• Nenhum resultado encontrado

Retratos do Brasil e a relação de co-originalidade entre a esfera pública e privada após o advento da Constituição Federal de 1988

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Retratos do Brasil e a relação de co-originalidade entre a esfera pública e privada após o advento da Constituição Federal de 1988"

Copied!
21
0
0

Texto

(1)

RETRATOS DO BRASIL E A RELAÇÃO DE

CO-ORIGINARIEDADE ENTRE A ESFERA

PÚBLICA E PRIVADA APÓS O ADVENTO DA

CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

PORTRAITS OF BRAZIL AND THE CO-ORIGINARIEDADE

RELATIONSHIP BETWEEN THE PUBLIC SPHERE

AND PRIVATE AFTER THE CONSTITUTION

OF THE ADVENT OF FEDERAL 1988

CLARICE PAIVA MORAIS1

Sumário: 1.Introdução. 2.A contribuição da literatura brasileira na

construção dos Retratos do Brasil 3. A Evolução do Estado Brasileiro nos paradigmas liberal, social e democrático de direito. 4. A relação de

co-originariedade entre a autonomia pública e privada 5. Apontamentos finais. Referências bibliográficas.

RESUMO

O trabalho tem como objeto o estudo do conflito entre a esfera pública e privada nos modelos de Estado liberal e social de direito e a relação de co-originariedade que se instaurou com o advento da Constituição Federal de 1988 e o modelo de estado democrático de direito. Tal conflito ganha destaque na literatura brasileira com as obras de grandes autores modernos, com destaque para Sérgio Buarque de Holanda e o título “Raízes do Brasil”, que expressa de forma crítica, a história da sociedade brasileira, após a abolição da escravatura e da mudança estrutural, ocorrida no século XIX. Palavras-chave: Brasil. Autonomia privada. Espaço público. Democracia.

ABSTRACT

The work has as object the study of the conflict between the public and private sphere in the models of liberal and social state of law and co-originariedade relationship that has been established with the advent of the

1 Mestre em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e

doutoranda pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professora de Direito Administrativo e Constitucional nas faculdades UNA-Betim e Promove Belo Horizonte. Advogada.

(2)

1988 Federal Constitution and the democratic state model of law. This conflict is highlighted in Brazilian literature with the works of great modern writers, especially Sérgio Buarque de Holanda and the title “Roots of Brazil” that expresses critically the history of Brazilian society after the abolition of slavery and structural change occurred in the nineteenth century.

Key words: Brazil. Private autonomy. Public place. Democracy.

1. INTRODUÇÃO

O paradigma liberal procurou legitimar o direito a partir de concepções individuais subjetivas. Em contrapartida, o paradigma social buscou na compreensão do direito objetivo, imposto pelo Estado, a sua legitimidade.

O paradigma democrático, a partir da entrada em vigor da Constituição de 1988, legitima-se com a construção de uma sociedade plural, democrática e participativa, através de procedimentos institucionalizados de diálogo, nos discursos de aplicação e justificação, equacionando os interesses individuais (direitos humanos) e a soberania popular.

A relação de co-originariedade entre a autonomia pública e privada marca o paradigma democrático, pautado numa relação dialógica entre interesses individuais e coletivos, não havendo prevalência de uns sobre outros, como no modelo estatal liberal ou social.

Tal relação, a despeito de existir, conforme a teoria discursiva do direito proposta por Habermas (1997), encontra, atualmente, dificuldade de se efetivar, tendo em vista a herança histórica do Brasil.

A história presente na literatura brasileira, que possui forte influência sobre o direito e o papel dos juristas, mostra que o espaço privado, o individualismo, o patriarcalismo, o nepotismo e todas as concepções presentes em espaços privados foram transplantadas para os espaços públicos da mesma forma que ocorreu o êxodo urbano em meandros do século XIX, após o fim da escravidão e a proclamação da república.

Em que pese a revolução industrial, os métodos tecnológicos e científicos e os movimentos sociais e feministas, a sociedade brasileira segue mantendo suas raízes liberais, de prevalência do espaço privado sobre o espaço público, portanto, não concretizando a verdadeira democracia participativa.

A partir da construção do pensamento de Dworkin em que se dá pela ideia de romance em cadeia, a literatura pode ser encarada de grande valia para a construção de ideias e teorias científicas no âmbito jurídico, o que refletem sensíveis à colaboração literária.

(3)

Assim, o trabalho tem por escopo principal retratar a incongruência de uma sociedade que se intitula democrática, mas que por raízes históricas, insiste em manter características liberais, possuindo, como obra de referência, “Raízes do Brasil” de Sérgio Buarque de Holanda.

2. A CONTRIBUIÇÃO DA LITERATURA BRASILEIRA NA

CONSTRUÇÃO DOS RETRATOS DO BRASIL

A literatura brasileira contém um rico acervo para expressar os retratos do Brasil. Segundo Baracho Júnior:

A tradição dos retratos do Brasil tem uma primeira referência pelas pinturas, mas a visão do interior permitiu a formação de um imaginário sobre a nação com reflexos sobre diversos espaços da cultura e das ciências. (BARACHO JÚNIOR, 2009, p. 159)

Ao longo dos anos, contada de forma ora linear, a crítica ou a acrítica, contribuiu sobremaneira para construção da identidade do povo brasileiro: na sua cultura, mentalidade, desenvolvimento e peculiaridades. Autores como Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior, Euclides da Cunha, dentre outros, foram importantes escritores a contribuírem para construção da história do Brasil2.

Após a revolução de 1930, Sérgio Buarque de Holanda escreve, por uma análise crítica, a qual não foi abafada pela instauração do estado Novo em 1937, a obra “Raízes do Brasil”. Considerado um radical democrático, o autor nasceu em 1902. O autor era filho de Christo vam Buarque de Holanda e Heloísa Gonçalves Moreira Buarque de Holanda. Estudou em São Paulo e formou-se em Ciências Jurídicas e Sociais. Foi jornalista, professor e crítico literário.

Sua obra foi de grande importância para a construção dos retratos da sociedade brasileira, principalmente, no que diz respeito à dificuldade de separação entre o espaço público e privado. A primeira edição da obra sucedeu em 1936, no fim da República Velha e a Revolução de 1930, que culminou com a instauração do governo provisório de Getúlio Vargas.

