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As terras do grande espírito : políticas indigenistas nos Estados Unidos do século XIX

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

RICARDO AMARANTE TURATTI

AS TERRAS DO GRANDE ESPÍRITO: POLÍTICAS INDIGENISTAS

NOS ESTADOS UNIDOS DO SÉCULO XIX

CAMPINAS 2019

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RICARDO AMARANTE TURATTI

AS TERRAS DO GRANDE ESPÍRITO: POLÍTICAS INDIGENISTAS NOS ESTADOS UNIDOS DO SÉCULO XIX

Tese apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Doutor em História, na área de História Cultural.

Orientador: Prof. Dr. Leandro Karnal

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELO ALUNO RICARDO AMARANTE TURATTI E ORIENTADA PELO PROF. DR. LEANDRO KARNAL.

CAMPINAS 2019

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Cecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/3387

Turatti, Ricardo Amarante,

T84t TurAs terras do grande espírito : políticas indigenistas nos Estados Unidos do século XIX / Ricardo Amarante Turatti. – Campinas, SP : [s.n.], 2019.

TurOrientador: Leandro Karnal.

TurTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de

Filosofia e Ciências Humanas.

Tur1. Política indigenista - Estados Unidos - Séc. XIX. 2. Nativos - Relações

com o governo. 3. Estados Unidos - Política e governo. I. Karnal, Leandro, 1963-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: The great spirit lands : indigenous policies in the 19th century

United States

Palavras-chave em inglês:

Indigenous policy - United States - 19th century Natives - Government relations

United States - Politics and government

Área de concentração: História Cultural Titulação: Doutor em História

Banca examinadora:

Leandro Karnal [Orientador] José Alves de Freitas Neto

Luiz Estevam de Oliveira Fernandes Janice Theodoro da Silva

Mary Anne Junqueira

Data de defesa: 28-06-2019

Programa de Pós-Graduação: História

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)

- ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0002-4732-8957 - Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/8118917529859337

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos Professores Doutores a seguir listados, em sessão pública realizada em 28 de junho de 2019 considerou o candidato Ricardo Amarante Turatti aprovado.

Prof. Dr. Leandro Karnal (orientador) Prof. Dr. José Alves de Freitas Neto

Prof. Dr. Luiz Estevam de Oliveira Fernandes Profª Drª Janice Theodoro da Silva

Profª Drª Mary Anne Junqueira

A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertações/Teses e na Secretaria do Programa de Pós-Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

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Para o meu avô Homero (1929-2009)

E para todos os nativos que tombaram – e ainda tombam – na luta para serem reconhecidos como seres humanos.

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Agradecimentos

Na virada do ano de 2007 para 2008, estava eu aguardando o resultado do vestibular da Unicamp que, com suas duas fases e diversos dias de prova, fazia – e ainda faz – os candidatos passarem por certo momento de forte ansiedade nesse período de final de ano. Pois foi no alvorecer do ano de 2008 que recebi a notícia da minha aprovação para o curso de História, o que iniciou uma jornada acadêmica e profissional que encontra uma espécie de fechamento com a defesa desta tese, finalizada uma década depois do início do caminho.

Recordo-me com nitidez de que a primeira pessoa a me dar os parabéns pelo ingresso na universidade pública – termo que sinto a necessidade de reforçar, pelos ataques constantes à ideia de uma universidade aberta a todos – foi o meu avô Homero Dal Poggetto Amarante, pessoa cujo nome reunia as marcas dos antepassados imigrantes, portugueses e italianos, além da admiração que seu pai possuía pela poesia épica. Meu avô foi também um dos responsáveis indiretos pelo texto que aqui está, por motivos que ele nunca veio a saber. Parte do fascínio que possuo pelo oeste americano e pelas relações entre os descendentes de anglo-saxões e europeus em geral com os nativo-americanos foi transmitida a mim por revistas em quadrinhos de Tex e por filmes de faroeste. Comecei a assistir a esses filmes, gravados da televisão em formato VHS, na casa de meus avós maternos. Um detalhe curioso é que fui apresentado, ainda criança, não aos clássicos de John Wayne, no qual um disparo do herói derrubava dezenas de indígenas, mas a películas um pouco mais sensíveis às questões dos nativos, como Um Homem Chamado Cavalo, que mereceu um espaço para análise no último capítulo desta tese e que é um filme muito violento para crianças pequenas assistirem. Mas, para minha sorte, eu o fiz. Caso tivesse visto simplesmente cowboys exterminarem apaches, na estrutura tradicional dos westerns, talvez minha sensibilidade social em relação à história estadunidense tivesse demorado mais para despertar, ou não teria aflorado de forma alguma.

Meu avô faleceu em março de 2009, no mesmo período em que meu trabalho de pesquisa se iniciava, ainda nos tempos de graduação. Durante todo o processo complicado de estudos e de vestibular, ele havia dito que queria me ver doutor, que vem a ser o título que esta tese, caso aprovada, será concedido a mim. Meu avô não está aqui para ver meu doutoramento, como queria, mas sua memória está e continuará a ser lembrada. Meu primeiro agradecimento vai a ele, por ter me apresentado a uma nova jornada cultural e pelo refúgio em momentos difíceis, mostrando-me que o humanismo não é algo tão antiquado quanto nosso mundo contemporâneo e suas teorias interpretativas fazem crer.

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O registro de pessoas e instituições que tenho a agradecer vai provavelmente ser injusto com alguns, já que o trabalho acadêmico – e a vida cotidiana, num aspecto mais amplo – nos mostra de forma enfática que pesquisas não são construídas sozinhas, e que viver só para si é uma tarefa triste e insuportável. No final das contas, a escrita é um trabalho razoavelmente solitário, mas o caminho percorrido antes que o texto cristalize o estudo é juncado de auxílios, percalços, pessoas que muito ajudam e algumas outras que atrapalham. Dessa forma, é inevitável que algumas pessoas que colaboraram com a feitura deste trabalho, direta ou indiretamente, não estarão listadas aqui, e para elas eu peço desculpas.

Por me permitirem garantir a subsistência durante o período do doutorado, agradeço ao CNPq1 e à Capes2, pela bolsa regular de doutorado e pelo doutorado-sanduíche, sem o qual a tese seria algo muito mais raso e com uma fundamentação bibliográfica e documental bastante defasada. Como escrevo este texto em um momento político um tanto quanto problemático, insistir na importância do financiamento à pesquisa deixa de ser um mero requisito burocrático e formal, mas uma afirmação da importância fundamental que essas agências de fomento possuem para a continuidade da pesquisa brasileira e para a manutenção de uma série de grandes pesquisadores do nosso país.

Pela orientação desde os idos de 2009, pelas conversas que cobrem assuntos desde Shakespeare até filmes de Tarzan, deixo meu muito obrigado ao Prof. Leandro Karnal, que me acompanhou durante a graduação, com a minha iniciação científica, e seguiu me orientando no mestrado e agora no doutorado. Minha maior dívida para com ele não diz respeito à burocracia acadêmica ou aos pormenores do doutorado, mas sim à liberdade a mim concedida. Liberdade para ler, interpretar, apresentar minhas ideias, discutir as teses que apareciam, concluir, seguir caminhos próprios. Em suma, liberdade para pensar.

Na expansão do pensar, é necessário o registro da importância do período do estágio no exterior, passado nas deslumbrantes – e por vezes sinistras – instalações da Yale University. Muito me ajudaram nisso a equipe da universidade, principalmente o mal-humorado bibliotecário Frank, da majestosa Sterling Memorial Library. A comunidade acadêmica de Yale, entre a qual se encontra o extraordinário trabalho do Yale Group for the Study of Native America, trouxe-me uma nova perspectiva para o estudo dos nativo-americanos, e meu inspirador principal nesse sentido foi o Prof. Ned Blackhawk, exemplo de intelectual comprometido e autor de um belíssimo trabalho para inclusão de minorias na

1 Bolsa de doutorado regular, concedida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

(CNPq), processo nº 140085/2016-5.

