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CONSTRUINDO SONORIDADES: TÉCNICAS COMPOSICIONAIS EM UMA ESTÉTICA ORIENTADA PELO TIMBRE

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Academic year: 2021

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CONSTRUINDO SONORIDADES: TÉCNICAS COMPOSICIONAIS EM UMA ESTÉTICA ORIENTADA PELO TIMBRE

Magno Caliman emaildomagno1@gmail.com Resumo

Este trabalho apresenta a primeira etapa de um estudo que busca discorrer sobre algumas metodologias e processos composicionais envolvidos em uma estética que abraça o timbre como seu principal material musical. Com isso, mostraremos como ao longo do século XX certas mudanças na forma de pensar a criação musical; o surgimento de novas estratégias composicionais; e a absorção, por parte da música, de novos conceitos provenientes de outras aéras do conhecimento, acabaram por culminar no surgimento de uma verdadeira

estética da sonoridade. Estética essa onde “a articulação de objetos sonoros constitui (...)

um vetor de estruturação formal tão importante quanto a dos elementos abstratos básicos que os cromas (pitch-classes, classes de notas) constituem” (GUIGUE, 1996: p. 1).

Palavras-Chave: composição, timbre, textura, sonoridade, écriture. Abstract

This paper presents the first stage of a study which discusses some of the methodologies and compositional processes of aesthetic that embraces timbre and tone color as its main musical material. In time, we’ll show how throughout the 20th century certain changes in the conceiving process in music; the emergence of new compositional strategies; and music’s absorption of terminology from different fields of knowledge, ended up creating a true aesthetics of sonority, in which “the articulation of sound objects (...) is as an

important structural force as the basic abstract elements of pitch classes” (GUIGUE, 1996: p. 1).

Keywords: composition, timbre, tone color, texture, sonority, écriture

INTRODUÇÃO

O século XX foi um momento de surgimento de muitas correntes estéticas nas artes. Na música de concerto, uma das características mais marcantes desse período foi exatamente a enorme pluralidade de correntes e estilos que surgem, desaparecem, e se transformam de compositor para compositor. Essa condição foi, pouco a pouco, configurando um estado de desestilização dessa produção artística. A música dita “de arte” do século XX na verdade são muitas músicas, e ao mesmo tempo não é música nenhuma. Nos períodos anteriores, consegue-se com a simples audição de uma peça apontar, com grandes chances de acerto, sua data aproximada de composição e, muitas

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vezes, o próprio compositor. Essa tarefa se mostra ingrata para a música produzida ao longo do século passado. Se até pelo menos a primeira metade do século XIX, eram relativamente claras as unidades estilísticas entre compositores contemporâneos, a partir dos movimentos modernistas essa unidade se dissolve, não só entre as diversas correntes estéticas surgidas, mas até mesmo no âmbito de um grupo, ou até no âmbito da obra de um mesmo compositor – como se pode observar nas obras de Schoenberg ou Stravinsky, por exemplo, que experimentaram uma notável diversidade de estilos ao longo da vida.

Dentre essas vertentes que emergiram, algumas passaram a adotar o timbre como principal material de base para estruturação de suas obras. Ao longo do século XX, compositores de algumas dessas correntes estéticas que emergiram, começaram a abraçar o timbre, a cor, a sonoridade, como parâmetro controlável, elevando a cor ao mesmo status da altura, da intensidade e da duração, que reinavam soberanas na estruturação musical até então. Certas características desse repertório, e alguns procedimentos por parte dos compositores, evidenciam um modo de pensar a composição “um nível abaixo” da nota funcionalizada. Podemos apontar, por exemplo, o fato de o resultado tímbrico começar a ganhar cada vez mais força estrutural a partir da virada do século XIX, como é o caso de Claude Debussy (1860-1918) - constantemente citado quando se fala de “composição de sonoridades”. Também podemos citar a validação do ruído como ferramenta expressiva por parte dos futuristas italianos, e o uso de termos como “blocos”, “massas”, “densidade”, “plano”, antes utilizados como simples descrições sinestésicas a posteriori da composição, agora passando a serem considerados a priori, se tornando lugar de pensamento composicional na obra de compositores como Edgar Varèse (1883-1965), György Ligeti (1923-2006) e Iannis Xenakis (1922-2001). Essa atomização do som as vezes é percebida de forma quase literal, em casos como o do teórico e compositor Curtis Roads, que com auxílio de processos eletrônicos como a síntese granular, trabalha composicionalmente no nível do sample, a menor partícula de som existente no meio digital. Essa estética se apropriou de termos e conceitos de outras áreas que não a música, e os

