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PENSANDO O LIMIAR ENTRE O DIREITO E A POLÍTICA, NOS RASTROS DE HABERMAS, DERRIDA E BENJAMIN

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Academic year: 2019

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PENSANDO O LIMIAR ENTRE O DIREITO E A

POLÍTICA, NOS RASTROS DE HABERMAS,

DERRIDA E BENJAMIN

JULIANA KOEHLER

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PENSANDO O LIMIAR ENTRE O DIREITO E A

POLÍTICA, NOS RASTROS DE HABERMAS,

DERRIDA E BENJAMIN

Dissertação apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Brasília como requisito parcial para a obtenção do título de mestre em Direito

Área de Concentração: Direito, Estado, Democracia e Políticas Públicas

Orientador: Professor Miroslav Milovic

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____________________________________________ Professor Miroslav Milovic (orientador)

____________________________________________ Professor Alexandro Araújo Costa (membro)

____________________________________________ Professor Cristiano Otávio Paixão Araújo Pinto (membro)

____________________________________________ Professor Alexandre Bernardino Costa (membro suplente)

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Pensa,

pode ser diferente,

podemos demolir as estradas para não atrapalhar os baobás, podemos criar tecnologias para distribuir prazer,

podemos parar de demarcar fronteiras quando imaginamos, quando intuímos, quando desejamos, quando oferecemos. Podemos parar de demarcar fronteiras

entre o que somos e o que queremos ser, entre o que somos

e o que somos obrigados a ser, entre o que somos

e o que pretendemos ser, entre o que somos

e o que as negras, os mendigos, as bichas e as putas são. Podemos parar de demarcar fronteiras que custam sangue e se fazem pondo desprezo de um lado e medo de outro. Podemos até parar de demarcar fronteiras

antes que demarquemos a fronteira da vida e fiquemos fora dela.

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Às pessoas que encontrei na Universidade de Brasília, durante estes sete anos, estudantes, professores, servidores, todos mestres, um demorado aceno de agradecimento que, sei bem, vai se prolongar na minha memória por muitos e muitos anos.

Também àqueles que, durante este tempo e em outros espaços, teceram comigo histórias de alegria, angústias, hesitações e comemorações, muito obrigada.

À minha mãe que, durante as madrugadas de uns vinte e cinco anos atrás, era acordada para, diante de um caderninho, ensinar-me a impossível escrita fonética, um afetuoso abraço de agradecimento pelo amor que ali generosamente oferecia.

À criança sentada no chão ao lado da cama de minha mãe, naquelas madrugadas, que não acreditaria se lhe dissessem que encheria todas estas páginas de letrinhas.

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Neste trabalho, disserto sobre os aspectos principais das perspectivas de Habermas, Derrida e Benjamin acerca da relação entre o direito e a política. Para Habermas, o direito positivo legítimo pressupõe um processo político-democrático, em que sejam garantidas a liberdade de comunicação e a igualdade de participação a todos os cidadãos, o que exige um sistema de direitos e uma democracia constitucional, por meio dos quais a autonomia pública e autonomia privada sejam co-originariamente relacionadas. Nessas condições, alcança-se, por meio do uso público da razão, um acordo em torno de questões morais, do qual emergem princípios de justiça. Em Derrida, a relação entre direito e política é entendida em termos de diferença entre os planos do possível e do im-possível. O direito e a política estariam situados, segundo Derrida, no plano do possível e, em última instância, teriam por fundamento a autoridade mítica da lei, mantendo uma relação interna e complexa com a violência. No plano do impossível, estariam a justiça, os direitos humanos e a política como hospitalidade. Embora este plano seja, de certa forma, utópico, para Derrida, há uma exigência ética de incorporação da hospitalidade incondicional à dimensão do possível, assim como há uma exigência de justiça infinita, diante da memória e diante da própria compreensão do que é responsabilidade. O direito, para Benjamin, apóia-se sobre o mito e a violência, seja na instituição de uma nova ordem jurídica seja na sua manutenção. Uma política como pura medialidade seria, ilustrativamente, a que se vê na linguagem. Por sua vez, a justiça é concebida, em Benjamin, como uma intervenção divina ou como uma intervenção político-revolucionária que depusessem o direito. Em termos de democracias mais efetivas, Habermas acentua a necessidade de se garantir uma convivência intersubjetiva plural, em um espaço democrático tolerante, e Derrida a importância de se criar espaços inter-singulares, em que haja hospitalidade para com as diferenças. Embora Benjamin não possua propriamente uma teoria sobre democracia, suas reflexões acerca da subjetividade moderna e de seu descentramento talvez possam contribuir para o debate acerca da efetiva abertura da política à diferença, condição para uma prática efetivamente democrática.

