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20º Congresso Brasileiro de Sociologia. 12 a 17 de julho de UFPA Belém, PA. Comitê de Pesquisa Sociologia e Imagem

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20º Congresso Brasileiro de Sociologia

12 a 17 de julho de 2021 - UFPA – Belém, PA

Comitê de Pesquisa – Sociologia e Imagem

Título: Imagens da devoção e os arquétipos da troca: uma abordagem imagética

dos festivais Hare Krishna

Autor: Victor Hugo Oliveira Silva. Instituição: Doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná

(UFPR).

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Imagens da devoção e os arquétipos da troca: uma abordagem imagética dos festivais Hare Krishna.

Autor: Victor Hugo Oliveira Silva

Resumo: Nesse texto tomo as imagens como recurso epistemológico para oferecer uma visão a respeito da estrutura central que compõe os festivais devocionais do movimento Hare Krishna: canto de mantras, palestra filosófica e jantar vegetariano. Essa abordagem foi inspirada em Aby Warburg e o seu conceito de Pathosformel, ou cristais de memória, como definiu Agamben, que ao serem sistematizados, reproduzidos e representados, passam a ser um símbolo das civilizações. A questão é então pensar quais as condições para que essas memórias sejam revividas e experienciadas como engramas? O que ativa esse pathosformel particular com o qual dialoga o humor e forma de emocionar-se dentro da prática do movimento Hare Krishna?

Palavras Chave: Emoções, Imagens, Hare Krishna, pathosformel

Abstract: In this text I take the images as epistemological resource to provide

insight into the central structure that make up the devotional festivals of the Hare Krishna movement: chanting mantras, philosophical lectures and vegetarian dinner.This approach was inspired by Aby Warburg and his concept of Pathosformel, or memory crystals, as defined by Agamben, which by being systematized, reproduced and represented, they become symbols of the civilizations. The question is then think about the conditions for these memories to be revived and experienced as engrams? What activates this particular pathosformel with the which dialogues the mood and way of being emotional within the practice of the Hare movement Krishna?

Key-Words: Emotions, Images, Hare Krishna, Pathosformel INTRODUÇÃO

‘Jagannatha Swami nayana patha gami bhavatu me Senhor do Universo, por favor, revela-te ante minha visão’ Shankaracarya Nesse texto, fruto de minha pesquisa de doutorado em andamento, tomo imagens como estratégia metodológica na busca de oferecer uma reflexão a respeito dos festivais devocionais do movimento Hare Krishna. Nesse sentido, as figuras apresentadas e as montagens organizadas visam, enquanto ferramentas de uma etnografia, oferecer uma visão a respeito dos aspectos centrais que compõem os festivais, buscando pensar sobre o fluxo de mediações que os produzem enquanto uma sequência ritual. A partir dessa proposta as imagens utilizadas são entendidas como uma tentativa de capturar a emoção como

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expressão do pensamento, idealmente presente nesse processo prático de serviço devocional.

Essa abordagem foi inspirada em Aby Warburg e o seu conceito de Pathosformel, fórmulas emocionais ou cristais de memória, como definiu Agamben, que ao serem sistematizados, reproduzidos e representados, passam a ser um símbolo das civilizações. Mas que civilizações são essas, que histórias são essas, com as quais os símbolos dialogam? O que ativa esse pathosformel particular com o qual dialoga o humor comunitário e a forma de emocionar-se dentro da prática do movimento Hare Krishna?

Nossa unidade de análise para esse experimento reflexivo, tendo em vista as questões acima são os festivais devocionais realizados pelo Templo Hare Krishna de Curitiba. Esse templo, localizado do centro histórico de Curitiba foi fundando em 1983. É parte da ISKCON, instituição organizada em Nova Iorque a partir ano de 1966 por A. C. Bhaktivedanta Swami Prabhupada (1896-1977), mestre espiritual indiano nascido em Calcutá e representante de uma das linhagens vaishnavas1 que se desdobram a partir das escrituras védicas.

