meus braços essa mesma cortesã, menos bela ainda e menos deslumbrante, do que agora na sua fulgurante impudência. Quando a mulher se desnuda para o prazer, os olhos do amante a vestem de um fluido que cega; quando a mulher se desnuda para a arte, a inspiração a transporta a mundos ideais, onde a matéria se depara ao hálito de Deus; quando porém a mulher se desnuda para cevar, mesmo com a vista, a concupiscência de muitos, há nisto uma profanação da beleza e da criatura humana, que não tem nome. É mais do que a prostituição: é a brutalidade da jumenta ciosa que se precipita pelo campo, mordendo os cavalos para despertar-lhes o tardo apetite. […] Devia de ser a depravação; mas a depravação como ainda não tinha encontrado, que se violentava, em vez de comprazer-se nos seus excessos (ALENCAR, 1862, p. 38).

Quando Lúcia e Paulo encontravam-se afastados de todos, ele deu início a sua narração sobre o trabalho realizado por Lúcia, manipulando-a e subjugando-a:

‘– Nem sei onde estava naquele momento! Mas, Lúcia, já que o confessas, promete-me... Nada sou para ti, as nossas relações datam de ontem; porém em nome da indignação que senti, e do interesse que me inspiras, promete-me que nunca mais farás sepromete-melhante coisa.’ […]. Sentando-se de novo ao meu lado, continuou: ‘— E o senhor não me julgará muito indigna? Não me desprezará?’, ‘— Não te desprezo; tenho pena de ti.’ Lúcia travou-me da mão e beijou-a. Esse beijo submisso fez-me mal. Afastei-me arrebatadamente. […] Estranha contradição! (ALENCAR, 1862, p. 40).

Segundo Heleieth Iara Bongiovani Saffioti (2009), que também discorre sobre a violência opressora do homem – no caso, Paulo – sobre a mulher – então, Lúcia –, num viés dominação/exploração do primeiro sobre a segunda, explica que

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sexuais a seus dominadores. Esta soma/mescla de dominação e exploração é aqui entendida como opressão (SAFFIOTI, 2009, p. 10).

Sendo assim, quando a prostituta não atende como o objeto sexual desejado, objetificado e idealizado por Paulo, como sua propriedade, exclusiva, ele faz com que a mulher se sinta culpada pela profissão que já exercia antes de se relacionarem, até que a se sinta diminuída perante ele, se culpe, se desculpe com o rapaz e, ainda, se submeta ao desejo e julgamento dele sobre si mesma, numa relação opressora de dominação/exploração. Ainda trazemos Mirla Cisne, quando discute a relação de poder do homem sobre a mulher, num viés marxista:

A propriedade, de acordo com a teoria marxiana, teria na família o seu “germe”, onde a mulher e as crianças são escravas do homem. A escravidão, ainda latente e muito rudimentar na família, é a primeira propriedade (CISNE, s/a, p. 8).

Paulo também manipula o olhar do leitor sobre a figura de Lúcia, principalmente quando tece julgamentos como “É mais do que a prostituição: é a brutalidade da jumenta ciosa que se precipita pelo campo”, ou quando tenta argumentar que o trabalho de se prostituir exercido por Lúcia “Devia de ser a depravação”, ou ainda quando diz que sente asco do beijo submisso que Lúcia lhe dá nas mãos. Neste momento da narrativa, o personagem-narrador se coloca em uma posição hierarquicamente elevada à prostituta, sente-se no direito e poder de julgá-la e submetê-la a humilhações e manipulações, uma vez que estava posto em seu contexto patriarcal de poder sobre ela, assim como descreveu Cisne e Saffioti.

Nesta situação, Paulo já havia oprimido Lúcia a ponto de fazê-la se culpar por prostituir-se e, dessa forma, ele deprostituir-senvolve sua narrativa descrevendo como Lúcia modifica prostituir-seu comportamento para agradá-lo e tê-lo perto de si, iniciando, assim, sua recondução de caráter da lasciva bruxa para a boa moça. Destarte, Paulo se sente confortável com a companhia da moça e estabelece uma situação de relacionamento com ela, visitando-a constantemente e, por fim, passando a maior parte do tempo na casa da prostituta do que em outro local. E, essa situação é tratada como abuso da figura masculina protagonista sobre a figura de Lúcia.