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incorporou ao processo composicional, criando formas diferentes de pensar o “fazer musical”, resultando em obras com um claro desvio de ênfase por parte da escuta, que se desloca do campo da escuta estrutural adorniana, para o campo da escuta de sons, timbres e sonoridades, textura.

Seguiremos então em uma revisão de alguns processos composicionais dessa corrente que ganhou força ao longo do século XX, e como as novas bases metodológicas e filosóficas que amparam a criação desse repertório acabaram por criar situações e desafios para a escuta bastante peculiares e novos dentro da história.

SONORIDADE

A emancipação da sonoridade no processo composicional, como a maioria dos acontecimentos na história, se deu de forma processual, e não factual. Um compositor que teve um papel decisivo nesse processo certamente foi Debussy. Situado em uma época de transição entre o dito “tonal” e o “pós-tonal”, o “romantismo tardio” e o “modernismo” - tendo muitas vezes sua obra orquestral Prélude a l’apres-midi d’un Faune, de 1894, citada como marco zero do modernismo musical (GRIFFITHS, P., 1987: p. 7) - uma análise de certos métodos desse compositor revelam uma preocupação e um controle com o colorido instrumental em vários níveis.

Tomemos como exemplo os compassos 5 a 10 do primeiro movimento, Nuages, de seus

Nocturnes para orquestra (Dover 0-486-44545-3) (Fig. 2, página seguinte). No compasso 5 temos

dois clarinetes e dois fagotes sustentando o intervalo harmônico g - b em duas oitavas (g2 b2 e g3 b3). No compasso seguinte, o mesmo intervalo tem sua orquestração trocada para duas flautas e duas trompas. São as mesmas notas, tocadas no mesmo registro, pela mesma quantidade de vozes, algo que em uma redução para piano se apresentaria dessa forma (Fig. 1):

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Na redução, fica clara a importância da diversidade tímbrica na composição do resultado sonoro desse bloco, usado como suporte à melodia do corne inglês. Esse bloco então é espalhado no compasso seguinte ao longo de quatro oitavas, com uma cuidadosa orquestração entre flautas, clarinetes, primeiros violinos com surdina em divisi a 6, e tímpano, além de ser acrescentado da nota f como nota mais grave, tocada em oitava pelos fagotes.

É importante apontar como esse complexo harmônico do compasso 7, com todas as suas características, - articulação do tímpano, tessitura do bloco, timbre das surdinas nas cordas, etc - é apresentado como uma entidade sonora em si, um aglomerado tímbrico indivisível. Uma tentativa de inferir sigficado tonal a esse acorde como, por exemplo, uma função dominante de uma tonalidade de dó maior ou menor, com a sétima no baixo, não será muito efetiva. Como apresentado

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por Boulez, (1991, p. 547) “as relações intervalares verticais estão ali para criar um objeto sonoro e não para estabelecer relações funcionais”. O paralelo com o termo definido por Pierre Schaeffer (1919-1995) é quase imediato. O “objeto sonoro” do compasso 7 pode ser entendido nos termos schafferianos, uma vez que o intervalo principal que o compõe (3a maior), juntamente com o resultado tímbrico da orquestração escolhida por Debussy, deve ser considerado destituído de significação ou referencialidade tonal (apesar da armadura de tonalidade na partitura indicar um possível tom de ré maior/sí menor), e entendido pela sua sonoridade primeira. Essa não significação tonal fica clara no compasso seguinte, onde a nota g é modificada em g# e a “entidade sonora” 3a

maior é contrastada com uma entidade de 3a menor, nos mesmos primeiros violinos.

