• Nenhum resultado encontrado

UTOPIA E DESENCANTO NA LITERATURA ANGOLANA: UMA LEITURA DE QUEM ME DERA SER ONDA, DE MANUEL RUI

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "UTOPIA E DESENCANTO NA LITERATURA ANGOLANA: UMA LEITURA DE QUEM ME DERA SER ONDA, DE MANUEL RUI"

Copied!
11
0
0

Texto

(1)

Revista de Humanidades e Letras ISSN: 2359-2354 Vol. 4 | Nº. 1 | Ano 2018

Paulo Andrade

UNESP

UTOPIA E DESENCANTO NA LITERATURA

ANGOLANA: UMA LEITURA DE QUEM ME

DERA SER ONDA, DE MANUEL RUI

_____________________________________

RESUMO

Surgida nas décadas de oitenta e noventa, a teoria pós-colonial procura abarcar em seu corpus de análise novas realidades literárias surgidas com as independências do século XX. Esse texto trata da questão da utopia e do desencanto na literatura angolana, fazendo a leitura de Quem me dera ser onda de Manuel Rui. O que o autor observa é que no vaivém dessa obra Manuel Rui problematiza o complexo processo revolucionário, levando o leitor a perceber as frágeis fronteiras entre a utopia e o exercício do poder, entre o sonho e a realidade, entre a vitória dos ideais revolucionários e a diluição desses mesmos ideais nas malhas da nova rede de poder que a luta para sua implantação acaba por gerar.

Palavras-chave: Angola; literatura; pós-colonial; utopia;

desencanto.

____________________________________

RESUMÉ

Émergeant dans les années 1980 et 1990, la théorie postcoloniale cherche à englober dans son corpus d’analyse de nouvelles réalités littéraires issues des indépendances du XXe siècle. Ce texte aborde la question de l'utopie et du désenchantement dans la littérature angolaise, faisant la lecture de Quem me dera ser onda de Manuel Rui.. Ce que l'auteur observe est que Manuel Rui, dans la navette de cet ouvrage, problématise le processus révolutionnaire complexe, amenant le lecteur à percevoir les frontières fragiles entre l'utopie et l'exercice du pouvoir, entre le rêve et la réalité, entre la victoire des idéaux révolutionnaires et la dilution de ces mêmes idéaux dans les mailles du nouveau réseau de pouvoir que la lutte pour son implantation finit par générer.

Mots-clés: Angola; littérature; postcolonial; l'utopie;

désenchantement Site/Contato

www.capoeirahumanidadeseletras.com.br

capoeira.revista@gmail.com

Editores

Marcos Carvalho Lopes

marcosclopes@unilab.edu.br

Pedro Acosta-Leyva

leyva@unilab.edu.br

Editores do Dossiê

Prof. Dr. Bas’Ilele Malomalo, UNILAB

(2)

Dossiê – Angola: anotações e reflexões

UTOPIA E DESENCANTO NA LITERATURA

ANGOLANA: UMA LEITURA DE QUEM ME DERA SER

ONDA, DE MANUEL RUI

Paulo Andrade1

O mais importante para uma geração é dar qualquer coisa de bom à seguinte, um projecto, uma bandeira. No fundo, é o pai a deixar uma herança para o filho. E é triste sentir que a nossa geração, que vos deu apesar de tudo a inde-pendência, logo a seguir vos tirou a capacidade de a go-zar. (Pepetela, in: A geração da utopia)

Surgida nas décadas de oitenta e noventa, a teoria pós-colonial procura abarcar em seu

corpus de análise novas realidades literárias surgidas com as independências do século XX. No

entanto, nota-se que o termo pós-colonial não é pacífico. Há várias interpretações sobre o con-ceito, pois tanto é utilizado para se referir às sociedades que surgiram depois da chegada dos co-lonialistas, sendo utilizado inclusive para pesquisar em realidades culturais como a canadense, australiana ou mesmo a norte-americana; Seguiremos aqui as posições de Russel Hamilton (2005), para quem a “a independência política de determinada colónia dá início ao período pós-colonial" e as de Pires Laranjeira que divide os sistemas literários africanos em duas grandes épocas: a Época Colonial e a Época Pós-Colonial. A primeira (que subdivide em cinco “fases”) teria tido início com o aparecimento dos primeiros textos “não necessariamente literários nem africanos, mas relacionados com a África” e a segunda, Época Pós-colonial, que se inicia com as independências, que trarão consigo “uma transformação radical nas estruturas do poder, da soci-edade, da economia e da cultura, em que se verificou uma mudança não menos radical no per-curso das literaturas”.