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The main aspects of Habermas, Derrida and Benjamin’s perspectives about the relation between Law and politics are presented in this work. According to Habermas, the legitimate positive law presupposes a political-democratic process in which the liberty of communication and the equality of participation of all citizens are guaranteed. This process demands a system of rights and a constitutional democracy by which the public and private autonomy are originally related. In these conditions, by means of the public use of reason, an agreement about moral issues is achieved from which principles of justice emerge. In Derrida, the connection between law and politics can be understood in terms of the difference between the possible and the impossible plans. According to Derrida, the law and the politics would be situated in the possible plan and, ultimately, would have as it bases the mythic authority of law, maintaining an internal and complex relationship with violence. In the impossible plan, there would be justice, human rights and politics as hospitality. Even though this plan may be somehow utopian, for Derrida, there is an ethical demand for the incorporation of unconditional hospitality to the dimension of the possible, as well as there is a demand for infinite justice given the memory and the own understanding of what responsibility is. The law, according to Benjamin, is based on the myth and violence, whether in the institution of a new juridical order or in its maintainance. A policy as pure medially would be, in an illustrative way, the one which is seen in the language. On the other hand, justice is conceived, in Benjamin, as a divine or revolucionary political intervention which would depose the law. In terms of more effective democracies, Habermas stresses the necessity of ensuring a plural intersubjective coexistence in a tolerant democratic space. Derrida emphasizes the importance of creating intersingular spaces in which there is hospitality towards the differences. Even though Benjamin does not have a theory about democracy, his reflections concerning modern subjectivity and his decentering might contribute to the debate concerning the effective opening of politics towards difference.

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INTRODUÇÃO...8

1 SUBJETIVIDADE MODERNA. KANTISMO E HEGELIANISMO: HÁ ESPAÇO PARA OS OUTROS NA CIDADE MODERNA?...11

2 HABERMAS EM DIÁLOGO COM DERRIDA: PENSANDO ABERTURAS À DIFERENÇA NA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA...21

2.1 Uma influência comum: Arend e o zoon politikon...21

2.2 Habermas: para além do instrumental. Buscando uma resistência à colonização do mundo da vida...29

2.2.1 Habermas em conversa com Arendt: com o zoon politikon saímos da encenação..29

2.2.2 Agir comunicativo em Habermas...31

2.2.3 Acordo em torno de questões morais e democracia procedimental...37

2.2.4 O direito positivo e a realização de justiça na teoria habermasiana...41

2.3 Derrida e o desconstrutivismo...46

2.3.1 Os opostos fala/escrita e a metafísica da presença...47

2.3.2 Crítica mitopoiética dos mitos totais: a intervenção desconstrutivista, diferir e disseminação...52

2.3.3 Espaço para a diferença, responsabilidade incondicional e a política da hospitalidade...55

2.3.4 O (im)perdoável, o direito e a memória em Derrida...65

2.3.5 Direito a não-poder: a (com)paixão e os limites da autobiografia...68

3 BENJAMIN E A CIDADE EM ESCOMBROS: MODERNIDADES E DESCENTRAMENTO DO SUJEITO...75

3.1. Modernidade clássica e anti-clássica. O soberano e o cortesão no drama barroco...75

3.2 A subjetividade moderna em Benjamin. Morte e escrita na cidade de Baudelaire...82

3.3 Sonho e mito da modernidade: crítica em fragmentos...85

3.4 História, memória e despertar em Benjamin...88

3.5 Outras histórias, outras narrativas...97

3.6 Descentramento do sujeito em Benjamin: entre instância do discurso e experiência...99

3.7 Crítica da violência, do poder...102

PALAVRAS FINAIS ...108

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INTRODUÇÃO

Analisando o impacto dos atos terroristas de 11 de setembro de 2001, Derrida encaminha suas respostas na direção de que o terrorismo surge como um sintoma de uma crise da forma como a política contemporânea vem funcionando (BORRADORI, 2004, p. 159), o que faz pensar que talvez a contemporaneidade ainda não tenha conseguido criar condições para uma comunidade política de efetivo respeito às singularidades, de abertura às diferenças, deixando margem, assim, a explosões do que foi rejeitado, reprimido.

Se é certo, como pensa Arendt (BORRADORI, 2004, p. 16), que as nossas visões de mundo sempre têm implicações políticas, estão envolvidas com a nossa história, talvez pudéssemos dizer que a maneira como temos herdado as perspectivas que nos chegam daqueles que nos antecederam ainda não conseguiu se encaminhar para a afirmação de um espaço de receptividade, de hospitalidade para com qualquer um que se aproxime, provindo de um lugar qualquer.