Essa linhagem é a Brahma Madhva Gaudiya Sampradaya, que segue o tipo de vaishnavismo ensinado por Sri Chaitanya Mahaprabhu (1486-1534), tido por seus seguidores como o avatar mais recente de Krishna (a Suprema Personalidade de Deus). Um dos principais objetivos de sua vinda, tal como observa Silveira (2013) teria sido justamente a divulgação da prática do cantar dos santos nomes de Deus através do maha-mantra Hare Krishna Hare Krishna Krishna Krishna Hare Hare Hare Rama Hare Rama Rama Rama Hare Hare2,

processo este chamado de Hari Nama Sankirtana (canto congregacional dos santos nomes).

Tal rito sagrado, além de práticas meditativas e de adoração ritualística, confere uma ênfase especial ao canto congregacional do maha-mantra, um tipo de meditação ou prática de yoga coletiva que se dá na forma a procissões de rua,

1 Termo utilizado para designar, dentro da pluralidade de tradições que se desdobram a partir do corpus

literário que compõe a literatura védica, aqueles que consideram Vishnu ou Krishna como a divindade suprema, aquele que é a própria fonte do Brahman (o absoluto em constante expansão) (Flood, 2016).

2 Em uma tradução feita por Swami Prabhupada poderia ser lido como ‘Ó Senhor, por favor, faça de mim

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com estandartes e instrumentos em meio à dança e ao canto do maha-mantra, além da distribuição de alimento espiritualizado, oferecido a Krishna.

Assim, o vaishnavismo gaudiya propagado por Sri Chaitanya e seus seguidores tem uma forte carga festiva e emotiva. Mistura a erudição dos brâmanes com a efusividade da vida devocional de uma região da Índia conhecida como Bengala Ocidental, um pólo multicultural que, devido a sua importante localização geográfica, apresenta trânsitos culturais entre matrizes vaishnavas, tântricas, budistas e islâmicas. Esta riqueza encontrou um fator ainda maior de ebulição a partir de quando o Império Britânico, mediante a ação da Companhia das Índias Ocidentais, incorporou o chamado Hindustão como colônia, fazendo de Calcutá sua sede, o que propiciou uma série de transformações e trânsitos culturais e religiosos dentre os quais se encontra o próprio movimento Hare Krishna.

Tendo em mente questionamentos acima apontados e o contexto de pesquisa com o qual estamos trabalhando o texto será dividido em três partes. Na primeira apresentarei, tendo imagens como suporte e janela, uma breve descrição do movimento Hare Krisha, tentando apontar a importância da realização de festivais na vida da comunidade tomada como recorte reflexivo. Na segunda parte, apresentaremos três sequências de imagens, produzidas a partir da estrutura dos festivais, buscando tratá-las a partir dos questionamentos levantados nos parágrafos acima.

No caso das imagens em questão, temos algumas fotos tiradas em Curitiba e outras em um festival na cidade de Florianópolis. As imagens que configuram pinturas e aquelas em que aparece Swami Prabhupada com seus discípulos foram resultados de pesquisas na rede, já as outras foram fotografias produzidas por mim durante o trabalho de campo.

Na terceira e última parte apontaremos algumas conclusões provisórias às quais pudemos chegar mediante o experimento aqui proposto.

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Figura 1: Convite para o Festival Ratha Yatra 2019

Nessa figura temos uma reprodução da arte de um dos ‘convitinhos’ que os devotos distribuem nas ruas (e também através da internet) para anunciar os festivais e buscar, como o nome do material indica, convidar pessoas a visitarem os templos e participarem das festividades. Eles são produzidos pelos próprios membros do movimento, em geral residentes do templo que, dentre outras funções rituais e missionárias, assumem também a comunicação visual dos templos.

São três imagens emolduradas na composição do convite. Em primeiro plano, tendo sua moldura sobreposta sobre as outras duas, temos uma criança representando Krishna, com sua flauta e pele azulada. Na segunda, vemos uma pintura da terra sagrada de Jaganatha Puri, em um festival como esse, realizado no século XVI, no qual Chaitanya Mahaprabhu dança em êxtase. Na terceira imagem vemos uma foto dos devotos realizando em 2018 esse mesmo festival, já em Curitiba, cantando de forma entusiasmada tendo ao fundo o carro da procissão.