Em outro momento, Paulo se encontra com um amigo denominado Sá e eles conversam sobre a relação que o rapaz está desenvolvendo com a jovem prostituta.

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Sabes que terrível coisa é uma cortesã, quando lhe vem o capricho de apaixonar-se por um homem! Agarra-se a ele como os vermes, que roem o corpo dos pássaros, e não os deixam nem mesmo depois de mortos.’ (ALENCAR, 1862, p. 51).

Neste trecho da obra, podemos destacar duas situações: a primeira diz respeito à permissão social que se estabelece sobre a escolha do homem de procurar satisfazer-se por meio da prostituição de mulheres, mesmo que esta situação seja extraconjugal; a segunda é sobre a forma que outro homem – no caso, Sá – analisa a relação estabelecida entre uma prostituta e um “bom homem”, considerando a figura da prostituta como diminuída até que não seja boa ou capaz o suficiente para estar ao lado deste “homem de boa conduta”.

Tratando sobre o primeiro ponto acima descrito, utilizamos a autora Sheila Jeffreys (2004) para entendemos que a situação de prostituição,

[...] surge da subordinação das mulheres. É uma prática na qual as vítimas são mulheres e crianças expostas e os perpretadores são quase totalmente homens através da história e culturas. Essa é uma prática que explora o despoderamento de mulheres e crianças, economicamente, fisicamente e em relação com dominação masculina adulta e a submissão de mulheres e crianças. […] Em culturas ocidentais mulheres são vistas como livremente escolhendo prostituição enquanto os abusadores masculinos são invisíveis. Isso pode quase ser visto como se mulheres fossem para dentro dos quartos e fizessem a prostituição toda por si mesmas. Os homens precisam permanecer invisíveis como se o mal social de seu comportamento de prostituição para com as mulheres que eles [estabelecem] relacionamentos, fosse pra ser escondido (JEFFREYS, 2004, p. 6-7).

Então, dessa maneira é retirada a responsabilidade manipuladora, opressora e abusiva das figuras masculinas que buscam a prostituição e deslocada a responsabilidade única e exclusiva para as figuras femininas que se prostituem, assim como está disposto durante a narrativa construída por Paulo. No entanto, esta permissividade só é concedida à figura masculina que estabelece relações com as mulheres prostitutas, mas nunca das figuras femininas que estabelecem relações com homens prostituídos: a última possibilidade é considerada antiética perante a sociedade, até mesmo na atualidade.

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quando o personagem Sá teoriza sobre como é má e perversa a mente de uma cortesã apaixonada.

O assunto que segue à narrativa durante a mesma conversa de Paulo com Sá aborda a insatisfação do rapaz ao entender que era julgado pela sociedade como dependente economicamente da prostituta:

‘— Mas tens reputação a ganhar. És amante de Lúcia, há um mês; e eu te conheço, sei que estás te sacrificando. Entretanto, como Lúcia não aparece mais no teatro, não roda no carro mais rico, e já não esmaga as outras com o seu luxo; […]; sabes o que se pensa e o que se diz? Que estás sacrificando Lúcia. . . que estás vivendo à sua custa!’ […]. Sá tinha razão. Senti a impotência do homem contra a calúnia impalpável que esvoaça e zune e ferroa como a vespa, e escapa nas asas à raiva e desespero da vítima é a fábula do leão e do mosquito. […]. Saí bem decidido a pôr um termo à situação vergonhosa e humilhante em que me achava colocado. As palavras de Sá me queimavam os ouvidos. Eu vivendo à custa de Lúcia, eu que esbanjava a minha pequena fortuna por ela! Mas as calúnias tinham razão em um ponto; não exibia a minha amante como um traste de luxo, ou um manequim da moda; roubava o bem que lhes pertencia, visto que não era milionário para ter o direito de possuí-lo exclusivamente (ALENCAR, 1862, p. 60).