E, na contemporaneidade, podemos dizer que as perspectivas que nos chegam como legado têm, em alguma medida, relação com a herança iluminista.

Pode-se receber uma herança, uma tradição, de muitas maneiras. Derrida, com inspiração benjaminiana, acha que herdar tem algo de bricolagem. Olhar para o que se tem à mão, escolher o que se quer utilizar ou continuar utilizando, e, um pouco como uma criança, pôr-se a recortar, deixando que os retalhos que acabam sobrando nos ajudem nas colagens, histórias, textos que faremos depois. Recebendo a tradição criticamente, como nos diz Habermas.

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emancipação pela razão. Habermas, Derrida e Benjamin pensam esse legado de formas bem distintas.

Para Habermas, reconhecidamente, não é uma questão de rejeitar o projeto iluminista, mas realizar-lhe as promessas não cumpridas. Para Derrida não é o caso de ultrapassagem dessa herança, já que, com uma proposta assim, só se reafirma a rejeição e se nega a diferença. Benjamin também não renega o iluminismo. Ele também está na cidade iluminista, digamos assim. É verdade que se nos limitarmos a passar pelas vias principais dessa cidade, talvez não o encontremos. Mas em alguma de suas ruas menos iluminadas e mais precárias, ele pode estar escrevendo sobre um de seus temas-chave, de estreita relação com a tradição das luzes: aquele sobre o despertar do adormecimento moderno, sem, no entanto, trair a dimensão do sonho – essa é a peculiar ressalva de Benjamin. Escrevendo sobre esse tema, Benjamin vai compondo sua constelação peculiar de concepções acerca da história, do fazer histórico e da narração.

As maneiras como Habermas, Derrida e Benjamin recebem o iluminismo e as interferências disso nas suas perspectivas acerca da fala, da relação entre instâncias de discurso e suas histórias, da subjetividade moderna e de seu descentramento parecem ser pontos de apoio para se entender a relação entre o direito e a política, em cada um deles.

Trazer as idéias-chaves destes autores acerca desta relação, tendo por pano de fundo suas perspectivas acerca das luzes, é o objetivo do trabalho. Não tento abordar suas reflexões exaustivamente, mas apenas acompanhar algumas questões por eles levantadas, um pouco à maneira, não exatamente recomendada para este espaço, de um ensaio.

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espaços para além da subjetividade - espaços políticos de intersubjetividades ou de inter-singularidades. Em um espaço pluralístico, as perspectivas políticas destes autores não podem ser vistas como excludentes.

Neste trabalho, busco trazer algumas das questões mais recorrentes das reflexões de ambos, sem a intenção de fazer um resgate completo de suas questões centrais. Já antecipo, para não dar a impressão de que estou a colocar os dois a brigar, de que a intenção é apenas a de apresentar seus temas-chaves, fazendo, ao final, pequenos comentários sobre as perspectivas de ambos.

Em termos de uma discussão direta acerca da democracia, o último capítulo, sobre Benjamin, pode parecer um tanto quanto deslocado. E talvez esteja. Benjamin não tematiza diretamente a democracia. Ainda assim, indiretamente, pareceu-me que ele teria algo a dizer sobre descentramentos de subjetividades, receptividade para com inadequações e cesura do enfoque representacional moderno - ainda impregnado por elementos do trágico (voltado para o altar sacrificial ou para o gesto heróico) e do barroco (fixado na figura do soberano). Talvez a sua compreensão acerca dessas questões (que são abordadas, com freqüência, em seus trabalhos de crítica de arte), indiretamente, possa contribuir para pensar formas de acolhermos mais concretamente os outros e os outros em nós, formas que nos permitam realmente vê-los (vermo-nos), em sua (nossa) muçulmanidade1, em sua (nossa) radical diferença.

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1 SUBJETIVIDADE MODERNA. KANTISMO E HEGELIANISMO: HÁ ESPAÇO PARA OS OUTROS NA CIDADE MODERNA?

Benjamin critica a época moderna como aquela em que “a humanidade se transforma em espetáculo para si mesma” (1994, p. 196), em que a política se estetiza, com o risco real de se tornar espaço de manobra para regimes totalitários.

Fazer a pergunta sobre como o espaço político da modernidade cai na estetização, sem sair do palco em direção à diferença, incita à pergunta sobre como a modernidade tem pensado, o que nos leva a dar alguns passos para trás, em direção a certos trechos percorridos pelo pensamento ocidental que fincam os marcos da maneira de perceber o espaço interacional na modernidade.

