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FRAGMENTOS DE UMA CIDADE: PERSONAGENS DA SÃO PAULO OITOCENTISTA

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Sessão temática Imagens - 603

FRAGMENTOS DE UMA CIDADE:

PERSONAGENS DA SÃO PAULO OITOCENTISTA

Marcelo Eduardo Leite1

Resumo

A presente comunicação tem como objetivo refletir sobre alguns aspectos da representação da população paulistana por meio dos retratos fotográficos carte de visite. Nesse sentido, apresentaremos uma série de fotografias pertencentes ao acervo deixado por Militão Augusto de Azevedo, hoje aos cuidados do Museu Paulista da USP. Tais imagens vão além de um simples exemplo de como era o trabalho dos profissionais da fotografia na época, já que sua abrangência entre a população era muito grande, pois o estabelecimento se diferenciava por ser o mais popular da cidade, permitindo o acesso de mais pessoas.

Palavras-chave Militão Augusto de Azevedo. São Paulo. Carte de visite.

Apresentação

O trabalho aqui apresentado debruça sobre alguns retratos carte de visite2 da Coleção Militão Augusto de Azevedo, hoje aos cuidados do Museu Paulista da USP. O material deixado pelo fotógrafo é resultante de duas etapas distintas de sua produção, dividida entre sua fase como fotógrafo-gerente do ateliê de Carneiro & Gaspar, e a etapa posterior, na qual ele figura como fotógrafo-proprietário do ateliê Photographia Americana. Notamos uma diferença entre a primeira e a segunda fase, na qual nos parece haver uma abertura maior com relação à clientela. Nossa opção de análise recaiu sobre a segunda etapa.

Nosso contato direto com o material se deu pela análise dos livros de controle do ateliê, nos quais Militão Augusto de Azevedo guardou uma cópia de cada fotografia feita nos dois estúdios. A visualização se deu inicialmente pelo contato com os livros

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Doutor em Multimeios pela UNICAMP. Professor Adjunto na Universidade Federal do Cariri. E-mail:

marceloeduardoleite@gmail.com 2

São retratos feitos em série, cujo custo era mais baixo, que alavancou a popularização dos retratos fotográficos na segunda metade do século XIX.

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Sessão temática Imagens - 604 originais e, depois, pela observação das cópias digitais. Finalmente, foi por meio do recorte efetuado – retratos de “corpo inteiro”- que pudemos conhecer mais detalhadamente as imagens e suas formas de construção.

O conjunto do material original dos livros de controle do ateliê é formado por um total de seis volumes encadernados, contendo, ao todo, mais de 10.000 imagens. Estes álbuns eram tanto para o controle dos trabalhos realizados, serviam como mostruário para a clientela. Eram também utilizados para se localizar os negativos no caso do cliente voltar ao ateliê e pedir mais cópias da fotografia que havia feito.

Ao recortarmos para estudo os “retratos de corpo inteiro” buscamos melhor compreensão do contexto social, congregando um número maior de elementos para serem analisados nas composições, tais como, vestuário, mobiliário, adereços do ateliê e objetos levados à cena fotográfica pelos próprios retratados. Desta forma, o material mostra os mais variados personagens da sociedade paulistana do período, tais como: artistas, negros, estudantes, trabalhadores com suas ferramentas, crianças, casais, entre outros. Isso evidencia que os retratos de Militão possibilitaram o acesso de diversos segmentos sociais, em sua busca pela construção de autoimagens específicas. Quer dizer, nos movimentamos pelo critério da heterogeneidade. A opção exclusiva pelas cartes de visite foi por elas serem o produto mais popular oferecido pelos ateliês, penetrando de forma até então nunca vista.

A era dos ateliês e as fotografias carte de visite

No ano de 1854 o francês André Disderi, consciente dos rumos de uma sociedade que buscava a reprodutibilidade técnica criou, por meio uma câmera que continha um sistema de lentes múltiplas, uma forma inovadora de fazer vários retratos ao mesmo tempo: as cartes de visite. São elas que têm a função de ampliar o campo de ação dos retratos fotográficos, ao fazê-lo, usa algumas técnicas já existentes, já que seu suporte é o negativo de vidro em colódio úmido (NEWHALL, 2002, p. 59)3.