2 O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível

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universidade. Estendo meu obrigado a Kelly Fayard, reitora do Native American Cultural Center, que abriu as portas do centro cultural para mim, no momento em que eu ainda estava me adaptando aos Estados Unidos e que New Haven ainda me assustava. Era um momento em que eu queria abandonar aquela cidade da Nova Inglaterra que parecia cenário de um romance de Stephen King e ir para Nova York ou para a Philadelphia. Mas esse período inicial passou, e muito me ajudaram nisso minhas queridas amigas Alrun e Ariadna – que me auxiliaram a manter a sanidade em meio a pessoas um tanto peculiares sobre as quais não posso me estender muito, para não incorrer em falta de ética –, e também a pizza de New Haven, tida pelos locais como a melhor dos Estados Unidos.

Dentre os demais professores que me auxiliaram a construir este trabalho, destaco o Prof. José Alves de Freitas Neto e o Prof. Luiz Estevam de Oliveira Fernandes, que participaram da minha banca de qualificação e acompanham meu trajeto desde há tempos. São intelectuais com os quais, concordando ou discordando, aceitando sugestões ou recusando-as, modificando o trabalho por conta de um comentário perspicaz ou reforçando um ponto criticado exatamente por discordar da crítica feita, sempre se aprende e constrói-se um caminho de crescimento intelectual. Ambos aceitaram integrar a banca para a defesa da tese, no que eu também os agradeço, juntamente com os demais integrantes, que são, entre titulares e suplentes: Profª Janice Theodoro da Silva, Profª Mary Anne Junqueira, Prof. Rui Luis Rodrigues, Profª Eliane Moura da Silva e Prof. Arthur Lima de Ávila.

Outro professor que não posso deixar de mencionar é Sidney Chalhoub, que ministrou o curso de Introdução ao Estudo da História para minha turma de graduação em 2008 e se tornou, para mim, um dos modelos de historiador com método de pesquisa preciso e estilo de escrita impecável. O Prof. Sidney influenciou todo meu percurso como historiador, e felizmente tive a oportunidade de conversar com ele sobre isso, em um café hipster de Cambridge, ao lado de Harvard, universidade na qual ele mais do que merece ter um cargo.

Aos meus colegas de pesquisa, meus companheiros americanistas, obrigado pela presença na discussão de assuntos comuns e na tentativa de solucionar problemas acadêmicos que afligem a todos. Ana Carolina, Eduardo, Gabriela, Maria Emília e Saulo foram colegas e amigos que compartilharam ideias, textos, teorias e perplexidades. Juntos formamos o Laboratório de Estudos Americanos (LEA – Unicamp), organizamos um evento e continuamos a propor a expansão do campo de estudos sobre as Américas no ambiente universitário brasileiro.

Para os amigos muito queridos que me ajudaram a seguir adiante, dando-me apoio constante e proporcionando belos momentos, um grande abraço. Leandro e Mateus, desde os

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nossos tempos de graduação estamos conversando sobre o mundo e reclamando das coisas. Agora estamos quase ingressando na terceira década de nossas vidas. Um de nós já atravessou o portal dos trinta, mas não revelarei quem. A tendência é que cada vez mais os que nos cercam – principalmente os alunos – achem que somos três chatos que não gostam de nada. Mas pelo menos gostamos uns dos outros. Nossa amizade foi uma das melhores coisas que guardo de meu ano de calouro na Unicamp.

Thiago, meu grande amigo das conversas rizomáticas, espero que nossos pensamentos continuem desordenados e sem seguir nenhum tipo de lógica formal. Obrigado pelo caos dialógico e também pelo exemplo de seriedade como pesquisador que você representa. Ler um texto seu é um grande prazer, dividido entre rir da fina ironia distribuída pelas suas linhas e em caçar os diversos arcaísmos – ou deveria dizer barroquismos – em sua escrita.

Leandro – outro Leandro aqui: há muitos indivíduos com esse nome na minha vida, incluindo meu pai – e Vitor, amigos que datam desde os tempos do Ensino Fundamental, obrigado por não terem se tornado adultos que se esqueceram dos princípios que seguiam quando crianças. Boa parte dos meus ex-colegas de escola da infância se tornaram homens da reação, é uma felicidade ver que vocês dois não consideram o que eu faço uma coisa de “vagabundo doutrinador comunista financiado pela Lei Rouanet com dinheiro público do MEC para fumar maconha no IFCH”.

Dani, esteja onde estivermos, você continua sendo a luz da minha vida, trazendo sossego e sorrisos até mesmo onde parece não haver nenhum tipo de fresta que permita ao sol entrar. Mesmo quando atravessamos períodos complicados – seja complicado para mim, para você, ou para os dois – te ver me dá força, me traz uma certeza de que existe um caminho e, mais importante de tudo, existe alguém que me entende e que compartilha de parte dos meus sentimentos e sensibilidades. Quero que você seja muito feliz: é uma pessoa que, de acordo com minhas humildes crenças, não merecia sofrer. Beijos e abraços para você.

Felipe, da mesma forma que meus amigos da época do Ensino Fundamental, mencionados em parágrafo anterior, você é uma amizade dos meus tempos de Ensino Médio que ainda ficou, e que sempre se renova. Além de não ter se tornado um reacionário, o que por si só já seria uma vitória, também é um grande exemplo de pesquisador e estudioso na área de ciências humanas, lidando com temas pouco explorados ainda no Brasil, apesar de intensamente necessários. Compartilhamos a amizade e também aspectos de nossos trabalhos, já que ambos tocamos na questão do extermínio de populações nativas, eu me concentrando na América do Norte, você na região do Congo. Temas tristes, complexos, delicados. Mas a

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resistência passa pela tristeza e pelo enfrentamento dos horrores, pela exposição das lacunas deixadas na história oficial e pelo respeito à memória daqueles que deixaram o corpo cair sobre o solo ensanguentado. Que a luta continue.

Para descrever a próxima pessoa a quem devo dizer obrigado vou me utilizar de parte da gíria teen hipster cool das gerações mais novas, jargão ao qual não sou muito afeito, mas, nesse caso, ele é muito adequado. Aline, você que está sempre em estado pistola – e aqui está o jargão, que significa uma pessoa brava, estourada – me traz uma vontade de ressignificar a própria gíria. Em relação à sua pessoa, gosto de pensar que estar pistola significa um entendimento profundamente racional do mundo e uma postura combativa perante a realidade, sabendo onde estão os problemas e se recusando a deixar de vê-los. Mais do que utilizar a palavra em tom de humor, eu o faço com carinho, pois é algo que te caracteriza de uma forma quase que brutalmente poética. Acredito que, no caminho que irá traçar, você se tornará um expoente da sua área. Apenas descanse quando tiver que descansar, dê tempo para o mundo e para você mesma, e lute quando tiver que lutar. Muito obrigado por ter me ouvido em uma fase não muito animadora da minha existência, e por me ajudar a restaurar forças que eu nem sabia que ainda possuía.