Sobre essa maneira moderna de pensar, talvez possamos dizer que Heidegger a abordou como a redução da compreensão à dimensão do dado (ôntico) (MILOVIC, 2006, p. 275), Adorno e Horkheimer a assinalaram como o predomínio da racionalidade instrumental (CIARLINI, 2002, p. 37) e Habermas a associou ao interesse técnico, às ciências empírico-analistas e ao modo de reflexão que apreende a realidade como fatos (positivismo) (CIARLINI 2002, p. 54, 58 e 77).

É sob o pensamento de Descartes que as bases da perspectiva moderna são levantadas (MILOVIC, 2004, p. 31). Descartes quer construir uma estrutura de pensamento imune à ilusão, que garanta a verdade sobre o mundo, um lugar de objetos, que precisa se tornar apreensível e manipulável. Com Descartes, as experiências são percebidas como uma via para a obtenção de um conhecimento seguro, a ser atingido pelo sujeito moderno, a partir de princípios fundamentais, derivados da matemática. É a fundação da ciência moderna.

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antes da modernidade, há uma separação entre a dimensão e o momento do páthema - da paixão e do sofrimento, da experiência e do corpo - e a dimensão do máthema - do conhecimento -, esta deixada a cargo, freqüentemente, da esfera divina2. Mantém-se uma

distinção entre aquele que experiencia e o que conhece. Com a ciência moderna, essas dimensões, esses momentos, são unificados no sujeito cartesiano, e a experiência se torna um experimento voltado à obtenção do conhecimento. Deixa de haver os dois sujeitos, os dois momentos, assim como deixa de haver um espaço de diferença entre os dois momentos; a distância entre experienciar e conhecer é reduzida a um lugar de trânsito, um espaço que permite unir páthema e máthema pela mediação do espírito.

O espírito, o sujeito cartesiano, seria um “ente puramente lingüístico-funcional”, segundo Descartes. Mas Descartes se auto-ilude. O seu sujeito trai a “insubstancialidade deste ego”, unindo o que sofre a experiência, em um salto, com o que reflete sobre ela. Nas palavras de Agamben, “é este eu substantivado, no qual se realiza a união de nous e psyché, de experiência e conhecimento, que fornece a base sobre a qual o pensamento sucessivo, de Berkeley e Locke, construirá o conceito de uma consciência psíquica” (2005, p. 32).

Da perspectiva cartesiana, a modernidade herda um pensamento de reificação social, que desconfia do que não pode ser conhecido e expropria a experiência, como lembra Agamben (2005, p. 22). Em um mundo fático, move-se um sujeito em que se relaciona, de maneira imediata, experienciar e conhecer (corpo – social ou individual - e inteligência). É a visão de mundo cartesiana, que prepara a perspectiva técnica.

Kant irá distinguir o sujeito do conhecimento e o “eu empírico”, afirmando a transcendentalidade do sujeito em relação à experiência sensível (AGAMBEN, 2005, p. 41). O sujeito transcendental seria um Aquele, a possibilidade de representação em geral, que não decorre de um “eu empírico”. Não há, diz Kant, uma unidade de consciência, ligada a uma 2 Segundo Agamben, a oposição racionalismo/irracionalismo viria da confusão, da coincidência, entre estes

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substância psíquica, mas sim uma unidade de pensamento. O que experienciamos se orienta “pelo nosso conhecimento, o qual é regido por princípios universais” (CIARLINI, 2002, p. 25). Segundo Kant, não é o conhecimento que é conduzido pelas experiências que temos, mas as experiências que são geradas a partir de uma estrutura transcendental de conhecimento.

Assim, por um lado, Kant demarca a distinção entre experiência e conhecimento, trazendo para o primeiro plano a questão sobre a liberdade do pensamento. Nesse aspecto, a grande contribuição da filosofia kantiana “consiste em conceber uma crítica imanente que é ao mesmo tempo total e positiva” (HARDT, 1996, p. 64). Mas, por outro, ao supor o sujeito transcendental - e não ter se voltado para a questão da linguagem e para uma eventual dimensão lingüística (e, portanto, histórica) da transcendentalidade3 -, Kant funda a

“experiência no inexperienciável”. E não leva a cabo o projeto de uma crítica radical, já que cria uma “região fora das bordas da crítica, que na verdade funciona como um refúgio contra as forças da crítica” (HARDT, 1996, p. 64).

Embora se pergunte sobre as condições para a realização da liberdade na sociedade, Kant não problematiza o sujeito moderno, a ante-sala onde ele situa o transcendental (MILOVIC, 2004, p. 74). Deixa, assim, de refletir sobre as condições históricas desse sujeito e de questionar os pressupostos sociais modernos. A realização da liberdade, em Kant, está na ética, na moralidade, mas não chega ao corpo social e à política (MILOVIC, 2004, p. 71-76).

