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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC – SP PAULO NICCOLI RAMIREZ

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Academic year: 2019

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC – SP

PAULO NICCOLI RAMIREZ

ANTROPOLOGIA DO ESTRANHAMENTO: FRAGMENTOS SOBRE THAUMA,

UNHEIMLICH,NEUTRO, EMALTEMA

DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

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PAULO NICCOLI RAMIREZ

ANTROPOLOGIA DO ESTRANHAMENTO: FRAGMENTOS SOBRE THAUMA,

UNHEIMLICH,NEUTRO, EMALTEMA

DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais sob a orientação do Prof. Dr. Edgard de Assis Carvalho.

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Banca Examinadora

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AGRADECIMENTOS

Aos meus pais Alberto e Rebeca, meus carinhosos apoiadores desde a infância, sem os quais jamais teria dado passo algum adiante, pelas minhas raízes intelectuais e origens culturais.

Ao Prof. Dr. e orientador Edgard de Assis Carvalho pelas orientações, atenção, amizade, generosa confiança e apoio na publicação do livro Sérgio Buarque de Holanda e a dialética da cordialidade; por trazer sempre às conversas com os seus orientandos temas para reflexões, bibliografias surpreendentes e por sua sabedoria que nos ensina a pensar de modo complexo.

Ao meu filho Mateus, pequeno que em estado bruto ensinou-me que o que chamamos hoje de antropologia se inicia na realidade desde os nossos ancestrais com a atividade paterna e materna.

À Aline Rago pelo carinho e atenção, por todas as iluminações que deu a este trabalho e à minha vida; por ter me ajudado a cuidar da própria vida no período de escritura da tese.

Minhas irmãs Bruna e Karen, por seus interesses no trabalho.

Aos professores Miguel Chaia e Acácio Almeida pelas valiosas sugestões, críticas e atentas observações por ocasião do Exame de Qualificação.

À professora Vera Chaia a quem sou eternamente grato pela atenção dada ao meu trabalho quando Coordenadora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP.

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Aos colegas membros do NEAMP (Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP), pelo interesse e curiosidade sobre a minha pesquisa.

À Mariza Werneck, pelo bricoleur e o Castelo de Cheval, pelas afinidades intelectuaise por sua orientação ao meu TCC e discussões teóricas que são sempre muito valiosas.

À professora Carmen Junqueira, pela amizade e pelo interesse no trabalho.

À Vivian Catarina Dias pela amizade e por ajudar a revisar o texto para a defesa desse trabalho.

Aos meus amigos Adenilson Padovan, Eduardo Azevedo, Luciana Longobardi, Léa Ciocler, Lilia Monteiro, André Vasconcelos, Rafaela Saraiva e Octávio pela preocupação em relação ao andamento do projeto e às ideias desenvolvidas neste trabalho.

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RESUMO

Essa tese investiga o estranhamento motivado pela presença do outro, o desconhecido que, segundo descrições etnográficas de Lévi-Strauss, suscita sensações confusas. Esse fenômeno situa-se em zona de indeterminação – estágio pré-político caracterizado pelo estado de exceção e de suspensão da consciência e dos olhos no qual não há controle sobre a cognição ou sobre os sentidos de modo voluntário. Estudamos autores a partir da segunda metade do século XIX, época em que houve maior interesse por estranhos ou outros povos, decorrente da expansão das grandes cidades e do neocolonialismo. Autores que nas cidades descreveram o estranhamento das multidões nas metrópoles: Poe, Balzac, Proust, Baudelaire, Simmel, Walter Benjamin. Nas etnografias, visitaram ou relataram a presença do antropólogo na sociedade estudada em diários de campos e livros e discorreram sobre a chegada do estranho, como as descrições etnográficas de Boas, Malinowski, Pritchard, Lévi-Strauss, Darcy Ribeiro. Para fundamentar este estudo e compreender a especificidade do estranhamento refletimos sobre como a filosofia (com a noção de thauma), a psicanálise (com a noção de unheimlich) e a literatura compreendem o fenômeno do estranho. Supomos que na etnografia e no meio não urbano existe tendência de o estranhamento despertar a curiosidade dos nativos, por meio de aversão ou de empatia. Já nas cidades há impossibilidade de haver para com o estranho eventual contato ou experiência, amistosa ou não. O ritmo veloz da cidade proporciona o desaparecimento do interesse pelo outro e sua presença torna-se insignificante. Conceitos emprestados da psicanálise, literatura, filosofia não apreendem a complexidade da condição do estranhamento nas grandes cidades que propusemos analisar. A emaltema surgiu como termo de abertura a possibilidades interpretativas sobre o estranhamento que ocorre com a chegada do estranho ou a sua presença em meio às multidões.

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ABSTRACT

The thesis inquire about the estrangement which occurs through the presence of the other never before seen or know, which causes – according Lévi-Strauss ethnographic descriptions – the called confusing sensations. This phenomenon is in an indeterminacy zone, pre-political stage characterized by a state of exception and suspension of consciousness and eyes, which means that cognition or senses are not voluntarily controlled. It was sought to study authors from the second half of the XIX century, when there was greatest interest by strangers or other people with the expansion of big cities and Neocolonialism. In cities, some authors have described the strangeness of crowds in the metropolis, among them: Poe, Balzac, Proust, Baudelaire, Simmel and Walter Benjamin. Ethnographies produced visits or reports that reflect the appearance of the anthropologist within the society which was studied through field diaries and books that discourse about the stranger’s arrival, which might be investigated in the descriptions taken as classical ethnography, including the writings of Boas, Malinowski, Pritchard, Lévi-Strauss and Darcy Ribeiro. To found this study and understand the estrangement’s specificity, it was studied how philosophy (with the notion of thauma), psychoanalysis (with the notion of unheimlich) and literature comprise the estrangement’s phenomenon. What is supposed is that in ethnography and far from cities there is a tendency to that kind of estrangement produce curiosity of the natives, either through disgust or empathy. In cities there is the impossibility to establish any possible contact or experience, friendly or not, with the strange. The fast pace of the city provides the disappearance of concern for others and their presence becomes insignificant. Concepts borrowed from psychoanalysis, literature, philosophy does not capture the complexity of the condition of estrangement in the big cities we proposed to analyze. The emaltema has emerged as a term for an opening to interpretive possibilities about estrangement that occurs with the stranger’s arrival or their presence through the crowds.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Palais ideal du Facteur Cheval... 21

Figura 2 O jardim das delícias terrenas, Hyeronymus Bosch (1504)... 56

Figura 3 A Origem do mundo, Coubert (1866)... 86

Figura 4 La modiste sur les Champs Élysée – Béraud... 141

Figura 5 Le bal du moulin de la galette, Renoir (1876)... 142

Figura 6 Le Boulevard St Denis, Béraud………... 143

Figura 7 Boulevard des capucines, Béraud.………... 143

Figura 8 Las Meninas, Velázquez (1556)…..……….. 159

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SUMÁRIO

1 ENTRE AS RUÍNAS E O CANTEIRO DE OBRAS ... 10

2 DESCONHECIMENTO ... 23

2.1 EM BUSCA DO ESTRANHAMENTO ... 29

2.2 NEUTRO, INSENSIENTE ... 60

3 EMALTEMA ... 104

4 ABERTURA ... 193

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1 ENTRE AS RUÍNAS E O CANTEIRO DE OBRAS

[...] a última finalidade das ciências humanas não é constituir o homem, mas dissolvê-lo.

(Lévi-Strauss) [...] o olhar carregado de distância como um olhar familiar. (Walter Benjamin) O que é sempre, sem possuir origem? Que é o que será e o que foi, mas realmente nunca é? (Platão) Ler o que nunca foi escrito. (Hofmannsthal)

Em Tristes Trópicos há o relato do instante de tensão originado pelo estranhamento com um grupo de nambiquaras pouco conhecido até meados de 1930. O primeiro contato com o outro produz o que Lévi-Strauss designa como sensações confusas. Ele considera esse nível da pesquisa de campo algo muito arriscado. Talvez por isso inicie a obra com palavras contrariadas: “Odeio as viagens e os exploradores. E eis que me preparo para contar minhas expedições.” 1 Dias de caminhadas extenuantes mata adentro, distância do lar, floresta inóspita e perigos que acompanham a viagem, quando aliados ao encontro fortuito com estranhos, causam choque, estupor, oscilação entre o receio e o desejo, a inquietação e a vontade de conhecê-los. Aspira-se estabelecer um primeiro contato empático ou agressivo com os novos indivíduos. Desse estranhamento surge a ânsia, a avidez e o arrebatamento causados pelo outro, tornado exótico ou repulsivo.