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Consistia de uma técnica cuja placa fotográfica de vidro deveria ser exposta e revelada rapidamente para dar resultado, por conta disso os equipamentos de revelação necessariamente tinham que estar próximos à câmera. Esta particularidade obrigava que, nas fotografias externas, só fossem possíveis de se realizar tendo uma tenda utilizada como quarto escuro. Porém, fazia com que os estúdios se configurassem como o ambiente predominante para a fotografia, em detrimento de imagens externas.

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Sessão temática Imagens - 605 A introdução da carte de visite provoca uma substancial mudança, além de ser mais barata, ela gerou uma quantidade muito maior de retratos com o mesmo tempo de trabalho. Isso permitiu uma clientela muito maior e uma quantidade imensa de fotografias circulando. O maior mérito de Disdéri foi perceber a existência de uma demanda específica, que buscava nos retratos uma forma de afirmação pessoal e, ao mesmo tempo necessitava de preços mais acessíveis. Cioso da importância operacional do estúdio como um fator determinante para o seu sucesso comercial, ele constatou que os elevados preços cobrados, devido ao uso de grandes formatos, não permitiam acompanhar a vontade popular (FREUND, 1986). Fazer fotografias mais baratas era, então, fundamental para sua difusão.

Esse novo momento também fomentou inovações no tocante aos objetos cênicos em uso no espaço da sala de poses. A questão relativa à produção em série, permitiu que o cliente deixasse o ateliê com um lote de fotografias, possibilitando maior alcance da almejada projeção pessoal do retratado. Com este produto, o cliente adquiria um mínimo de oito imagens, podendo voltar e requerer mais cópias, dependendo das suas condições financeiras ou necessidades de uso. Dependendo da quantidade comprada pelo cliente, as fotografias eram entregues em envelopes especiais, que continham os mesmos símbolos usados no verso dos cartões, como marca do ateliê fotográfico, forma de distinção diante da crescente concorrência. Era uma forma de posicionar o estúdio diante dos demais, colocando-o a disposição de um grupo específico.

No Brasil, foi na década de 1860 que tal invento aportou entre nós, exatamente quando se delineou de forma mais clara o perfil do profissional da fotografia, provocando a abertura de inúmeros ateliês nas principais cidades do país. Dezenas de manuais publicados e equipamentos mais modernos permitiram que pessoas com pouco conhecimento técnico trabalhassem nesse novo mercado. E, dentro dos ateliês, era a sala de poses o local no qual se construía a cena fotográfica; é o espaço onde alguns elementos básicos se impunham, tais como “[...] telões pintados com decorações exóticas e barroquizantes, colunas, mesas, cadeiras, poltronas, tripés, tapetes, peles, flores, panejamentos, para criar imagens de opulência e dignidade” (FABRIS, 1991, p. 21). Ao fundo da sala de poses, e enquadrando as costas do cliente, deveriam ser colocados painéis, sobretudo pinturas de paisagens diversas. Esses deveriam ser móveis, permitindo substituição, de acordo com o gosto do cliente, de modo a obter harmonia entre a imagem desejada.

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Sessão temática Imagens - 606 Os retratos possuíam na pose, nas vestimentas e no uso correto de acessórios, tais como móveis e objetos, elementos pertinentes ao seu bom desenvolvimento. Dentre esses, talvez tenha sido a pose o elemento que melhor contribui para diferenciar os retratos. O retratista deveria evitar a massificação das poses. Sendo que alguns manuais indicavam como posicionar o olhar do retratado, dando sugestões de como posicionar o cliente diante da parafernália de equipamentos, apoiando o modelo nos móveis e pilares ou balaustradas da cena fotográfica. Outro ponto muito interessante, com relação à composição cênica, vem do fato de os fotógrafos muitas vezes se inspirarem nos retratos feitos pelos pintores, os reproduzindo de forma muito semelhante.

Tudo isso ocorreu num momento em que os elementos da vida burguesa eram difundidos com rapidez e as representações de status ganhavam importância diante de uma nova realidade que acena para a possibilidade de ascensão social. Nesse contexto, a vestimenta adquiriu grande importância e passou a atuar na construção dessa nova ordem. A fotografia, aliada à moda, começa a interagir nos processos de construção e representação de novos valores. Nas palavras de Gilda de Mello e Souza, no século XIX a moda acentua “[...] a divisão de classe; reconcilia o conflito entre o impulso individualizador de cada um de nós (necessidade de afirmação como pessoa) e o socializador (necessidade de afirmação como membro de grupo) [...]”, exprimindo ideias e sentimentos. É quando se evidencia de forma clara a moda masculina e a moda feminina, “[...] traduzindo os antagonismos dos ideais de masculinidade e de feminilidade” (SOUZA, 1987, p. 47), mostrando-se um reflexo dos novos papéis sociais, traduzindo a divisão dos dois mundos. A roupa não só contribuiu para a afirmação dos valores sociais; ela foi, antes de tudo, um reflexo e expressão da maneira de ser desse novo homem. Atentos aos novos valores estéticos da sociedade, os fotógrafos percebem a sua importância e exploraram, ao máximo, a roupa do retratado.