Segundo Hardt, há um certo conservadorismo em Kant: ao invés de voltar-se à efetiva crítica dos valores estabelecidos, ele os reforça. Como Hardt destaca, na filosofia 3 Como destaca Agamben (2005, p. 54-56), Kant não distingue os limites do transcendental e do lingüístico. Ele

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kantiana, “quando paramos de obedecer a Deus, ao Estado, aos nossos pais, a razão surge e nos persuade a continuarmos sendo dóceis” (1996, p. 64). Protegendo o transcendental, a “crítica kantiana pôde continuar tratando das pretensões à verdade e à moralidade, sem pôr em risco a verdade e a moralidade em si mesmas” (1996, p. 64).

Hegel critica a liberdade de Kant, que está fora da história (MILOVIC, 2004, p. 76). Ao invés de uma razão limitada pelo transcendental, ele quer “procurar a razão no âmbito do social” (MILOVIC, 2002, p. 59). Ao invés do sujeito transcendental kantiano, de costas para a história, Hegel propõe o sujeito especulativo. Esse aí está de frente para a história e quer um contato dialético, um confronto, que, em um certo processo infinito o torne pleno, absoluto. O sujeito especulativo vê a história como um processo que permite à consciência “realizar a si mesma, em seu saber e também em seu objeto” (AGAMBEN, 2005, p. 42). Autosuperando-se, “a consciência passa a saber algo – para si, que então constitui a sua essência, em si” (MILOVIC, 2004, p. 74).

No pensamento hegeliano, há uma “reunificação do sujeito transcendental e da consciência empírica em um único sujeito absoluto” (AGAMBEN, 2005, p. 42). As experiências, a história, são um caminho para que esse sujeito chegue à consciência subjetiva, tomando posse do saber, através de um infinito “processo global de devir” (AGAMBEN, 2005, p. 43), por meio do qual ele se identifica, gradualmente, a seu objeto. A história é o lugar da realização da identidade, diz Hegel (MILOVIC, 2004, p. 22).

Assim, se, em Kant, o pensamento está de costas para a experiência, em Hegel, ele se volta para ela, mas em uma relação de negação. A experiência precisa ser superada para que o conhecimento se realize: é a dialética hegeliana. Falemos um pouco dela.

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pela afirmação de um ser que se determina pela negação do outro, ou seja, que tem por diferença a negatividade (síntese)4. Segundo Hegel, é em um movimento negativo que o ser se

determina; se não recorre a esse movimento negativo o ser é nada, permanece indiferente, vazio. A diferença é negação, no pensamento hegeliano (HARDT, 1996, p. 31).

Deleuze – que quer pensar uma diferença interna ao ser -, critica o hegelianismo, por ter concebido o ser em termos de um processo de determinação, em que a diferença “permanece externa ao ser” (HARDT, 1996, p. 31). A exterioridade da diferença faz com que o ser precise de uma causa, uma finalidade ou o acaso para que seja (HARDT, 1996, p. 33). Hegel leva a exterioridade da diferença ao extremo, em um movimento “de uma coisa diferindo de uma outra ilimitadamente, 'com tudo que não é'” (DELEUZE, 1992 apud HARDT, 1996, p. 35-36). Deleuze lembra que, “segundo Hegel, a coisa difere de si mesma porque difere primeiro de tudo aquilo que não é” (DELEUZE, 1992 apud HARDT, 1996, p. 35).

Para Deleuze, essa diferença do ser, em Hegel, é abstrata, embora tente ser concreta (HARDT, 1996, p. 36). Diferentes não são necessariamente opostos e, ainda que estejam em oposição, sua combinação não gera a síntese, já que “continuam absolutamente externos entre si e assim não podem formar uma cadeia causal coerente e necessária”. A síntese permanece restrita ao pensamento. Nas palavras de Deleuze, “o ser da lógica hegeliana é um mero ser do 'pensamento', puro e vazio que se afirma passando para o seu oposto. Mas este ser nunca foi diferente do seu oposto, nunca teve de passar para aquilo que já era. O ser hegeliano é o nada puro e simples” (DELEUZE, 1992 apud HARDT, 1996, p. 36-37).

Hegel substitui, segundo Deleuze, a diferença pelo jogo da determinação, pela abstração, perdendo a compreensão do “imprevisível” e da “criatividade e originalidade do ser”.

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Além de abstrato, o movimento da dialética formal é falso, segundo Deleuze, porque pretende chegar à concretude pela combinação de termos genéricos. Como destaca Hardt, em Hegel o “um infinitamente relacionado a si mesmo, uma indeterminação posta, entra na relação com o seu outro abstrato e múltiplo, seu não-ser, e pela negação dessa oposição nós temos o devir do Um, uma idealidade realizada” (HARDT, 1996, p. 41).