2 Cf. Willi Bolle: “Os retratos do Brasil escritos no século XX estendem-se desde o livro

fundador Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha, até os últimos estudos de Darcy Ribeiro, passando pelas obras já clássicas de Gilberto Freyre (1933), Sérgio Buarque de Holanda (1936) e Caio Prado Jr., cuja Formação do Brasil contemporâneo (1942) foi seguida de uma série de “ensaios de formação”, da autoria de Raymundo Faoro (1958), Celso Furtado (1958), Antônio Cãndido (1959) e, mais recentemente, Darcy Ribeiro (1995), respectivamente sobre a política, a economia, a cultura literária e a etnologia do país.” (BOLLE, 2004, p. 23-24).

(4)

A Revolução de 1930 objetivava acabar com as oligarquias que, até então, estavam no poder e a fraude eleitoral institucionalizada. Dentre os fatores que motivaram nesta revolução podem-se destacar: a grave crise econômica, a grande depressão de 1929, a ascensão da pequena burguesia ao lado do surgimento de uma classe operária descontente com a revolução industrial estimulada pela Primeira Guerra Mundial e o tenentismo.

A obra representa uma mudança de paradigma na literatura brasileira, até então, marcada por autores naturalistas que trabalhavam com narrativas descritivas de aspectos biológicos, evolucionistas, sexuais e científicos, todos amorfos com a veracidade brasileira existente à época no Brasil. A exemplo de Euclides da Cunha, em “Os Sertões” (1902), foi preciso destacar aspectos culturais, sociais, psicológicos e históricos da realidade brasileira, numa perspectiva de reformulação do contexto social, conforme o passado.

A chegada da família real no Brasil em 1808, tendo em vista a ocupação das terras portuguesas pelas tropas napoleônicas, representou uma mudança na sociedade brasileira. O Brasil, até então, colônia, passa a ser designado de Reino Unido a Portugal e Algarves, tornando-se uma verdadeira “Metrópole”3.

Após a independência do Brasil em 1822 e a elaboração da Cons tituição monárquica de 1824, provocada pelo retorno do Rei Dom João VI a Lisboa, em abril 1821 e a intensificação dos movimentos liberais pela independência, o país ganha nova roupagem.

A economia basicamente agrária e escravocrata sustentava uma sociedade rural, oligárquica, patriarcalista e politicamente dominada pelos senhores feudais que se expandia em torno dos engenhos4 e da religiosidade5.

3 Portugal pela localização pela busca de novas terras – técnicas de navegação aqui chegou e se

instalou, impondo os portugueses suas características, sua cultura, dizimando e escravizando os índios. Cf. HOLANDA, (2004): “Procurando recriar aqui o meio de sua origem, fizeram-no com uma facilidade que ainda não encontrou, talvez, segundo exemplo na história. Onde lhes faltasse o pão de trigo, aprendiam a comer o da terra, e com tal requinte, que, afirmava Gabriel Soares – a gente de tratamento só consumia farinha de mandioca fresca, feita no dia. Habituaram-se também a dormir em redes, à maneira dos índios. Alguns, como Vasco Coutinho, o donatário do Espírito Santo, iam ao ponto de beber e mascar fumo, segundo nos referem testemunhos do tempo. Aos índios tomaram ainda instrumentos de caça e pesca, embarcações de casca ou tronco escavado, que singravam os rios e águas do litoral, o modo de cultivar a terra ateando primeiramente fogo aos matos.” (HOLANDA, 2004, p. 47).

4 “Nos domínios rurais, a autoridade do proprietário de terras não sofria réplica. Tudo se fazia

consoante sua vontade, muitas vezes caprichosa e despótica. O engenho constituía um organismo completo e que, tanto quanto possível, se bastava a si mesmo. Tinha capela

(5)

Conforme Holanda (2004), a circunstância de não se achar a Europa totalmente industrializada, fez com que prosperasse no Brasil a lavoura nos latifúndios. A Europa carecia de produtos naturais dos climas quentes, o que tornou possível a monocultura e fomentou a expansão do sistema agrário.

A abundância de terras férteis e pouco exploradas fez com que a grande propriedade rural se tornasse a verdadeira unidade de produção e do trabalho, frustradas as tentativas de utilização dos índios, pois ficou a cargo dos escravos africanos.

Os antigos moradores de terras colaboravam na indústria extrativa, na caça, pesca e em determinados ofícios, mas não eram bons como os escravos para exploração dos canaviais.

O povo indígena, segundo Holanda (2004), guardava algumas características marcantes como ociosidade, aversão pelo esforço disciplinado, imprevidência e intemperança, gosto acentuado por ativida des predatórias e não produtivas6.

Em 4 de setembro de 1850, entrou em vigor a Lei Eusébio de Queiroz, de autoria do Ministro Eusébio de Queiroz, que, embasada no Bill Aberdeen7 inglês, proibiu o tráfico interatlântico de escravos, provocando verdadeira

mudança da sociedade brasileira.

onde se rezavam as missas. Tinha escola de primeiras letras, onde o padre mestre desmanava meninos. A alimentação diária dos moradores, e aquela com que se recebiam os hóspedes, frequentemente agasalhados, procedia das plantações, das criações, da caça, da pesca proporcionadas no próprio lugar. Também no lugar montavam-se as serrarias, de onde saíam acabados o mobiliário, os apetrechos do engenho, além da madeira para as casas: a obra dessas serrarias chamou a atenção do viajante Tollenare, pela sua execução perfeita”. Hoje mesmo, em certas regiões, particularmente no Nordeste, apontam-se, segundo o sr. Gilberto Freyre, as “cômodas, bancos, armários, que são obra de engenho, revelando-o no não sei quê de rústico de sua consistência e no seu ar distintamente heráldico.” (HOLANDA, 2004, p. 80).

5 João Guimarães Rosa descreve na obra Grande Sertão Veredas: “O que mais penso, testo e

explico: todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral. Isso é que é a salvação-da-alma… Muita religião, seu moço!Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio…”(ROSA, 2015, p. 16).

6 Sobre a população indígena, Darcy Ribeiro (2014) destaca que ocorreu a denominada

transfiguração étnica psicocultural, por se deixarem morrer por nãodesejarem a vida que lhe foi imposta, oferecida. “Transfiguração étnica é o processo através do qual os povos, enquanto entidades culturais, nascem, se transformam e morrem.” ( Ribeiro, 2014, p. 257).