Não posso me furtar a agradecer aos autores que li para a feitura deste texto, tenha gostado do trabalho desenvolvido por eles ou não; aos que discutiram o tema comigo, seja de forma privada ou em eventos; e também aos artistas que me ofereceram alento e inspiração para a escrita, além de terem colaborado para minha formação cultural. Como a tese versa sobre o século XIX nos Estados Unidos, quero mencionar alguns intérpretes culturais do oeste que agora me ocorrem, sejam eles atores, diretores, escritores ou artistas gráficos. Entre eles, destacam-se John Ford, Arthur Penn, Sam Peckinpah, George Stevens, John Wayne, Sergio Leone, Mercedes McCambridge, Joan Crawford, Sterling Hayden, Lee Van Cleef, Clint Eastwood, Eli Wallach, Gian Maria Volonté, Howard Hawks, Henry Fonda, Charles Bronson, Claudia Cardinale, Jason Robards, Fabio Civitelli, Giovanni Ticci, Claudio Nizzi, Gary Cooper, Montgomery Clift, Yul Brinner, Steve McQueen, Ian McShane, James Stewart, Sergio Bonelli, Cormac McCarthy, Zane Grey, Louise Erdrich. São muitos e muitos estão faltando. Os nomes aqui listados foram adicionados de acordo com minha memória, não há nenhum grau de hierarquia entre eles. Porém, para encerrar a lista, gostaria de hierarquizar um pouco as coisas e mencionar a importância de Giovanni Luigi Bonelli e Aurelio Galleppini, os criadores do cowboy herói dos quadrinhos, Tex Willer. Por mais que as histórias da personagem trouxessem o mito do oeste – algo que eu considero extremamente danoso para a construção histórica e social dos Estados Unidos – o fato de Tex ser o chefe branco dos

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Navajo – uma imprecisão histórica brutal – sempre me comoveu e animou a enxergar naquele homem texano um exemplo de justiça, retidão ética, moral inflexível e tolerância com os justos, ao mesmo tempo em que era implacável com os desmandos dos vilões de suas histórias. Se é possível que um homem do Texas, personagem criado por uma dupla de italianos para uma tira de jornal em 1948 e que até hoje é publicado, ganhe o respeito dos Navajo e viva em paz com eles em uma reserva no Arizona, deve ser possível que mais membros da sociedade estadunidense aprendam a aceitar as minorias que se encontram no território e que também formaram o país.

A lista já é longa, então encerro por aqui. Só resta um agradecimento final: agradeço a todo e qualquer leitor que se disponha a acompanhar estas páginas por mim escritas.

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“ ‘O quê? Não existe ‘religião nacional’ nos Estados Unidos, meu chapa, lá nós temos liberdade de culto, garantida pela Constituição – a Igreja e o Estado são separados, pra gente não acabar que nem os ingleses, marchando no meio do mato com gaita de fole e metralhadora Gatling, procurando infiéis para exterminar. Nada de pessoal, é claro.’

“Os cherokees”, replicou Prance, “os apaches, os massacres dos Dançarinos Fantasmas sioux em Wounded Knee, todos os peles-vermelhas que vocês encontraram, ou bem os tentaram converter pro cristianismo ou bem simplesmente os mataram.”

“Isso era uma questão de terras”, disse Kit.

“Pois eu afirmo que era por medo dos pajés e das práticas estranhas, das danças e drogas, que permitem aos seres humanos entrar em contato com os deuses poderosos que se escondem no terreno, sem necessidade de qualquer igreja oficial para atuar como mediadora. A única droga que vocês aceitam é o álcool, e foi com o álcool que vocês envenenaram as tribos. Toda a vossa história na América não passa de uma longa guerra religiosa, cruzadas secretas, disfarçadas com nomes falsos. Vocês tentaram exterminar o xamanismo africano seqüestrando e escravizando metade do continente, dando-lhes nomes cristãos e enfiando-lhes pela goela abaixo a vossa versão da Bíblia, e veja só no que deu.”

“A Guerra de Secessão? Foi uma questão de economia. Política.”

“Foram os deuses que vocês tentaram destruir, aguardando a hora deles, vingando-se. Vocês realmente acreditam em tudo o que lhes é ensinado, não é?”

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RESUMO:

A pesquisa pretende estudar a política indigenista dos Estados Unidos no século XIX, buscando compreender como, após a independência do país, a expansão territorial da sociedade estadunidense se impôs de forma agressiva à população nativa, entendendo esse processo por meio de uma dinâmica cultural estabelecida durante o período colonial. O questionamento a ser feito envolve o lugar – no sentido mais amplo do termo, contendo as noções de espaço, de cultura e de sociedade – atribuído ao indígena pelos colonizadores ingleses, e a maneira como essas relações de alteridade acabaram por formar uma separação cultural que levou a intermitentes conflitos, culminando com os massacres no século XIX. As fontes centrais para a exploração do tema são documentos oficiais do governo estadunidense, com destaque para os relatórios anuais do comissário dos Estados Unidos para assuntos indígenas (US Comissioner of Indian Affairs), principalmente os apresentados ao governo dos EUA durante a gestão de Ely Samuel Parker, primeiro nativo a ocupar o cargo, entre os anos de 1869 a 1871. Outras fontes relacionadas à colonização ou às políticas oficiais direcionada para os nativos podem ser exploradas, na intenção de analisar as interações entre colonos e indígenas durante a formação da sociedade das treze colônias e as relações estabelecidas com as instâncias de poder no já independente Estados Unidos da América.

PALAVRAS-CHAVE:

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ABSTRACT:

The reseach intends to study the United States indigenous policy in the 19thcentury, exploring how, after the independence, the territorial expansion of the U.S. society imposed itself to the native population, in an agressive way. This process can be understood by a cultural dynamic established during colonial times. The question to be made concerns the place – adopting a larger significance to the term, including notions such as space, culture and society – assigned to the native by the English colonizers and the ways in which these alterity relations shaped a cultural division that led to intermittent conflicts, culminating with the massacres in the 19th century. The main sources for the exploration of this theme are official documents from the U.S. government, especially the yearly reports of the U.S. Comissioner of Indian Affairs, focusing on those presented during the period in which Ely Samuel Parker was in office. Parker was the first native to fill the position, between the years 1869 to 1871. Other sources connected with colonization or with the official policies directed to the natives can be explored, trying to analyze the interactions between settlers and natives during the construction of the thirteen colonies society and the relations established with the instances of power in the independent United States of America.

KEYWORDS:

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Sumário

Introdução ... 16

Capítulo 1: O Jardim Interdito ... 31

Capítulo 2: A Nação e a Fronteira ... 82

Capítulo 3: Guerreiro em Múltiplas Frentes ... 126

Capítulo 4: A Morte dos Bisões ... 177

Capítulo 5: A Queda do Selvagem ... 239

Conclusão ... 293

Fontes ... 305

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Introdução

O centro deste trabalho, o objetivo das páginas que se seguirão, é explorar as formas tomadas pela política indigenista nos Estados Unidos da América. O momento privilegiado de análise é o século XIX, com destaque ao período entre os anos de 1830 e 1890. Mais detalhes sobre o recorte temporal e sobre sua escolha serão fornecidos ainda nesta introdução, já que, em uma tese que também estende seu olhar para o período colonial e para a renovação historiográfica ocorrida no século XX, propor uma meta clara e uma justificativa para possíveis explorações paralelas a este objetivo principal se faz imprescindível. Dessa forma, as páginas introdutórias buscam estabelecer um panorama da política indigenista no século XIX, dividindo-a no que considero três momentos principais; mas também procura justificar a existência do trabalho e identificar suas origens e motivações.