Quanto aos tipos de retratos, um importante recurso explorado, foi o retrato de “corpo inteiro”, que permitiu ao fotógrafo cercar o retratado de artifícios o definiram seu status, “[...] longe do indivíduo e perto da máscara social, numa paródia de autorepresentação [...]” (GRANGEIRO, 1993, p. 196). No caso das cartes de visite, os retratos de “corpo inteiro” foram a forma mais completa de junção da série de elementos mobilizados na elaboração da cena fotográfica. Foram neles também que os clientes puderam introduzir sua própria indumentária, trazendo desde objetos cotidianos à roupa

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Sessão temática Imagens - 607 do dia-a-dia, podendo ainda ostentar traços da moda desejada, muitas vezes inacessível. Tais recursos procuram contar a história do indivíduo, agregando fragmentos de sua personalidade.

No tocante às características específicas do trabalho apresentado por Militão Augusto de Azevedo, podemos afirmar que, ao retratar personagens da cena social paulistana, ele estava inventando e reinventando, por meio das imagens fotográficas, os valores dessa mesma sociedade. Se isso é verdade, as condições do ateliê e o conhecimento técnico do fotógrafo impunham limites para a construção do “sonho” do retratado. É justamente sobre este movimento definidor dos contornos das imagens projetadas que a análise aqui compreendida procura jogar luz.

São Paulo nos últimos anos da escravidão

O século XIX foi marcadamente um período de grandes transformações para sociedade brasileira nos seus mais variados aspectos. A segunda metade do século XIX foi, por sua vez, um período no qual o Brasil viveu razoável situação de estabilidade econômica. É neste momento que alguns costumes europeus chegaram ao país: do modo de vestir às atividades culturais em geral. Neste instante, evidenciou-se de forma mais clara o paradoxo típico da convivência dramática entre uma rica minoria letrada e uma ampla camada pobre e analfabeta. As maiores cidades brasileiras possuíam uma elite que se apropria das modas europeias, copiando valores estéticos. Assim como na Europa, também no Brasil, para as mulheres, por exemplo, o leque, a echarpe e o xale são componentes indispensáveis da vestimenta, sem os quais uma mulher “de nível” não se apresenta em público. Para os homens, a cartola, a bengala e as luvas têm igual importância na construção simbólica da posição social.

A cidade de São Paulo foi espaço privilegiado para estas transformações. Capital de uma província que sempre teve papel determinante na vida política e econômica da nação e configurou-se como ponto de passagem e parada de inúmeras pessoas. Sua população, mesmo pequena, girando entre 25.000 e 35.000, entre 1860 e 1880, refletia aspectos de centros mais desenvolvidos. A área mais urbanizada da cidade era a Freguesia da Sé, que contava com 9000 habitantes em 1872, e 13.000 habitantes, em 1886. Porém, grande parte da população estava no entorno da cidade, cujos bairros eram compostos principalmente por habitações rurais e semi-rurais, como chácaras e sítios.

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Sessão temática Imagens - 608 Ao todo, os bairros somavam 16.800 habitantes em 1872, passando a ter uma população de 34.000, em 1886 (quando a população total da cidade é 47.000 habitantes)

(CONRAD, 1978, p. 361)4. Era na região periférica que, usando a mão de obra escrava, foram produzidos vários dos gêneros consumidos pela população, tais como hortaliças, frutas, laticínios etc. A divisão entre as regiões mais afastadas e a central era demarcada pelas pontes que cruzavam os rios, riachos e córregos da cidade. Essas passagens exerciam uma função simbólica na organização espacial da cidade, delimitando não só uma mudança nas formas de ocupação propriamente dita, mas também nas regras de comportamento (WISSENBACH, 1998). Era nelas também que a cidade encontrava um dos seus espaços de interação social, especialmente por meio do vaivém das pessoas que se deslocam para o centro. Ali estavam, tropeiros, carreteiros, lavadeiras, e escravos, que na sua maioria seguiam para a região central, onde desenvolvem seus ofícios.

