SBS – XII CONGRESSO BRASILEIRO DE
SOCIOLOGIA
GT 08
GERAÇÕES E SOCIABILIDADES –
Título do Trabalho: PRÁTICAS CULTURAIS E AÇÕES DE
RISCO JUVENIS
Introdução
As modificações corporais (body modification – bod mod) são referências importantes
para entender a cultura juvenil, afinal parece ser crescente o número de jovens que tomam seu
corpo como auto-referência de agregação social. Nada disto é novo. Desde tempos remotos,
sabemos que a auto-referencialidade é evocada pelos membros de uma comunidade. Desta
forma indígenas, grupos primitivos e contemporaneamente (por que não?) as tribos urbanas
constroem identidades sociais usando, entre outros, marcas físicas que indicam pertencimento
a diferentes grupos – alternativos ou não. Sob certa perspectiva, podemos considerar estas
marcas como formas de consumo (Featherstone, 1995)1 que implicam em estilos de vida,
construídos a partir de mercadorias específicas que, segundo o autor, comportam uma
dimensão cultural.
Coelho (2002, p. 4)2 diz que “as identidades sociais alternativas são mitos ideológicos”
quando considera que a juventude já imprimiu historicamente ações de transformação social e
seu comportamento identificava a contestação, mas “hoje esta ação não vai muito além do consumo das mercadorias que compõem o estilo de vida escolhido”. O consumo da produção de Sebastião Salgado ou as camisetas com o Chê estampado ilustram bem esta tese.
Conforme já nos referimos, transformações corporais ocorrem desde tempos
imemoriais e no interior de segmentos distintos da sociedade: no Egito Antigo as tatuagens
conferiam realeza ao seu portador; em Roma indicavam virilidade e na Índia, pertencimento
às diferentes castas.
No mundo contemporâneo, um conjunto grande de modificações corporais está
como, por exemplo, a colocação de brincos no lóbulo da orelha de recém nascidos do sexo
feminino. Outra prática bastante corriqueira é o tingimento dos cabelos ou em cores diferentes
daquelas originais ou “dos brancos”, não causando reações de espanto, via de regra.
Nesta linha de raciocínio, das modificações corporais já incorporadas, podemos citar:
fisioculturismo, cirurgias estéticas, dieta, musculação, bronzeamento artificial, lentes de
contato coloridas. Uma reflexão necessária se volta à compreensão das justificativas para a
incorporação destas práticas. Quais ao os elementos que possibilitam sua aceitação e por que
há rejeição de outras práticas?
Tudo indica que o hábito da modificação corporal atinge seu ápice quando
desestabiliza categorias tradicionais, tornando o Homem um ser mutante. Ou seja, à
incorporação social das transformações, segue-se sua superação, rompendo com o usual, já
absorvido pela sociedade. A julgar esta tese, talvez o limite a ser atingido seja imprevisível, à
medida que se busca constante superação, também se corre o risco de rupturas drásticas,
trazendo estranhamentos3 que logo serão incorporados e provavelmente superados. Enfim,
nos cabe aqui apresentar algumas referências gerais sobre modificações corporais e indicar, a
partir das abordagens de nosso objeto, elementos para sua compreensão.
Das práticas atuais de bod-mod, indicamos que as mais usuais são a tatuagem e o
piercing. As fotos que se seguem tem a finalidade de ilustrar estas e outras práticas e foram
retirados de sites especializados como www.kingtatoo.com.br; www.neoart.net; www.kamichaos.com; www.lost.art.br apenas para citar alguns.
3
Como é o caso das práticas de “suspensão” do “homem lagarto” (www.thelizardman.com)
ou da “mulher vaca”(http://www.neoarte.net/bodymods/pri.htm), ver também o anexo 1: entrevista de Roberto Medeiros.