Tratando-se de uma literatura ligada ao contexto sócio-político e econômico é importante relembrar que independência da nova República de Angola trouxe consigo mudanças de variada ordem e será a partir de 1975 que poderemos pensar em sistema literário angolano. A instaura-ção de um novo estado trará consigo a implementainstaura-ção do plano cultural que desde a clandestini-dade vinha sendo construído. Assim, aparece um sistema de ensino angolano, instituição que

1 Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letra (UNESP) – Departamento de Literatura. Araraquara

(3)

rá um papel importante na formação de um cânone literário nacional; surge ainda Associação de Escritores Angolanos (AEA), instituição que desempenha um papel importante, tanto na seleção e legitimação dos autores como, criando as condições para um aumento considerável de publica-ções no país.

A História pela ficção

Constantemente empenhados na construção da identidade nacional, os escritores africa-nos de língua portuguesa que viveram os aafrica-nos de luta pela independência política demonstram profunda preocupação em recuperar, redimensionar e repensar o seu passado histórico.

Tema recorrente em todas as fases da literatura angolana, a recuperação do passado é ex-plorado em várias dimensões na história literária do país. Não é o objetivo deste texto oferecer uma visão panorâmica da recuperação do passado. Basta apontar, brevemente, duas estratégias significativas na tentativa empreendida pelos escritores angolanos para repensar a história pela ficção. No fim dos anos 40, os poetas reunidos em torno da revista Mensagem buscaram recupe-rar um passado distante, genuinamente angolano, antes da contaminação imposta pela coloniza-ção. Nessa busca empenharam-se escritores como Viriato da Cruz, António Jacinto e Agostinho Neto, apenas para citar três nomes expressivos. (CHAVES, 1999a)

Pepetela, Prêmio Camões 1997, também é um escritor que tem revelado trabalho singular de reconstituição temática e discursiva em torno da construção da nacionalidade, adotando em seus romances uma estratégia que consiste em articular a ficção com as transformações históri-cas da sociedade angolana e com as exigências de um pensamento novo, face ao país real, que hoje pouco tem a ver com o país ideal almejado pelas gerações passadas.

Entretanto, afastando-se das idealizações que buscavam construir uma identidade única, baseada num abstrato conceito de angolanidade, as representações de acontecimentos históricos nos romances angolanos contemporâneos não excluem mas, ao contrário, enfatizam os impasses

e as contradições da História recente do país. Como explica o próprio Pepetela, em diversas

entrevistas, seus livros Mayombe (1980), A geração da utopia (1992), Lueji (1989), Yaka (1984), A gloriosa família (1997) e Parábola do cágado velho (1996) constituem tentativas de reescrever ficcionalmente a nação, a fim de compreender a história de Angola, seja antes do processo de independência, seja depois. A representação da nacionalidade é a questão central de suas narrativas. CHAVES,1999b)

Além de Pepetela, ficcionistas como Luandino Vieira, Boaventura Cardoso e Manuel

(4)

Dossiê – Angola: anotações e reflexões

leitores a um olhar da História, perpassado pelo viés da ficção, configurando-a como um processo feito do cruzamento de olhares diferentes sobre passado. A memória, neste caso, é um recurso que completa as lacunas de veracidade dos fatos que o narrador foi testemunha.

No princípio dos anos 60, três movimentos de libertação (UPA/FNLA, MPLA e UNITA) desencadearam uma luta armada contra o colonialismo português. O governo ditadorial implantado por Salazar (que ficou no poder de 1926 a 1974) recusa-se a dialogar e empenha-se, até o limite, na defesa do último grande império colonial europeu. Com a derrubada da ditadura em Portugal (25 de abril de 1974), abrem-se perspectivas imediatas para a independência de Angola e das outras colônias. Mas, ao invés de ser o início da paz, antes, a independência de Angola significou uma nova e infindável guerra, deixando para trás um capítulo de utopia e dando lugar ao nascimento do desencanto.