A população escrava da cidade era, em 1872, 3500 indivíduos (SILVA,1976). O contingente negro – cativo ou forro - residente na cidade, proporcionalmente pequeno, tinha sua visibilidade multiplicada por ter como seu espaço de convívio e expressão as ruas. Era nela que a população negra se reunia, aglomerando-se nos largos e chafarizes, nos quais ocorriam rodas de capoeira e de batuque. Tais concentrações despertava a indignação de parte da população que definia a casa como seu espaço de sociabilidade. A população branca, com sua vida reclusa e sua privacidade garantida, lançava seus olhos críticos e sua moral sobre as formas de ser dessa população.

Mas os limites geográficos da cidade foram aos poucos sendo alterados pelas transformações vividas, sendo a ferrovia um dos principais fatores de mudança. A primeira a servir à província é inaugurada em 1867, ligando São Paulo a Santos, e tendo como objetivo direto o escoamento da produção cafeeira, até então feito com o uso de animais. Dez anos depois, em 1877, foi feita a ligação com o Rio de Janeiro. As transformações na sociedade avançaram e alteram inúmeras formas de se fazer representar, tanto dos brancos, como dos negros. E, ao construir as suas autoimagens, as pessoas tiveram nos fotógrafos um aliado muito importante. Assim, a população encontrava o fotógrafo como um cúmplice para sua afirmação no contexto social.

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Sessão temática Imagens - 609 As imagens do Photographia Americana

Foi nesse universo que, em 1862, chegou à cidade de São Paulo, oriundo do Rio de Janeiro, Militão Augusto de Azevedo. Vindo inicialmente para trabalhar como ator, acompanhando a Companhia Dramática Nacional, ele acabou, pouco depois, tornando-se fotógrafo, profissão que viria a consagra-lo como um dos mais importantes que já passaram pela cidade. Tudo indica que a nova profissão foi escolhida pela busca de um trabalho mais estável, já que foi nesta época que ele constituiu família. Sua atividade teve inicio no ateliê Carneiro & Gaspar, sendo fotógrafo e depois gerente, ficando nele até 1875, momento que adquire o estabelecimento, transformando-o no ateliê Photographia Americana (KOSSOY, 2002).

Como a maioria dos estabelecimentos do período, o ateliê de Militão teve nas cartes de visite seu produto mais difundido. No período no ele atuou na cidade de São Paulo, existiam aproximadamente cinco ateliês fotográficos instalados, sendo que o ateliê Photographia Americana se destacava por ser mais popular que os demais. O preço pedido pelas cartes de visite no ateliê era um dos mais baratos de São Paulo (LIMA, 1991).

Sabemos que é difícil afirmar que tais imagens foram um produto verdadeiramente popular no Brasil, especialmente devido a enorme desigualdade aqui existente. Isto posto, devemos reconhecer que, sem dúvida, as cartes de visite abarcam novos segmentos da sociedade. Ao observar as imagens deixadas por ele, notamos que foram retratados alguns personagens oriundos das camadas mais pobres da cidade. Principalmente naquelas produzidas pelo ateliê Photographia Americana, localizado defronte à Igreja do Rosário, ponto de encontro da população negra paulistana, na Rua da Imperatriz, 58. Isso, sem dúvida, dá a ele características bem peculiares, já que os outros estabelecimentos estão instalados nas regiões dos Largos da Sé e São Francisco, espaços com características bem diferentes da encontrada no entorno do Photographia Americana (KOSSOY, 2002).

Assim, dar projeção social era a principal função de tais retratos, sendo o ateliê de Militão de Azevedo aquele no qual isso era mais acessível. Isso explica em parte a grande quantidade de negros fotografados, bem como a própria forma em que estes aparecem nessas fotos: como cidadãos à procura de uma afirmação social.

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Sessão temática Imagens - 610 Ao estar próxima do ateliê, a Igreja do Rosário acabou tendo uma importância enorme no caráter do ateliê. Ao lado do templo existiam pequenos casebres pertencentes à Irmandade e que eram ocupados por negros. Ali, também estava localizado o cemitério dos negros, nos quais o sepultamento era “[...] feito à noite, com ritual, próprio, em que são evocados, disfarçadamente, ritos ancestrais” (FERREIRA, 1971, p. 38). O local era ainda espaço para rituais religiosos, nos quais se pode ver “[...] danças e cânticos no adro, executando a célebre música Tambaque”. Muitos se aglomeram nas quitandas, casinhas e nas escadas da própria igreja, sendo o comércio de rua muito intenso naquela área (FERREIRA, 1971, p. 38).

