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Quando Paris se rendeu a Haydn

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Academic year: 2021

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Quando Paris se rendeu a Haydn

Joseph Haydn tocando quartetos (autor anônimo; Staatsmuseum, Viena)

Poucos anos atrás, quando eu pensava em ouvir as sinfonias de Franz Joseph Haydn (1732-1809), recorria às coletâneas que oferecem aquelas mais famosas – geralmente são as que possuem título: o trio Le Matin, Le Midi & Le Soir, O

Filósofo, Lamentação, Mercúrio, Maria Teresa, A Paixão, Imperial, Oxford, O Relógio, Londres e várias outras. Mesmo tendo a integral da Decca com a obra

sinfônica do compositor em 33 CDs, dirigida pelo heróico Antal Doráti (1906-1988), ouvia sempre as sinfonias mais populares.

Karajan, a arte da regência

Eis que, em meados de 2008, um grande e saudoso amigo me apresentou, desinteressadamente, um álbum do selo Deutsche Grammophon com seu venerado

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Herbert von Karajan (1908-1989) regendo as chamadas Sinfonias Paris do mestre austríaco. Disse-me ele, profeticamente: “ouça sem compromisso e me diga algo, depois”. Lembro-me como se fosse hoje: decidi ouvir no carro o segundo CD do álbum, pois começava com uma sinfonia sem título. Ao fazer a curva para me dirigir à Asa Norte, bairro onde residia em Brasília na época, iniciou-se uma seqüência de momentos de êxtase a partir daquela leitura sobrenatural. Duas coisas me chamaram de pronto a atenção na interpretação de Karajan: a sensação de imensidão dominada pelo som que aqueles tempos lentos passavam e a absoluta sincronia das cordas (áudio abaixo). A elegância aplicada aos minuetos os tornou devidamente aristocráticos (áudio abaixo). Os sopros transbordavam por todas as direções. Parecia que o regente queria nos dizer que não importava o quanto aquela exposição – ora possante, ora compassadíssima – iria durar, ou seja: a música nunca deve se curvar às contingências; todos os seus recursos devem ser explorados irrestritamente. O caráter de cada movimento é efetivamente respeitado: enérgico ao que deve ser enérgico; suave ao que assim deve se expressar.

Haydn: Sinfonia No. 86 em Ré maior: 1. Adagio-Allegro spiritoso (seleção) [audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/05/Symph-No-86-Mvmt-No-1.mp3|titles=Haydn: Sinfonia 86.1 (Karajan/DG)]

Haydn: Sinfonia No. 87 em Lá maior: 3. Menuetto (seleção)

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/05/Symph-No-87-Mvmt-No-3.mp3|titles=Haydn: Sinfonia 87.3 (Karajan/DG)]

Enfim, aconteceu o inevitável: passei a adquirir tudo o que Karajan havia feito em Haydn. O impacto dessa descoberta foi tal que redirecionou minha atenção à obra sinfônica do compositor, com novo ânimo e uma atenção redobrada à importância daquele imenso colosso musical. Aqui estou eu ouvindo as sinfonias parisienses, após várias aventuras em outras gravações, confirmando definitivamente que o lendário Herr Direktor continua intocável no topo das recomendações. Para se ter uma idéia da importância do álbum, disse o musicólogo Howard Chandler Robbins Landon, maior especialista em Haydn, na publicação The Haydn Yearbook:

In the early 1980s Karajan created a whole new high standard of Haydn interpretation.

Vale a pena comentar um pouco da história dessas obras-primas, que revela como fascinaram e impressionaram seus ouvintes e executantes desde a sua estréia.

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A rainha Marie Antoinette tocando espineta (1769/70)

As sinfonias foram compostas em 1785 e 1786 para uma grande orquestra parisiense (talvez a maior da Europa) chamada Le Concert de la loge

Olympique, que reunia alguns dos maiores músicos da França. Incluía um grande

e versátil conjunto de sopros, 40 violinos e 10 contrabaixos – o conjunto musical de Haydn em Esterháza tinha 25 membros no total. De acordo com Robbins Landon, os músicos vestiam esplêndidas casacas na cor azul celeste, com elaborados babados em renda e espadas ao lado.

Eles se apresentavam nos famosos Concerts Spirituels, o mais importante evento de concertos de Paris na época. Aliás, foi para um desses eventos, em 1777, que foi encomendada a célebre sinfonia nº 31 de Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), por ocasião da última estada deste na capital francesa – ficando a obra conhecida como Sinfonia Paris. Os Concerts Spirituels eram uma iniciativa da loja maçônica Olympique, que contava com a proteção da rainha Marie Antoinette (1755-1793), ou Maria Antonia Josefa Johanna von

Habsburg-Lothringen – austríaca de nascimento, como Haydn, e reconhecida amante da

música.