Para o etnólogo, o efêmero primeiro encontro com os nativos pode revelar a existência de um fenômeno social, o estranhamento, correlato à alteridade. A chegada do estranho pode ocasionar instantes de suspensão do pensamento: imediata embriaguez caracterizada por certa desorientação cognitiva e espacial; é situação na qual os estranhos aparecem no campo de

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visão de modo inesperado, surpreendente; desprovidos de qualquer significado como grafia ilegível ou alfabeto de povo desconhecido.

O estranhamento é imanente à repentina chegada ou aparição do forasteiro. Ocorre sob instantâneos golpes rebarbativos entre os olhares dos observadores e dos observados que parecem, à revelia de suas vontades, fingirem não se cruzar. Estranhamento fugaz que dissolve e suspende o fluxo de consciência. Instante no qual o eu e o outro são indeterminados. Categorias como selvagem e civilizado, etnólogo e gentio, parecem diluir-se; perdem seu significado num piscar de olhos. O turbilhão de sentimentos que aflora quando desconhecidos se fazem presentes de modo súbito conduz a experiência do etnólogo para o limiar de sua condição de animal e de produto da cultura. Limiar que se aproxima das narrativas da literatura de viagem que descrevem heróis à espreita de interagir com o que imaginam serem traços de uma civilização, ou prontos a enfrentar pressupostas sociedades que se encontram em estado de natureza, em terras selvagens e brutais, sem reis, sem leis.

Na literatura de viagem, tais circunstâncias prenunciam um ataque iminente. Assim, íamos avançando em meio a sensações confusas, verificando vez por outra a posição de nossos revólveres Smith and Wesson (nossos homens pronunciavam “Cemite Vechetone”) e de nossas carabinas. Temores infundados: pelo meio do dia, encontramos o resto do bando que o chefe previdente mandara partir da véspera, sabendo que nossos burros andariam mais depressa (LÉVI-STRAUSS, 1996, p. 279).

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Fiquei a olhá-la, a princípio com esse olhar que não é mais que o porta-voz dos olhos, mas à janela do qual se inclinam todos os sentidos, ansiosos e petrificados, olhar que deseja tocar, capturar, trazer consigo o corpo que está mirando, e com ele a alma; [...]. Ela dirigiu as pupilas para a frente e para um lado, a fim de tomar conhecimento do meu avô e de meu pai, e sem dúvida concluiu dessa inspeção que nós éramos ridículos, pois se desviou e, com um ar indiferente e desdenhoso, colocou-se de lado para subtrair o rosto ao campo visual dos dois; e enquanto eles, sem a ter visto, continuavam a andar deixando-me para trás, ela deixou correr o olhar em todo o seu comprimento até onde eu me achava, sem expressão particular, sem parecer que me via, mas com uma fixidez e um sorriso dissimulado, que eu não podia interpretar, segundo as noções que me haviam dado sobre a boa educação, senão como uma prova de ofensivo desprezo; ao mesmo tempo a sua mão esboça um indecente gesto, o qual, quando dirigido em público a um estranho, o pequeno dicionário que trazia em mim só podia dar um sentido, o de uma intenção de insolência (PROUST, 1948, p.123-4).

Proust trata do descentramento e da anulação do sujeito. O estranhamento narrado representa a alteridade em seu sentido escorregadio. Indivíduos que na velocidade de um relâmpago entrecruzam olhares involuntários que não sabem ao certo se desejam ou são desejados, ignorados, reprovados ou são o centro das atenções do outro. Trata-se de sentimento próximo ao descrito por Lévi-Strauss. A suspensão do sujeito havida com o estranhamento é seguida pelo despertar como se o eu regressasse à sua morada. Após a perplexidade e o êxtase que acompanham a aparição do estranho, Proust e Lévi-Strauss narram o retorno à consciência. Esse movimento coincide com a alteridade e o estabelecimento de visão positiva ou negativa sobre o outro: se inimigo ou amigo, atraente ou desprezível, bárbaro ou civilizado.

O auxílio da câmera lenta desenvolvida pelo cinema pode ser útil para esta pesquisa, por representar recurso que fixa ou imobiliza a fração de tempo na qual os acontecimentos ocorrem. Imobilizar o estranhamento é o propósito deste estudo. Procuramos investigar a relação social veloz na qual, involuntariamente, os olhares parecem se encarar; momento em que a consciência parece petrificar-se sem que se defina ainda a existência do outro. Ao estudarmos essa forma de estranhamento, buscamos fixar o movimento, paralisar o instantâneo, compreender o que ele significa.

O relato de Lévi-Strauss pode reacender o debate contratualista sobre o estado de natureza, não por afirmar a passagem rumo à civilização ou por descrever a origem do homem ou de sociedades ditas primitivas e, jamais, por comparação entre etapas de sociedades sem escrita, sem Estado ou leis e de sociedades consideradas mais avançadas.

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cultura. O estranhamento, como descrito por Lévi-Strauss, é momento neutro que em vez de afirmar, suspende o estado de natureza e o estado civil, como se o contrato social fosse documento sem valor algum. Hobbes e Rousseau procuraram compreender de que maneira a humanidade passou da condição animal à afirmação de um eu que existe perante os outros para que possam coexistir comigo, como uma genealogia do político no homem.

Para Hobbes, o estado de natureza é caracterizado pela guerra de todos contra todos: o homem é lobo do próprio homem. A política e a sociedade inexistem. Não há animal social ou político por natureza, senão o caráter lupino, bestial, no qual o conflito iminente não permite tranquilidade alguma. Artifício humano, contrato social, abdicação, transmissão da força e criação do monopólio da violência concedido ao Estado, o Leviatã, forçam a existência da paz entre todos os indivíduos que antes mutuamente se combatiam. Dessa negação da bestialidade despertam: o sujeito, a mínima empatia entre os indivíduos e o surgimento de relações sociais com duração e segurança. A política emerge como negação da natureza. A bestialidade natural é reprimida e a violência passa a ser exclusividade do Estado para oferecer a paz ao homem.

Para Rousseau, no estado de natureza predominam princípios solidários que fundamentam sua concepção de bom selvagem. São princípios opostos aos descritos por Hobbes. A sociabilidade é inerente ao homem, a linguagem uma de suas aptidões e a política anterior ao surgimento de qualquer forma de Estado ou de ordem jurídica. As invenções da propriedade privada e do Estado corromperam a positividade natural, conduzindo a humanidade à desigualdade entre os homens: à civilização.

Nem Hobbes, nem Rousseau. O relato de Lévi-Strauss prossegue revelando a situação limite na qual sua expedição havia chegado. O estado de natureza não aparenta ser mais um ponto originário do homem no passado e, sim, a interrupção de sua consciência no presente quando o sentido das coisas evapora ou encontra-se suspenso; anulação dos sujeitos: o que é exposto é o momento em que não há nenhum acordo, nada que estabeleça a paz ou a guerra entre os nambiquaras e o antropólogo. Predominam ausência de significado e de lógica, e há estupor social. Os indígenas se aproximavam, apareciam em grande número e por toda a parte:

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O autor de Tristes Trópicos conclui o desfecho de seu dia com essa sociedade oculta que acabara de encontrar: “Não nos sentíamos tranquilos, os índios tampouco; a noite anunciava-se fria [...]. Ninguém dormiu: passamos a noite a nos vigiarmos educadamente”2.

As sensações confusas descritas por Lévi-Strauss revelam o atordoamento diante do local de encontro com os nativos. Pareciam ter reduzido o dia de expedição aos constantes estranhamentos acompanhados do silêncio e da apreensão. A tentativa de estudar e imobilizar o estado de coisas, no qual ocorre troca de olhares esquivos entre estranhos, recorda também a experiência do transeunte da metrópole moderna. Em seu trajeto pelas ruas, o transeunte mantém relações sociais silenciosas com os milhares de estranhos que se aproximam e se apresentam, de modo inesperado, frente aos seus olhos.