7 Lei que autorizava os ingleses a prender qualquer navio suspeito de transportar escravos no

(6)

Entre 1851 a 1855, o Brasil presenciou uma enorme organização e expansão do crédito bancário, até então inexistente, desde a liquidação do primeiro Banco do Brasil, com consequente estímulo à iniciativa popular. Ao lado disso, houve uma abreviação e incremento dos negócios, provocada pela rapidez maior na circulação das notícias, devido ao estabelecimento de meios de transporte modernos entre centros de produção agrária e praças comerciais do império.

Em 1851, funda-se o segundo Banco do Brasil; em 1852, inaugura-se a primeira linha telegráfica na cidade do Rio de Janeiro; em 1853 cria-se o Banco Rural e hipotecário, e, em 1854, abre-se, a tráfego, a primeira linha de estradas de ferro do país; 14,5 Km entre porto de Mauá e estação Fragoso8.

O fluxo de capital disponível o qual era para importação dos negros tomou rumos novos. A fundação do Banco do Brasil em 1851 é um exemplo. Visconde de Mauá (banqueiro, industrial, abolicionista), um dos promotores da iniciativa, descreve o momento, após 30 anos:

Acompanhei com vivo interesse a solução desse grave problema; compreendi que o contrabando não podia reergue-se, desde que a vontade nacional estava ao lado do ministério que decretava a supressão do tráfico. Reunir os capitais que se viam repentinamente deslocados de ilícito comércio e fazê-los convergir a um centro onde pudessem ir alimentar as forças produtivas do país foi o pensamento que me surgiu na mente, ao ter a certeza de que aquele fato era irrevogável. (HOLANDA, 2004, p. 76- 77).

Em 1888, foi assinada a Lei Áurea e, em 1889, houve a proclamação da República, sendo promulgada em 1891 a primeira constituição republicana brasileira, com características de ser laica, prever o federalismo como forma de Estado e o presidencialismo como forma de governo. Urge destacar, nas palavras de Baracho Júnior que:

A nacionalidade no Brasil também começa a ser redefinida com o final da escravidão em 1988 e a proclamação da República em 1889. Entretanto, tais momentos fundadores ficaram em grande medida carentes de um poder burocrático que lhe garantisse efetividade; as proclamações permaneceram restritas ao plano simbólico e pouco contribuíram para a transformação da sociedade. ( BARACHO JÚNIOR, 2009, p. 160)

Surge uma era comercial, sem precedentes na história brasileira e determinada pelo fim do tráfico de escravos. A sociedade, até então,

8 A segunda que vai ligar a Corte à capital da província de São Paulo começa a ser construída

(7)

agrícola, aristocrática, patriarcalista, individualista e personalista torna-se citadina, burocrática e cosmopolita. As cidades, até então, habitadas por mecânicos, funcionários da administração local e mercadores, passaram a ser ocupadas pelos negros9 e proprietários rurais.

No entanto, a mudança da sociedade eminentemente agrícola para as cidades levou consigo toda tradição secular, aristocrática e patriarcalista. Segundo Holanda (2004):

(…) as facções são constituídas à semelhança das famílias, precisamente das famílias de estilo patriarcal, onde os vínculos biológicos e afetivos se unem ao chefe os descendentes, colaterais e afins, além da famulagem e dos agregados de toda sorte, hão de preponderar sobre as demais considerações. Formam assim, como um todo indivisível, cujos membros se acham associados, uns aos outros, por sentimentos e deveres, nunca por interesses ou ideias. (HOLANDA, 2004, P. 79).

As pessoas não viviam em comum, mas em particular. A casa de cada habitante era uma verdadeira república. As famílias organizavam-se segundo o velho direito romano canônico, mantidas na península ibérica, através de inúmeras gerações como base e centro de toda organização10.

Família derivada de famulus acha-se vinculada à ideia de escravidão. Os filhos e as mulheres subordinavam-se ao patriarca.

O núcleo familiar, sempre imerso em si, não sofria abalos, não tolerava nenhuma pressão de fora. Era imune a qualquer restrição. A tirania do pátrio poder era ilimitada11.

9 Segundo Ribeiro (2013): “A abolição, dando alguma oportunidade de ir e vir aos negros,

encheu as cidades do Rio e da Bahia de núcleos chamados africanos, que se desdobraram nas favelas de agora.” (RIBEIRO, 2013, p. 194)

10 “Nos domínios rurais é o tipo de família organizada segundo as normas clássicas do velho

direito romano-canônico, mantidas na península Ibérica através das inúmeras gerações, que prevalece como base o centro de toda organização. Os escravos das plantações e das casas, e não somente escravos, como os agregados, dilatam o círculo familiar e, com ele, a autoridade imensa do pater-familias. Esse núcleo bem característico em tudo se comporta como seu modelo da Antiguidade, em que a própria palavra “família”, derivada de famulus, se acha estreitamente vinculada à ideia de escravidão, e em que mesmo os filhos são apenas os membros livres do vasto corpo, inteiramente subordinado ao patriarca, os liberi.” (HOLANDA, 2004, p. 81).

11 Cf. Holanda (2004): “ Nesse ambiente, o pátrio poder é virtualmente ilimitado e poucos

freios existem para sua tirania. Não são raros os casos como o de um Bernardo Vieira de Melo, que, suspeitando a nora de adultério, condena-a à morte em conselho de família e manda executar a sentença, sem que a Justiça dê um único passo no sentido de impedir o homicídio ou de castigar o culpado, a despeito de toda a publicidade que deu ao fato o próprio criminoso. (HOLANDA, 2004, p. 82).

(8)

O quadro familiar tão poderoso que sua sombra persegue os indivíduos mesmo fora do recinto doméstico. A entidade privada precede sempre, neles, a entidade pública. A nostalgia dessa organização compacta, única e intransferível, onde prevalecem necessariamente as preferências fundadas em laços afetivos, não podia deixar de marcar nossa sociedade, nossa vida pública, todas as nossas atividades. Representando, como já se notou acima, o único setor onde o princípio de autoridade é indisputado, a família colonial fornecia a ideia mais normal do poder, da respeitabilidade, da obediência e da coesão entre os homens. O resultado era predominarem, em toda a vida social, sentimentos próprios à comunidade doméstica, naturalmente particularista e antipolítica, uma invasão do público pelo privado, do Estado pela família ( HOLANDA, 2004, p. 82).