A fim de entendermos, brevemente, a relação de trabalho sob a divisão de gênero binário1 utilizaremos a obra O contrato sexual, de Carole Paterman, publicada em 1993. Nesta obra a autora entende o contrato social, levando em consideração o contrato sexual, que estabelece a permissão ao homem e exclui a opção de escolha participativa da mulher, dentre os acontecimentos sociais. Traremos, deste modo, a observação de como se dão os contratos sexuais – partindo do fato de que, desde o período primitivista, a mulher é inferiorizada conscientemente pelo patriarcado, transferindo apenas à figura masculina o status de ‘indivíduo’ – e que, afirmativamente, regem as relações de trabalho entre homens e mulheres, segundo Paterman (1993):

No estado natural “todos os homens nascem livres” e são iguais entre si, são “indivíduos”. Esse pressuposto da doutrina do contrato cria um sério problema: como pode ser legítimo, nesse estado, o governo de um homem por outro; como podem existir os direitos políticos? Somente uma resposta é possível sem negar o pressuposto inicial da liberdade e da igualdade. [...] Mas as mulheres não nascem livres, elas não têm liberdade natural. As descrições clássicas do estado natural também contêm um tipo de sujeição - entre homens e mulheres. Com exceção de Hobbes, os teóricos clássicos argumentam que as mulheres naturalmente não têm os atributos e as

1 Entende-se por gênero binário homem e mulher, exclusivamente, ignorando os demais gêneros a fim de

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capacidades dos “indivíduos”. A diferença sexual é uma diferença política; a diferença sexual é a diferença entre a liberdade e sujeição. As mulheres não participam do contrato original através do qual os homens transformam sua liberdade natural na segurança da liberdade cível. As mulheres são o objeto do contrato. O contrato sexual é o meio pelo qual os homens transformam seu direito natural sobre as mulheres na segurança do direito patriarcal civil (PATERMAN, 1993, p. 21).

Dessa forma, entendemos que o personagem Paulo não se sujeitaria a depender de Lúcia, visto que era assegurado pelo contrato sexual estabelecido, conforme explicou Paterman, acima. Postas as relações veladas entre homem e mulher regidas pela segurança do patriarcalismo e, associadas às relações de trabalho de uma prostituta, Lúcia, e a indignação de Paulo por não ser o maior provedor financeiro desta relação, retornamos à ideia na qual Paulo argumenta novamente sobre a idealização estereotipada da mulher, que Lúcia deveria ser para encaixar-se socialmente, como vemos a seguir:

Às vezes lia para ela ouvir algum romance, ou a Bíblia, que era o seu livro favorito. Lúcia conservava de tempos passados o hábito da leitura e do estudo; raro era o dia em que não se distraía uma hora pelo menos com o primeiro livro que lhe caía nas mãos (ALENCAR, 1862, p. 56).

Este estereótipo de que a mulher deveria passar seu tempo com bordados e afazeres da casa que era demasiadamente predominante no contexto da publicação dessa obra de Alencar, é exemplificado quando o personagem-narrador se refere com admiração aos afazeres de Lúcia, novamente na tentativa de incutir à personagem feminina uma mulher pura, de áurea virginizada, com perfil de mãe e esposa, passível de mudanças pela leitura religiosa cristã, ou pelo seu “instinto de feminilidade”, comum pelo pensamento da época, vezes presente na atualidade.

Finalmente, temos a personagem Lúcia falando sobre si mesma, em um diálogo transcrito nesta carta que Paulo escreve ao interlocutor. Este é o único momento em que a personagem Lúcia irrita-se com as imposições de Paulo e, também, é quando fica estabelecido que as vontades da personalidade feminina aparentam pirraça, uma vez que o rapaz aponta que não pode fazer “nada” em relação ao que a moça lhe diz.

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ambientados na narrativa, compreendemos que não existe a necessidade de separar uma vontade da figura feminina de outra – no entanto, fica explícito na narrativa de Paulo que existe a possibilidade de uma personalidade santificada ou prostituída, categorizada como boa, ou ruim.