Após a independência, começam aparecer as fraturas étnicas e tribais, que desarticulam o ideário nacionalista imposto como modelo à evolução política do país. O MPLA, de formação marxista-leninista, precisa organizar a nação pela perspectiva do modelo ocidental e supõe que a teoria socialista impulsione a superação das diferenças, em nome da igualdade e da liberdade.

A hipotética unidade nacional, vê aos poucos perder sua figuração a cada embate, a cada dificuldade que os homens, com suas diferenças, impõem aos projetos homogeneizadores. O oportunismo, a corrupção instalada nos altos escalões do Movimento, a extrema burocracia do sistema comunista vão solapando o projeto revolucionário, que chega ao limite do descrédito, colocando em cheque a suposta pureza dos ideais marxistas.

Desta maneira, a construção de um país totalmente livre, supra-racial, supra-étnico, choca-se com a perspectiva de uma visão por demais unívoca de um regime unipartidário, cujos dirigentes, para piorar a situação, não se mostram, ao menos em sua totalidade, honestos. Esse é o sentimento que é revelado em A geração de utopia, de Pepetela e radicalizado de modo alegórico e metafórico em Quem me dera ser onda.

Os escritores angolanos, quase todos ligados ao MPLA, como o próprio Manuel Rui, lidam de várias formas com o esfacelamento dos ideais que fundamentaram os projetos revolucionários da modernidade, ora demonstrando o desencanto pleno e sem perspectivas, ora focalizando a manutenção dos ideais utópicos, mas encarando-os de modo menos ortodoxo.

Manuel Rui Monteiro nascido em Huambo em 1941. Depois de ter estudado Direito na Universidade de Coimbra exerce diversos cargos na nova administração: Ministro da Informação do Governo de Transição, professor universitário, Reitor da Universidade de Huambo, funcioná-rio supefuncioná-rior da Diamang, entre outros cargos importantes. Publicou O Regresso adiado ,

(5)

Da palma da mão. A sua prosa ficção está profundamente marcada por preocupações estéticas

de um realismo social que celebra o homem comum. Quando focaliza categorias de personagens da classe média, o faz para produzir caricaturas de comportamentos. É aqui que este autor exibe a sua mestria no tratamento da sátira e da ironia.

Publicado pela primeira vez em 1982, Quem me dera ser onda, de Manuel Rui, no pe-ríodo da independência política, portanto, focaliza, de forma satírica, este aspecto da memória recente de Angola, não como o objetivo de procura salvar o passado para servir como lição de moral para o presente e o futuro. Nesta novela, Rui revisa conceitos e os novos rumos do país, tecendo uma contundente crítica política a Angola pós-colonial. A unidade nacional, revolucio-nária e social, tão sonhada no período da luta anti-colonialista está longe de ser realizada, mes-mo após o entusiasmes-mo cívico resultante da retirada dos portugueses.

Utopia e desencanto

Obra que alcançou grande sucesso de público, haja vista o grande número de edições e tiragens, Quem me Dera ser Onda narra a história de um porco que habita um apartamento na companhia de uma família. Atormentado pela escassez de alimentos em Luanda, Diogo, mora-dor do sétimo andar de um conjunto habitacional, traz um leitão para criar em seu apartamento. No transcorrer da narrativa, o discurso de Diogo remete ao pragmatismo da sobrevivência indi-vidualista: sua maior intenção era parar de comer peixe e variar para a carne de porco.

Ao contrário de Luandino Vieira nos contos de Luuanda (1964), por exemplo, Manuel Rui não busca explorar a linguagem como trabalho de recriação estilística, onde pelo hibridismo lingüístico e cultural, as diferenças seriam a um só tempo encenadas e superadas. Ao contrário, opta por uma estrutura narrativa e lingüística simples, escrevendo no registro da fala, mimetizando inclusive o ritmo e a prosódia da oralidade cotidiana. Vale ressaltar a impregnação de estruturas frásicas, vícios de linguagens, “tiques” e semânticas advindas das línguas autóctones, que são profundamente incorporadas ao português. Rui produz um outro tipo de engajamento crítico, mais explícito politicamente, beirando ou assumindo o panfletário, sem que tal quisesse traduzir falta de qualidade estética.