Nessa esteira, a prevalência do direito privado sobre o público sempre foi uma característica do modelo liberal e, neste contexto pode-se destacar a dificuldade de se estabelecer a relação de co-originariedade entre a autonomia pública e privada no cenário brasileiro atual.

Ora, o Estado não pode ser uma extensão do ambiente familiar, permitindo a corrupção, o nepotismo, o patrimonialismo, integrando vontades particulares. Família e Estado pertencem a ordens diferentes, ocorrendo entre ambos, inclusive, uma relação de antagonismo e não de complementariedade. “Só pela transgressão da ordem doméstica e familiar é que nasce o Estado e que o simples indivíduo se faz cidadão, contribuinte, eleitor, elegível, recrutável e responsável, ante as leis da Cidade” (HOLANDA, 2004, p. 141).

No intuito de melhor elucidar a evolução histórica do Brasil, à luz de suas raízes, contada, principalmente, por Holanda (2004), para se entender a necessidade de evolução cultural e psicológica de uma sociedade que insiste em manter inseparáveis os espaços público e privado, será abordado a evolução dos Estados nos paradigmas liberal, social e democrático, conforme a entrada em vigor das constituições brasileiras.

3. A EVOLUÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

NOS PARADIGMAS LIBERAL, SOCIAL E

DEMOCRÁTICO DE DIREITO.

A evolução dos Estados modernos permite-nos afirmar que a noção do direito e as teorias que buscam encontrar sua legitimidade não se consubstanciam em compreensões metafísicas tradicionais como no paradigma liberal de Estado. Tampouco, pode-se compreender o direito a partir da construção do Estado e da ideia de soberania popular. O direito

(9)

legitima-se, ao contrário, através da relação de equiprimordialidade entre a autonomia privada e a soberania popular, a partir da teoria discursiva12.

No paradigma liberal, surge, com a ascensão da burguesia e a superação do absolutismo, o movimento constitucionalista dos séculos XVII e XVIII e a formação de uma sociedade embasada na sistematização das leis e na ideia de legitimidade do direito a partir da compreensão dos direitos subjetivos e da moral convencional. Filósofos como Thomas Hobbes, Jean-Jaques Rosseuau e Imanuel Kant, contribuíram para a compreensão das ideias de soberania popular, propriedade e contrato social, decisivas para a construção da noção do direito alicerçada não mais nos costumes, na religião, nas tradições, mas, no direito consubstanciado nas concepções individuais do sujeito.

O liberalismo trouxe ainda como características a separação dos poderes em legislativo, executivo e judiciário, a fim de coibir o absolutismo monárquico.

Assevera Faria (2007):

A transformação do Estado absolutista em Estado de Direito verificou-se, como visto antes, com a implantação da teoria da divisão dos poderes do Estado: Legislativo, Executivo e Judiciário, desenvolvida por Monstesquieu. A França foi um dos primeiros países a adotar a tripartição de poderes, antecedida pelos Estados Unidos da América do Norte. Hoje, a tripartição, é adotada na maioria dos Estados modernos (FARIA, 2007, p. 40).

A realidade política (Estado) surgiu por volta de 1513. Neste ano, Maquiavel escreveu o livro “O Príncipe”. A partir da ideia de que os Estados ou são principados ou repúblicas aparecem os denominados Estados Modernos. Aristóteles, na antiguidade grega, na obra “Política”, desenvolveu a ideia de que existem três funções distintas exercidas pelo soberano: a edição de normas gerais, a aplicação das normas gerais e o julgamento. Tal teoria inspirou Montesquieu que inova no “O Espírito das leis” e liga tais funções a três órgãos distintos autônomos e independentes:

12 Cf. Habermas (1997): Direitos subjetivos não estão referidos, de acordo com seu conceito, a

indivíduos atomizados e alienados, que se entesam possessivamente uns contra os outros. Como elementos da ordem jurídica, eles pressupõe a colaboração de sujeitos que se reconhecem reciprocamente em seus direitos e deveres, reciprocamente referidos uns aos outros, como membros livres e iguais do direito. Tal reconhecimento recíproco é constitutivo para uma ordem jurídica, da qual é possível extrair direitos subjetivos reclamáveis judicialmente. Neste sentido, os direitos subjetivos são co-originários com o direito objetivo; pois este resulta dos direitos que os sujeitos se atribuem reciprocamente. (HABERMAS, 1997, p.121).

(10)

o Poder Legislativo, Executivo e Judiciário. Tal teoria impulsiona, decisivamente, a formação do Direito Administrativo13.

O abstencionismo estatal possibilitou o surgimento de uma economia capitalista monopolista e oligopolista que inaugurou tempos de desigualdades sociais a demandar a construção de um novo paradigma estatal com supedâneo não só nos valores liberais formais, mas em valores sociais materiais. No Brasil, as constituições liberais foram de 1824, imperial e a de 1891, republicana.

A partir do século XIX, tem-se a construção de um novo paradigma de Estado no mundo moderno.

A revolução industrial, os movimentos sociais, a intervenção do Estado na ordem social e econômica, ampliando o conceito de ordem pública e poder de polícia, criaram o modelo ou paradigma social. Surgem os direitos sociais ou de segunda dimensão e, para além da ideia de sistematização do direito, o paradigma social traz a prevalência do Poder Executivo e a autonomia do direito administrativo. O princípio da igualdade material assume papel central, ao lado do surgimento de princípios como a função social da propriedade, supremacia e indisponibilidade do interesse público. Em verdade, interesse público pode ser entendido, neste momento, como o interesse da coletividade, ou seja, a soma dos interesses individuais. O direito, sob essa ótica, encontra legitimidade na ideia de soberania popular, ou seja, nos direitos objetivos, afastados da ideia de moral ou subjetividade. O direito posto, imposto pelo Estado, formado por representantes da coletividade (governantes) legitima a ordem jurídica. O assistencialismo estatal e as ideias de prevalência do Poder Executivo são características do paradigma social que busca garantir a igualdade material dos administrados, suplantando o fosso social entre ricos e pobres. A Administração Pública torna-se burocratizada, ineficiente e agiganta-se num contexto de desigualdade crescente. Sob tal perspectiva, o Estado legitima-se através do assistencialismo, da ampliação do poder de polícia e do conceito de ordem pública, prevalecendo a noção de soberania popular calcada no interesse da maioria14.