ESCRITURA

Boa parte desse processo de controle consciente do timbre e da textura dentro do momento da criação, não por acaso, se deu em um momento de progressivo enfraquecimento do sistema tonal como base de sistematização harmônica por parte dos compositores da época. Essa pesquisa por novos caminhos harmônicos trouxe consequências, tanto para os modos de concepção do todo formal, quanto para a maneira como os compositores manipulavam o material de base de suas obras.

Durante o período da prática comum tonal, o discurso harmônico e o discurso formal das obras em grande parte se confundiam. Podemos dizer que, na verdade, forma e harmonia eram uma coisa só, visto que modelos formais eram estabelecidos como pontos de partida para a composição das obras, e esses modelos eram suportados por convenções harmônicas. Tais esqueletos harmônicos por sua vez, determinavam a quantidade de sessões da obra, a ordem de apresentação de materiais temáticos, entre outras características do texto musical. Uma vez que a base do discurso tonal está calcada na possibilidade da criação de relações de similaridade e oposição - tensão e distensão - entre seus elementos constituintes, no qual uma especialização de certos

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acordes com assumida função de dinamização do discurso é oposta a acordes que são tomados como “pontos de chegada”, cria-se um discurso harmônico que tem como característica uma narrativa linear, aonde relações de repetição entre elementos, e uma linearidade temporal se mostram essenciais. Visto que o resultado formal é altamentente partidário das relações tonais, fica claro como essas características apresentadas como intrínsecas ao discurso harmônico, se mostram também características da forma musical.

Com o uso da tonalidade clássico-romântica se diluíndo cada vez mais, fizeram-se necessárias novas formas de agenciar formalmente as obras. Para essa discussão, o conceito de écriture se mostra útil.

O termo écriture, do francês, “escritura”, pode ser definido como o processo de manipulação dos materiais envolvidos na criação musical. Boulez (1991, p.545) faz uma diferenciação entre dois tipos de escritura composicional: a écriture interna e a écriture externa. Tomemos as considerações de Paulo Zubem sobre essa diferenciação:

A escritura pode situar-se no interior dos objetos, para os construir, como no caso da síntese de complexos sonoros, ou no exterior, para os organizar formalmente.

A composição sobre o timbre traz mudanças significativas nos aspectos de elaboração formal das obras - escritura externa - e, principalmente, na construção e escolha do material sonoro sobre o qual os compositores se debruçam - escritura interna. (ZUBEM, 2005: pp. 22-23)

Mais até do que simplesmente trazer “mudanças significativas nos aspectos de elaboração formal (...) e escolha do material sonoro”, podemos dizer que a composição sobre o timbre promoveu uma verdadeira inversão na relacão causa-efeito que existia na interação entre forma e matéria sonora. Expliquemo-nos: durante o tonalismo, compositores por vezes tinham que agenciar seu material musical (écriture interna) em função de determinações e convenções formais já repertoriadas (écriture externa). Um exemplo prático: dentro de um primeiro movimento de sinfonia, formalmente esquematizado aos moldes do que se convencionou chamar Allegro de

sonata, um primeiro material temático apresentado na primeira seção de exposição,

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experimentações harmônicas. Para esse fim se reserva uma diferente seção da obra, mas que só poderá ser iniciada, em geral, depois da apresentação de um segundo material temático.

Vemos nesse exemplo portanto, a escritura interna existindo em função da escritura externa. Conforme as relações tonais foram se tornando menos estruturantes, a ênfase composicional começou cada vez mais a se voltar para o trabalho com o material musical - e isto se apresenta notadamente à partir de Debussy - chegando ao ponto em que compositores como Varèse passaram a conceber a escritura externa, existindo em função da escritura interna. Sobre a concepção formal de suas obras, Varèse afirma que (VARÈSE, 1983 apud ZUBEM, 2005: p. 95) “Forma é o resultado - o resultado de um processo. Cada uma de minhas obras precisa descobrir sua própria forma”.