Afinado com o pensamento bakhtiniano, o prosador, não purifica seus discursos das intenções e tons de outrem, não destrói os germes do plurilinguismo social que estão encerradas neles; não elimina as intenções alheias, nem a maneira de falar, nem as diversidades ideológicas em sua obra, ao contrário, ele se alimenta justamente deste plurilingüismo social. Essa diversidade de vozes faz com que esta novela seja plurilíngüe, pluriestilística e sobretudo

(6)

Dossiê – Angola: anotações e reflexões

plurivocal, por excelência. Como nos ensina Bakhtin: “Esse plurilinguismo social que se introduz no romance com a ajuda do discurso do autor, das personagens e dos narradores é o que possibilita ao romance orquestrar todos os seus temas, semânticos, figurativos e expressivo”. (Bakhtin, 1988:75).

Dentro deste aspecto da utilização dos recursos da linguagem, é fundamental, nesta novela, a sátira que Rui faz com a linguagem falada em Luanda no período pós-independência, recorrentemente marcada por um léxico político-partidário e pelo jargão revolucionário do MPLA, cheio de ataques ao imperialismo,à burguesia e ao tribalismo. Tal jargão aparece em todas as personagens da obra. Cada qual, no entanto, terá sua verdade, criticando as verdades e convicções dos outros, todas igualmente referenciando um modelo único e institucionalizado de discurso.

Ao explicar os objetivos dessa oralidade da língua portuguesa em Quem me dera ser onda, Justo comenta que: “esta metalinguagem se comporta como um elemento fornecedor de

veracidade ao texto, pois o tratamento de “camarada”, a existência de “assembleias de morado-res” ou as “votações por unanimidade”, por exemplo, são reais na Angola da década de oitenta. Mas, por outro lado, quando uma das personagens adultas, o Diogo, se dirige ao porco, o Carna-val da Vitória,o objetivo parece ser outro:

─ Conquistas da revolução! – rejubilou Diogo de braços abertos. – Estás politizado! Isto é que a comissão de moradores devia ver (RUI,1998, p. 26).

Além de humorísticas cenas como estas, entre tantas presentes no texto, exprime o vazio do discurso oficial com as palavras da revolução. O fato de politizar um porco talvez possa ser

anti ou contra-revolucionário. Como contra-revolucionário e jocoso é tratar um fiscal por

“se-nhor fiscal” e não pelo preceptivo “camarada fiscal”.

A cena abaixo também é satírica. As crianças ao chegarem da escola se deparam com o camarada Nazário, um adulto, colando uma cartolina amarela com letras vermelhas:

1º Porque é preciso resolver os problemas do povo deste prédio:

2º Assim é que: está proibida a habitação no seio do mesmo de animais porcos çuínos.

Produção, Vigilância, disciplina Nazário e Faustino

Abaixo a reacção A Luta continua

A Vitória é certa! (1998, p. 21)

As crianças se aproximam e fazem a seguinte intervenção:

─ Desculpe camarada Nazário, mas suíno é com esse, disciplina é antes de vigi-lância e antes da luta continua tem de pôr pelo Poder Popular e no fim acaba ano da criação da Assembléia do Povo e Congresso Extraordinário do Partido! (id.ibid.)

(7)

Aqui presenciamos um jogo dialógico cujos interlocutores não são a fonte dos seus dis-cursos, mas apenas reproduzem o discurso da ideologia partidária do momento. Não funcionam como atores, isto é, intermediários que dialogam e polemizam com os outros discursos já exis-tentes, como quer Bakhtin. O diálogo aqui é monológico, pois há apenas um único discurso sen-do transmitisen-do: o jogo com palavras de ordem sen-do discurso oficial, revelansen-do o vazio de sentisen-do do discurso praticado pelo povo, trazendo para o texto literário as contradições da Angola inde-pendente em construção, em guerra.

Assim é que os "camaradas" moradores do conjunto habitacional Nazário, o síndico, e Faustino, juiz (“assessor popular”) censuram a atitude de Diogo, por ferir a disciplina revolucionária: afinal de contas, engordar um porco num apartamento agride as normas de higiene e, por tabela, a coletividade, Diogo, por suas razões também revolucionárias, condena o "peixefritismo" − como o narrador batiza o hábito alimentar possível num país assolado pela crise, deixando o leitor perceber, a todo momento, a existência de privilégios, ou seja, de gente que se alimenta de carne suína, como Faustino, favorecido pela sua condição de assessor popular. Nas entrelinhas do discurso do Diogo, vislumbra-se o cenário da corrupção generalizada:

− Isto ainda vai dar uma maka com o Instituto de habitação. − Com quê, Liloca?