O desenvolvimento da tese não seguiu um caminho direto, sendo que a ideia inicial para a pesquisa não se relacionava diretamente ao espaço geográfico e ao recorte temporal que o trabalho terminou por abordar. A motivação primordial veio de palavras de um documento, escrito em espanhol, lidas em voz alta. O leitor, um oficial hispânico vivendo o processo de conquista e de início da colonização da América. O público, ouvinte da leitura, composto por nativos americanos, falantes de línguas diversas do espanhol, mas componentes fundamentais na empreitada de legitimação do processo colonizador e catequizador instituído pela coroa espanhola. O documento em questão era chamado de Requerimiento, escrito por Juan López Palacios Rubios3, e representava parte fundamental da cerimônia de

estabelecimento dos laços coloniais entre o império espanhol e os nativos americanos, ao longo do século XVI. A citação de um trecho pode exemplificar os meandros do ritual de justificação da conquista, cerimônia que não só possui sentidos políticos e religiosos, mas também culturais e filosóficos:

“(...) Portanto, imploro-lhes e exijo, da melhor forma possível... [que] reconheçam a Igreja como senhora suprema do universo, e o altíssimo Papa... em seu nome, e Sua Majestade em sua posição de senhor superior e rei... e consintam que esses padres religiosos declarem e preguem... e Sua Majestade e eu em seu nome os receberemos... e deixaremos livres suas mulheres e filhos, sem servidão, de modo que com eles e consigo mesmos vocês poderão fazer livremente o que desejarem... e nós não os forçaremos a se tornarem cristãos. Mas se não o fizerem... com a ajuda de Deus, invadirei suas terras à força, e farei guerra onde o como puder, e submetê-los ao jugo e à obediência da Igreja e de Sua Majestade, e tomarei suas

3Juan López Palacios Rubios, nascido Juan López de Viveros (1450-1524): jurista espanhol, catedrático na

Universidade de Valladolid, e nome importante na política administrativa dos reis católicos Fernando e Isabel. Em 1512, realizou a redação do Requerimiento.

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mulheres e seus filhos, tornando-os escravos... e tomarei seus pertences, fazendo-lhes todo o mal e causando-fazendo-lhes todos os danos que um senhor pode causar aos vassalos que não o recebem nem lhe obedecem. E declaro solenemente que a culpa pelas mortes e danos sofridos por essa ação será sua, e não de Sua Majestade, nem minha, nem dos cavalheiros que comigo vieram.” 4

A leitura do Requerimiento busca oficializar um processo complexo como o encontro de culturas. Por meio de uma cerimônia religiosa, militar e política, os oficiais espanhóis buscam a legitimação da tomada de posse do território americano. Como se pode observar pelo trecho citado, o documento, ao mesmo tempo em que incita a conversão ao catolicismo, também dirige aos nativos uma declaração de guerra. Caso não aceitem a religião e o domínio dos reis católicos, os habitantes do Novo Mundo poderão ter suas terras invadidas e serem escravizados. Ameaças são dirigidas, mesmo que em língua diversa à utilizada pelas culturas indígenas que ouvem a leitura do texto. Tzvetan Todorov, em seu ensaio A Conquista

da América, aborda o Requerimiento como um instrumento de apoio aos intérpretes desse

encontro de culturas, formando um processo desigual e favorecendo uma pretensa superioridade europeia5. Como muitos desses ouvintes não entendiam as palavras ditas pelo

oficial espanhol, podemos concluir que a função principal da comunicação do Requerimiento é definir formalmente a posse do território americano e a aliança político-religiosa que leva adiante o processo de colonização. É uma cerimônia de posse, como estuda Patricia Seed6.

Fazendo um deslocamento geográfico, e apresentando o que será o centro da pesquisa, apresento agora como poderia ser o estabelecimento da posse do território mais ao norte, na América Inglesa. Esse assunto voltará a aparecer, com mais detalhes, no primeiro capítulo da tese, mas a exploração neste texto introdutório faz-se necessária para prosseguir

4Apud SEED, Patricia. Cerimônias de Posse na Conquista Européia do Novo Mundo (1492 – 1640). Tradução de

Lenita R. Esteves. São Paulo: Editora UNESP, 1999. pp. 101-102.

5“(...) Colocadas as razões jurídicas da dominação espanhola, é necessário certificar-se de uma única coisa: que

os índios serão informados da situação, pois é possível que ignorem esses presentes sucessivos trocados por papas e imperadores. A leitura do Requerimiento, feita na presença de um oficial do rei (mas nenhum intérprete é mencionado), vem sanar esse problema. Se os índios ficarem convencidos após essa leitura, não se tem o direito de fazê-los escravos (é aí que o texto “protege” os índios, concedendo-lhes um status). Se, contudo, não aceitarem essa interpretação de sua própria história, serão severamente punidos. (...) / Há uma contradição evidente, que os adversários do Requerimiento não deixarão de sublinhar, entre a essência da religião que supostamente fundamenta todos os direitos dos espanhóis e as consequências dessa leitura pública: o cristianismo é uma religião igualitária; ora, em seu nome, os homens são escravizados. Não somente poder espiritual e poder temporal se encontram confundidos, o que é a tendência de toda e qualquer ideologia de Estado – quer decorra ou não do Evangelho – como, além do mais, os índios só podem escolher entre suas posições de inferioridade: ou se submetem de livre e espontânea vontade, ou serão submetidos à força, e escravizados. Falar em legalismo, nessas condições, é derrisório. Os índios são automaticamente colocados como inferiores, pois são os espanhóis que decidem as regras do jogo. A superioridade dos que enunciam o

Requerimiento, pode-se dizer, já está contida no fato de serem eles os que falam, enquanto os índios escutam.”

TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a questão do outro. Tradução de Beatriz Perrone Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2011. pp. 212-214.

6SEED, Patricia. Op. cit. pp. 101-141. Patricia Seed, além de trabalhar com o caso da América Espanhola, dirige

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com o raciocínio justificador do trabalho. A hipótese de Patricia Seed, abordando a cerimônia de posse ocorrida nas colônias inglesas, diz respeito ao estabelecimento da propriedade por meio da distribuição de limites territoriais, representados por cercas e sebes, marcos divisórios de um território cultivado. Anteriormente ao início do processo colonizador, já havia habitantes do continente que se utilizavam de seu solo para agricultura. Porém, os nativos possuíam uma dinâmica cultural e uma relação com a terra totalmente distinta dos princípios de propriedade e trabalho expresso pelos colonizadores europeus, e me refiro aqui não apenas aos ingleses, mas também aos responsáveis pela conquista de outras partes da América. Se a posse do território é legitimada pela utilização do solo para fins produtivos, e pela demarcação da propriedade com cercas e sebes, como ficaria o nativo norte-americano nessa lógica colonial? O indígena, e seu modo de vida, era visto pelos colonizadores como um elemento que não se dedicava a demarcações de terras, à produção agrícola e pecuária, enfim, à lógica inglesa e protestante de ocupação territorial. Os indígenas possuíam sua própria lógica de vida, sua própria forma de se relacionar com o solo e com o território. Mas essa filosofia é diversa da interpretação da realidade partilhada pelos colonizadores7. Dessa forma, as bases

para a legitimação do território marcam a exclusão do nativo da sociedade colonial nascente. Enquanto no cerimonial religioso-político-militar representado pelo Requerimiento o nativo era coagido a se converter ao catolicismo, na atividade prática agrícola e no estabelecimento da propriedade existentes na América Inglesa protestante, o indígena simplesmente não encontrava lugar.

O problema que pode ser encontrado nesse tipo de interpretação é a tendência de se estabelecer, historiograficamente, um marco fundante único para todo um processo de colonização e para uma noção de terra, cultura e propriedade que vão ecoar em séculos posteriores. A leitura que Seed extrai da documentação, de certa forma, unifica as diferenças possíveis de ocorrerem nas colônias em torno de uma tese única sobre as cerimônias de posse nacionais. Tomando como exemplo o território que hoje chamamos de Estados Unidos, esse problema se manifesta de forma clara. As nações nativas presentes nos futuros Estados Unidos encararam diferentes experiências colonizadoras. Os Iroquois, por exemplo, tiveram contato com ingleses e franceses. Os Seminoles, na Flórida, ou os Shoshone, na região da Grande Bacia, enfretaram o império espanhol. A constituição nacional, portanto, englobou diversas nações nativas e diversas experiências coloniais. Trago a ideia de cerimônia de posse

7“‘E assim [esses nativos] têm apenas um direito natural a essas terras”, ou seja, um direito que poderia ser

extinguido com a chegada daqueles que tinham um direito civil estabelecido pela ação evidente da melhoria – construir cercas, plantar jardins e erigir casas –, os sinais ingleses de posse.” Idem. p. 50.