Conde d’Ogny

O responsável oficial pela encomenda das sinfonias a Haydn foi Claude-Francois-Marie Rigoley (1757-1790), conde d’Ogny, um jovem aristocrata de 27 anos de idade, com sólida formação musical – sua família possuía uma grande coleção de partituras. As negociações do contrato, entretanto, foram feitas

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pelo compositor, maestro e violinista virtuose Joseph Boulogne (1745-1799), regente da orquestra e mais conhecido como Chevalier de Saint-George – uma importante figura na cena musical parisiense da segunda metade do século XVIII.

Chevalier de Saint-George

Segundo os musicólogos Jean e Brigitte Massin, para cumprir a encomenda, Haydn não teve necessidade de deixar os castelos de Eisenstadt e de Esterháza – as principais residências (situadas na Hungria) da família principesca dos Esterházy, a serviço da qual se encontrava desde 1761. Foi na qualidade de mais célebre dos compositores vivos que Haydn recebeu a encomenda, aos 52 anos de idade.

Mais do que uma honra para Haydn, o contrato foi um negócio extremamente lucrativo: ele recebeu a quantia de 25 louis d’or (moeda francesa vigente) por sinfonia – cinco vezes do que qualquer outro compositor receberia em seu lugar. Foram, assim, compostas as sinfonias de número 82 (Dó maior), 83 (Sol menor), 84 (Mi bemol maior), 85 (Si bemol maior), 86 (Ré maior) e 87 (Lá maior).

Cherubini testemunhou o sucesso das

sinfonias de Haydn

O compositor italiano Luigi Cherubini (1760-1842), que trabalhou a maior parte da vida na França, foi um dos membros da orquestra que estreou as

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Sinfonias Paris – com isso, pode-se imaginar a qualidade do conjunto.

Segundo seus relatos, as obras foram recebidas com “êxtase”, tornando-se rapidamente populares para público e editoras – foram logo publicadas em Londres, Paris e Viena.

Jean e Brigitte Massin comentam que um crítico do jornal parisiense Mercure

de France, depois de ter ouvido as Sinfonias Paris em 1787, observou com

admiração que, enquanto tantos compositores tinham necessidade de vários temas para construir um movimento de sinfonia, um único tema bastava a Haydn: Esse grande gênio, em cada uma de suas peças, sabe construir desenvolvimentos tão ricos e variados a partir de um único tema (sujet) – muito diferente daqueles compositores estéreis, que passam continuamente de uma idéia para outra por não saber apresentar uma idéia em variadas formas.

O musicólogo Charles Rosen complementa da seguinte forma:

Não há uma passagem, mesmo a mais séria, dessas grandes obras que não seja marcada pelo humor de Haydn, e seu humor cresce de forma tão poderosa e tão eficiente que se torna uma espécie de paixão, uma força ao mesmo tempo onívora e criativa.

Meu objetivo aqui não é analisar detalhadamente cada sinfonia da série parisiense. Considero ser um conjunto para apreciarmos como um monumento único. Minha intenção é, sobretudo, despertar a atenção dos leitores para essas obras-primas, ainda pouco focadas pelas gravadoras e pela literatura. Muito se faz pelas sinfonias do período londrino de Haydn – que, certamente, possuem todo o mérito para isso. No entanto, as Sinfonias Paris oferecem um impacto arrebatador para quem acompanha a evolução da obra do compositor, representando um marco em sua produção.

Programa do Concert Spirituel de 1754

As sinfonias de Haydn do início da década de 1770 pareciam exigir mais espaço, para além dos seus limites. Em torno de 1780, as dimensões pareciam

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grandes demais para a energia musical. Após 1785, entretanto, tais conflitos se dissiparam. Passou a existir uma combinação perfeita de dimensão com energia e do caráter individual produzido pela integração de tema e tonalidade com a universalidade requerida por uma sinfonia.

As Sinfonias Paris foram tão importantes para o gênero sinfônico quanto os quartetos do Op. 33 do próprio Haydn foram para os quartetos de cordas (vídeo abaixo). Numa troca de inovações, as técnicas do quarteto de cordas ganharam as cores e a grandeza da sinfonia. Essa nova estrutura tornou a música mais acessível ao músico amador burguês – sua nova audiência. Por outro lado, os elementos do quarteto de cordas desenvolvidos por Haydn permitiram a sinfonia falar em termos universais, válidos para todas as pessoas. Três das sinfonias parisienses têm uma introdução lenta, o que em si não era novidade, mas aparecia agora com mais freqüência para adicionar mais solenidade a grandes concertos públicos.