Em seu ensaio O flâneur, Walter Benjamin cita Balzac para relacionar os sentimentos do homem moderno com a vida selvagem. Vê-se que a experiência do estranhar presente nas expedições é de mesma natureza se comparada com o trajeto do homem na grande cidade em meio à multidão: “[...] O olho segue os passos desse homem que caminha na sociedade atravessando as leis, as ciladas, as traições de seus cúmplices, como um selvagem do novo mundo entre os répteis, os animais ferozes e as tribos inimigas”.3 Há, no encontro entre o eu e o outro, os nativos e os exploradores, os nativos e os etnólogos, o homem moderno e a multidão, estranhamento cuja estrutura parece ser comum. Nesses encontros inesperados pretendemos compreender o estranhamento. Aparentemente pouco estudado por pesquisas antropológicas, o estranhar parece ser peça chave para compreendermos processos resultantes de interações sociais entre indivíduos e povos distantes no meio urbano ou no meio não urbano.4

Um bloco de notas, um lápis e a escrita foram elementos considerados extraordinários por Lévi-Strauss. Com mímica, o chefe indígena surpreendentemente tomou das mãos de Lévi-Strauss esses utensílios e realizou rabiscos que tentavam não somente imitar, mas também dar significado às incompreensíveis e aparentemente importantes anotações. Esse evento rompeu o silêncio e a inquietação que caracterizam a chegada dos estranhos – como se o recurso da câmera lenta fosse recusado para evitar o movimento moroso dos olhos e o comportamento arredio dos corpos. Papel, lápis e escrita, rabiscos com sentido, permitiram

2 LÉVI-STRAUSS, 1996, p. 279-80.

3 BALZAC. La semaine. apud: BENJAMIN, Walter. O flâneur. In: BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas III; tradução José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 216.

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que o antropólogo e os nambiquaras, em especial seu chefe, restituíssem suas consciências. A embriaguez imediata produzida pelo choque do aparecimento do outro, o estranhamento selvagem, foi sobreposta pela lucidez e pelo desejo de estabelecer relações com eles.

Mesmo sem o domínio da escrita por parte dos nambiquaras, Lévi-Strauss enxerga nesse evento a necessidade do chefe em demonstrar sua autoridade para seus subordinados, como se procurasse cessar estranhamento. Como se “devesse ler a sua resposta [...], como se dela devesse surgir algum significado [...]. Não se tratava de conhecer, reter ou compreender, mas de aumentar o prestígio e a autoridade de um indivíduo – ou de uma função – às custas de outrem”.5 Anos mais tarde, a fim de compreender o papel e a generosidade dos chefes indígenas da América Amazônica, Pierre Clastres tomou esse mesmo relato para conceber o poder e a natureza da política presentes em todas as sociedades humanas, “[...] todas as sociedades, arcaicas ou não, são políticas, mesmo se o político se diz em múltiplos sentidos, mesmo se esse sentido não é imediatamente decifrável e se devemos desvendar o enigma de um poder “impotente” [...]”.6

O estudo desse instante de inquietude nos parece relevante. Mais do que demonstrar relações de poder, o evento descrito por Lévi-Strauss mostra o choque entre indivíduos desconhecidos que culmina num modo de sociabilidade primeva, ou na natureza política do homem, como parece conceber Clastres. Antes da germinação da sociabilidade e das relações de poder, as sensações confusas, descritas acima, podem representar nível de interação pré-político. Nível instantâneo ao choque causado pela chegada do estranho. O estranhamento precede sob um instante a alteridade, como a luz ao som, como o relâmpago ao estrondo. Esse choque parece suspender tempo e consciência: o outro faz do sujeito um estrangeiro a si mesmo.

Mas qual é exatamente a estrutura desse estranhamento? O átimo em que ele ocorre faz do outro algo indeterminado e desconhecido; nos conduz à hipótese de se tratar do grau zero da política ou do neutro político. Emprestamos a concepção de neutro de Barthes para caracterizar essa forma de estranhamento tratado aqui. O neutro representa momento de ardência no qual linguagem, pensamento e significação sobre coisas que estão no mundo são postos entre parênteses. O estranhamento pode ser considerado neutro: ocorre com a tensão entre a consciência e os demais que o cercam em momentos nos quais realidade e os outros ainda não foram nomeados ou reconhecidos.

5 LÉVI-STRAUSS, 1996, p. 280-1.

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[...] neutralização fonológica, ou grau zero [...] exonerar o sentido esse campo polimorfo do paradigma, do conflito = o Neutro [...] que diga respeito ao conflito, ou à sua remoção, sua esquiva, sua suspensão.

[...] Dou uma definição de Neutro que permanece estrutural. Quero dizer com isso que, para mim, o Neutro não remete a “impressões” de grisalha, de “neutralidade”, de indiferença. O Neutro – meu Neutro – pode remeter a estados intensos, fortes, inauditos. “Burlar o paradigma” é uma atividade ardente e cadente (BARTHES, 2003, p.18-9).

Suspeitamos que a cessação do pensamento diante do outro integra o neutro e é simultânea à derrogada da política. Tão logo o choque tenha sido minimamente superado, pensamento e política se tornam devir do estranhar. O estranho produz a desconstituição do sujeito, seguida por sua constituição e ação sobre o mundo. Ao retomar a descrição de Lévi-Strauss, percebemos que o bloco e o lápis parecem ter posto fim ao estranhamento – limiar entre o desejo e o receio perante o outro – como se os rabiscos fossem assinaturas vigilantes de um contrato social que acabara de estabelecer de modo comedido a passagem de uma guerra inexistente, mas iminente, rumo à paz duvidosa. Os rabiscos sobre o bloco encerram o estupor e a condição de insuperável incógnita que o estranho oferece. Supomos que a política é o destino do estranhar. O verbo, o significado e a escrita põem fim ao estranhamento que é sucedido pelo reconhecimento do outro e pode aguçar afetos que o aproximem de alianças, ou sentimentos de inimizade que o tornarão um ser distante. O estranhar é álibi que acarreta posteriores significados atribuídos aos estranhos; torna a alteridade consequência sua.

Esta investigação está dividida em duas partes. Na primeira, a fim de conceber a natureza desse evento, propomos investigações sobre o estranhamento desfiadas por diferentes áreas do conhecimento e correntes teóricas como filosofia, psicanálise, literatura. Trataremos da relação do estranhamento com estados alterados da mente: linguagem do inconsciente, do sonho, da embriaguez. Avaliar diferentes formas de abordagem, nuances e variações sobre o estranho talvez nos permita fundamentar, desdobrar e distinguir a especificidade do estranhamento que propomos estudar: sensações confusas despertadas com o aparecimento do outro incógnito.

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ser necessariamente intencional, porque ela se espanta com o mundo e procura conhecê-lo produzindo significados.

Nas psicanálises de Freud e Lacan o estranhamento (unheimlich em alemão) apresenta série de alternativas semânticas que dizem respeito a fenômenos psíquicos variados – distúrbios propulsores de visões de vultos ou eventos sobrenaturais; de sensação de que o que é estranho é, na verdade, íntimo e familiar ao sujeito; até a constituição de duplo na consciência, como se o eu possuísse outro correspondente na realidade – que, em Lacan aparecem no estágio do espelho, conforme estudaremos.

Investigaremos também o estranho em obras literárias: O processo e A metamorfose, de Franz Kafka, Um sopro de vida e A hora da estrela, de Clarice Lispector, O estrangeiro, de Albert Camus, O inominável, Samuel Beckett, O homem de areia,de E. T. A Hoffmann entre outros. Essas obras abrangem o estranhamento causado pela dissociação do sujeito e de seu entorno, pela tensão entre a consciência e a realidade dos sujeitos à mercê da perda completa do sentido.

A maioria desses autores não trata especificamente do choque causado pelo aparecimento repentino do outro. Em suas interpretações, o estranhar soa como espécie de gênese do surgimento da consciência, passagem do desconhecimento à constituição do conhecimento. Por isso, ao final da primeira parte do trabalho, concentramos nossas reflexões nas anotações de Roland Barthes presentes em O neutro e em O sussurro da linguagem. A noção de neutro de Barthes destoa da maioria dessas interpretações e se aproximam do foco de nossa pesquisa. O neutro versa sobre a temporária imobilidade do Ser, o sem sentido; a flutuação do sujeito e a anulação fonológica; situações aparentemente inapreensíveis, mas que são material interessantes a Barthes. O filósofo não deseja o sentido e, sim, sua supressão, o que revela certo parentesco com as referidas sensações confusas expostas em Tristes Trópicos.