− Qual Instituto qual merda, bando de corruptos que arranjam casas só pròs amigos. Eu sempre paguei renda. E casas que não têm porco estão mais porcas do que esta. (p. 11)

O leitão, batizado de Carnaval − devido à alegria que em breve proporcionaria − torna-se o centro das atenções afetivas do leitor, que torce com pelo adiamento do sacrifício do animal, à medida que Zeca e Ruca, filhos de Diogo, e Beto, filho de Nazário, tomam-se de amores pelo bicho, numa afeição gratuita de animal de estimação.

Rebatizado como “Carnaval da Vitória” − o nome da festa máxima da civilidade angolana, que marca a derrota da FNLA − o porco tem sua vida prolongada pela astúcia dos garotos, que, por meio da falsificação de um ofício em papel timbrado da Justiça, furtado de Faustino, obtêm restos de carne num hotel de luxo. No "ofício", a alegação de que a carne estaria destinada a cães que, por serem "estatais", comeriam todos os dias, deixa claro o cenário desolador de desigualdade na sociedade angolana.

O nome do animal tem uma conotação altamente irônica, pois é concedido ao porco quando os garotos conseguem espertamente expulsar um fiscal do governo que, movido por denún-cias, viera à casa de Diogo verificar a existência do delito. Para despistar o fiscal, que vascu-lhava o apartamento e estava prestes a encontrá-lo atraído pelas denuncias, as crianças criam

(8)

Dossiê – Angola: anotações e reflexões

um qüiproquó para despistar e confundir o fiscal. Após suspeita do fiscal que a casa cheira a porco, um dos meninos responde:

− Cheira porque é o vizinho camarada Fautino que costuma ter porco −afirmou Ruca mostrando convicção. − Se o senhor é ladrão de porcos, pode ir lá. − Senhor não, camarada. E não sou ladrão sou fiscal.

− Ai é? Então tem de ir lá mesmo, que a dona também faz quitanda de dendém... − E fazem caporroto2 à noite − acrescentou Zeca (p. 14)

Estes jogos de equívocos deixam entrever uma sátira mordaz a um regime econômico que não tem condições para realizar, na prática, o que pretende no plano teórico, abrindo flancos para que a população, em estado de penúria, se vê obrigada a praticar pequenos delitos como o comércio clandestino, para sobreviver.

Vitória para uns, derrota para outros: a partir de então, os blocos de "irmãos" angolanos lutam em torno do porco e não será mera coincidência a analogia histórica e a existência dos dife-rentes discursos e ações do MPLA, da FNLA e da UNITA.

Como bem analisa Maurício Martins do Carmo, a “alegorização do esfacelamento unitário da sociedade angolana irá tornar-se dramática, uma vez delineados os verdadeiros pólos antagônicos da história: não mais os contra e os a favor da comilança; mas os a favor e os contra o porco” (2006). Para os adultos, “Carnaval da Vitória” se configura como problema prático: ou atrapalha a disciplina revolucionária ou precisa ser engordado num apartamento, ou não pode com seus grunhidos incomodar os vizinhos.

Para as crianças, o bicho consiste em ideal gratuito de amor − torna-se um corpo estranho na rede de interesses do mundo adulto. O porco torna-se também estranho: para manter-se calmo, é tratado com bastante comida e torrões de açúcar, além de ouvir música com fones de ouvido. Mantido nessas condições, o porco, segundo o jargão revolucionário de Diogo, “aburguesa-se”; já na visão dialética dos garotos, “Carnaval da Vitória” aburguesa-se por culpa do pai, que o trata com regalias, a fim de obter a retribuição de futuras bistecas e lingüiças.

A inocência do porco e das crianças forneceria ao leitor alta carga sentimental, não fosse a intensa ironia que atravessa a narrativa, reforçando a estranha relação de amizade (porco/crianças) com as pequenas injustiças do autoritarismo cotidiano. Como observa Maurício Martins, “embora marcado o distanciamento pelo humor, a crítica não deixa de ser feroz, tornando-se angustiante, à medida que a realidade degradada entra em choque com as palavras de ordem esvaziadas de sentido”.