Chaitanya aparece no convite bem no centro, na pintura que o representa como um jovem monge renunciante (o que se percebe por suas vestes açafroadas) dançando em êxtase. As imagens parecem dizer com essas aproximações e molduras que Chaitanya e Krishna são o mesmo e que os

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devotos ao lado manifestam o jogo cósmico que os permite integrar o passatempo, ou lila que, segundo ensinam os devotos em suas palestras, essa forma de Krishna em particular veio manifestar.

Segundo Stanley Tambiah (2016) lila é um conceito importante para pensarmos a vida devocional e religiosa do sudeste asiático, região onde se origina o vaishnavismo gaudiya. E, tal como pretendo a seguir argumentar, pode ser útil sentido de compreender as fórmulas emocionais, ou engramas, que as imagens em questão condensam.

De acordo às reflexões de Tambiah (2016) a ideia de lila pode ser entendida como um modo particular de vivenciar e ativar o extraordinário e extramundano, ou ainda como ‘um festival religioso que ao promover uma experiência intensificada do divino faz com que os Deuses e o Divino se tornem ativos e manifestos nesse mundo (Tambiah, 2016, pg 137)’.

Literalmente, tal como aponta o antropólogo, essa palavra pode ser traduzida como jogo, sendo inclusive utilizada para nomear brincadeiras e dramas. No entanto o sentido que ele enfatiza em sua análise é aquele no qual este termo é utilizado para descrever grandes ciclos de festivais religiosos, conjuntura na qual passam a comunicar o fato de os deuses e o divino estarem se tornando manifestos nesse mundo. Tal presença de uma experiência intensificada do divino teria como uma de suas características, tal como aponta Tambiah (2016) o uso amplo de muitos meios de comunicação e uma intensa participação popular.

A figura acima se refere a um convite para um festival chamado Ratha Yatra, ou festival da Carruagem, que é justamente a lila que está sendo ativada pela celebração. Esse festival vem sendo realizado em Curitiba já há 15 anos, organizado em conjunto pelos residentes do templo e por um devoto antigo, não residente da comunidade, chamado Jaya Vrndavana Das – professor, músico e promotor de eventos ligados a cultura indiana. Dessa maneira, podemos dizer que esse festival representa uma união de esforços entre os devotos residentes e membros externos da congregação.

Na Índia, segundo Hermann Kulke (1979), a realização do Ratha Yatra vem sendo retratada (com espanto) pelos cronistas ingleses desde pelo menos o século XIV, no entanto é difícil datar com exatidão desde quando ele é celebrado,

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sendo que referências a esse festival são encontradas em escrituras datadas do século XI. Os devotos de Jaganatha, no entanto, tal como afirmam os registros contidos no templo de Puri, a consideram como a mais antiga festividade espiritual que vem sendo continuamente realizada pela humanidade.

Nela ocorre uma procissão, na qual a Suprema Personalidade de Deus e seus associados na forma dos irmãos Jaganatha, Baladeva e Subadhra são puxados por cordas em uma carruagem. Ao longo do calçadão pelo qual segue a procissão os devotos tocam tambores (mrdangas) e címbalos (karatalas) ao som maha mantra Hare Krishna, além de outros mantras em louvor a Jaganatha. Enquanto isso outros devotos distribuem livros, docinhos e convidam para o banquete vegetariano com canto de mantras que ocorrerá ao final.

A forma de Krishna conhecida como Jaganatha (Senhor do Universo), com seu aspecto exótico de olhos grandes e braços curtos é tida como a personificação do amor em separação, a forma mais profunda de amor devocional chamada vipralambha, a saudade espiritual. Essa emoção, que na narrativa em questão a Suprema Personalidade de Deus sente por sua amada, Srimati Radharani, é tomada como uma metáfora e um modelo para a saudade do mundo espiritual e do próprio Krishna que os devotos buscam manifestar pela prática da bhakti-yoga, ou, yoga da devoção.