Na segunda parte do trabalho, procuramos compreender em que consiste a natureza e a peculiaridade do choque diante do estranho. Julgamos que visitas de campo e descrições da experiência do homem moderno na metrópole, embora não sejam as únicas, são situações que disponibilizam materiais privilegiados à compreensão desse tipo de estranhamento e aos estágios pré-políticos ou neutros. A vida daquele que perambula pela cidade moderna não é diferente da experiência que etnólogos e nativos vivenciam. Os dois cenários, o urbano e o não urbano, compartilham dos sentimentos confusos descritos por Lévi-Strauss.

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campo de investigação acerca do estranhar. A formação das grandes cidades e o surgimento dos trabalhos de campo, realizados por antropólogos nas colônias exploradas, são movimentos contemporâneos. Ambos ilustram maior recorrência de encontros surpreendentes com estranhos, superando relatos de pensadores e expedicionários do período das Grandes Navegações, das Cruzadas ou dos impérios da Antiguidade – Macedônico, Persa, Romano – quando, não muito diferente de hoje, interações com outros povos num mesmo espaço de terra resultavam, na maioria das vezes, em algum modo de violência.

Todos esses processos históricos ampliaram a experiência de choque. Contudo, apenas o florescimento da metrópole moderna e da antropologia fez do estranhamento algo corriqueiro. A cidade fez do próximo um estranho. Homens que caminham lado a lado tornaram-se tão distantes quanto as mais remotas estrelas das quais se tem conhecimento. A antropologia, por vezes, a serviço do colonialismo, aproximou o distante, fez do primitivo, do exótico e do diferente objetos de seu estudo.

Diários de campo e passagens que relevam sentimentos e percepções do estranhamento serão investigados e reinterpretados a partir dos relatos de pesquisadores quando de sua chegada a campo e de suas estratégias na superação do estranhar. Percorremos também obras sociológicas e literárias que narram sentimentos do homem moderno no meio da multidão e o cotidiano calvário do citadino entre estranhos. A partir dessas abordagens, questionamos como esse fenômeno ilustra, ou não, a hipótese da perda da aura do estranho na grande cidade, se comparado ao desejo de familiaridade e de reconhecimento do outro no meio não urbano. Discutiremos possíveis diferenças do estranhamento nesses dois meios.

Supomos que o estranho no meio não urbano está saturado por espécie de aura. Walter Benjamin descreve a aura como caráter único de obra a ser contemplada e conhecida. Aura e choque exigem que o estranhamento ofereça significado ao outro; na cidade essa aura parece ter sido perdida. O fenômeno das multidões, descrito por Alan Poe e Baudelaire, reduziu a subjetividade e naturalizou a condição de estranho a todos. Por meio de uma espécie de desdém coletivo, produz-se o estranho. Na cidade, em aglomerados ou no tête-à-tête, os indivíduos não se comunicam, evitam trocar olhares que por vezes ocorrem inesperadamente.

A perda da aura do estranho pode ser reflexo do prolongamento do estágio pré-político: a anulação da ação do sujeito em relação ao outro. Levantamos a hipótese de que, diferentemente da grande cidade, o meio não urbano revela percepção mais qualitativa do outro e também o anseio por conhecê-lo. Haveria então política na metrópole?

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e diários nos quais fosse possível encontrar relatos de sentimentos sobre o estranhamento. Inicialmente, em busca desses relatos que apreendem o momento da chegada e dos primeiros contatos com os povos locais enfatizamos, principalmente, descrições de obras e passagens dos clássicos da antropologia: Franz Boas, Malinowski (Argonautas do PacÍfico Ocidental e seu diário de campo), Lévi-Strauss (Tristes trópicos), Geertz (A interpretação das culturas); James Clifford (Experiência etnográfica), Pritchard (Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande e Os nuer), Darcy Ribeiro (Diários Índios), Godelier, Edgar Morin (Diário da China), Pierre Clastres (A sociedade contra o Estado). Essas escolas distintas da antropologia podem ser consideradas importantes fontes de pesquisa. Apesar de procedimentos de análise e de concepções teóricas diferenciados elas compartem, de modo mais evidente ou oculto, descrições que permitem vislumbrar o estranhamento. Após a leitura percebemos que nem todos os autores apresentam descrições sobre o momento de sua chegada. Por isso, o material a esse respeito, se não é escasso, está ao menos diluído em narrações que descrevem outras etapas de suas explorações.

Do mesmo modo, julgamos fundamental reler descrições e variados escritos esparsos e passagens que tratam sobre a relação com o outro na grande cidade. São relatos de vivências de literatos e cientistas sociais diante do estranhamento, feitos a partir da formação das metrópoles modernas. Os textos de referência para a compreensão da multidão e da cidade são: Balzac (A comédia humana), Baudelaire (O spleen de Paris e As flores do mal), Engels (A situação da classe trabalhadora na Inglaterra), Proust (Em busca do tempo perdido), Maupassant (Segredos do coração e Inconstante), Valéry (Política do espírito), Simmel (A filosofia do dinheiro, A tragédia da cultura e digressões afins) e Walter Benjamin (Passagens).

Ao mapear dimensões interpretativas que exploram distinções entre os estranhamentos do urbano e do não urbano; distinções que abrangem as representações sociais conferidas ao outro esperamos contribuir com nova perspectiva sobre o tema da alteridade.

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Herdeiros do colonialismo do século XIX, ainda que se aproximem ou se afastem de modo crítico do imperialismo e das teorias etnocêntricas e evolucionistas, procuramos verificar em seus estudos de campo como essa relação imediata e primeira com o outro é estabelecida, seja por suas negligências e suas alteridades diante do outro seja pelas tentativas de superação rápida desse estranhamento.

Esses materiais podem contribuir para a compreensão do estupor causado pelo outro. É importante ressaltar que em todas essas obras os pequenos fragmentos que aludem ao estranhamento não constituem teoria ou formulação a respeito de seu papel antropológico. São comentários esparsos, muito breves, ruínas que precisaram ser organizadas, desmontadas e reerguidas. A maior dificuldade da pesquisa consistiu em coletar os fragmentos – o que justifica a procura por diferentes autores e áreas do conhecimento e o emprego de procedimentos de interpretação que lembram o desafio de se trabalhar com estilhaços.

Diante disso, duas imagens refletem a tentativa de construção dessa tese. A primeira delas remete ao Palais Idéal do carteiro Cheval, construído na França entre 1879 e 1912. Toda pesquisa que coleta pequenos estilhaços pode se aproximar do procedimento adotado pelo carteiro. Em suas rotineiras caminhadas exigidas pelo ofício, ele tropeçou numa pedra, ficou perplexo com ela e decidiu construir seu castelo. Por trinta e três anos ele coletou incontáveis pedras de variados tamanhos: primeiro nos bolsos, depois em cestas até usar um carrinho de mão para construir o que Lévi-Strauss designou como a “[...] arquitetura fantástica da casa de campo do carteiro Cheval”7. As pedras foram ligadas umas às outras com arame, cal e cimento. O castelo possui estilos variados, como a mitologia hindu e egípcia, por exemplo.

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Figura 1: Palais ideal du Facteur Cheval. Fonte: http://www.facteurcheval.com/index.html.8

Em O pensamento selvagem, Lévi-Strauss relaciona a construção de Cheval ao bricoleur: capturar ruínas, juntar estilhaços, grudar fragmentos são procedimentos presentes também nas narrativas míticas. A leitura dos mitos e o estudo sobre o estranhamento têm muito em comum: ambos refletem sobre a linguagem despedaçada e exigem o mesmo de sua escrita; e concebem construções narrativas que juntem as pedras. Narrar mitos e o estranhamento, ambas bricolage, são atividades próximas

A comparação merece ser aprofundada, pois permite melhor acesso às relações reais entre os dois tipos de conhecimento científico que distinguimos. O bricoleur está apto a executar um grande número de tarefas diversificadas porém, ao contrário do engenheiro, não subordina nenhuma delas à obtenção de matérias-primas e de utensílios concebidos e procurados na medida de seu projeto: seu universo instrumental é fechado, e a regra de seu jogo é sempre arranjar-se com “meios-limites”, isto é, um conjunto sempre finito de utensílios e materiais bastante heteróclitos, porque a composição do conjunto não está em relação ao projeto do momento nem com nenhum projeto particular, mas é o resultado contingente de todas as oportunidades que se apresentam para renovar e enriquecer o estoque ou para mantê-lo com resíduos de construções e destruições anteriores [...]. Cada elemento representa um conjunto de relações ao mesmo tempo concretas e virtuais; são operações, porém utilizáveis em função de quaisquer operações dentro e um tipo (LÉVI-STRAUSS. 1989, p. 32-3).