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e desses marcos fundantes para explicar duas coisas: a motivação inicial para a tese e a recorrência de simplificações históricas adotadas por uma narrativa oficial, que substitui a complexidade na análise de um processo de formação de um país por uma história linear e calcada em uma única fundação. No caso específico dos Estados Unidos, a multiplicidade de iniciativas colonizadoras foi preterida em favor de uma glorificação das colônias puritanas, como a de Massachusetts, modelo sintetizado de forma efetiva pela tese de Patricia Seed.

Para abordar a motivação para o início da pesquisa, preciso novamente fazer referência à América Hispânica. Um dos pontos fundamentais de trabalhos passados, como minha dissertação de mestrado, foi a elaboração de projetos para a identidade americana, ou, em casos específicos, para a identidade nacional de países hispano-americanos. Octavio Paz8, em seu ensaio O Labirinto da Solidão, aborda a questão da identidade mexicana. O autor reserva um espaço para a análise da questão indígena na sociedade colonial. Um paralelo entre América Espanhola e América Inglesa também é estabelecido, principalmente no que diz respeito à questão da conversão ao cristianismo e à posição ocupada pelo indígena na nascente sociedade colonial. Atentemos para o parágrafo em que Octavio Paz traça essa comparação, pois foi exatamente esse trecho de sua obra que me motivou a dar o pontapé inicial na pesquisa que agora está sendo apresentada:

“É verdade que os espanhóis não exterminaram os índios porque precisavam de mão de obra nativa para o cultivo dos enormes feudos e a exploração mineira. Os índios eram bens que não valia a pena desperdiçar. É difícil que essa consideração tenha sido acompanhada por outras de caráter humanitário. Tal hipótese provocará um sorriso em todo aquele que conheça o comportamento dos encomenderos com os indígenas. Mas sem a Igreja o destino dos índios teria sido muito diferente. E não penso apenas na luta para amenizar suas condições de vida e organizá-los de maneira mais justa e cristã, mas na possibilidade que o batismo lhes oferecia de integrar, por obra da consagração, uma ordem e uma Igreja. É pela fé católica que os índios, em situação de orfandade, cortados os laços com suas antigas culturas, mortos seus deuses tanto como suas cidades, encontram um lugar no mundo. Essa possibilidade de pertencer a uma ordem viva, mesmo na base da pirâmide social, foi negada sem piedade aos nativos pelos protestantes da Nova Inglaterra. Com muita freqüência se esquece que pertencer à fé católica significava encontrar um lugar no Cosmos. A fuga dos deuses e a morte dos chefes haviam deixado o indígena numa solidão tão completa quanto difícil de imaginar para um homem moderno. O catolicismo o faz reatar seus laços com o mundo e com o outro mundo. Devolve o sentido da sua presença na terra, alimenta suas esperanças e justifica sua vida e sua morte.” 9

8Octavio Paz Lozano (1914-1998): poeta, jornalista e ensaísta mexicano, autor de obras tão diversas quanto a

coletânea de poemas Libertad bajo palabra (1949), o ensaio sobre a identidade mexicana O Labirinto da Solidão (1950) e o volume de crítica literária O Arco e a Lira (1956). Foi professor em diversas universidades e ganhador de vários prêmios literários, sendo que o mais significativo foi o Nobel de Literatura, concedido no ano de 1990.

9 PAZ, Octavio. O Labirinto da Solidão. Tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo: Cosac Naify,

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Alguns pontos do parágrafo de Octavio Paz podem ser questionados. A problemática da conversão do indígena é bastante complexa e multifacetada, em primeiro lugar. Mesmo tendo encontrado “um lugar no mundo”, essa conversão consistiu em um processo agressivo de aculturação. Os indígenas, no caso da América Espanhola, tornaram-se cristãos de maneira forçada, sendo ameaçados por uma força militar ostensiva. Deve ser questionada até mesmo essa ideia de “lugar” ocupado pelos nativos. Fazendo ou não parte da religião católica, os nativos não se integrararam à sociedade da Nova Espanha completamente, mas sim representaram uma camada bastante destacada na organização social da região. Mas o foco deste trabalho não será a América Espanhola. A menção ao processo de colonização espanhol, neste momento, aparece para servir como contraponto à América Inglesa e ao possível “não-lugar” do indígena nessa sociedade. Enquanto os espanhóis abrem o caminho para a Igreja Católica – não julgando aqui se a conversão é realizada de maneira forçada ou não – os protestantes ingleses, de acordo com o modelo unificador já debatido nos parágrafos anteriores, não reservam nenhum lugar para os nativos10. Enquanto na América Espanhola teria ocorrido um processo intenso de trocas culturais, formando a cultura hispano-americana que conhecemos, em todas suas nuances; na América Inglesa não há, de forma geral, esse intercâmbio cultural, mas também não há a imposição religiosa generalizada sobre os indígenas.

Respeitando as limitações trazidas pelo estabelecimento de uma leitura do processo colonial calcada em modelos, podemos analisar mais intricadamente as peculiaridades da formação das colônias em diferentes regiões da América, caso adotemos um foco e um ponto de vista que forneça um recorte temporal e temático sólido. A partir dessa delimitação, parte dos becos sem saída fornecidos pela interpretação dos modelos unificados ou das narrativas oficiais podem ser atravessados. Francis Paul Prucha, um dos grandes especialistas na política indigenista dos Estados Unidos – e esse autor não se contenta em estudar apenas um período da história de seu país, mas aborda desde tempos coloniais até os momentos finais do século XX – , também se debruça sobre a identificação das diferenças entre a experiência colonial inglesa e a espanhola:

“The great distinguishing feature of English relations with the Indian groups was replacement of the Indians on the land by white settlers, not conversion and assimilation of the Indians into European colonial Society. The Spanish colonies to the south were marked by subjugation of a massive concentrated native

10Para as diferenças e semelhanças entre católicos e protestantes no processo de colonização, principalmente no

referente ao discurso religioso e à ação catequizadora, cf. CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge. Puritan

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population and its use as a primary labor force in exploiting the mineral and agricultural resources of the conquered lands. The Spaniards, in addition, carried on large-scale missionary efforts to Christianize the Indians, and the church was as significant as the state in the development of Spanish America. The preponderantly male Spanish colonists, moreover, took Indian women as wives and concubines, incorporating the Indians biologically as well as socially into Spanish society. None of these situations obtained in the English colonies to any large extent. The difference can be explained in part by the diverse attitudes toward other peoples of the southern and the northern Europeans, but it was the fundamental nature and place of English colonization that determined the case. The Indians did not present the same usefulness to the English that they did to the Spanish. There were no heavy Indian populations to be turned into a labor force and at the beginning no real need, for the English came to settle and cultivate the land. Nor was intermarriage or other liaison between the whites and Indians called for on a large scale among the family-oriented English colonists.”11

O autor aborda as diferenças entre os territórios ingleses e espanhóis na América sem estabelecer muitas ressalvas em relação ao grande número de nações nativas e de experiêcias distintas de contato com os colonizadores que ocorreram no local ocupado atualmente pelos Estados Unidos. Destacando também um determinado modelo de colônia e de papel da cultura e da religião, Prucha argumenta sobre a inclusão marginal na experiência espanhola e sobre o não-lugar do nativo nas sociedades anglo-americanas. Essa análise dos modelos e dos discursos que os fundamentam pode nos auxiliar a entender o delineamento posterior de políticas para os nativos, mesmo que parte da construção desses modelos seja feita em retrospecto, por uma historiografia que pode ser conservadora e laudatória da ação puritana e católica, ou por um discurso oficial propositor de uma narrativa linear. É útil lembrar também do cuidado com o qual o autor estabelece breves ressalvas em sua análise, sempre dizendo, por exemplo, que determinadas práticas não foram adotadas “em larga escala”. Uma leitura mais simplista traria diretamente uma lista de características diferenciadoras.