Assim, na visão ontológica da devoção vaishnava, puxar a corda do carro em um Ratha Yatra significa, para os seus devotos, o ato de trazer o amor por Deus de volta aos seus corações. Assim como, no primeiro Ratha Yatra, os habitantes de Vrndavana puxaram Krishna de volta para sua morada. É assim que, ao ser puxado na carruagem, Krishna retorna a Vrndavana, tida como a região mais sagrada do céu espiritual.

As ruas pelas quais passam a procissão deixam momentaneamente, de serem ruas comuns e se tornam um espaço sagrado. Assim no convite acima, a praça Santos Andrade, enquanto ponto da partida, é o mítico campo de Batalha de Kurukshetra, de onde teria partido a primeira procissão. O ponto de chegada, no Largo da Ordem, é Vrndavana, o bosque sagrado onde Krishna desfruta de passatempos íntimos com seus associados.

A partir disso podemos sugerir que uma das mensagens imagéticas transmitidas pelo convite, enquanto um elemento mediador da rede associações,

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é a de que o festival para o qual a pessoa está sendo convidada é um descongelamento das próprias imagens do convite. Nesse sentido as imagens ali contidas não somente representam, mas re-apresentam a possibilidade da experiência que as origina.

A partir de Latour (2004), em sua conferência ‘Não congelarás a imagem’, podemos considerar que a própria realização do festival se propõe a descongelar a imagem do convite revelando-a como uma vivência efetivada por diversas mediações. Assim, tal como indica a perspectiva, é esse fluxo de mediações que confere sentido às imagens, na medida em que elas integram essa rede de acontecimentos.

O que quero dizer é que, tanto no caso da ciência quanto no da religião, congelar o quadro, isolar um mediador dos seus encadeamentos, de sua série, impede instantaneamente que o significado seja modulado e transmitido em verdade. A verdade não se encontra na correspondência — seja entre as palavras e as coisas, no caso da ciência, ou entre original e cópia, no caso da religião —, mas em tomar a si novamente a tarefa de continuar o fluxo, de prolongar em um passo a mais a cascata das mediações. (Latour, 2004, pg 372)

Dessa maneira, descongelar as imagens implicaria em, a partir das próprias, desvelar o fluxo de mediações que ela integra, reinserindo-as nessa rede e colocando-as em movimento ao desdobrar as emoções ali imageticamente condensadas. A experiência da verdade, enquanto enunciado que o convite apresenta, se encontra disponível nessa tarefa de dar continuidade ao fluxo de mediações ali propostas.

A partir disso sugiro que esse mesmo fluxo poderia então ser imaginado como um desdobramento da tensão e condensação energética, ou engramas da experiência emotiva, que Warburg, tal como aponta Cantinho (2016) apontava como sendo possíveis de serem captados através das imagens, quando essas fossem abordadas de modo não representacionista.

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Figura 2: Sri Jaganatha, Swami Prabhuda e uma caixa Fender.

Na cena acima vemos a Deidade de Jaganatha que foi instalada no templo de São Francisco, por volta de 1969, e também um amplificador Fender, símbolo da universalização da guitarra elétrica e do rock e n roll. Entre eles, de forma significativa, devido a sua posição como intermediador de mundos, vemos Swami Prabhupada realizando o ritual do Hari Nama Sankirtana.

Fazendo associações dessas imagens podemos sugerir que Jaganatha e o Ratha Yatra são, em certa medida, símbolos da universalização do vaishnavismo. Segundo Hermann Kulke (1980), a reação inicial dos missionários britânicos do séc XIV perante essa festividade foi de espanto e preconceito, a ponto de acusarem a celebração de ser um suposto culto demoníaco. No entanto tais ataques tiveram, segundo o autor, o resultado de promover um revivalismo desse próprio festival, que passou por um crescimento grandioso ao longo dos séculos subseqüentes, tornando-se um símbolo da religiosidade popular hindu com implicações para diferentes linhagens vaishnavas, budistas e tântricas.