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A segunda imagem que reflete a tentativa de construção dessa tese é o dito benjaminiano: Método é caminho indireto, é desvio.9 A leitura e a compreensão de textos que tratam do estranhamento se aproximam das narrações dos mitos porque seu percurso está repleto de temas que se duplicam, se encaixam e se desencaixam em contextos diferentes ou imprevistos; caminhos emaranhados, desvios que ora produzem retornos ora retornos que levam a novos caminhos; por vezes saltos em diferentes momentos do texto como as matrioskas, ou bonecas russas, que se desdobram e se desfazem até a menor parte. O todo e as partes estão intimamente relacionados, não possuem narrativas lineares, com começo, meio e fim. Ao mergulharmos nessas narrativas sobre o estranho, a imagem do desvio fez-se presente na articulação de autores e temas. A coletar dos estilhaços exigiu que fossem montados como mosaico.

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2 DESCONHECIMENTO

É tempo de buscarmos outro sol e de nos pormos em movimento. (Pierre Clastres)

Após a morte do filósofo, executado por incrédulos incapazes de enxergar luz para além das sombras projetadas na parede da caverna um indivíduo, dominado pela insônia, conseguiu se desvencilhar dos grilhões que desde seu nascimento o prendiam ao lado de seus companheiros. Seu assombro diferenciava-se daquele do filósofo – que outrora observara com indignação objetos sendo manipulados em frente à fogueira permitindo aos prisioneiros apreender o aparente como o real. Nosso personagem se desacorrentou porque todos, prisioneiros e manipuladores, dormiam. A fogueira apenas lançava pequeno rastro de fumaça que se dissolvia no ar; todos os objetos, que antes construíam o simulacro, estavam imóveis e no chão; não havia nada a ser feito senão dormir. Tudo o que via era opaco, sem forma ou sem funcionalidade claras; mal visualizava um palmo à sua frente o que lhe deu impressão de noite de intensa bruma. A caverna estava às escuras. O senso de orientação dependia da capacidade noturna dos olhos para formar imagens. Estranhando sua condição em meio à escuridão, tomou a difícil decisão de tentar sair da caverna pelo caminho ensinado pelo falecido filósofo. Sem saber ao certo se estava sonhando ou se as escassas imagens que via com dificuldade correspondiam à realidade, sentiu-se entorpecido pela falta de sentido da situação que se lhe apresentava. A indistinção entre razão e mito, consciência e sentidos o desnorteava de tal modo que lhe era difícil pronunciar: “eu”. Ao sair admirou-se com o fato de que adormecera também o Sol, apresentado pelo filósofo como o impronunciável da beleza e da perfeição; brilho que ofusca a vista. Fora da caverna, predominava a escuridão. Sem contemplar a luz e, muito menos as trevas, nosso personagem percebeu que o filósofo morto havia retornado cedo demais ao interior da caverna sem ter visto que, após o Sol, a noite prevalecera. Decidiu obstruir a saída da caverna com pedaços de pedras e arbustos para que ninguém mais saísse ou entrasse nela. Diz-se que nunca mais voltou. Sua saída lembrava os passeios de Rousseau, às margens de Paris, com seus delírios de caminhante solitário:

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mim. Naquele instante eu nascia para a vida, e parecia-me preencher com minha leve existência todos os objetos que percebia. Estando por inteiro no momento presente, não me lembrava de nada; não tinha nenhuma noção distinta de minha individualidade, a mínima ideia do que acabava de ocorrer-me; não sabia quem era nem onde estava; não sentia nem medo nem preocupações [...]. Sentia em todo o meu ser uma calma tão maravilhosa que, sempre que dela me lembro, nada encontro de comparável em todo o campo dos prazeres conhecidos (ROUSSEAU apud BARTHES, 2003, p.15).

* * *

A primeira parte do trabalho deveria ter como título: Teoria do Desconhecimento. Optamos por suprimir a primeira palavra, porque a palavra teoria se opõe ao desconhecimento e ao próprio estranhamento. Theorein em grego tem como núcleo o verbo oran que significa ver com atenção; é pensamento que se confunde com a própria visão. Esse ver está relacionado aos modos de conhecer: teoria é um saber que vê e afirma a consciência do sujeito sobre o mundo. O jargão filosófico declama com redundância a expressão teoria do conhecimento sem se dar conta de que toda teoria é, por si só, conhecimento. Bornheim em seu ensaio As metamorfoses do olhar define o significado da palavra teoria:

[...] Aliás, o verbo theorein deriva de um nome, theoros, ser espectador.Sem dúvida, a teoria é apenas isso: um ver concentrado e repetido, um ver que sabe ver, que inventa meios para ver cada vez melhor. E é nessa educação do olhar, a partir dela, que se institui toda a filosofia e as ciências do Ocidente, e até mesmo o saber voltado para o prático, como atesta a escola médica de Cós, que calou a boca do feiticeiro e ensinou a estabelecer um diagnóstico a partir de um olhar atento (BORNHEIM. In: NOVAES, 1988, p.89).

Teoria é conhecimento que vê, instante em que o pensamento, natureza pensante ou o Ser, ordena e classifica a realidade. A teoria pretende ser sucessora do não sentido e do inominável, busca a passagem do estranhamento ao conhecimento, do olhar passivo à visão que apalpa o mundo.

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passagem do estranho ao conhecimento. Das sombras ao Sol e dessa ferida dos olhos surge a recusa ao espanto e ao estranho em nome da percepção atenta dos objetos. Salvar os olhos do erro e da ausência de significado é a tarefa da teoria. Recusar o espanto e o maravilhamento diante do que está ao redor desperta o logos.

[...] Logo que alguém soltasse um deles, e o forçasse a endireitar-se de repente, a voltar o pescoço, a andar e a olhar para a luz, ao fazer tudo isso, sentiria dor, e o deslumbramento impedi-lo-ia de fixar os objetos cujas sombras via outrora. Que julgas tu que ele diria, se alguém lhe afirmasse que até então ele só vira coisas vãs, ao passo que agora estava mais perto da realidade e via de verdade, voltado para objetos mais reais? E se ainda, mostrando-lhe cada um desses objetos que passavam, o forçassem com perguntas a dizer o que era? Não te parece que ele se veria em dificuldades e suporia que os objetos vistos outrora eram mais reais do que os que agora lhe mostravam? [...]

– Portanto, se alguém o forçasse a olhar para a própria luz, doer-lhe-iam os olhos e voltar-se-ia, para buscar refúgio junto dos objetos para os quais podia olhar, e julgaria ainda que estes eram na verdade mais nítidos do que os que lhe mostravam? [...]

– E se o arrancassem dali à força e o fizessem subir o caminho rude e íngreme, e não o deixassem fugir antes de o arrastarem até à luz do Sol, não seria natural que ele se doesse e agastasse, por ser assim arrastado, e, depois de chegar à luz, com os olhos deslumbrados, nem sequer pudesse ver nada daquilo que agora dizemos serem os verdadeiros objetos?(PLATÃO, 1990, 514a-521b).

Se o filósofo sai da caverna e alcança a luz do Sol é porque detém a teoria. Theorein surge do thauma cuja negação suscita o deslumbramento. O conhecimento surge do estranhamento, mas o refuta para consolidar o êxito do logos: “de Homero a Platão, se nos depara uma decisiva história do ato de ver, de importância que cresce por permanecer ligada à questão do conhecimento”. 10

Os olhos são extensão da alma. O saber filosófico e a ciência despertam do abandono do estranhamento. Marilena Chaui, no ensaio Janela da Alma, espelho do mundo, aponta que da relação entre a teoria e a visão surge a percepção, perspicio, que significa “ver e conhecer perfeitamente, aperceber-se”. O que predomina na teoria é a skopia, cujo significado grego é o olho do observador do qual resultam as ciências ópticas (optikê) ou a conhecida expressão latina perspectiva. A teoria põe ordem ao caos e representa a negação do espanto (thauma) e a afirmação do saber.

Todavia, aos olhos maravilhados que mergulham no milagre contrapõe-se um outro olhar, atento, avesso à admiração e ao espanto [...]. [...] Com ela, o olho do

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observador se faz medida do visível e prepara, na filosofia, o advento de um sujeito do conhecimento que se julga capaz de evidência e de intuição porque, do lugar onde se encontra, tudo vê e vê completamente, tornando-se, no dizer de Merleau-Ponty, kósmo-théoros, para quem theoria é o “berço do mundo”, este começando com ela (CHAUI, 1988. In: NOVAES, 1988, p. 37).