Dentre os personagens que usavam a fotografia para se evidenciar, a população negra foi um grupo muito importante e que teve no ateliê Photographia Americana um espaço diferenciado. Era a época na qual os negros se distanciam da escravidão e, portanto, queriam se representar como homens livres. Nesse sentido, era comum a sua utilização para a manifestação de status dentro de padrões e valores tradicionais da sociedade burguesa.

O grande acervo imagético que Militão Augusto de Azevedo nos deixou é testemunho insubstituível das pessoas que na cidade viviam ou dos que por ela passaram. As imagens que aqui apresentamos mostram, além dos personagens da urbe paulistana, elementos dos aparatos cênicos e as formas de compor as fotografias. Pelas imagens conhecemos, por exemplo, quais eram os painéis de fundo, as poltronas, as cadeiras, as colunas, os aparadores, os vasos, as estatuetas e, ainda, um sem número de chapéus, bengalas, guarda chuvas, sobrecasacas, vestidos e sapatos, além, é claro, dos inúmeros instrumentos de trabalho que são trazidos pelo retratado. Vejamos alguns exemplos.

Na Figura 1 vemos um homem vestindo uma camisa branca, com as suas mangas arregaçadas um pouco acima dos cotovelos. Calça escura com as barras tocando os seus calçados, aparentemente uma velha bota, sem brilho e com manchas. Na cabeça, um chapéu preto. A face ostenta longas costeletas, bigode e vistosa barba, que se alonga até a altura do seu peito. Ele ocupa exatamente a parte central da fotografia, o que dá equilíbrio à imagem. Seu olhar fita diretamente o fotógrafo. Essa concordância entre as linhas da imagem remete diretamente ao que eu acredito ser o elemento central desse retrato: a ferramenta de trabalho. Com as mãos, ele segura a ferramenta, que,

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Sessão temática Imagens - 611 posicionada em diagonal com relação ao seu corpo, acaba se incorporando às suas formas. Homem e ferramenta, diante dos nossos olhos, são agora indivisíveis (este é um componente importante nas imagens que representam ocupações). Este homem, usando o recurso moderno da fotografia, perpetua sua imagem de indivíduo ligado às raízes de um país no qual predomina uma sociedade rural, sendo tal fotografia testemunho da nossa história social. A fotografia mostra, ainda, que a ferramenta de trabalho aparece como uma extensão do retratado, tornando-se algo que este traz consigo, na busca de sua autoafirmação.

Figura 1(Acervo do Museu Paulista da USP).

Neste tipo de retrato, vemos a afirmação dos variados elementos que vão surgindo no cenário social brasileiro. Assim, ao virem à tona, os novos personagens procuram se afirmar por meio das imagens carte de visite.

As imagens de Militão captam os mais variados personagens que emergem no contexto social urbano em formação e, como dito, permitem ver, também, segmentos das classes inferiores da população paulista. Por seu ateliê passaram casais, crianças, artistas, profissionais em busca de afirmação social, entre outros, que são imortalizados por suas lentes. Dentre as fotografias retratando a população negra paulistana, uma (Figura 2) me parece bastante significativa, sendo um bom exemplo de como essa população usa de artifícios, até então restritos à população branca, para se afirmar nessa

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Sessão temática Imagens - 612 sociedade em transição. Nela vemos uma mulher negra postada ao lado da poltrona da sala de poses, na qual descansa sua mão esquerda. Seu vestido preto ostenta uma série de babados na sua parte inferior, aparentando estar devidamente ajustado ao seu corpo. Seu pé direito está posicionado um pouco à frente e seu corpo direcionado para o seu lado esquerdo. Seus cabelos curtos expõem pequenos cachos que escorrem pela testa. Na mão direita, um leque branco que se destaca sobre a roupa escura. Ao fundo, um dos painéis do ateliê ilustra paisagens que mostram uma área mais clara na sua parte superior direita.

Figura 2 (Acervo do Museu Paulista da USP).

Mas a cidade, espaço de afirmação de indivíduos e grupos, até pouco tempo impedidos de se mostrar por meio da arte dos retratos, é também onde alguns apenas buscam manter valores e atitudes. É o que notamos com o auxílio dos estudantes da Faculdade de Direito, personagens inconfundíveis da história paulistana, e que são frequentadores dos ateliês fotográficos. As imagens que registram esse grupo não serviam apenas como lembranças, enviadas aos entes queridos e distantes, mas também permitiam a manifestação deles dentro do próprio grupo.