Na esfera política, a unidade dialética do Uno, leva à afirmação hegeliana da primazia do Estado e a um modelo político de “pluralismo de ordem”, estático; e não a um “pluralismo de organização”, de multiplicidade, dinâmico, que leve em conta diferenças de natureza e de grau, dirá Deleuze (HARDT, 1996, p. 43).

A negatividade do ser é reafirmada na dialética do senhor e do escravo, que, na Fenomenologia do Espírito, Hegel desenvolve para falar das relações de dominação. O escravo de Hegel parte desse pensamento, traduz Hardt: “Eu temo a morte e sou forçado a trabalhar; portanto, eu sou consciência de mim por mim mesmo, independentemente” (HARDT, 1996, p. 78). A relação do escravo com o senhor acontece em dois momentos.

No primeiro deles, o escravo se confronta com a morte, “o senhor absoluto”. Aqui o escravo sente tudo sendo negado, à exceção de sua própria consciência (do contrário, seria a sua destruição absoluta, enquanto escravo). Em oposição à morte, o servo ainda seria uma afirmação da vida, mas a sua vida não tem uma diferença em si, apresentando, apenas, uma relação negativa com a morte.

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essência natural de si mesmo através da sua negação ou transformação da coisa” (HARDT, 1996, p. 79).

O escravo nega um outro, a coisa sobre a qual trabalha, transformando-a. O senhor também nega o outro, mas o nega em absoluto, consumindo-o. O desejo do senhor acaba com a relação com o outro, o desejo do escravo não. Refreado pela “quase-morte” do trabalho, que se apóia no medo, seu desejo produz um objeto independente, que “permite à ‘natureza essencial’ do outro sobreviver e assim, perpetuar a relação” (HARDT, 1996, p. 79).

O processo todo é “a educação progressiva do escravo”. O confronto do escravo com a morte “dissolve a fixidez de sua vida e faz voltar a sua atenção para o universal. Esse temor educativo prepara o escravo para o seu trabalho”. Assim preparado, segundo Hegel, o escravo se auto-realiza (ganha segurança), apreendendo um conteúdo essencialista sobre si (segurando uma auto-compreensão).

Sobre a lógica do escravo, Deleuze dirá, seguindo Nietzsche, que há, no escravo, uma “falsa concepção da natureza do poder” (DELEUZE, 1992 apud HARDT, 1996, p. 71), já que o escravo parte da separação entre o poder e a potência. O senhor, por seu turno, “concebe uma relação interna e necessária entre a força e a sua manifestação” (HARDT, 1996, p. 72).

Deleuze acha que a concepção de força do escravo é uma ficção. Para Deleuze, assim como para os escolásticos e para Espinosa, “a essência do ser é a sua produtividade” ou a sua potência. A lógica do escravo seria falsa, porque compreende o que é da essência do ser, sua força, como algo exterior a ele. No escravo, a “força é separada do que pode fazer” (HARDT, 1996, p. 73).

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Parte-se de uma certa concepção do que é homem: homem é aquele que se relaciona com a morte e essa relação é da sua essência.

Como a fase de destruição crítica foi parcial, por ter havido a conservação de uma essência, o segundo momento, de construção, não é de produtividade, de transformação efetiva. É apenas um momento “revelador; o escravo não é criado ou substancialmente transformado nesse momento, ao contrário, ‘torna-se consciente daquilo que ele verdadeiramente é’” (HARDT, 1996, p. 83) e continua em relação essencial com a negação.

Partindo de essências, também Hegel não levaria a cabo a tematização dos pressupostos da subjetividade e da própria racionalidade e sua teoria terminaria afirmando as essências do início. Como lembra Miroslav Milovic (2004, p. 91):

Mesmo conduzindo o sujeito monológico kantiano às estruturas históricas da interação, a filosofia de Hegel estabelece novamente um específico monólogo do sujeito, embora ele agora se chame o monólogo do espírito. Dessa forma, a Fenomenologia do Espírito termina como uma nova forma da lembrança platônica: agora é a lembrança do espírito sobre o trabalho terminado na história.

A filosofia hegeliana, portanto, não chega a um pensamento efetivamente transformador. Marx critica esse limite do pensamento de Hegel. Para ele, “os filósofos apenas interpretam o mundo de diferentes maneiras”, enquanto a questão “é mudá-lo” (HOLLOWAY, 2003, p. 42). Marx vê o mundo não como dado, mas como atividade humana. O ser humano, ele diz, cria as condições de sua existência por meio de sua práxis. A questão, então, seria pensar as condições da atividade humana.