A tradição grega que relaciona o saber à visão, isto é, a concepção de teoria, alcançou as culturas contemporâneas. Martin Jay 11 demonstra como, por exemplo, no francês o verbo voir (ver) possui raiz na palavra saber (savoir). O ver não é apenas saber, é forma de poder (pouvoir) do sujeito que, com sua visão, domina a natureza, o mundo que está à sua volta. Outras tantas metáforas visuais que relacionam o saber ao ver poderiam ser aqui afirmadas:

Hay unas veintiuna metáforas visuales [...], muchas subyacentes en palavras que ya no parecen depender de ellas. Así, por ejemplo, vigilante es derivado del latín

vigilare, mirar, que em su forma francesa, veiller, está en la raíz de surveillance.

Demostrar procede del latin monstrare, mostrar. Inspección e introspección (y otras palavras como aspecto o circunspecto) derivan del latín specere, mirar a u observar.

Especular procede de la misma raíz. Scope (alcance) procede del latin scopium

[como escópio em castellano], traducción de uma palavra griega utilizada para referirse al acto de mirar a o examinar. Sinopsis es uma palavra griega que significa mirar em general. Estas son metáforas muertas o latentes, pero aún expressan la importância del sedimiento visual en el idioma inglês [y el castellano] (JAY, 2007, p. 10-11).

Ainda que critique o papel dos sentidos como fonte de conhecimento, Descartes, na Dióptrica, faz exceção aos olhos. Todos os demais sentidos não apresentam ideias claras e evidentes e conduzem o homem à ignorância. Mas os olhos são como postos avançados da mente no corpo e para o exame do mundo; buraco do Ser rumo ao que lhe é exterior. em sua Dióptrica Descartes parece realçar a própria imagem da teoria; olhos que sabem ver, visão atenta sobre o mundo. O que são as teses a não ser exercício de especulação? Do grego sképsis, do verbo sképtomai, literalmente voltar o olhar para, olhar atento, considerar, observar, examinar, meditar, refletir.

Não é difícil conceber que a maioria das tecnologias que visam aguçar ou intensificar os sentidos está voltada à visão: telescópicos, microscópios, óculos, câmeras entre outras. Na tradição ocidental, os olhos são intencionais porque objetivam e dão sentido ao mundo. Por isso os saberes ocidentais têm origem na visão. É por meio da visão, ou melhor, da observação, que o filósofo sai da caverna.

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A Revolução Científica, inaugurada no século XVI por Copérnico, foi radicalizada por Galileu que direcionou lentes sobrepostas para o espaço e descobriu o movimento dos astros. Tanto o filósofo como Galileu são heliocêntricos. Se a visão é o mecanismo de contemplação do Sol, pode-se dizer que nossa cultura é oculacêntrica, na expressão de Martin Jay. Conhecimento é teoria e teoria é visão. Descartes saúda as descobertas ópticas modernas:

Toda a conduta de nossa vida depende de nossos sentidos, e como a visão é o mais universal e o mais nobre dos sentidos, não resta a menor dúvida de que as invenções que servem para aumentar seu poder estão entre as mais úteis que podem existir. E é difícil encontrar alguma que a aumente mais do que aquelas maravilhosas lunetas que, estando em uso há pouco tempo, nos têm revelado novos astros no céu e outros novos objetos acima da Terra em maior número do que nós já havíamos visto antes (DESCARTES, 2010, vol. 8, n. 3, p. 451).

Estudar o estranhamento diverge da teoria. É ora de buscarmos outro Sol ou, ao menos, dedicarmo-nos à noite. Não pretendemos aqui estudar a passagem do estranhamento em direção ao conhecimento. Recusamos o título Teoria do desconhecimento porque não buscamos teorias e, sim, o estranhamento frente ao conhecimento. A teoria transforma o que é estranho e desconhecido em algo familiar, isso coincide com o advento do sujeito do conhecimento. Procuramos tratar do estranhamento como aquilo que foge aos modos de conhecer. Desvincular o sujeito da consciência justifica o título Desconhecimento assim como a recusa pela teoria.

Trata-se de imobilizar o instante em que o estranhamento entre indivíduos ocorre. Na troca fortuita de olhares entre os estranhos que se encontram de modo surpreendente, os olhos não são guiados pela consciência e sequer a consciência domina o sujeito. As sensações confusas, anunciadas por Lévi-Strauss ao se deparar com os nambiquaras, revela a suspensão do Ser. O estudo dessas sensações exige forma de investigação que se distancie da teoria. Se, de acordo com Lévi-Strauss, o estudo dos mitos exige que sejam pensados miticamente e não compreendidos apenas pelo viés da racionalidade científica, pode-se dizer que o estudo do estranhamento exige que se estranhe essa Tese e o modo como ela foi organizada.

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de nomear o que está diante de seus olhos. No estranhamento, os pensamentos e os movimentos do corpo perdem autonomia; sons e palavras embaralhadas na mente não permitem afirmar a consciência do eu; a fronteira que separa ações voluntárias e involuntárias não está delineada. Há breve divórcio entre a linguagem e o Ser (Dasein), entre olho e visão. A suspensão revela-se como limiar entre Natureza e Cultura. Trata-se da fugaz sensação de embriaguez que se esvai no momento em que a suposta intencionalidade do Ser domina ou compreende objetos que o rodeiam dispondo aquilo que se concebe como realidade: a percepção de continuidade espacial, temporal e do próprio pensamento.

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2.1 EM BUSCA DO ESTRANHAMENTO

[…] Escrevo por acrobáticas e aéreas piruetas – escrevo por profundamente querer falar. Embora escrever só esteja me dando a grande medida do silêncio […].

(Clarice Lispector) O que não existe passa a existir ao receber um nome. Eu escrevo para fazer existir e para existir-me. Desde criança procuro o sopro da palavra que dá vida aos sussurros. (Clarice Lispector) [...] ninguém espera no silêncio, ninguém ouve, não sei,

é um sonho, talvez seja um sonho, muito me admiraria, vou acordar, no silêncio, nunca mais vou adormecer, serei eu, ou continuar a sonhar, sonhar com silêncio, um silêncio de sonho, cheio de murmúrios, não sei, são palavras, nunca mais vou acordar, são palavras, é o que há, tem de se continuar, é tudo o que sei, eles vão parar, sei bem o que isso é, sinto-os largarem-me, haverá silêncio, por uns instantes, alguns instantes, ou será o meu, aquele que dura, que não durou, que continua a durar, serei eu, tem de se continuar, portanto vou continuar, tem de se dizer palavras, enquanto as houver, é preciso dizê-las, até eles me encontrarem, até eles me dizerem, estranho castigo, estranho crime, que é preciso continuar, talvez já tenha acontecido, talvez eles já me tenham dito, talvez me tenham transportado ao limiar de minha história, à porta que dá para a minha história, muito me admira, se ela se abrisse, vou ser eu, vai haver silêncio, aqui onde estou, não sei, nunca saberei, no silêncio não se sabe, tenho de continuar, não posso continuar, vou continuar.

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O étimo grego thauma consolida a invenção do Ser e representa abertura para a linguagem, o conhecimento e a constituição do sujeito. O limiar, que permite tênue transição do inefável e da ausência de sentido para a compreensão dos objetos, corresponde à estrutura elementar do thauma. No Teeteto de Platão e na Metafísica de Aristóteles a perplexidade é reconhecida como mãe do intento humano em classificar o mundo, a priori estranho e desprovido de qualquer significação. Thauma expressa admiração, atordoamento, assombro e estranhamento. Permite passagem do inominável ao sentido; do caos à ordem imposta pela razão; da ignorância à objetividade do Ser sobre a essência ou a natureza dos objetos a “[...] admiração [thauma] é a verdadeira característica do filósofo. Não tem outra origem a filosofia [...]”.12 O conhecimento surge do estranho por interrompê-lo e conceder sentido à realidade.

Thauma revela despertar da consciência, desvelamento do Ser (Dasein), nas palavras de Heidegger. É próprio da filosofia reconhecer o abandono da dormência do pensamento em direção a um mundo regido pela intencionalidade da consciência. O estranhamento deve ser choque constante a fim de que a filosofia se mantenha vigilante contra a inatividade cognitiva de outros saberes – mito e senso-comum, ainda que esses remetam ao thauma. É garantida pelo thauma a passagem ao theorein por promover a criação e a permanência das interpretações do homem sobre a natureza e, como parece indicar Aristóteles em sua Metafísica, a constatação da existência do Ser.