11 “A grande característica diferenciadora das relações inglesas com os grupos indígenas foi a substituição dos

indígenas no território por assentadores brancos, ao invés da conversão e assimilação indígena na sociedade colonial europeia. As colônias espanholas ao sul foram marcadas pela subjugação de uma maciça e concentrada população nativa e por seu uso como mão de obra primordial na exploração de recursos minerais e vegetais das terras conquistadas. Os espanhóis, adicionalmente, empreenderam esforços missionários em larga escala para cristianizar os indígenas, e a Igreja era tão significativa quanto o Estado no desenvolvimento da América Espanhola. A população masculina, que era preponderante, ainda tomou mulheres indígenas como esposas e concubinas, incorporando o indígena tanto biologicamente quanto socialmente na sociedade espanhola. Nenhuma dessas práticas prosperou nas colônias inglesas de forma ampla. A diferença pode ser explicada em parte pelas diversas atitudes em relação a outros povos europeus, ao sul e ao norte, mas foi a natureza e o local fundamentais da colonização inglesa que definiram a questão. Os indígenas não representavam a mesma utilidade para os ingleses que apresentavam para os espanhois. Não havia grandes populações indígenas a serem transformadas em força de trabalho e, em um momento inicial, nenhuma necessidade real para isso, já que os ingleses vieram para assentar e cultivar a terra. Nem os casamentos mistos ou outra forma de relação entre brancos e indígenas eram desejados, em larga escala, entre os colonos ingleses já organizados familiarmente.” (Tradução minha) PRUCHA, Francis Paul. The Great Father: The United States Government and the American Indians. Volumes I and II. Lincoln and London: University of Nebraska Press, 1984, p. 5; pp. 11-12.

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Essa diferenciação entre o processo formativo de diferentes localidades da América foi um ponto intrigante a surgir dentre as minhas leituras iniciais para a escrita de um projeto de doutorado. Em meio a essas possibilidades de análise, o texto do poeta mexicano vencedor do Prêmio Nobel se destacou, provavelmente por conta da força literária de seu ensaio e por eu já ser conhecedor da obra, que se prestou a outras perspectivas nesse momento de início de outra etapa no meu percurso acadêmico. O pensamento de Octavio Paz, representado pelo trecho citado anteriormente, forneceu a motivação para a pesquisa justamente por ter colocado sob o holofote a questão indígena de acordo com uma perspectiva cultural, falando sobre a inserção do nativo nas novas sociedades americanas. A partir disso, precisei delinear qual seria a região e o período de tempo mais propícios a serem explorados para responder a questionamentos sobre o local do indígena na sociedade americana, e como esse local foi sendo estabelecido juntamente com os discursos e práticas culturais. O que mais me chamou atenção no ensaio de Paz foi o destaque para uma peculiaridade estadunidense e a ideia de “não-lugar” para os nativos. Ao longo da pesquisa, da leitura da bibliografia e da escrita da tese, me convenci de que esse pensamento não se sustenta em sua totalidade, mas que fornece um sólido primeiro passo para o despertar de questões mais profundas sobre todo o processo formativo do gigante da América do Norte.

Agora proponho um deslocamento temporal, em direção à América independente, para só assim poder completar, de forma adequada, a introdução da tese. Pensemos nos Estados Unidos do século XIX e em representações do indígena na sociedade pós-colonial. Como a questão do indígena foi tratada nesse período, tanto pela representação cultural quanto pelas políticas oficiais do Estado? Debater sobre essa temática constitui o centro da tese, mas para o cumprimento de seus objetivos, ou seja, para defender uma visão sobre o funcionamento das políticas voltadas para os nativos e sobre a dinâmica cultural construtora e propagadora das relações entre cidadãos estadunidenses, governo e as diferentes nações nativas, um panorama um tanto quanto factual do século XIX faz-se necessário. Como algumas informações sobre a história dos Estados Unidos não possuem um aparecimento tão frequente nas discussões historiográficas no Brasil, este painel aparece como algo útil, principalmente para leitores não familiarizados com acontecimentos centrais da história estadunidense. A ideia não é, contudo, traçar uma descrição linear e acontecimental do país norte-americano no século XIX, mas agir em duas frentes, uma das quais já se concretiza nos próximos parágrafos da introdução. Uma das frentes busca polvilhar as informações factuais julgadas necessárias ao longo dos capítulos da tese, juntamente com discussões conceituais mais densas. Por exemplo: ao comentar sobre a teoria da fronteira, fundamental em finais do

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século XIX, forneço informações sobre a expansão territorial em direção ao oeste e sobre um país que se faz presente tanto na costa do Atlântico quanto do Pacífico. A outra frente consiste em uma ação simples e direta: o traçado de um panorama sobre a política indigenista do século XIX, para que o leitor não encerre a leitura da introdução do trabalho sem estar razoavelmente familiarizado com o tema central do que se seguirá.

Para estabelecer este painel das ações governamentais em relação aos nativos, cujos detalhes serão explanados e expandidos ao longo dos capítulos do trabalho, interpreto a política indigenista oitocentista como uma grande inicativa dividida em três momentos, com um prólogo. Esse prólogo consiste na preparação para o estabelecimento de mecanismos oficiais para o tratamento das questões relacionadas aos nativos, culminando com a criação de um órgão que fornece parte significativa da documentação utilizada para a formulação desta tese: o Gabinete de Assuntos Indígenas, denominado em inglês Office of Indian Affairs e, a partir de 1947, Bureau of Indian Affairs, nome utilizado até os dias correntes.

O período que antecipa a oficialização de uma política indigenista, que classifiquei como um prólogo, pode ser datado de finais do primeiro ano do século XIX até 1824. Inicia-se com o governo e as ideias de Thomas Jefferson12, cujos mandatos

presidenciais englobaram os anos entre 1801 e 1809. Jefferson, um dos founding fathers dos Estados Unidos independente, é também um dos primeiros homens de proa na política nacional a pensar na construção de relações com os nativos que consigam ir além da série de tratados firmados desde tempos coloniais. O presidente envidou esforços no sentido de consolidar instituições da política estadunidense e em traçar reconhecimentos dos vastos territórios a oeste, que seriam incorporados ao país ao longo do século. Entre os anos de 1804 a 1806 ocorreu a expedição comandada por Lewis e Clark13, grande iniciativa de mapeamento

e exploração das terras a oeste do Rio Mississippi. Além disso, Jefferson começou a delinear o que seria uma política indigenista, trazendo ideias como a formação de um território destinado exclusivamente aos nativos, proposição que seria desenvolvida nas décadas seguintes e que teve resultados trágicos. No mandato do presidente James Monroe14, que

12 Thomas Jefferson (1743-1826): principal redator da Declaração de Independência dos Estados Unidos, em

1776, foi o segundo vice-presidente do país, no governo de John Adams, entre 1797 e 1801, e terceiro presidente, entre os anos de 1801 e 1809.