Quando passou fundar templos no Ocidente, a partir de 1966, Swami Bhaktivedanta, que desde sua infância celebrava o Ratha Yatra por influência de seu pai, instalou a primeira forma de Jaganatha na cidade de São Francisco, cidade chave no movimento contracultural durante aquele período. A partir disso recomendou a seus discípulos que celebrassem o festival de Ratha Yatra nas

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grandes cidades em que houvesse um templo do movimento Hare Krishna, inclusive Londres, antiga capital do antigo British Raj.

A ISKCON (Sociedade Internacional para Consciência de Krishna), que foi a instituição fundada por Swami Prabhupada nesse período, teve um período de grande expansão ao longo do final dos anos 60 da década de 70, chegando ao Brasil em levas a partir do início dessa mesma década. O movimento teve diferentes fases e desdobramentos, que fizeram com se surgissem diferentes estratégias de pregação e inserção na sociedade.

O templo Hare Krishna que aqui tomamos como unidade de análise foi tem atualmente como liderança um devoto de origem uruguaia, chamado Hara Kanta Das, monge de 70 anos e membro do movimento desde o início dos anos 80, quando transmutou sua antiga militância política em busca transcendental, tornando-se um monge renunciante vaishnava que, além de sacerdote e um exímio cozinheiro, ensina a muitas pessoas a como se inserirem dentro da bhakti-yoga, fundando e liderando comunidades centradas no serviço devocional.

Atualmente ele coordena os quatro templos da ISKCON existentes na região sul do Brasil. Uma das principais características de sua administração é enfatizar a vida comunitária e missionária, fazendo com que a manutenção financeira dependa unicamente de doações e da prática de distribuição de livros de Swami Prabhupada. Esse humor é muitas vezes tido como radical por outros membros do movimento Hare Krishna no Brasil, que consideram formas mais indiretas de levar os ensinamentos de Prabhupada como mais eficazes atualmente do que o estímulo a uma vida comunitária e missionária.

Tal orientação dentro desse chamado ‘humor missionário’ faz com que aqueles membros do movimento que integram as comunidades nos templos tenham sua vida direcionada de forma quase exclusiva para quatro atividades principais: o cantar do maha-mantra, a distribuição de livros, a distribuição gratuita de alimentos (prasadam) e a adoração às Deidades instaladas no altar.

Além disso, outro elemento central é que essas quatro atividades culminam na realização periódica de festivais devocionais, os quais, como expresso no convite abaixo, giram em torno da programação que consiste em canto de mantras, palestra filosófica e banquete vegetariano:

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Figura 3: Convite Festival de Govardhana 2018

O objetivo de tais atividades é celebrar, de acordo com o calendário Gaurabda3 os passatempos das diferentes manifestações ou avataras de Krishna

que se manifestaram na Terra. Tal como a afirma um verso constantemente lido em festivais: “Aquele que conhece a natureza transcendental do Meu aparecimento e atividades, ao deixar o corpo não volta a nascer neste mundo material, mas alcança Minha morada eterna, ó Arjuna.(PRABHUPADA, pg.171, 2017)”

Essa compreensão parece não se referir a uma questão somente intelectual, ou cognitiva, mas sim a uma prática, um cultivo coletivo que permite o acesso a essa dimensão presentificada e performada pelo canto e pelo alimento espiritualizado. Os festivais que são como uma culminação do ciclo da dádiva; são definidos, em sânscrito, como mahotsava, que pode ser traduzido como ‘grande elevação’.

Se eles são portais espirituais ou dínamos de produção de significados, o ponto é que resultam da e se vivenciam pela coletividade em seu estado de efervescência.Os festivais como potlachs, podem ser eventos entendidos como aqueles em que operam prestações totais, exageradas e, do ponto de vista utilitarista, irracionais. Nesses eventos a feitura das preparações, ao ditar a rotina

3 Calendário de orientação lunar, baseando na astrologia védica e que marca, além de datas importantes

associadas a Krishna e suas diferentes manifestações, dias de jejum (ekadasi) bem como os dias de advento e de partida de importantes santos na linhagem do vaishnavismo.