A partir de seu senso-crítico, a filosofia passa a ser ramificação e negação do estranhamento – ela considera como verdadeiro o que é reconhecido pelo crivo do logos que se confunde com o Ser.O estranhamento interrompe a naturalização da vida e impõe o devir ao Ser. A filosofia remete ao atordoamento diante do não reconhecimento de nada como normal; do horror imposto à percepção quando se percebe que o real possui essência que extrapola fronteiras do cotidiano. Maravilhamento ou monstruoso são outros dois termos que constituem o sentido do thauma; são álibis que exigem postura interpretativa e engajada do sujeito sobre a descontinuidade do mundo concreto. Com o estranhamento, vê-se que a filosofia não está distante do mito, ambos são desdobramentos da sensação de estranheza.

Deleuze e Guattari em O que é filosofia?, relacionam o saber filosófico com o aquilo que chamam de fatigante tarefa de estranhar o ente, conhecer a si mesmo, espantar-se e inventar conceitos. O que revela a construção do conhecimento como tarefa genuína de saber que preza pela ordenação da cidade, dos outros e do universo. 13

12 PLATÃO. Teeteto. Belém: Universidade Federal do Pará, 2001, 155c-d.

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Estranhar, para Aristóteles, é reconhecer a ignorância diante do que afasta o Ser do conhecimento. A filosofia não nasce da posição neutra do homem, senão de sua curiosidade e admiração em relação aos problemas, por vezes, insolúveis, que perpassam pelo dito socrático “só sei que nada sei”, próximo das aporias míticas. A perplexidade tem como resultado o questionamento: engrenagem que torna o saber intermitente e eleva ao infinito o número de novas questões. A filosofia constrói única certeza: a dúvida quanto as nossas convicções. A curiosidade é imanente ao homem e conduz ao assombro, atividade por excelência filosófica que demonstra a existência do Ser. A arché – origem do saber filosófico que se constitui como estranhamento –, é a coação da verdade sobre o Ser que se assombra diante do fato das coisas serem como são. 14

Que não se trata de uma ciência produtiva é evidente já por aqueles que primeiro filosofaram. Pois os homens começam e começaram sempre a filosofar movidos pela admiração; no princípio, admirados ante os fenômenos surpreendentes mais comuns; logo, avançando pouco a pouco e considerando problemas maiores, como as mudanças da lua e os relativos ao sol e as estrelas, e a geração do universo. Mas aquele produz um problema ou se admira, reconhece a sua ignorância (por isso também aquele que ama os mitos é de certo modo um filósofo; pois o mito é composto de elementos maravilhosos). De sorte que, se filosofaram para fugir, é claro que tinham em vista o saber (ARISTÓTELES. 2004, I, 2,982b ll-21, tradução nossa).

O thauma não deve ser compreendido como relação causal ou continuum em que, do estranhamento, necessariamente, surge a subjetividade, o mythos ou o logos. O thauma é um limite, assim como as dobras do origami. Suas partes estão irregularmente relacionadas e surpreendentemente tornam o pedaço de papel em objeto dotado de significado. O estranhamento se apresenta como ponto limiar entre Natureza e Cultura, pois permite a imposição da consciência sobre o desconhecimento e a escassez de significados ao seu redor.

O homem detém monopólio dos significados do universo, ainda que não o perceba. Na noção de thauma, encontramos a afirmação do Ser contra o contingente e a descontinuidade espaço-temporal que assombra a percepção do sujeito. Ao operar de maneira dialética, o estranhamento transmite sensação de ignorância perante a realidade, mas busca superá-la por meio da afirmação de um Ser bruto – ou substância pensante, espírito – a partir do qual é possível reconhecer e criar leis que regem a vida e observá-la corretamente. É a passagem do thauma ao theorein. Na ÉticaEudemia, Aristóteles descreve a admiração como supremacia do

14 GÓMEZ RAMOS, Antonio. Asombro, experiencia y forma: los tres momentos constitutivos de la filosofía.

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espírito sobre o mundo. Trata-se da supressão do torpor, do vazio e do inominável impregnados na natureza.

O estranhar desperta o Ser. A autoconsciência sugere separação entre sujeito e objeto. A filosofia realiza a mediação entre o thauma e a natureza o que resulta na constituição do sujeito que declara a existência de objetos que lhe são exteriores e estranhos. A oposição entre os objetos e o pensamento evoca o Ser e, com ele, a atividade ôntica. A mente é projetada no mundo e o homem torna-se abertura para a realidade.

Agamben, leitor de Heidegger, considera essa abertura como passagem ou limite entre animalidade e humanidade. O Ser, (Dasein) estranha a si, desvela-se no atordoamento e afirma o homem, inventa-o no instante mesmo em que o Ser é velado. A animalidade em nossa espécie passa a ser negada e o homem deixa de ver a si como natureza, isto é, ignora o fato de que suas ideias são natureza pensante e atribui a si valores que estão além do mundo material, metafísico “[...] somente o homem, e mais, somente o olhar essencial do pensamento autêntico, pode ver o aberto que nomeia o desvelamento do ente. O animal, ao contrário, não vê jamais este aberto”.15

Ao contrário de outros animais o atordoamento (benommen)16

no homem não impõe limites à sua ação ou ao seu pensamento, “[...] enquanto está essencialmente atordoado e integralmente absorvido em seu próprio desinibidor, o animal não pode obrar verdadeiramente (handeln) ou ter uma conduta (sich verhalten) [...]”.17

A abertura humana caracteriza a negação da animalidade. É diante do atordoamento, no limite entre Cultura e Natureza, que a percepção humana se afirma como única capaz de transcender imposições da existência para, assim, afirmar a essência ou o Ser. A consciência do mundo emerge da estranheza e, com ela, o reconhecimento da subjetividade como esfera autônoma e distanciada frente ao mundo “[...] assim o espanto é a posição na qual e para a qual o ser do ente se abre. O espanto é a dis-posição em meio à qual estava garantida para os filósofos gregos a correspondência ao ser do ente”.18

Na obra As paixões da alma, Descartes dedicou-se à análise da admiração, que parece ser referência ao thauma. Ele classifica a admiração como “a primeira de todas as paixões”, o

15 AGAMBEN, Giorgio. Lo abierto; tradução Flavia Costa e Edgardo Castro. Buenos Aires: Adriana Hidalgo Editora, 2007, p. 108, (Tradução nossa)..

16 Além de atordoamento, a palavra alemã benommen pode ser traduzida como privação, impedimento ou estado de bestialização, tonto.

17AGAMBEN, 2007, p. 97.

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que significa dizer que dela derivam em “ordem e numeração”.19

todas as demais: estima e desprezo, veneração e desdém, amor e ódio, desejo, esperança e temor, remorso, alegria e tristeza, entre outras. A admiração é, ao mesmo tempo, mãe de todas as paixões e anunciadora da sedução que os objetos exercem sobre o intelecto.

Ao ser surpreendida, a razão deseja conhecimento e domínio metódico sobre a natureza. A dúvida cartesiana é experiência assombrosa; a máxima “penso, logo existo” é resultado da dúvida hiperbólica, do estranhamento radical sobre a possibilidade da existência do eu e das substâncias materiais. Duvidar afirma o Cogito; o eu pensamente é autorreferenciado como verdade indubitável. A admiração funda a objetividade do pensamento que permite vitória da vigília sobre o sonho e constitui o sujeito:

A admiração é uma súbita surpresa da alma, que a leva a considerar com atenção os objetos que lhe parecem raros e extraordinários. Assim, é causada primeiramente pela impressão que se tem no cérebro, que representa o objeto como raro e, por conseguinte, digno de ser muito considerado; em seguida, pelo movimento dos espíritos, que são dispostos por essa impressão a tender com grande força ao lugar do cérebro onde ela se encontra, a fim de fortalecê-la e conservá-la aí; como também são dispostas por ela a passar daí aos músculos destinados a reter os órgãos dos sentidos na mesma situação em que se encontram, a fim de que seja ainda mantida por eles, se por eles foi formada (DESCARTES, 1973, p.252).

Na tradição ocidental, o estranhamento deve ser permanente para que o Ser torne-se objetivante, intencionalidade ou visada sobre os objetos prestes a serem interpretados. O Ser demonstra sua luz natural, expressão da racionalidade e autoconhecimento. O estranhamento representa o ritual de passagem, que encerra o desconhecimento da condição animal e inaugura o conhecer que culmina no projeto de constituição do sujeito e da construção da humanidade. Embora seja movimento frustrado, o Ser visa apaziguamento do inquietante imperante na relação que o pensamento estabelece com a natureza.