Na Figura 3, vemos um jovem, que dentre os ícones possíveis para levar consigo à sala de poses - no intuito de marcar posição social -, optou por se representar com alguns livros. O retratado veste um vistoso capote negro que se alonga até a altura dos joelhos. No pescoço, um xale; na cabeça, uma cartola que, posicionada de forma

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Sessão temática Imagens - 613 inclinada, provoca uma linha curva. Sua roupa, obviamente, pouco combina com um país tropical, apesar de aceitável, mesmo porque se trata de São Paulo. De qualquer forma, temos um traje que dialoga de forma mais próxima com a paisagem apresentada pelo painel que exibe a imagem de uma espécie conífera, pouco presente nas paisagens nacionais. Compõe-se aqui o tão almejado ar europeu, mas creio que o que se busca mesmo é mostrar que este personagem também existe nas terras paulistanas.

Figura 3 (Acervo do Museu Paulista da USP).

Na época o país vivia um momento rico de ideias que se alojam nos livros e que, mesmo que aqui sejam meramente cênicas, demarcam posição social. Possivelmente, a indumentária pertence ao retratado. Podemos dizer isso já que ela tem um caimento perfeito e, também, por indicar um tipo de figuração extremamente personalizada, que remete a um desejo peculiar. Posicionado em diagonal com relação ao fotógrafo, o modelo tem seu olhar frontal e direto tão usado nos retratos. O braço direito está solto e colocado rente ao corpo; o esquerdo aperta contra seu peito os dois livros. O indivíduo agora está completo, obtendo o aparato cênico que o simboliza na fotografia. O saber que ele propagandeia está sintetizado no seu objeto. Ele se posiciona devidamente num contexto social heterogêneo e complexo, no qual as fotografias eram um elemento de afirmação e reafirmação de valores. Esta era uma sociedade que se transformava e na qual surgiam novos espaços sociais, onde o novo e o velho conviviam lado a lado.

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Sessão temática Imagens - 614 No geral, o que essas imagens nos mostram é que estes homens, mulheres, crianças e adultos estão realmente em busca do seu lugar no contexto social e, para tal, contavam com o imprescindível talento de Militão que foi cúmplice dos indivíduos dessa cidade. Cidade que congregou e congrega os mais variados anseios e desejos.

Aqui, nessa São Paulo que observamos de forma tão privilegiada, chegavam e desapareciam novos valores, criando e ao mesmo tempo excluindo formas de expressão. Se para uns, usar sapatos era uma forma de afirmação, outros se posicionam ao lado do seu clarinete, do cavalete de pintura, dos livros. As imagens feitas por Militão, com seus personagens, são uma fonte insubstituível de informações que remetem a uma história que se inclina diretamente aos detalhes do dia-a-dia. Esta possibilidade de análise, aberta por seus retratos, nos permite conviver com um espaço de afirmação social, que foi gerado nos ateliês. Isso apresenta uma fonte imprescindível para entendermos a sociedade paulistana e brasileira.

Referências

CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil 1850-1888. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira: 1978.

FABRIS, Annateresa. Fotografia usos e funções no século XIX. São Paulo: Edusp, 1991.

FERREIRA, Barros. O nobre e o antigo bairro da Sé. São Paulo: Prefeitura do Município, 1971.

FREUND, Gisèle. Fotografia e Sociedade. Lisboa: Dom Quixote, 1986.

GRANGEIRO, Candido Domingues. As artes de um negócio: a febre Photographica - São Paulo 1862-1886 (dissertação de mestrado em História Social). Campinas: IFCH/Unicamp, 1993.

KOSSOY, Boris. Dicionário Histórico-Fotográfico Brasileiro. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2002.

LIMA, Solange Ferraz de. “O circuito Social da Fotografia: estudo de caso II”. In: Annateresa FABRIS. Fotografia usos e funções no século XIX. São Paulo: Edusp, 1991.

NEWHALL, Beaumont. Historia de La Fotografia. Barcelona: Gustavo Gilli, 2002. SILVA, Sergio. A expansão Cafeeira e as Origens da indústria no Brasil. São Paulo: Editora Alfa-Omega, 1976.

SOUZA, Gilda de Mello e. O espírito das Roupas. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos Africanos, Vivências Ladinas - Escravos e Forros em São Paulo 1850-1880. São Paulo: Hucitec, 1998.

Referências

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