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do templo, coloca também um ritmo na própria vida dos devotos. Como nos ensina Mauss (2003), enquanto fatos sociais totais, tais eventos são produtores da própria vida social e seus significados tal qual ela é ali praticada e entendida, sendo, por isso, um lócus privilegiado de observação.

Um ponto importante de se observar é que o custo financeiro das preparações é obtido pelas doações decorrentes da distribuição de livros, pelas doações conseguidas no Ceasa e eventuais contribuições em dinheiro feitas por devotos externos e simpatizantes.

Temos então um ciclo no qual o devoto que distribui os livros em troca de doações, chamado de sankirtaneiro, sai às ruas e, com a coleta resultante, contribui para manutenção da comunidade bem como para realização de suas principais atividades. Ao mesmo tempo se engaja em uma atividade missionária e, em certa medida pedagógica, que lhe ensina a respeito de tolerância, austeridade e controle dos sentidos.

Como resultado, essa ‘coleta’ (que é como os devotos chamam o dinheiro recebido nas ruas através da distribuição de livros) se reverte em Lakshmi (ou forturna, que é chamado o dinheiro quando ele passa a ser utilizado no serviço devocional). Essa quantia, por sua vez é revertida em oferendas que, ao serem oferecidas a Krishna pelo pujari no altar se tornam a prasadam, o alimento espiritual que será distribuído tanto para a comunidade de residentes, como no projeto que serve gratuitamente almoço vegetariano para o público, de segunda a sexta feira.

Nos festivais ocorre uma intensificação dessas redes de troca, pois mais pessoas vêm ao templo e mais prasadam é distribuída, o que resulta na necessidade de engajamento mais intenso na própria atividade missionária, entendida como uma prática pedagógica do próprio serviço devocional, ou bhakti yoga. De fato, a distribuição de livros é tão central nas práticas coletivas e produção de significados dentro do movimento que podemos dizer que alguns dos maiores festivais são celebrados nos momentos de encerramento das chamadas ‘Maratonas de Distribuição de Livros de Prabhupada’, que ocorrem em Julho e Dezembro.

Em certa medida a própria vida do movimento tem o ritmo ditado pela vida missionária e devocional, pela pregação nas ruas e atendimento às Deidades no

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altar, processo este tem nos festivais o seu ápice. Tais situações oferecem a temporalidade da devoção em função da qual os corpos experimentam outra ontologia, ao serem ciclicamente dispostos na sequência particular de cada festa. A questão do tempo é central, tanto para produção prática das associações em torno da busca pelo néctar a ser oferecido para as Deidades, como para a própria tomada da fotografia como material reflexivo, instante preservado capaz de ser descongelado nas associações que se colocam em movimento.

A troca, na prática do bem viver Hare Krishna, ou, na busca do néctar, tem muitas instâncias e entradas. Mas, buscando adentrar essa rede, que alimenta sentidos de vida e de mundo, faz-se necessário escolher algum nó para, como quem usa uma fechadura, abrir uma porta. A dádiva é um combustível, em certa medida, da vida comunitária, sendo a prática missionária simultaneamente um lugar mítico e econômico, simultaneamente fundamental para o funcionamento material da coletividade e para a socialização em seus valores fundamentais . A prática da distribuição de livros nas ruas, sendo o motor de tais transações simbólicas e práticas, se configura como um campo para a vivência das experiências emocionais que intensificam a devoção, ao conferirem sentido para o próprio engajamento

II - Canto de Mantras, Palestra Filosófica e Jantar Vegetariano.

Essas sequências imagéticas a seguir apresentadas foram divididas em três eixos, designados a partir daquilo que os próprios devotos expressam como sendo a programação de seus festivais, canto de mantras, palestra filosófica e jantar vegetariano.

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Nessas sequências vemos sobrepostas temporalidades e espaços, tendo como fio condutor a prática do vaishnavismo gaudiya, o cantar do maha mantra pelas ruas. Cantar esse que tem uma estética que remete à sensação de estar em outro tempo, sendo que a sequência de imagens expressa um pouco esse movimento.