Segundo Marx, no capitalismo, a práxis é reificada, o que é produzido assume vida por si mesmo e a sua relação com a atividade criativa é esquecida (o que ele chamou de “fetichismo” da mercadoria, seu caráter “místico”5). A relação entre as pessoas também se

5 Nas palavras de Marx (MARX, 2000 apud HOLLOWAY, 2003, p. 42), “uma mercadoria é, portanto, algo

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torna uma relação entre coisas e o pensamento fica estanque, afirma a temporalidade estática do produto, a categorização6.

A questão primordial, para Marx, é emancipar o social do sistema econômico capitalista, emancipá-lo da economia. No entanto, seu pensamento continua preso à economia. Embora problematize a consciência objetivadora moderna, ele acaba pensando o social de maneira objetivadora, afirmando o trabalho como a essência humana. Conferindo centralidade ao trabalho, um motivo tomado da filosofia hegeliana, Marx se enreda no essencialismo, no dado de Hegel, e não chega à tematização dos pressupostos do pensamento reflexivo, mas à afirmação de um fato, de uma categoria, e à redução da “história a uma produção”, enquanto produção objetiva.

Partindo de uma inspiração marxista, Habermas se volta para a linguagem, elaborando uma teoria da comunicação que, apoiada na intersubjetividade dialógica, busca afirmar um espaço autônomo para a reflexão social e para a crítica às tradições.

Por outros caminhos, o projeto de desconstrução de Derrida também se liga à questão da linguagem para criticar a metafísica do pensamento ocidental, que afirma lugares privilegiados, identidades e essências e se esquece da textualidade e da diferença.

As perspectivas de Habermas e de Derrida - uma teoria da comunicação que contribua para a reflexão social e um enfoque que se volte à desconstrução da metafísica ocidental - não são necessariamente inconciliáveis e podem contribuir para a abertura de outros caminhos para a política, na contemporaneidade.

Antes de abordarmos a proposta de Habermas e, em seguida, a de Derrida, comentaremos brevemente algumas reflexões de Arendt sobre a ação política e o espaço público. A reflexão política de Arendt, sua insistência em pensar as condições para uma

6 Em Marx: “Formas semelhantes constituem precisamente as categorias da economia burguesa. Trata-se de

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democracia efetiva e sua contundente oposição aos regimes totalitários influenciaram fortemente a filosofia política do século XX (BORRADORI, 2004, p. 18). Além disso, seu engajamento político e o seu pressuposto de que perspectivas filosóficas acabam envolvendo posicionamentos diante da história e da política são herdados por Habermas e Derrida, ainda que de maneiras distintas7.

7 Nas palavras de Giovanna Borradori (2004, p. 18), “apesar de suas concepções totalmente distintas de

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2 HABERMAS EM DIÁLOGO COM DERRIDA: PENSANDO ABERTURAS À DIFERENÇA NA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA

2.1 UMA INFLUÊNCIA COMUM: ARENDT E O ZOON POLITIKON

Arendt se empenhou em pensar a autonomia do político, opondo-se às democracias de cunho representativo e buscando afirmar uma “política verdadeira”, em que a “pluralidade dos homens”, em ação comum, pudesse fazer aparecer “novos começos” (ARENDT, 2007, p. 31).

Ela denunciou o obscurecimento da democracia na modernidade, em que a política muitas vezes se reduz à violência dos regimes totalitários e à administração de interesses econômicos e em que não há participação efetiva dos cidadãos na esfera pública. Viu no século XX um tempo em que a perspectiva econômica orienta a ação das pessoas, desvirtuando o espaço comum:

Sua ‘instrumentalização do mundo, sua confiança nas ferramentas e na produtividade do fabricante de objetos artificiais; sua confiança no alcance global da categoria meios e fins, sua convicção de que qualquer questão pode ser resolvida e qualquer motivação humana reduzida ao princípio de utilidade; sua soberania que considera todas as coisas dadas como matéria-prima (ARENDT, 2001, p. 35).

Arendt critica a desvalorização, na tradição filosófica ocidental, da vida ativa em favor da vida contemplativa, vista como uma via para a obtenção de uma “liberação”, através do alheamento das relações humanas e das atividades no mundo (AREDNT, 1991, p. 8). Essa postura teria contribuído para que as ações humanas, na modernidade, fossem vistas apenas como atividades voltadas para a necessidade ou para a utilidade.

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processos vitais e à sobrevivência (“agir com a natureza”), o trabalho, ligado à transformação da natureza e a instrumentalidade do agir - poiesis - (“agir com os objetos”), e a ação - a praxis -, que se realiza no espaço político, entre as pessoas (“agir entre os homens”).