13 A repartição dos poderes ensejou a especialização das atividades de governo,

proporcionando independência aos órgãos que a realizavam. Cf. Medauar (2008), “(…)as ideias relativas ao Estado de direito que emergiam nas primeiras décadas do século XIX tornaram-se fator propício para a formação do direito administrativo. O mesmo se pode dizer quanto à teoria da separação de poderes: a atribuição da função executiva a um específico setor estatal facilitou a formação de um direito da Administração, com individualidade própria”. (MEDAUAR, 2008, p. 33).

14 Léon Duguit, Carl Schmitt e Ernst Forsthoff foram importantes pensadores do modelo de

(11)

No Brasil, o fim da escravidão em 1888, levou ao êxodo urbano. Uma sociedade que, desde a chegada da corte portuguesa (1808), tinha como características principais o ruralismo, a economia escravocrata, a religiosidade, o domínio das oligarquias e o patriarcalismo, torna-se uma sociedade urbana, citadina, cosmopolita, burocrática, impessoal, burguesa, embasada na economia industrial. Os principais cargos públicos foram ocupados pelos senhores dos engenhos que não sabiam separar a esfera pública da esfera particular.

Esteriotipada por longos anos na vida rural, a mentalidade da casa grande invadiu assim as cidades e conquistou todas as profissões, sem exclusão das mais humildes. É bem típico o caso testemunhado por John Luccok, no Rio de Janeiro, do simples oficial de carpintaria que se vestia à maneira de fidalgo, com tricórnio e sapatos de fivela, e se recusava a usar as próprias mãos para carregar as ferramentas de seu ofício, preferindo entregá-las a um preto” (HOLANDA, 2004, p. 87).

Nas palavras de Max Weber, o funcionário “patrimonialista e burocrático” caracteriza a sociedade que se consolida no fim do século XIX e início do século XX e que se enraizou na estruturação dos órgãos e entidades públicas.

O modelo estatal social15 que perdurou durante muito tempo, não foi capaz de manter a estrutura estatal prestacional que lhe sustentava. O intervencionismo e a burocratização exacerbada impunham ao Estado recursos que, escassos, em meio ao contexto social, fizeram nascer um novo modelo de Estado, pluralista, democrático e que consagrou o princípio da cidadania e da dignidade da pessoa humana.

Os embargos dos países membros da OPEP e Golfo Pérsico de dis tribuição do petróleo para EUA e Europa, desencadeando uma crise mundial, o fim da Segunda Guerra Mundial e a reflexão dos abusos perpetrados pelos nazistas, nos campos de concentração pela comunidade científica, além de movimentos sociais como o feminismo e os movimentos proletários são fatores que contribuíram para o surgimento do modelo democrático de Estado.

Surgem os direitos de terceira dimensão, embasados no princípio da solidariedade, denominados direitos difusos. Tais direitos transcendem aos direitos individuais e sociais e protegem pessoas ligadas por situações

subjetivos, enfatizando o direito consubstanciado no direito objetivo, posto. No Brasil, as principais constituições ditas sociais foram as de 1934, 1937 (autocrática e ao mesmo tempo social) e 1946.

15 As Constituições de 1934, 1937 e 1946 são consideradas sociais. Sendo a de 1937 social e ao

(12)

fáticas e indivisíveis, como o direito ambiental, o direito dos idosos, o direito do consumidor e da criança e adolescentes.

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 inaugurou o modelo de Estado democrático de direito. Uma constituição aberta, plural, garantidora de direitos fundamentais sociais e democráticos, além de possuir uma plêiade de garantias dos direitos por ela consagrados, dentre os quais a cidadania e a participação.

4. A RELAÇÃO DE CO-ORIGINARIEDADE ENTRE A

AUTONOMIA PÚBLICA E PRIVADA

A teoria discursiva do Direito, proposta por Jürgen Habermas, busca legitimar o Direito a partir da relação de co-originariedade entre a autonomia privada e a soberania popular. Através de procedimentos institucionalizados racionalmente, em que todos os membros da sociedade podem participar em igualdade de condições desse discurso, sendo ao mesmo tempo autores e destinatários das normas jurídicas, através de um consenso, estabelecido numa comunidade plural de princípios que as pessoas se reconhecem iguais e numa relação de reciprocidade, o Direito se legitima e todos os institutos jurídicos ganham novos contornos para efetivar o pluralismo e as várias concepções de vida digna.

A razão comunicativa ou comunicacional (GUSTIN, 1999 a, p. 209) é aquela que promove a inclusão de um sujeito emancipado que se insere socialmente por meio de múltiplas formas de participação nas esferas públicas e privadas de tomada de decisão. Ele é um sujeito complexo e múltiplo. De um lado, ele é a soma de interesses e de papéis diversificados, muitas vezes dicotômicos: pai/filho, trabalhador/patrão, professor/aluno, cidadão, dentre outros que se diversificam em termos de habilidade, qualificações, capacidades e responsabilidades. São múltiplas suas relações discursivas: grupos diferentes de pessoas interagem com sua identidade heterogênea. Finalmente, esse ser complexo comunica-se por meio de mais uma linguagem moral, ou seja, ele estrutura sua individualidade por intermédio de valores e princípios diversificados. Uma das linguagens, por certo, é a do Direito, da Ciência do Direito e da justiça, que permite a inclusão desse ser em seu meio social a partir de nova compreensão do mundo e de si mesmo pelos novos patamares científicos obtidos pelo homem.” (GUSTIN, Miracy B. S. E DIAS, Maria Tereza Fonseca, 2015, 2015, p. 17 a 18).

Ora, o entendimento de que as sociedades contemporâneas são plurais, concebendo-se inúmeras concepções individuais e coletivas de vida digna, de valores éticos e morais, e a superação da filosofia da consciência,

(13)

inaugurando, após a virada linguístico-pragmática no século XX, a filosofia da linguagem, em que só através da comunicação o homem é capaz de entender a conceber relações de alteridade e reciprocidade, desencadeou na filosofia política as doutrinas liberais16, comunitaristas17 e crítico-deliberativa.

A doutrina crítica-deliberativa, proposta por Habermas (1997), não confere primazia à soberania popular – autonomia pública, própria da corrente comunitarista, ou aos direitos humanos – autonomia privada, própria da corrente liberal. 18

Habermas (1997) acredita que há possibilidade de conciliação entre as liberdades dos modernos – liberais (liberdade de consciência, religiosa, de expressão, direitos individuais em geral) e a liberdade dos antigos – comunitaristas (direitos políticos de participação), concebendo-se um lugar central no processo de formação da vontade geral sem que isso represente suplantar sua estruturação em um Estado de direito.