ATOO” - origem da palavra: conta-se que James Cook (inglês) em 1769 viu nativos com a pele pintada e
escreveu que eles exibiam suas “tatoos” uma onomatopéia que tentava reproduzir o som feito durante a execução da tatuagem (nesta época, eram usados ossos finos como agulha e uma espécie de martelo de madeira para introduzir a tinta na pele). A comercialização deu-se à partir de 1920 tornando-se bastante popular nos subúrbios americanos e
europeus. Marinheiros, artistas circenses,
homossexuais, prostitutas, criminosos e militares formavam o grupo inicial de pessoas tatuadas. Em 1959 chega no Brasil a tatuagem elétrica, através do dinamarquês "Knud Harld Likke Gregersen", que ficou conhecido como "Lucky Tattoo".
BODY PIERCING consiste na perfuração de determinada parte do corpo (com técnicas específicas) para posterior colocação de jóia (piercing). Essas jóias são confeccionadas dos mais
diferentes materias, como o acrílico, glass (vidro), titanium, niobium, madeira, ouro 14k, osso, bambu entre outros. Mas as mais usadas e confiáveis são as jóias
confeccionadas em Aço cirúrgico 316l. Essa especificação, 316l, indica o grau de pureza do material usado na confecção da
jóia.Usualmente a jóia fica a 2 mm de profundidade, na pele.
ntre os vários estilos de body piercing; o POCKETING vem se destacando. Essa técnica consiste no implante de uma haste em aço cirúrgico cujas extremidades ficam presas sob a pele formando uma "bolsa", daí a origem do nome. O pocketing tem restrições em relação a parte do corpo a ser implantada; para isso os interessados devem se informar antes sobre a experiência do profissional.
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T
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Outras práticas menos recorrentes são classificadas como ESCARIFICAÇÃO, que consiste na realização de incisões simultâneas e superficiais na pele, feitas com objetos pontiagudos. Podemos destacar o BRANDING (que literalmente significa “marcar a ferro”, o CUTTING e as escarificações através de ácido líquido).
branding escarificação cutting
m segundo de exposição para queimar com o metal em brasa. Esta é a parte inicial da arte de fazer cicatrizes no corpo. BRANDING não é novo, historicamente usado em algumas culturas para marcar criminosos ou escravos usando uma tira de metal fina com o formato da cicatriz desejada, que foram esquentadas com chamas de maçarico, deixando o metal a uma temperatura de 1.800 graus. Os mais simples brands requerem 10 a 30 golpes de um segundo cada. O procedimento dura cerca de 15 minutos do começo ao fim. Há dificuldades para um desenho detalhado pois as cicatrizes tendem a expandir durante o processo de cicatrização. Material: lâmina em brasa, ferro quente, bisturi aquecido.
Também há um outro tipo de escarificação: que utiliza ácido colódio lacto – salicilado (tratamento de verrugas). O procedimento consiste na aplicação direta na pele, do ácido com posterior cobertura com filme PVC, para
auxiliar na absorção da química. Após a absorção (algumas horas) o ácido é reaplicado, produzindo queimaduras de segundo grau, segundo relatos, com muita dor.
Existe a prática de TONGUE SPLITTING que consiste no corte da ponta da língua, ao meio, fazendo-a ficar bifurcada. E mais: HIPERTROFIA DE LÓBULO feito com base na colocação de “alargadores” de lóbulo e IMPLANTES DE JÓIAS em aço cirúrgico, por várias partes do corpo.
hipertrofia do lóbulo implante de jóia
Talvez a prática mais radical seja a SUSPENSÃO. Existem diversos tipos: a que se chama "suicide" e é feita pelas costas (na vertical). Outras suspensões são realizadas pelos joelhos, pela frente ("o-kee-pa"), e pelas costas (na horizontal "superman"). É provável que com o passar do tempo, também esta forma seja incorporada, apesar de apresentar elementos mais radicais que as outras, como dor e necessidade extrema de concentração e, obviamente, muita coragem.