É chegado o momento em que Lúcia se transforma e deixa sua profissão para atuar um papel nunca antes apresentado nessa narrativa: ela se torna uma “boa moça do lar”, que exerceria sem discussões o contrato sexual estabelecido pelo patriarcado:

Quando voltei, a minha casa de homem solteiro tinha sofrido uma alteração completa. Os vidros [...] brilhavam na sua límpida transparência entre as bambinelas de cassa que um armador acabava de pregar. […] Igual revolução no meu quarto de vestir. [...] Mas eu tinha corrido toda a casa, notando essa transformação repentina, sem descobrir a autora; […] Figure uma moça vestida de ricas sedas, com as mangas enroladas e a saia arregaçada e atada em nó sobre o meio da crinolina; com uma toalha passada pelo pescoço à guisa de avental; vermelha pelo calor e reflexo do fogo, batendo gemas de ovos para fazer não sei que doce. Repito: era preciso ter a faceirice e gentileza daquela mulher, para nessa posição e no meio da moldura de paredes enfumaçadas, obrigar que a admirassem ainda (ALENCAR, 1862, p. 98). Agora, livre dos “crimes e pecados” que exercia em sua profissão, sob o ponto de vista de Paulo, Lúcia era uma verdadeira mulher: limpava, organizava, zelava, cozinhava e ainda se vestia humildemente. A antiga prostituta finalmente havia se tornado o que a sociedade exigia para que fosse “merecedora” de um “bom homem” como era considerado Paulo.

Depois desta transformação de Lúcia, ela revela a Paulo seus motivos e todas as circunstâncias de ter se prostituído por longos anos. Depois de muito sofrer, sendo renegada pelo pai, decidiu trocar seu verdadeiro nome – Maria da Glória – por Lúcia e, após dada a transfiguração de uma prostituta para uma “boa moça”, ela queria ser chamada de Maria – o que, sugerimos ser uma alusão à pureza da religiosidade cristã, categorizando a ressignificação do perfil de Lúcia.

Conclusão

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uma leitura crítica do modo de vida, contexto e entendimento de mundo descritos pelo personagem-narrador, por meio de discussões atuais, de forma a realizar contrapontos.

Destarte, salientamos que nosso intuito parte da (re)leitura desta obra em situações desses ponto-chaves comparando e discutindo tais recortes com escritas feministas – ou que abordam as relações sociais entre gêneros – e, em momento algum, nos dispusemos a estabelecer ou incutir quais as características devam possuir cada modo de vida adotado, seja nos séculos passados ou na atualidade, mas sim (re)lermos e (re)interpretarmos momentos e narrativas que perpetuam a consciência coletiva acerca da estereotipação do feminino, da feminilidade e da mulher. Trazemos, também, como ressalva, que não estipulamos pretenções sobre uma análise teórica literária formal sobre a obra, nem sobre o autor.

Assim, com o desenvolver da análise deste romance, percebemos que a figura do narrador, que também é o personagem masculino principal da obra, não manipula apenas a figura feminina, mas também o leitor, que é tomado como interlocutor, pelo uso demasiado de sentimentalismos e intensas justificativas utilizadas nas argumentações durante a narrativa.

Portanto, recortamos pontos-chave da narrativa de Alencar para associa-las às nossas hipóteses por meio de obras feministas, também de autoria feminina, e notamos as inúmeras marcações sociais estabelecidas pelo patriarcado machista, desde do século de 1800 até a atualidade, aludindo também à obra O contrato sexual, de Paterman.

Por fim, compreendemos que a consciência e a personalidade expostas pelo jovem narrador-personagem aqui discutidos são, ainda, relações presentes em nosso sistema sociocultural contemporâneo ocidental que, duramente, são criticados por diversos grupos de resistência e militância, para além do feminismo. Esperamos, assim, termos contribuído para as reflexões acerca do papel feminino desenvolvido e desempenhado na sociedade – e literatura – brasileira, tanto histórica quanto atual.

Referências:

ALENCAR, José de. Lucíola. São Paulo: Ática, 1988.

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LOPONTE, Luciana Gruppelli. Pedagogias visuais do feminino: arte, imagens e docência. Currículo sem Fronteiras, v.8, n.2, p.148-164, jul/dez 2008.

PATERMAN, Carole. O contrato sexual. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra S. A., 1993. SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Gênero, patriarcado, violência. 2 ed. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, jan 2011.

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