Atitudes composicionais como a adotada por Varése se mostram cada vez mais comuns aos compositores que decidem se dedicar à pesquisa e à criação diretamente com o som. Ao considerar a forma como resultado de um processo de manipulação do material musical, o compositor indubitavelmente acaba por privilegiar uma escuta intesiva e singular em oposição a uma escuta extensiva e linear (FERRAZ, 1998 apud ZUBEM, 2005: p.52).

CONCLUSÃO

Segundo Ferraz (1990: p. 68), “A compreensão, o uso e o tratamento textural sempre estiveral ligados à percepção visual e tátil”. Nesse sentido, percebemos um intercâmbio entre as artes visuais, em especial a pintura, e a música textural. Segundo Yara Borges (2008: p. 108) “inúmeras são as poéticas que reconheceram a proximidade entre o fazer pictórico e o fazer musical”. Wassily Kandinsky (1866-1944) foi um artista que tanto em suas obras como em seus escritos, intercedeu a favor de uma quebra de barreiras entre as duas áreas. É impressionante atentar para como Kandisnky, ao afirmar que a linha é o ponto em movimento (KANDISNKY, 1997: p. 50) se aproxima do pensamento de Curtis Roads, que defende a idéia de que “a sensação de ponto, pulso (ocorrência regular de pontos), linha (tom), e superfície (textura) aparece conforme a densidade das

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particulas aumenta” (ROADS, 2001: p. vii). Um compositor que se valeu muito dessa troca de terminologias e reflexões existente entre a pintura e a música foi Ligeti. Em sua obra Volumina (1962) por exemplo, fica claro um pensamento “espacial”, “tátil-visual”, desde a concepção da partitura, até as detalhadas indicações de execução.

Kandinsky faz um distinção entre a arte figurativa e a arte abstrata. Ele afirma que (KANDINSKY, 1997: p. 45) “na primeira, a sonoridade do elemento ‘em sí’ é velada, reprimida. Na arte abstrata, a sonoridade é plena e desvelada”. Percebemos então, uma aproximação entre a concepção pictórica de Kandinsky, e a concepção composicional de alguns compositores pós-seriais, uma vez que ambos decidem adotar como objeto de reflexão criativa, os elementos constituintes mais básicos de cada linguagem, sendo, na pintura, o ponto a linha e o plano; na música, o som.

BIBLIOGRAFIA

BOULEZ, P. “Le timbre et l’écriture - Le timbre et le langage”. In: BARRIRE, J. C. (org.). Le

Timbre, métaphore pour la composition. Paris, IRCAM, 1991, pp. 541-549

CAZNOK, Y. B. Música: entre o audível e o visível. São Paulo, Editora UNESP, 2008

GUIGUE, D. Une Etude “pour les Sonorités Opposées” - Para uma análise “orientada a objetos”

da obra para piano de Debussy e da música do Século XX. Tese de Doutorado em Música e

Musicologia do Século XX, Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales / Ircam - Paris (França), 1996

FERRAZ, S. "Análise e Percepção Textural". Cadernos de Estudo: Análise Músical, n.3. São Paulo, Atravéz, 1990, pp. 68-79.

________. Música e Repetição. São Paulo, EDUC, 1998.

GRIFFITHS, P. A música moderna: uma história concisa e ilustrada de Debussy a Boulez. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1987

KANDINSKY, W. Ponto e Linha Sobre Plano. São Paulo, Martins Fontes, 1997 ROADS, C. Microsound. Massachusetts Institute of Technology, MIT Press, 2001 SCHAEFFER, P. Traité des Objets Musicaux. Paris, Éditions du Seuil, 1966

VARÈSE, E. “Die Befreiung des Klangs”, Musik-Konzapte - Edgar Varèse, n. 6, Munique, edition text+kritik, 1983, pp. 11-24.

ZUBEN, P. Ouvir o som, aspectos de organização da música do século XX. São Paulo, Ateliê Editorial, 2005

Referências

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