13A jornada de Merriwether Lewis (1774-1809) e William Clark (1770-1838) consistiu em uma expedição oficial

de reconhecimento – e tomada de posse – ordenada pelo presidente Jefferson (1743-1826), que explorou a Lousiana (não confundir com o atual estado da Lousiana, que se trata de um território bem menor do que essa possessão francesa na América), adquirida pelos Estados Unidos em 1803 e rumou para a região noroeste, terminando na costa do Oceano Pacífico.

14James Monroe (1758-1831): quinto presidente dos Estados Unidos, com dois mandatos entre os anos de 1817 e

1825, foi o último dos presidentes pertencente ao processo de fundação da república, atuou no processo que aprovou a constituição, quando ainda era um jovem congressista. É lembrado pelo enunciamento da Doutrina

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governou de 1817 a 1825, o esboço de política indigenista tomou a forma de um órgão governamental ligado à Secretaria de Guerra, o já referido Office of Indian Affairs. A fundação do gabinete se deu em 1824, por iniciativa quase que monocrática do Secretário de Guerra, John C. Calhoun15. Em 1849, com a criação do Departamento do Interior (U.S.

Department of the Interior), os assuntos indígenas foram deslocados da Secretaria de Guerra

para essa nova divisão governamental. Nos dias atuais, a atividade do órgão é descrita da seguinte maneira: “The Bureau of Indian Affairs’ mission is to enhance the quality of life, to promote economic opportunity, and to carry out the responsibility to protect and improve the trust assets of American Indians, Indian tribes and Alaska Natives.”16.

A partir da fundação de um órgão específico para tratar de questões indígenas, iniciam-se as três fases da política indigenista do século XIX. A primeira delas tem como ponto marcante – e traumático – a aprovação do Indian Removal Act no congresso, legislação que permite a remoção de nações nativas para um espaço a oeste, como já idealizado, de forma menos brutal, por Thomas Jefferson. A figura-chave nesse momento é o presidente Andrew Jackson17, o propositor da Democracia Jacksoniana e uma das personalidades mais

controversas quando se discutem as tensões entre o governo dos Estados Unidos e os nativos. Em suas promessas de campanha, Jackson defende a utilização de terras a oeste para a criação de um espaço reservado a indígenas, uma espécie de grande reserva unificada. As nações da costa leste seriam removidas para aquela região, deixando o caminho livre para o desenvolvimento capitalista dos estados do leste, mais destacadamente aquele na época conhecido como Empire State: Nova York. No ano de 1830, essa legislação é aprovada, dando início à resistência dos nativos e culminando em uma série de remoções forçadas constituindo um episódio conhecido como Trail of Tears (Trilha das Lágrimas). A noção de

Monroe, em 1823, diretriz política que consiste na recusa da interferência europeia em questões americanas, no contexto das diversas independências dos países da América.

15John Caldwell Calhoun (1782-1850): político estadunidense conhecido por ter sido vice-presidente nos

mandatos de John Quincy Adams (1825-1829) e Andrew Jackson (1829-1832 – Calhoun renunciou ao cargo de vice-presidente para concorrer ao Senado, após diversas rusgas com o presidente Jackson). Foi também senador e Secretário de Guerra. Ficou marcado como um defensor de uma maior autonomia dos estados – posição que gerou uma crise durante o governo Jackson – e como um ferrenho ideólogo da escravidão.

16 “A missão do Bureau de Assuntos Indígenas é aumentar a qualidade de vida, promover oportunidade

econômica, e assumir a responsabilidade de proteger os bens de indígenas americanos, tribos indígenas e nativos do Alaska.” (Tradução minha) Essa declaração de princípios, com mais detalhes sobre a história do Bureau, pode ser encontrada no website do órgão: https://www.bia.gov/bia. Acesso em 10 de outubro de 2018.

17 Andrew Jackson (1767-1845): militar, advogado e político estadunidense, o sétimo presidente do país, com

mandato entre 1829 e 1837. Centralizou o poder da presidência de forma inédita até então, buscou combater tentativas de autonomia extrema – ou secessão – dos estados e defendeu uma expansão da democracia entre o homem comum americano, no que ficou conhecido como Democracia Jacksoniana. Propagandista dos valores estadunidenses, da ideia do self-made man e do homem da fronteira, do individualismo capaz de enfrentar obstáculos e construir uma nova realidade, é também lembrado pelo trágico episódio da remoção indígena, que se iniciou com a aprovação do Indian Removal Act, em 1830.

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que a segregação de indígenas em uma reserva específica seria uma ação benéfica – princípio defendido por Jackson e por outros políticos como Calhoun – para nativos e estadunidenses cai por terra após o grande número de mortes ocasionadas pela remoção forçada, que afetou principalmente a nação Cherokee, mas essa diretriz truculenta se mantém. As duas décadas subsequentes ainda sentem os efeitos da política jacksoniana, principalmente após a descoberta de ouro na Califórnia, em 1848, o que gera um novo ímpeto exploratório rumo ao oeste, gerando novos conflitos com nações nativas que já haviam sido removidas de suas terras originárias anteriormente.

Uma tentativa de modificação na política indigenista ocorre no período pós-Guerra Civil, por iniciativa do general nortista vitorioso no conflito, Ulysses S. Grant18, que foi eleito presidente em 1869. Essas novas propostas compreendem o segundo período da política indigenista do século XIX e foram conhecidas como Política de Paz do Presidente Grant. Uma das iniciativas do chefe do executivo é a de nomear um nativo para ocupar a chefia do Office of Indian Affairs. Quem assume o cargo de Comissioner of Indian Affairs (Comissário de Assuntos Indígenas) é Ely Samuel Parker, membro dos Seneca Iroquois, cujo nome nativo era Do-ne-ho-ga-wa. Parker foi o primeiro indígena a ocupar o cargo, entre os anos de 1869 e 1871, e sua indicação aponta para uma tentativa de conciliação entre o governo e nações nativas, que toma feições de um projeto de assimilação das culturas nativas pela dinâmica social dos Estados Unidos. Ao invés de remoção e separação, discute-se uma solvência dos valores e pressupostos culturais das diversas nações indígenas no interior da cidadania estadunidense, praticamente afirmando que, para o nativo ser aceito e incluído, ele deveria se tornar um arremedo de americano médio, modificando seus costumes e sua religião, por exemplo. A participação de Ely S. Parker nesse processo representa um dos momentos mais peculiares das ações governamentais nesse departamento, que será mais detalhada no capítulo central da tese, dedicado exclusivamente à trajetória de Do-ne-ho-ga-wa e suas tentativas de reforma na política indigenista. Seu caso exemplifica certa irreconciabilidade entre a estrutura burocrática e jurídica dos Estados Unidos e uma possibilidade de solução amena para as questões envolvendo indígenas. A descoberta de sua biografia e de seus posicionamentos, que ocorreu após a leitura de um dos capítulos do livro

Bury My Heart at Wounded Knee, de Dee Brown, foi um dos episódios que mais motivou o

18Ulysses Simpson Grant (1822-1885): militar e político estadunidense, participou da guerra entre Estados

Unidos e México (1846-1848) e comandou as forças da União contra os estados confederados na Guerra de Secessão (1861-1865). Eleito presidente por dois mandatos, governou entre os anos de 1869 e 1877, trabalhando para a reconstrução do sul após a devastação da guerra e enfrentando uma grave crise econômica no ano de 1873. Logo no primeiro ano de seu mandato, empreende uma tentativa de mudança na política para os nativos, que ficou conhecida como Política de Paz do Presidente Grant.