2 Caporroto é uma bebida alcoólica tipo aguardente, produzida a partir de destilação de fermentado de açúcar com

(9)

A revolução é que diz o parece implícito no texto, está apenas na utopia dos garotos, que desejam seu amigo suíno vivo; do lado contrário, a revolução concreta se perde na prática autoritária. Primeiro, na posição totalitária de Diogo, que submete a família aos caprichos de seu humor. Segundo, por Nazário e Faustino, que encaram os fatos como questão pessoal, para teste de suas pequenas autoridades.

Finalmente, o autoritarismo oficial é exposto numa bela passagem do livro, em que a professora dos garotos é convocada a se retratar por ter permitido a livre criação de seus alunos num concurso de redações. Como “Carnaval da Vitória” gozava de muita popularidade na escola, todos escolheram, como tema de redação, o porco. A comissão governamental vê nesse gesto uma atitude anti-revolucionária, já que os trabalhos deveriam abordar temas cívicos − "revolucionários" − previstos institucionalmente.

Ao exercitar a liberdade, a professora − único adulto que, podendo utilizar-se de autoritarismo, não o faz − acaba punida. Assim, o autoritarismo, no livro, não tem como centro privilegiado a política, mas é abordado em diversas instâncias de poder disciplinar, diluído nas práticas sociais, ou em sua microfísica como nos ensina Foucault:

Por dominação eu não entendo o fato de uma dominação global de um sobre os outros, ou de um grupo sobre o outro, mas as múltiplas formas de dominação que podem se exercer na sociedade. Portanto, não o rei em sua posição central, mas, os súditos em suas relações recíprocas: não a soberania em seu edifício único, mas as múltiplas sujeições que existem e funcionam no interior do corpo social” (FOUCAULT, 1989, p. 181).

Se a professora revela uma exceção, os garotos parecem os únicos a manterem atitudes gratuitas de amor, independente dos grupos familiares a que se vinculem. A inocência das crianças, em tempos pós-coloniais, evoca já a possibilidade de se manter, mais do que a simples inocência, a utopia sagrada do ideal revolucionário, desestruturado no autoritarismo da prática sóciopolítica angolana. “Carnaval da Vitória”, é sacrificado para virar churrasco, em pleno carnaval da vitória, a festa, em cujo cenário se dá o ponto final das inversões carnavalizantes. Pela estratégia da paródia, tais inversões são processadas, no texto de Manuel Rui, num crescendo de tensões, que acabam por carnavalizar, bakhtinianamente, a própria imagem do carnaval. Os três garotos, curtindo um verdadeiro "carnaval da derrota", percebem as pessoas apenas assistindo ao carnaval, atentas às tribunas de honra, não à rua. O narrador alegoriza:

Toda a gente corria no mesmo sentido. Em direcção à zona das tribunas − Não vamos por aí − comandou Ruca. − Melhor é a gente ir no princípio. [...] − Só a gente é que não vai nas tribunas.

− Nada, Beto. Vamos dar encontro com mais pessoas que vão ver sair o carnaval onde ele começa.

(10)

Dossiê – Angola: anotações e reflexões

− Não sei. Mas porque é que toda a gente há-de querer ficar nas tribunas? (1998, p. 62)

Com o sacrifício de Carnaval da Vitória, frustra-se o leitor na esperança de ver um sonho improvável realizado, a utopia impalpável, em que uma gratuita revelação anímica movimenta os seres humanos num ambiente de harmonia. A expressão máxima dessa utopia, em que não há a contingência da fome e das necessidades concretas, é expressa por Beto, que, reunido com os filhos de Diogo, no momento mesmo em que poderia estar ocorrendo o desenlace trágico da morte do porco, responde com um achado lírico a outro de Ruca:

Ali defronte, abriam-se aos olhos de Ruca as vagas que rebentavam lá em baixo: "Sim, vão matar.

Que mistério era aquela grandeza de espuma branca, eriçando o mar? − Vocês não gostavam de ser onda? − Deve ser bom. Assim por cima da água nem é preciso saber nadar. Quem me dera ser onda! − e Beto abria os braços” (Id. Ibid.: 63).