Material e métodos
Em nossa pesquisa sobre Práticas Culturais e Ações de Risco privilegiamos o estudo
sobre modificações corporais, considerando-as como sugere Bordieu (1989), marcas sociais.
Estas marcas contêm, subjetivamente, indicações de pertencimento social. Assim, estabelecemos
como objetivos deste trabalho:
a) Identificar as motivações que levam os jovens a transformar seus corpos;
b) Identificar os significados sócio-culturais que dão suporte às práticas;
c) Identificar e classificar os símbolos usados e/ou praticados;
d) Analisar o comportamento da mídia frente às práticas de bod-mod.
Frente a este desafio, visando coletar dados para entender o assunto, preparamos um
formulário de questões a serem respondidas pelos dois grupos de pessoas: praticantes e não
praticantes. As questões apresentadas visavam principalmente captar as dinâmicas
implementadas pelos grupos, permitindo manifestações favoráveis ou não às mudanças corporais
e buscava a explicitação de rótulos associados a uma e outra situação.
Buscamos verificar a disposição - ou não, para as práticas e ações voltadas para o
bod-mod e pedimos aos jovens que ponderassem a este respeito, criando uma estratégia de auto –
análise e também de seu próprio segmento social. Um elemento que consideramos importante foi
a identificação da opinião e o comportamento dos pais, em função da influência exercida por
estes.
Assim, decidimos aplicar os questionários para jovens estudantes universitários (18 – 24
anos de idade), de diferentes áreas de conhecimento: humanas e exatas. Aqui tínhamos uma
face às características da formação acadêmica. O montante obtido de 116 questionários refere-se
a duas classes de alunos, buscadas aleatoriamente, mas atendendo ao critério de área. Não há
representação estatística nesta amostra, em função do total de alunos matriculados, optamos por
uma amostra qualitativa que privilegia área de conhecimento, idade, freqüência aos primeiros e
segundos anos de curso de graduação e questionário aplicado aos portadores e não portadores de
modificações corporais.
A primeira etapa de trabalho com este material implica em sua sistematização, visando
aglutinar grupos, tendências, reincidências bem como a organização de respostas díspares,
criando um protocolo inicial para análise da motivação e dos significados culturais das práticas.
A segunda etapa consistirá em uma recuperação dos entrevistados portadores de modificações
corporais e que ofereceram endereço eletrônico para contato, viabilizando entrevistas em
profundidade e obtenção de imagens fotográficas das modificações corporais, para atender outro
objetivo proposto para este trabalho, que é o de identificar e classificar os tipos e modelos dos
símbolos e/ou práticas. A título de teste para o atendimento deste objetivo e, aleatoriamente,
solicitamos a alguns estudantes permissão para produção de imagens e a reação foi amplamente
positiva.
No que se refere aos usos que a mídia faz deste fenômeno social, estamos acompanhando,
ainda de forma assistemática a grande imprensa, particularmente a Folha de São Paulo e a
Revista Época e preliminarmente podemos dizer que o corpo é um tema recorrente na mídia, mas
sob outros aspectos: beleza (em geral), saúde (obesidade tem sido bastante freqüente) e nada
especificamente voltado ao nosso interesse mais imediato. No entanto, outras mídias têm
apresentado alguns artigos e destacamos: Jornal da Unicamp, Jornal da Cidade (Bauru) e Jornal
Em princípio nos parece que a mídia impressa não gasta muito espaço com esta discussão,
mas esta afirmação ainda é especulativa. Para afirmar categoricamente que a mídia não está
voltada para a discussão, vamos criar categorias de análise e futuramente apresentaremos os
resultados.
Resultados
Até o momento, obtivemos alguns dados parciais, que nos permite tecer considerações
preliminares. Apresentaremos aqui os dados quantitativos referentes aos 116 questionários
aplicados e mais detalhadamente trabalharemos o grupo que possui modificações corporais,
deixando a análise dos que não possuem, para um momento futuro.
Tabela 1: quantidade de bod-mod, segundo grupo pesquisado:
Área Com bod-mod Sem bod-mod Total quest.