No caso em questão, os enquadramentos pelos quais passeiam as imagens seriam quatro: um deles seria a própria referência ao mundo espiritual, situação essa manifesta especialmente nas imagens que são pinturas feitas para estarem presentes nas traduções das escrituras feitas por Swami Prabhupada. O segundo molde contextual é a própria região da Bengala, onde se iniciou o Hari Nama Sankirtana tal como professado do por Sri Chaitanya e seus associados. O terceiro seria o momento inaugural do movimento Hare Krishna no Ocidente em sua relação com a contracultura, tal como presente nas imagens onde aparece Swami Prabhupada com seus discípulos. E a quarta seriam as próprias cidades do Sul do Brasil onde o movimento Hare Krishna tem atuado.

Um elemento estético que atravessa as diferentes temporalidades, como que saltando e unindo uma e outra é a vestimenta, a chamada roupa devocional, constituída por kurtas, um tipo de camiseta de algodão cumprida de origem persa e os dhotis, que são os panos amarrados em torno da cintura de forma a ficarem parecendo algo entre uma saia e uma calça. A cor é representativa, aqueles que são monges celibatários se vestem de açafrão, já aqueles que são casados vestem branco. Essas vestes constituem assim um elemento importante da estética devocional. Sejam elas vindas do mundo espiritual ou resultantes de trânsitos entre antigas civilizações, a experiência tanto de vê-la quando de usá-la remete à uma forma de alteridade.

Buscando aprofundar a reflexão sobre essas imagens podemos nos beneficiar de algumas reflexões apresentadas por Didi-Huberman sobre o uso de imagens nas ciências sociais:

“Creio que todo o meu trabalho está guiado por uma intuição fundamental sobre a imagem, enquanto ato e enquanto processo […] Diante da imagem devemos convocar verbos para dizer o que as imagens fazem e o que elas nos fazem (onde elas nos tocam), e não apenas adjetivos e nomes para acreditar ter dito o que elas são”. (Didi-Huberman 2010 pg 191)

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Seguindo essa sugestão podemos apontar alguns verbos que caracterizam as imagens presentes nas sequências acima: na sequência número podemos encontrar os verbos cantar e dançar, na número dois, sentar e ouvir e, na terceira, servir e comer.

Tais verbos e ações implicadas nas sequência acima reverberam com um importante verso do Bhagavata Purana:

Ouvir e cantar a respeito do santo nome, da forma, das qualidades, da parafernália e dos passatempos do Senhor Visnu, que são todos transcendentais, lembrar-se deles, servir aos pés de lótus do Senhor, oferecer ao Senhor respeitosa adoração com dezesseis classes de artigos, oferecer orações ao Senhor, tornar-se Seu servo, considerar o Senhor o melhor amigo de todos e entregar-Lhe tudo (em outras palavras, servi-lO com corpo, mente, palavras) – estes nove processos são aceitos como serviço devocional puro. Alguém que dedicou sua vida a servir a Krishna através desses nove métodos deve ser considerado a pessoa mais erudita, pois adquiriu conhecimento completo (PRABHUPADA,p. 247, 1995).

Vemos então como o serviço devocional - enquanto um processo - é constituído de ações ativadas pelos festivais enquanto um devir em potencial, circunscrevendo uma moldura. Essas práticas, todas elas vivenciadas com o corpo em relação, são fundamentais para propiciar o tipo de interação que caracteriza um festival vaishnava, uma experiência que tem o potencial de fazer a pessoa vivenciar outro sentido de tempo, relacionado a uma memória coletiva e sua perspectiva a respeito da ideia de alma. Sendo um impulso externo e interno, de caráter eminentemente coletivo, a prática de dançar e cantar em grupo acaba por representar essa situação:

Limitando-se a tratar a dança como ‘uma forma de cerimonial social’ Radcliffe-Brown ressalta o fato irrepreensível de que ‘o caráter essencial de toda dança é que ela é rítmica’, e que essa natureza rítmica permite que um número de pessoas participe das mesmas ações e as realize como um corpo’ (...) ‘Qualquer ritmo marcado exerce, naqueles submetidos à sua influência uma coerção, impelindo-os a ceder a ela e a permiti-lo dirigir e regular os movimentos do corpo e aqueles da mente (p.249)’. O ritmo e o tom fixos contribuem para a performance da atividade social em conjunto. De fato, aqueles que resistem a ceder a essa influência coercitiva provavelmente sofrerão de uma inquietação desagradável marcante. Em comparação, a experiência de um tipo particular de coerção agindo sobre o colaborador indez nele, quando ele cedo, o prazer da auto entrega (Tambiah, pg 134, 2016)

Essas ações mencionadas, elementos centrais da prática do serviço devocional, também chamado bhakti-yoga, ao mesmo tempo que se manifestam em praticas coletivas e festivas realizadas em cidades ao redor do mundo não

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fazem referência à cultura clássica Greco latina, mas a própria de civilizações do sudeste asiático que, dialogando com a experiência da contracultura dos anos 60, contribuem no entendimento das imagens analisadas, seus engramas e pathosformeln próprios. Como diz Warburg, logo na introdução à sua obra Bilderatlas Mnemosyne, “estes engramas da experiência emotiva sobrevivem como património hereditário da memória.” (Warburg apud Cantinho, 2000, p. 23).

A ideia de sentar-se ao chão, por exemplo, é uma prática corporal que remete a essa origem diversa, outra, ainda mais quando isso se dá no contexto configurado pela leitura de uma escritura védica, como no caso da sequência número 2.

A audição da narrativa épico-poética chamada Bhagavata Purana é uma prática central na disciplina espiritual diária, tendo em vista que a prática de ouvir (sravanam) os nomes de Krishna e suas atividades é considerada como uma das práticas fundamentais no cultivo do serviço devocional (bhakti-yoga). A centralidade da audição e leitura dessa escritura tem sua antiguidade registrada numa iconografia devocional que expressa uma estética específica, que presentifica uma condição na qual tal leitura/entoação pode ser realizada.

Considerações Finais

A partir do que foi apresentado podemos constatar a fertilidade do uso de imagens enquanto ferramenta de pesquisa. Não chegamos a respostas conclusivas em torno dos questionamentos que inicialmente orientaram a pesquisa, apenas desdobramos novas perspectivas a serem futuramente aprofundadas.

No entanto podemos dizer que as sequências apresentadas nos permitem dialogar com os elementos centrais da própria cosmologia vaishnava gaudiya, sendo esse conceito, seguindo a proposta de Tambiah (2016), entendido como ‘o corpo de concepções que enumeram e classificam os fenômenos que compõem o universo como um todo ordenado, e as normas e processos que os governam (Tambiah, pg 141, 2016)

Essas imagens podem ser lidas como símbolos, tal qual o sentido proposto por Warburg, que, segundo Maria João Cantinho (2016), os define enquanto portadores de uma carga energética, como se fossem dinamogramas transmitidos em estado de tensão elevada ao máximo, mas que são polarizadas quanto à sua

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carga energética. Uma polaridade seria o evento em si e outra a conjuntura que a recebe, A polarização dá-se – na sua carga negativa ou positiva – quando há um reencontro de uma nova época e das suas necessidades vitais. (Cantinho, 2016, pg 28).

Os verbos imperativos da prática espiritual vaishnava gaudiya, tal como sugerem as sequências de imagens, foram viajando entre diferentes conjunturas que propiciaram sua reativação. A partir dessas considerações podemos tomar, a título de experimentação, as sequências de imagens acima como possíveis expressões de um desses momentos de reativação de uma energia potencial ou engrama, que é ativado na medida em que certos eventos se tornam símbolos por dialogarem com uma memória. Nesse caso a memória passa a ser entendida não como uma propriedade orgânica da consciência, mas como uma qualidade que distingue o ser vivo da matéria inorgânica, uma característica social por excelência.

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Referências

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