Os processos de participação democrática, que conferem legitimi dade ao direito, confrontam as expectativas individuais com as orientações oriundas do bem comum, coletivo. De acordo com Habermas (1997),

Direitos subjetivos não estão referidos, de acordo com seu conceito, a indivíduos atomizados e alienados, que se entesam possessivamente uns contra os outros. Como elementos da ordem jurídica, eles pressupõe a colaboração de sujeitos que se reconhecem reciprocamente em seus direitos e deveres, reciprocamente referidos uns aos outros, como membros livres e iguais do direito. Tal reconhecimento recíproco é constitutivo para uma ordem jurídica, da qual é possível extrair direitos subjetivos reclamáveis judicialmente. Neste sentido, os direitos subjetivos são co-originários com o direito

16 Cf. Cittadino (2000), “O pluralismo liberal associa a conformação de uma sociedade justa à

garantia da autonomia privada dos cidadãos. Daí o caráter inviolável da subjetividade das concepções individuais acerca da vida digna.” (p. 138).

17 Cf. Cittadino (2000), “Nas sociedades democráticas, a justiça, para os comunitários, está

vinculada a uma concepção de pluralismo que assegura a autonomia pública e, portanto, a intra-subjetividade das diversas identidades sociais e culturais.” (p. 138).

18 Cf. Habermas, “Os liberais evocam o perigo de uma “tirania da maioria”, postulam o primado

de direitos humanos que garantem as liberdades pré-políticas do indivíduo e colocam barreiras à vontade soberana do legislador político. Ao passo que os representantes de um humanismo republicano dão destaque ao valor próprio, não instrumentalizável,da auto-organização dos cidadãos, de tal modo que, aos olhos de uma comunidade naturalmente política, os direitos humanos impõem-se ao saber moral como algo dado, ancorado num estado natural fictício; ao passo que na interpretação republicana a vontade ético-política de uma coletividade que está auto-realizando não pode reconhecer nada que não corresponda ao próprio projeto de vida autêntico. (HABERMAS, 1997, p.134).

(14)

objetivo; pois este resulta dos direitos que os sujeitos se atribuem reciprocamente” (HABERMAS, 1997, p.121).

Habermas (1997) confronta a ética kantiana de subordinação do direito à moral, de supervalorização da autonomia individual e a ideia de Rosseau de supervalorização da autonomia pública, visando estabelecer uma relação de conexão entre os direitos humanos e a soberania popular19.

O sociólogo conclui que só a partir de uma ética discursiva num arranjo comunicativo é que se pode decifrar o modelo da autolegislação, legitimando o direito, em que os parceiros “(…) devem poder examinar se

uma norma controvertida encontra ou poderia encontrar o assentimento de todos os possíveis atingidos” (HABERMAS, 1997, p.138). Por consequência,

todas as leis que se construam dentro de um processo racional e discursivo, destinam-se a todos os membros de uma comunidade, sendo todos os cidadãos, ao mesmo tempo, autores e destinatários de suas próprias normas jurídicas20.

Neste contexto, Habermas (1997) cria um sistema de direitos fun damentais básicos que funcionam como condição e possibilidade de participação dos indivíduos nesse processo de elaboração legislativa, antevendo cinco categorias de direitos fundamentais básicos, consistindo em direitos sem os quais não existe participação em qualquer tipo de discurso válido dentro de uma ordem jurídica que se pretenda democrática21 e que informam a própria relação de co-originariedade entre a autonomia pública e a soberania popular.

19 Cf. Habermas, “Rosseau e Kant tomaram como objetivo pensar a união prática e a vontade

soberana no conceito de autonomia, de tal modo que a ideia dos direitos humanos e o princípio da soberania do povo se interpretassem mutuamente. Mesmo assim, eles não conseguiram entrelaçar simetricamente os dois conceitos. De um ponto de vista geral, Kant sugeriu um modo de ler a autonomia política que se aproxima mais do liberal, ao passo que Rosseau se aproximou mais do republicano” (HABERMAS, 1997, p.134).

20 Nas lições de Cruz (2004), “A formação democrática da vontade popular encontra sua

legitimidade nos pressupostos comunicativos e nos procedimentos moldados na Constituição que permitem a deliberação e a vitória dos melhores argumentos. Na perspectiva de Habermas (1997), os direitos fundamentais são produtos da decisão recíproca dos cidadãos livres iguais para regular suas próprias vidas por intermédio do Direito e especialmente da Constituição, substituindo-se os fundamentos morais dos Direitos do homem, encontrados no paradigma do Estado Liberal, pelo princípio do discurso” (CRUZ, 2004, p.10).

21 Cf. Cittadino, “A ideia fundamental de Habermas é que a conexão interna entre autonomia

privada e autonomia pública não pode ser estabelecida caso os cidadãos não reconheçam um sistema de direitos quando pretendem legitimamente regular as suas relações através do direito positivo. Esse sistema de direitos é, segundo ele, integrado por cinco categorias distintas: os direitos e iguais liberdades subjetivas; os direitos que resultam do status de

(15)

Senão vejamos: (a) Direitos fundamentais que resultam da configuração politicamente autônoma do direito à maior medida possível de iguais liberdades subjetivas de ação, garantidores da proteção da autonomia privada de sujeitos de direitos, incluindo-se nesse rol, segundo Cruz22 (2004), os direitos liberais clássicos como o direito à vida, à liberdade, à integridade física, à propriedade, à intimidade e direitos sociais básicos, como o direito à dignidade humana e o direito fundamental ao trabalho; (b) Direitos fundamentais resultantes da configuração politicamente autônoma do status de um membro numa associação voluntária de parceiros do direito, encontrando-se aí elencados a proibição da extradição, o direito de asilo, os direitos políticos, sociais e coletivos; (c) Direitos fundamentais resultantes da possibilidade de postulação judicial de direitos e da configuração politicamente autônoma da proteção jurídica individual, como as garantias processuais fundamentais e os princípios de direito; (d) direitos fundamentais à participação, em igualdade de chances, em processos de formação da opinião e da vontade, exercitando os civis a autonomia política e, a partir de então, criando direitos legítimos; (e) Direitos fundamentais a condições de vida digna garantidas social, técnica e ecologicamente, na medida em que isso for necessário para um aproveitamento, em igualdade de chances, dos direitos elencados anteriormente, de “a” a “d23.