Diante dessa perspectiva de utopia libertária, de evasão total, que promove uma ruptura entre a vida e a História, Zeca faz reparos à observação de Beto e Ruca:

“− Mas Ruca [...] não se pode ser onda. Ainda se uma pessoa fosse entrava com essa força do mar onde a gente queria. Onda ninguém amarra com corda. Os outros perceberam. Zeca tinha voltado o olhar lá bem para o fundo nos contornos da Corimba. Território de ‘carnaval da vitória’. Livre. Vadio na chafurda despreocupada” (Id., ibid.: 63).

Os meninos, desolados, nem sequer têm a possibilidade de ver, em torno da comilança, a reconciliação dos adultos − Nazário e Faustino são generosamente convidados por Diogo e aceitam de bom grado desfrutar do animal que, vivo, pretendiam longe do condomínio. As crianças, alheias à festa ilusória da carne, apenas têm força para intuitivamente perceberem como deve ser bom ser uma onda, livre, sem amarras, natureza pura, inocente, sem o peso da história a determinar-lhe os movimentos.

Nesse vaivém de onda, Manuel Rui problematiza o complexo processo revolucionário, levando o leitor a perceber as frágeis fronteiras entre a utopia e o exercício do poder, entre o sonho e a realidade, entre a vitória dos ideais revolucionários e a diluição desses mesmos ideais nas malhas da nova rede de poder que a luta para sua implantação acaba por gerar.

REFERÊNCIAS

CARMO, Maurício do M: “De Corpos (e Porcos) Estranhos: o Marco de Quem Me Dera Ser

(11)

http://www.estacio.br/graduacao/letras/trabalhos/docente/mauricio_decorpos.asp. acesso em 10 de março de 2006.

CHAVES, Rita. Pepetela: romance e utopia na história de Angola. Via Atlântica, USP, n. 2, p.217-233, São Paulo, 1999.

______. A formação do romance angolano. Maputo; São Paulo: FBL; Via Atlântica USP, 1999. ______. Angola e Moçambique; experiência colonial e territorios literários. São Paulo: Ateliê, 2005.

BAKHTIN, M. Questões de literatura e estética ( a teoria do romance).São Paulo: Unesp/Hucitec, 1988.

_______Problemas da poética de Dostoievski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1981.

FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 8.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1989.

HAMILTON, Russell G. A literatura dos PALOP e a teoria pós-colonial in http://www.geocities.com/ailbr/aliteraturapalopteoriaposcolonial.htm. Acesso em 16 de março de 2007.

JUSTO, P.C. Manuel Rui e Quem me dera ser onda. Exemplo de novas tomadas de posição

dentro do campo literário angolano. In: Estudos Pós-Coloniais e lusofonias.

http://sexta-feira.dyndns.org/congregagos/x/onda.html. Acesso em 29 de março de 2006.

PEPETELA. A geração da utopia. 3. ed. Lisboa: Dom Quixote, 1995. RUI, Manuel. Quem me dera ser onda. Edições Cotovia, Lisboa, 1998

Paulo Andrade

Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letra (UNESP) – Departamento de Literatura. Araraquara – SP – Brasil. pauloandrade@fclar.unesp.br

Referências

Documentos relacionados

Você está pronto para a

que o traço estilístico do poeta, quando tem como base a simplicidade, é um fator que está a serviço de seu ideal poético, pois a revelação simbólica da poesia, para o poeta,

favorecida), para um n´ umero grande de poss´ıveis lan¸ camentos, esperamos que a frequˆ encia de cada face seja parecida. • Em outras palavras, esperamos que a frequˆ encia

(2017) Clinical Significance of Androgen Receptor Splice Variant-7 mRNA Detection in Circulating Tumor Cells of Men With Metastatic Castration-Resistant Prostate Cancer Treated

Com relação ao tema do artigo, do total, 6 abordavam a problemática referente ao aborto na adolescência, 6 debatiam sobre o uso e conhecimento de métodos

Estudos que analisam a dinâmica dos rendimentos por meio de componentes permanente e transitório permitem a identificação do comportamento da renda como sendo

Em Campinas, São Paulo, o Ambulatório de Violência contra Criança e Adolescentes (VCCA), localizado no Hospital das Clínicas (HC) da Universidade Estadual de

Este trabalho se justifica pelo fato de possíveis aportes de mercúrio oriundos desses materiais particulados utilizados no tratamento de água, resultando no lodo