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desenvolvimento da pesquisa, mesmo que depois eu acabasse concluindo que a perspectica de Brown está razoavelmente equivocada. Os esforços de Grant e Parker para estabelecer uma política de paz no período pós-Guerra Civil não obtiveram sucesso em sua tentativa de assimilação do nativo e de criação de um protótipo de indígena cidadão, que deveria abandonar suas características tribais em detrimento de uma concepção de individualismo estadunidense. O projeto frustrado indica uma das conclusões a que meu trabalho chegou, e que eu aqui já adianto: mesmo com tentativas de modificação e com um discurso de renovação, a política dos anos oitocentos para os nativos mantêm-se muito similar em todos seus estágios, já que em todos os momentos o indígena foi visto com um outro, ocupante de uma posição inferior, que deveria ser separado, integrado por meio de uma dissolução de sua cultura, ou exterminado. Essas são as tônicas dos três momentos da política governamental para com os nativos no século XIX: separação, assimilação e extermínio.

O insucesso de uma política de paz e de assimilação leva ao último e mais brutal período nas relações entre nativos e as forças oficiais da sociedade estadunidense no período oitecentista: o momento dos grandes massacres. O ponto de partida para esse momento foi a derrota das tropas estadunidenses por uma coalizão de Lakota Sioux e Cheyenne na Batalha de Little Big Horn no ano de 1876, o centenário da declaração de independência. A humilhação do exército dá lugar a um conjunto de represálias em direção aos nativos e uma intensificação na iniciativa de enviar indígenas para as reservas. Em finais do século XIX, essa repressão confina líderes importantes em reservas e reforça suas características de imposição cultural, principalmente quando se dedica a uma perseguição da Ghost Dance (Dança Fantasma), um movimento religioso que busca recuperar elementos culturais nativos. Os Sioux, em específico, sofrem as consequências da repressão após empreenderem uma leitura revoltosa dos princípios da Dança Fantasma, pregando o início de um novo momento na história, com a preponderância dos nativos sobre o homem branco. A série de tensões geradas nesse processo culminou no Massacre de Wounded Knee, em 1890, uma das ações mais lembradas do longo histórico de violência do governo estadunidense em relação aos indígenas. Wounded Knee simboliza, talvez mais do que os outros episódios de massacres e violência, a tentativa de apagar uma cultura e a prática de um discurso que reafirma a irreconciabilidade entre culturas e modos de vida. Essa defesa da separação marcou toda a história dos Estados Unidos, e, em alguns pontos, ela ainda não desapareceu, mesmo após os diversos traumas e fraturas históricas deixados pela violência.

Esses movimentos descritos nos últimos parágrafos serão mais detalhados no texto principal da tese, mas o panorama estabelecido é necessário para melhor situar o leitor

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dentro da temática da pesquisa. Agora traço algumas últimas considerações introdutórias sobre o desenvolvimento e a justificativa do projeto para a tese e encerro este momento inicial com a apresentação sobre a estrutura do texto principal, sua divisão em capítulos e os respectivos temas a serem abordados em cada uma das etapas.

O projeto de doutorado, apresentado ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, previa como objetivo central uma exploração da política indigenista nos Estados Unidos do século XIX, concentrando-se mais especificamente nos debates travados e nas práticas levadas a cabo entre os anos de 1860 e 1890, ou seja, durante e após a Guerra de Secessão, até o fechamento da fronteira e os grandes massacres de nativos no final do século. A documentação a ser analisada compreenderia majoritariamente relatórios enviados ao governo dos Estados Unidos e debates políticos registrados em atas do congresso. O corpo documental eleito como foco, e isso ainda se mantém, são os relatórios anuais apresentados ao presidente pelo Commissioner of Indian Affairs, funcionário encarregado da supervisão de políticas voltadas aos nativos. Dentre os diversos comissários atuantes no século XIX, e entre os anos de 1860 e 1890, optou-se pela concentração analítica em um deles: Ely Samuel Parker (1828-1895), que ocupou o cargo entre os anos de 1869 e 1871. Como já mencionado anteriormente, Parker possuía uma especificidade que suscita um debate enriquecedor para a tese: foi o primeiro nativo-americano a ocupar o cargo, sendo lembrado durante quase toda a vida como um homem que transitou entre a cultura indígena e a cultura estadunidense.

Além deste recorte específico, o projeto apresentou um escopo mais ambicioso de discutir questões relacionadas ao período colonial, tentando traçar uma explicação palpável sobre a formação cultural dos Estados Unidos, e em que medida as dinâmicas de alteridade criaram um cenário de exclusão para os nativos, preparando o terreno para a série de conflitos – armados ou não – entre as diferentes nações nativas e os representantes da sociedade estadunidense, que podem ser tanto oficiais do governo civil, burocratas e membros do exército quanto cidadãos em busca de terras para expandir seus negócios ou buscar novas oportunidades de estabelecimento econômico. Essa lógica de separação, encontrada em traços do discurso puritano presente em alguns focos de colonização – não em todo o território, já que a colonização da América do Norte foi um processo multilateral e diverso – se cristaliza em práticas como o traçado de limites territoriais e de fronteiras, ligando intrinsecamente a formação de um território e, posteriormente, de uma identidade nacional, com a noção de alargamento da fronteira. Em finais do século XIX, não havia mais fronteira, os Estados Unidos da América atravessavam o continente, do Atlântico ao Pacífico. O discurso puritano,

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afetando até aqueles que não compartilhavam dos valores religiosos dos colonizadores de Massachusetts, de alguma forma se laiciza, dando impulso a uma defesa do progresso, do Destino Manifesto de um país agora independente e pioneiro, sendo uma república, uma experiência de governo distinta. Esse momento de expansão marca o período de maior sofrimento físico dos nativos, com uma série de massacres, guerras e extermínios populacionais, o que completa uma violência simbólica contínua, com tentativas de apagar as culturas nativas que se estenderam por séculos.

Partindo dessa temática e desse objetivo geral, a pesquisa nos arquivos e o aprofundamento nos documentos me levaram a optar por uma abordagem um tanto mais ampla da política indigenista. Ao invés de me concentrar nos anos entre 1860 e 1890, a ideia agora é observar as tendências gerais desse tipo de política ao longo do século XIX, começando com a desapropriação dos Iroquois no estado de Nova York e com a criação do

Office of Indian Affairs em 1824, por John C. Calhoun. A intenção é explorar também a

política de remoção do governo de Andrew Jackson, as tentativas intelectuais de reformar o tratamento dado aos nativos e, finalmente, no pós-Guerra Civil, o fracaso da política de paz tentada pelo presidente Ulysses S. Grant e por seu Comissário de Assuntos Indígenas, Ely Parker, e os subsequentes massacres, culminando com a famigerada tragédia de Wounded Knee.

Considerei mais proveitoso, para a discussão da história dos Estados Unidos, analisar as tendências gerais da política indigenista no século XIX, o que me permitirá estudar as diferentes vertentes de pensamento que levaram a um grande trauma na história estadunidense, que foi a violência praticada contra os nativos. Em meio às discussões relacionadas à questão nativa, é possível notar que mesmo os esforços humanitários de se preservar as vidas e um mínimo de cultura tradicional nativa cedeu diante do impulso expansionista do país. Olhar para quase todo o século, e não apenas para as três décadas violentíssimas que constavam no recorte inicial do projeto, permite uma compreensão para além do choque. Caso fosse insistir na análise de escopo menor, teria que desfiar uma série de considerações sobre os massacres, o que poderia criar a ideia de que esse processo de violência está circunscrito a um certo período de tempo, não sendo algo oriundo da formação dos Estados Unidos e das opções para a construção de sua narrativa histórica. A violência contra os nativos não foi composta por episódios isolados, mesmo sendo um processo com picos de brutalidade.

Quanto à organização dos capítulos nesta tese, eles são em número de cinco. O primeiro aparece como uma introdução histórica às relações entre os nativos e os futuros

Referências

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