Nesse sentido, pode-se concluir que não existe participação, demo cracia numa perspectiva de moral pós-convencional sem o mínimo de liberdade, dignidade e segurança jurídica24:

O sistema dos direitos não pode ser reduzido a uma interpretação moral dos direitos, nem a uma interpretação ética da soberania do povo, porque a autonomia privada dos cidadãos não pode ser

membro de uma associação voluntária; os direitos a igual proteção legal; os direitos políticos de participação; e os direitos de bem-estar e segurança sociais que tornam possível a utilização dos demais direitos.” (CITTADINO, 2000, p.174).

22 CRUZ (2004, p.221-224). 23 Cf. HABERMAS (1997, p.159-160).

24 Sob tal perspectiva, um dos mais insignes juristas da atualidade, crítico do denominado

constitucionalismo da efetividade, Cláudio Pereira de Souza Neto (2008), atenta para o fato de que cabe ao Poder Judiciário o papel de não apenas concretizar os direitos sociais mínimos configuradores das condições materiais da autonomia privada, mas, de acordo com a teoria habermasiana, o papel de concretizar os direitos sociais que constituem condições para uma participação igualitária na vida pública. Vale transcrever: “A questão é: se considerarmos que certos direitos sociais são condições da democracia, então o Judiciário, como seu guardião, possui também a prerrogativa de concretizá-los, quando tem lugar a inércia dos demais ramos do Estado na realização dessa tarefa”. E conclui ainda: “(…) se o Judiciário tem legitimidade para invalidar normas produzidas pelo Poder Legislativo, mais facilmente pode se afirmar que é igualmente legítimo para agir diante da inércia dos demais poderes, quando essa inércia implicar um óbice ao funcionamento regular da vida democrática” (NETO, 2008, p.324).

(16)

sobreposta e nem subordinada à sua autonomia política. As intuições normativas, que unimos aos direitos humanos e à soberania do povo, podem impor-se de forma não reduzida no sistema de direitos, se tomarmos como ponto de partida que o direito às mesmas liberdades de ação subjetivas, enquanto direito moral, não pode ser simplesmente imposto ao legislador soberano como barreira exterior, nem instrumentalizado como requisito funcional para seus objetivos. A co-originariedade da autonomia privada e pública somente se mostra, quando conseguimos decifrar o modelo da autolegislação através da teoria do discurso, que ensina serem os destinatários simultaneamente os autores de seus direitos. A substância dos direitos humanos insere-se, então, nas condições formais para a institucionalização jurídica desse tipo de formação discursiva da opinião e da vontade, na qual a soberania do povo assume figura jurídica (HABERMAS, 1997, p.139).

A partir da configuração de um modelo de sociedade pós-convencional, não se pode pretender apartar os direitos fundamentais do campo das relações estabelecidas entre os entes de natureza privada.

Se os próprios entes particulares, através de um processo de comunicação racional, são autores e destinatários das normas fundamentais constantes na Constituição e que denotam valores, pretender que essas normas apliquem-se tão somente às relações verticais estabelecidas entre cidadãos–Estado, foge ao novo modelo democrático de direito caracterizado pela relação de co-originariedade, entre autonomia pública e privada, integrando interesses públicos e privados.

Infelizmente, a história do Brasil traduz um passado marcado por ideias baseadas em visões de uma moral convencional, própria do modelo liberal. A moral pós-convencional exige superação da separação entre o espaço público e privado, para relacioná-los co-originariamente, numa relação de reciprocidade, não de ambivalência ou prevalência.

O personalismo, o patriarcalismo e o individualismo, que são próprios do modelo liberal caracterizam a sociedade brasileira nos dias atuais, tornando-se inócua a aplicação da ideia de eqüiprimordialidade proposta por Habermas entre espaço público e privado.

Tais características que acompanham o povo brasileiro, conforme se depreende da literatura, podem ser encontradas na realidade da corrupção, do nepotismo, da marginalização e discriminação dos menos favorecidos, no racismo, no machismo, na homofobia ou mesmo na misoginia.

A literatura brasileira é rica na demonstração da realidade de um povo marcado pela escravidão, pelas injustiças e prevalência do capitalismo. Traz uma contribuição para que os juristas possam construir uma realidade mais

(17)

justa, disseminadora de ideários mais consentâneos com o que dispõe a Constituição Federal de 198825 como a igualdade e solidariedade.

Nas lições de Baracho Júnior, vale a pena transcrever:

Ronald Dworkin propõe considerarmos o Direito norte-americano como um romance escrito em cadeia pelos operadores do direito, em especial pelos juízes da Suprema Corte. Essa ideia nos sugere uma abordagem narrativa do Direito, o que não compromete sua dimensão normativa, mas amplia os mecanismos de compreensão de seu funcionamento, possibilidades e limites” (BARACHO JÚNIOR, 2009, p. 158)

E ainda:

Para François Ost, a compreensão do Direito como literatura, presente em Dworkin, coloca-se ao lado de outras interações possíveis, como o Direito como objeto da literatura – o Direito na literatura – e a literatura como objeto do Direito, aqui com especial atenção para os direitos autorais (BARACHO JÚNIOR, 2009, p. 158).

Dworkin (2005), na construção do romance em cadeia, entende que Direito deve ser interpretado como um verdadeiro romance literário, valendo-se da história e de julgamentos pretéritos. O Direito está diretamente ligado às outras ciências, como as artes, a literatura e a pintura, não sendo um sistema fechado, mas aberto ao mundo da vida.

O ambiente privado e público, antes de se pretenderem eqüiprimordiais, devem ser entendidos como espaços separados, pertencentes a ordens de essência diferentes. “Não existe, entre o círculo familiar e o Estado, uma

gradação, mas antes uma descontinuidade e até uma oposição”(HOLANDA, 2004, P. 141).

Superada a separação e, inserindo tais noções nos contextos paradigmáticos liberal e social, poder-se-á, finalmente, efetivar o princípio democrático.