Hegel, por exemplo, considera que o assombro se realiza no tempo e teleologicamente de modo que o Ser, progressivamente, se reconhece na História. Para Ortega y Gasset, o estranhamento permite ao Ser revelar-se como operação pensante, ou seja, refere-se ao conhecimento transcendente capaz de projetar-se para além da natureza.

Tomás de Aquino compreende o thauma como condução do pensamento ao transcender em direção ao absoluto ou Deus, ao tempo em que revela limites do conhecimento humano. Kant pôs fim à metafísica num sentimento de estranheza próximo ao de Aquino em

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sua Crítica da razão pura ao compreender que apenas é possível à consciência perceber os fenômenos, o modo como os objetos afetam a percepção, e não a coisa em si, a essência dos mesmos objetos. Embora afirme a impossibilidade do conhecimento alcançar a verdade, o pensamento é prerrogativa de todo saber. E todo saber desperta como maravilhamento (bewunderung). O estranhar afirma o conhecimento e impõe à consciência limites a respeito da possibilidade de entendimento.20

Explícito na tradição filosófica é a afirmação de que o estranhamento promove a subjetivação do mundo e a mundanização do eu, substância ontológica capaz de almejar o domínio e o entendimento sobre a natureza. Relações imediatas dispostas pela natureza são superadas e o Ser é apresentado com caráter absoluto, transcendente que pensa a si mesmo enquanto camada superior em relação a qualquer realidade. O eu exerce a visada sobre os fenômenos. Procure não pensar em nada e perceberá que a mente, de modo inevitável, permanecerá ativa transformará o nada em algo a ser pensado.

A proposta de Husserl concentra-se na origem do Ser revelado no instante em que o próprio fenômeno o oculta. O Ser é pré-conceituado, anterior a qualquer objetivação, apenas pode ser verificado nos fenômenos. A premissa fenomenológica de Husserl é todaconsciênciaé consciênciade algo ou intencional; é objetivante e construtora de significados. A fenomenologia revela o Ser na experiência, nas ações e no conhecimento que o homem detém sobre as coisas, o que se apresenta como constatação primeva. A consciência é visada fenomenológica.

A evidência fundante, o noema de toda existência, é o Ser enquanto consciência intencional, essência, evidência e verdade de todo pensamento e agir no mundo. Há algo como aritmética nata na consciência, o cogito, que a faz sempre conhecer e combater o estranhamento para dar origem à percepção das coisas.

A análise intencional deixa-se guiar por uma evidência fundamental: todo o cogito, enquanto consciência é, num sentido muito largo, significação da coisa que visa, mas esta significação ultrapassa a todo instante aquilo que, no próprio instante, é dado como explicitamente visado. Ultrapassa-o, quer dizer, é maior com um excesso que se estende para o além (HUSSERL, 2001, p. 65).

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O reconhecimento da originalidade do Ser requer o procedimento da epokhé.21

Trata-se de fazer da filosofia exercício de estranhamento de si e de Trata-seu entorno. A epokhé exige suspensão de todos os juízos, procedimento designado como redução fenomenológica: “[...] pela epoché fenomenológica, reduzo o meu eu humano natural e a minha vida psicológica – domínio da minha experiência psicológica interna – ao meu eu transcendental e fenomenológico, domínio da experiência interna transcendental e fenomenológica” 22.

Ao renunciar todos os juízos adquiridos, pré-concebidos ou transmitidos pela tradição filosófica, Husserl acredita ter voltado a filosofia “às coisas mesmas”,23 à essência que

permite vislumbrar o Ser como origem e destino; rota obrigatória e fundação de todas as ciências e de todos os atos dos homens. A epokhé confunde-se com o estranhamento, porque a redução fenomenológica torna a filosofia consciente de que experiência e fenômenos são modos absolutos de manifestação do Ser, do cogito; e sua forma originária é a consciência intencional, visada ontológica sobre as coisas e coação do pensamento sobre o que é desprovido de sentido, o mundo.

Se em Husserl a fenomenologia descreve o estranhamento que evidencia o Ser objetivado no fenômeno, em Merleau-Ponty ela representa a descoberta do corpo como intencionalidade, ou percepção, nível pré-reflexivo que é nomeado como o sensiente. Na Fenomenologia da Percepção e em O visível e o invisível, Merleau-Ponty contesta o primado do Cogito cartesiano, advertindo que o corpo opera ao lado do pensamento, sem que isto represente hierarquia ou causalidade. O corpo se debruça sobre o mundo. Não é máquina submissa aos imperativos do intelecto, como quer Descartes.

Ao afirmar “sou absolutamente estranho ao ser e é isso que faz com que eu seja aberto ao ser como plenitude absoluta e inteira positividade”,24 Merleau-Ponty fragiliza o monopólio

filosófico do conhecimento que incide apenas sobre a mente ou sobre o Cogito. Na verdade, o conhecimento é democratizado e está impregnado no corpo e também na relação com os outros. A intencionalidade não implica apenas na consciência sobre as coisas, mas na percepção corporal: o sensiente que corresponde ao emaranhado de sensações que apreendem a realidade ao funcionarem como uma confederação. As percepções humanas são atos conscientes do corpo – corpo que não é constituído por partes ou fragmentos funcionais e

21 Encontramos nas diversas traduções e comentários sobre Husserl as seguintes grafias: epokhé e epoché. 22 HUSSERL, 2001, p. 65.

23 HUSSERL, Edmund. A crise da humanidade européia e a filosofia; tradução Urbano Zilles. Porto Alegre: Edpucrs, 1996, p. 27.

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desprovido da capacidade de dar sentido – que correspondem a um todo que percebe que “[...] a experiência sensorial é instável e é estranha à percepção natural que se faz com todo o nosso corpo ao mesmo tempo e abre-se a um mundo intersensorial”.25

Mas o que permite a percepção? Para responder a essa questão Merleau-Ponty critica o Cogito cartesiano, apontando que há um nível pré-reflexivo ou pré-consciente da percepção. O corpo possui intencionalidade sobre o mundo e sobre os outros. O fundamento da consciência sobre as coisas é estágio bruto, um em si designado como Cogito tácito, a carne do mundo que permite interpenetração da consciência e da natureza.

O Cogito cartesiano é estabelecido por meio da dúvida metódica; da consciência que questiona a si mesma e alicerça o eu pensante como primeira verdade que independe do corpo, de suas sensações e do mundo. Merleau-Ponty inverte o cartesianismo. Indica a existência de nível imanente e irrefletido do Ser que sustenta possibilidade de reflexão e intersubjetividade. Se Descartes aposta na pura consciência, Merleau-Ponty demonstra a existência e a universalidade de um Ser que é pré-consciente no corpo:

O verdadeiro cogito é o face a face do pensamento com o pensamento deste pensamento: eles só se encontram através do mundo. A consciência do mundo não será fundada na consciência de si, mas elas são rigorosamente contemporâneas: para mim existe um mundo porque eu não me ignoro; sou não dissimulado. Restará analisar essa posse pré-consciente do mundo no cogito pré-reflexivo (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 400).

O Cogito tácito permite relação com o outro e o com o mundo. Exclui-se o “eu penso” como quer Descartes, em nome do “eu posso” ou “eu sinto”. Trata-se da possibilidade que a percepção corporal possui para abrir-se ao mundo. A carne estranha e insere o sujeito na História. O contato entre os cogitos distintos, estranhos e sensientes viabiliza a intersubjetividade. A troca de intencionalidades corporais funda os significados e a linguagem, conforme veremos mais adiante.

A percepção é totalidade que insere o homem no mundo “é portanto o pensamento de perceber”.26 Por isso, Merleau-Ponty substitui o Cogito cartesiano pelo Cogito tácito. A substância pensante agora adquire carnalidade. A valorização do corpo conduz-nos à observação de ruptura com a tradição filosófica que separa o sujeito do objeto; como se o eu pensante de Descartes e Husserl possuísse composição distinta e mais elevada em relação ao

25 MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção; tradução Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.304.

Imagem

Figura 1: Palais ideal du Facteur Cheval.
Figura 2: O jardim das delícias terrenas, Hyeronymus Bosch (1504).
Figura 3: A Origem do mundo, Coubert (1866).
Figura 4: La modiste sur les Champs Élysée, Béraud  145
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