Humanas 25 44.6% 31 55.4% 56 100%
Exatas 05 8.3% 55 91.7% 60 100%
O primeiro elemento que nos chama atenção é a substantiva diferença entre adeptos e não
adeptos de mudanças corporais. Os não adeptos são maioria nos dois grupos, desmistificando a
imagem de que transformações corporais são práticas muito presentes e reiteradas para a
juventude. Importante destacar que entre os dois grupos, a área de exatas parece se mostrar,
quantitativamente, mais resistente. O questionário abre a perspectiva de resposta quanto às
O segundo elemento que aparece com bastante ênfase é o fato de que os alunos de
Humanas realizam, em grande quantidade (44.6%) algum tipo de modificação em seus corpos.
Nos ocorre pensar aqui que, se a realizam para ficarem “diferentes”, tipificados, o dado nos indica que estão cada vez mais iguais.
Tabela 2: totalização de bod-mod, por gênero e faixa etária:
Área Homens Mulheres
18-20 anos 21-23 anos Não decl. Total 18-20 anos 21-23 anos Não decl. Total
Humanas 6 1 1 8 11 5 1 17
Exatas 4 1 - 5 - - - -
Tabela 3: totalização, com bod-mod, por tipo
Área Tatuagem Piercing Cutting Estética Branding Brinco
Humanas 12 20 01 01 01 01
Exatas - 04 01 01 -
Os dados acima são auto-explicativos, mas a título de esclarecimento é importante dizer
que há pessoas que possuem mais de um tipo de modificação, criando uma relação não linear, ou
O fato das pessoas optarem mais pela colocação de piercing pode indicar que preferem
adornos provisórios, passíveis de serem retirados sem maiores dificuldades, o que não ocorre com
os demais tipos que impõem marcas definitivas, dificilmente dissimuladas, restando para toda a
vida.
Mas, seja qual for o tipo de mudança realizada, vale dizer que as motivações são bastante
similares, passando fortemente pelo “gosto” e pela “beleza” que estas mudanças conferem ao seu portador. Quando inquiridos, os jovens indicam múltiplas razões. Vejamos a motivação e
quantidade de respostas correspondentes:
Acho bonito (17) Porque eu gosto (6) Para marcar estilo (5) Por estética (3)
Tem a ver com ideologias (3) Para ficar diferente (3)
Para marcar uma fase da vida (2) Deu vontade (2)
Foi o que os pais permitiram (1) Por vaidade (1)
Para ter prazer com a dor (1) Como prova de amor (1)
Mesmo não aprofundando a questão, as respostas aparentemente apontam para razões de caráter
estritamente pessoal, como beleza, gosto, estética. Mas a reflexão que nos ocorre é a seguinte:
estes valores são construções de caráter pessoal ou social? Será que ao se referirem a estes
consumo e quando buscam se tornar diferentes e com marcas e estilos, se tornam cada vez mais
iguais aos demais, transformando o singular e pessoal em processo de massificação, de caráter
plural e geral?
Outro ponto de vista desta questão se refere ao olhar destes jovens que possuem
modificações, em relação aos demais que também as possuem. À formulação: o que você acha de
quem faz modificações corporais, responderam:
Acho natural/normal
Tem que combinar com a pessoa Sou contra os modismos
É bom ser aberto às coisas novas Cada um, cada um
É válido para se sentir bem Interessante
São pessoas tentando ser mais alternativas Por que não fazer?
É curiosa a mudança do referencial: quando analisam o outro que faz modificações, o sentido das
respostas parece apontar mais para a liberdade individual, com o devido senso crítico (ser contra
modismos, tem que combinar ...) e deixam ao largo os valores estéticos então referidos às suas
próprias modificações.
O questionário aplicado fornece outras indicações do comportamento da juventude face às
mudanças que realiza em seu corpo, seguramente indicando outras perspectivas de análise para o
Bibliografia
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