25 Cf. Darci Ribeiro: “ (…) o que somos é a nova Roma. Uma Roma tardia e tropica. O Brasil é já

a maior das nações neolatinas, pela magnitude populacional, e começa a sê-lo também por sua criatividade artística e cultural. Precisa agora sê-lo no domínio da tecnologia da futura civilização, para se fazer uma potência econômica, de progresso auto-sustentado. Estamos nos construindo na luta para florescer amanhã como uma nova civilização, mestiça e tropical, orgulhosa de si mesma. Mais alegre, porque mais sofrida. Melhor, porque incorpora em si mais humanidades. Mais generosa, porque aberta à convivência com todas as raças e todas as culturas e porque assentada na mais bela e luminosa província da Terra. (RIBEIRO, 2014, p. 454-455).

(18)

APONTAMENTOS FINAIS

A riqueza da história brasileira, retratada em autores literários modernos, em especial Sérgio Buarque de Holanda, contribui para compreensão dos paradigmas estatais liberal, social e democrático e da compreensão entre a relação de separação e co-originariedade entre a autonomia pública e privada.

A teoria discursiva do direito que propõe processos institucionalizados de diálogo, nos discursos de justificação e aplicação. Torna imprescindível o entendimento de separação entre espaço público e privado para, finalmente, estabelecer entre ambos uma relação de co-originariedade. Infelizmente, a realidade brasileira denota, historicamente, uma tradição de ausência de superação de tais espaços.

Vale lembrar de que a família tradicional escravocrata, a qual foi formada em torno dos engenhos, era patriarcalista e personalista. Foi responsável pela formação cultural da população brasileira. Com o fim da escravidão e o surgimento da revolução social, na segunda metade do século XIX, assim como, a assinatura da Lei Áurea e a proclamação da República foram outros acontecimentos importantes para a formação da estirpe brasileira.

A tradição familiar foi importada para o ambiente público, criando várias mazelas que, hoje, tornam-se um problema político e econômico para a sociedade tupiniquim, a exemplo da corrupção, do nepotismo, do preconceito racial, do machismo, dentre outros.

Ora, não se pode apagar a história do Brasil, mas pode-se entendê-la a fim de reescrever um futuro mais promissor, de efetivação de direitos fundamentais que vêm se consolidando de forma tão lenta, para uma população que constrói sua identidade diariamente.

Na obra de Darcy Ribeiro:

O Brasil foi regido primeiro como uma fronteira escravista, exoticamente tropical, habitada por índios nativos e negros importados. Depois, como um consulado, em que um povo sublusitano, mestiçado de sangues afros e índios, vivia o destino de um proletariado externo dentro de uma possessão estrangeira. Os interesses e as aspirações de seu povo jamais foram levados em conta, porque só se tinha atenção e zelo no atendimento dos requisitos de prosperidade da feitoria exportadora. O que se estimulava era o aliciamento de mais índios trazidos dos matos ou a importação de mais negros trazidos da África, para aumentar a força de trabalho, que era a fonte de produção dos lucros da metrópole. Nunca houve aqui um conceito de povo, englobando todos os trabalhadores e atribuindo-lhes direitos. Nem mesmo o direito

(19)

elementar de trabalhar para nutrir-se, vestir-se e morar (RIBEIRO, 2014, p. 447).

Urge avançar para cessar com as desigualdades sociais e possibilitar um ambiente verdadeiramente democrático no qual se possa, através da efetivação do princípio da igualdade material, concretizar valores constitucionais tão caros à sociedade brasileira.

O papel dos juristas é de vital importância, assim como, a sua contribuição na literatura brasileira.

O espaço público (soberania popular) e o privado (interesses individuais) são ambientes diferenciados que, após entendida suas peculiaridades, devem, hoje, serem estudados numa relação de diálogo e harmonia, consolidando-se a característica democrática da sociedade moderna.

REFERÊNCIAS

BARACHO JÚNIOR, José Alfredo de Oliveira. Responsabilidade Civil por dano ao meio ambiente. Belo Horizonte: Del Rey, 2000.

. Dimensões paradoxais de Jurísdição Constitucional. In: OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de; MACHADO, Felipe Daniel Amorim (coords). Constituição e Processo: a contribuição do processo ao constitucionalismo democrático brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 153-167.

BOLLE, Willi, Grandesertão.br. São Paulo: Editora34 e Livraria Duas Cidades, 2004. CITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justiça distributiva. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000.

CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Hermenêutica Jurídica E(M) Debate O Constitucionalismo Brasileiro Entre a Teoria do Discurso e a Ontologia Existencial. Belo Horizonte, Editora Fórum: 2007.

. Jurisdição Constitucional Democrática. Belo Horizonte. Del Rey: 2004.

. Habermas e o Direito Brasileiro. Rio de Janeiro. Editora Lúmen Júris: 2006.

DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. FARIA, Edimur Ferreira de. Curso de Direito Administrativo Positivo. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.

GUSTIN, Mitacy B. S; DIAS, Maria Tereza Fonseca. (Re) Pensando a Pesquisa Jurídica. Belo Horizonte: Del Rey: 2015.

HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1997.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005. MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 12ª ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

(20)

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. 3 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 5 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

recebido em: 05.10.16

(21)

Referências

Documentos relacionados

5 “A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo – do Direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial” (KELSEN, Teoria pura do direito, p..

Os interessados em adquirir quaisquer dos animais inscritos nos páreos de claiming deverão comparecer à sala da Diretoria Geral de Turfe, localizada no 4º andar da Arquibancada

No entanto, maiores lucros com publicidade e um crescimento no uso da plataforma em smartphones e tablets não serão suficientes para o mercado se a maior rede social do mundo

Os principais objectivos definidos foram a observação e realização dos procedimentos nas diferentes vertentes de atividade do cirurgião, aplicação correta da terminologia cirúrgica,

Como parte de uma composição musi- cal integral, o recorte pode ser feito de modo a ser reconheci- do como parte da composição (por exemplo, quando a trilha apresenta um intérprete

O relatório encontra-se dividido em 4 secções: a introdução, onde são explicitados os objetivos gerais; o corpo de trabalho, que consiste numa descrição sumária das

psicológicos, sociais e ambientais. Assim podemos observar que é de extrema importância a QV e a PS andarem juntas, pois não adianta ter uma meta de promoção de saúde se

libras ou pedagogia com especialização e proficiência em libras 40h 3 Imediato 0821FLET03 FLET Curso de Letras - Língua e Literatura Portuguesa. Estudos literários