[kad_youtube url=”http://www.youtube.com/watch?v=rkg_VNKo_8g” maxwidth=”600″] Philip Downs, professor emérito da University of Western Ontario, destaca, numa visão geral, que os primeiros movimentos das Sinfonias Parisienses têm toda a potência e animação das sinfonias anteriores, mas, além dos habituais acordes e arpejos, há material melódico bem mais substancial. O número de movimentos em Adagio de caráter mais sério, quase religioso, cresce gradualmente, substituindo movimentos em Andante ou mais rápidos. Os minuetos apresentam menos mudança, enquanto os Finales se baseiam mais em melodias populares.

Nesse post, naturalmente, não poderíamos deixar de comentar a origem dos apelidos de três das Sinfonias Paris.

Ilustração de 1810 apresentando espetáculo com urso na Europa da época

No movimento final da sinfonia nº 82, os baixos são sustentados com a tonalidade de gaitas de fole, numa melodia eslava (áudio abaixo). Tal efeito gerou um arranjo para piano em 1829 que passou a acompanhar ursos dançarinos (tipo de espetáculo de rua muito popular na época), do que decorre o apelido da sinfonia (“O Urso”). A tradição dos ursos dançantes possui séculos e tem origem nos ciganos em países como Bulgária e Sérvia. Ursos dançarinos eram comuns na Europa durante a Idade Média. A prática começou a perder força na Europa Ocidental no século 15, mas permaneceu viva na Europa Oriental. Ursos

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dançarinos eram comuns em festivais de inverno tradicionais da Polônia ao longo do século 18. Tal prática foi proibida oficialmente na União Européia em 2006 por ser considerada cruel e prejudicial aos animais, mantidos sob controle com o auxílio de uma focinheira. Muitas vezes aprendiam a “dançar” e pular de um pé para outro em cima de uma placa quente de metal.

Haydn: Sinfonia No. 82 em Dó maior: 4. Finale: Vivace (seleção)

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/05/Symph-No-82-Mvmt-No-4.mp3|titles=Haydn: Sinfonia 82.4 (Karajan/DG)]

O título da sinfonia nº 83, La Poule (“A Galinha”), se refere ao segundo tema do seu primeiro movimento, no qual o pontuado acompanhamento do oboé lembra algo como um cacarejado de uma galinha (áudio abaixo).

Haydn: Sinfonia No. 83 em Sol menor: 1. Allegro spiritoso (seleção)

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/05/Symph-No-83-Mvmt-No-1.mp3|titles=Haydn: Sinfonia 83.1 (Karajan/DG)]

A sinfonia nº 85, conhecida como “A Rainha”, ganhou seu título pelo fato de Marie Antoinette ter gostado bastante dela – o título original completo era

La Reine de France e apareceu pela primeira vez na edição francesa de 1788. O

primeiro movimento é sustentado incrivelmente como monotemático – a propósito, sinto influência da sinfonia nº 45 (intitulada de “A Despedida” ou “O Adeus”) nessa parte (áudios abaixo). Seu segundo movimento é formado por um conjunto de variações sobre a antiga canção folclórica francesa “La gentille et jeune Lisette”.

Haydn: Sinfonia No. 85 em Si bemol maior: 1. Adagio-Vivace (seleção)

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/05/Symph-No-85-Mvmt-No-1.mp3|titles=Haydn: Sinfonia 85.1 (Karajan/DG)]

Haydn: Sinfonia No. 45 em Fá sustenido menor: 1. Allegro assai (seleção) [audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/05/Symph-No-45-Mvmt-No-1.mp3|titles=Haydn: Sinfonia 45.1 (Pinnock/DG)]

O humor, a ironia e as peculiares excentricidades das duas primeiras sinfonias da série (82 e 83) contrastam com a refinada natureza das sinfonias de número 84, 86 e 87, escritas por Haydn intencionalmente para atender ao gosto parisiense pela chamada “grande symphonie” (áudio abaixo). Essas três, em particular, foram as que mais me impressionaram – teria sido devido ao pomposo e sério estilo parisiense aplicado pelo compositor? Possivelmente. Haydn: Sinfonia No. 84 em Mi bemol maior: 1. Largo-Allegro (seleção)

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/05/Symph-No-84-Mvmt-No-1.mp3|titles=Haydn: Sinfonia 84.1 (Karajan/DG)]

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O álbum recomendado

Foi com suas seis Sinfonias Paris que Haydn, definitivamente, atingiu o pináculo de sua carreira de compositor, um fato que foi amplamente reconhecido por seus contemporâneos e refletiu-se na sua popularidade internacional – em 1790, 80% de todos os concertos executados em Paris apresentavam obras de Haydn.

Mais detalhes sobre as sinfonias parisienses podem ser encontrados na densa obra do professor Bernard Harrison (Lancaster University) intitulada “Haydn: The Paris Symphonies”, da série Cambridge Music Handbooks, com 136 páginas e publicada em setembro de 1998. Uma seleção desse trabalho está disponível neste link.

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