Sônia Maria Shio defende que as esferas da vida ativa, em Arendt, não são territórios apartados uns dos outros, de divisórias estanques. A conformação desses espaços em dimensões relativamente autônomas é feita para “mostrar a possibilidade de emancipação das condições físicas” (SHIO, 2003, p. 183). As esferas da vida seriam complementares, no sentido de que seria preciso, para Arendt, a satisfação das necessidades biológicas e materiais, ligadas ao cuidado com o corpo e ao trabalho, para que o cidadão pudesse se lançar à vida política. Como diz Shio, para Arendt, “o indivíduo só se torna um ser político quando satisfeito nas questões sociais, comuns a todos, podendo então participar de outra esfera da vida humana, assumindo o papel de cidadão” (SHIO, 2003, p. 184).

Quando labora, o homem (animal laborans) provê sua sobrevivência pelo cuidado com o corpo e pelo consumo. Por meio do trabalho, o homo faber confecciona artifícios e produtos duráveis, relacionando-se, no processo de fabricação, com “a mesmice persistente dos objetos”. Na esfera da poiesis, por meio de um projeto prévio e do uso de ferramentas, ele atinge um fim definido desde o início, “um produto final, que não só sobrevive à atividade de fabricação como daí em diante tem uma espécie de vida’ própria” (ARENDT, 1997, p. 91).

Quando age, o homem atua na vida pública, como zoon politikon. A ação, para Arendt, seria a atividade eminentemente política por meio da qual as pessoas se relacionam, na práxis e também na léxis - visto também como agir -, e tecem narrativas a partir do que empreenderam juntas. Ela se realiza, segundo Arendt, pela interação humana no espaço político, onde os cidadãos, em convivência plural, agem, falam, ouvem, argumentam, manifestam-se, dão sua opinião, acompanham as dos outros.

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homens não só existem no plural, como todos os seres terrenos, mas também trazem em si mesmos uma indicação da pluralidade” (SHIO, 2006, p. 103). Como destaca, Sônia Maria Shio, em Arendt, “as ações e as palavras inserem os homens em um espaço comum, permitindo um novo aparecer que não está submetido às necessidades ou à utilidade” (SHIO, 2006, p. 177).

A ação se diferencia do agir instrumental - a poiesis -, por meio da qual o homem solitário e apartado dos outros produz, escolhendo um objeto a ser fabricado, estabelecendo a maneira de o fazer e a técnica que será utilizada na realização de tal ofício (SHIO, 2006, p. 153-208). Ela também se distingue da instrumentalidade do trabalho por não estar subordinada a resultados. A importância da práxis reside, segundo Arendt, na ação política em si. Em suas palavras, “a obra [política] não sucede e extingue o processo, mas está contida nele” (ARENDT, 1997, p. 218).

Uma distinção importante para ela é aquela entre espaço público e o privado, que marca a separação entre o social e o político (ARENDT, 1997, p. 190). O social, entendido como o espaço do labor e do trabalho, não pode suplantar o político. Se isso ocorre, as pessoas são uniformizadas, vistas apenas sob a ótica do útil ou do necessário, o que leva ao empobrecimento do espaço político.

Ao participarem do espaço público, os indivíduos se afirmam como cidadãos e, nessa condição, saem, segundo Arendt, da esfera da pura subjetividade (ARENDT, 1997, p. 194). Nesse espaço partilhado, os cidadãos interagem, já que a práxis “nunca é possível em solidão ou isolamento” (MADEIRA, 2006, p. 77).

Dessa interação surge o poder. Para Arendt, o poder é o que provém do entendimento mútuo, da comunicação não-violenta, em que o que se busca não é o êxito, o próprio sucesso, mas a formação de convicções comuns que possam reger as ações coletivas.

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afirma Francisco Rogério Madeira, “é pelo contato intersubjetivo entre os membros da sociedade que o sentimento de realidade, o mundo compartilhado se constrói”(MADEIRA, 2006, p. 39), uma vez que, como Arendt afirma, “a realidade que percebo é garantida por seu contexto mundano, que inclui os outros seres que percebem como eu” (ARENDT, 1991, p. 39). Sem o espaço público, os seres humanos perdem o a noção da realidade compartilhada (SHIO, 2006, p. 191).

Para Arendt, o agir é livre de qualquer determinação, por isso pode fazer surgir o novo

(MADEIRA, 2006, p. 15), que é engendrado no espaço público e compõe a história como “narrativa dos feitos”, relatos, e também como ensinamentos, orientações para agir.

O ato livre, Arendt destaca, é contingente, “atos que sei muito bem que poderia ter deixado de fazer” (ARENDT, 1991, p. 198). Ele inicia o processo, mas não há desdobramentos necessários, o que gera o inusitado, o desconhecido. A ação política seria livre, para Arendt, porque poderia realizar o improvável e “trazer à existência o que antes não existia, o que não foi dado nem mesmo como objeto de cognição ou de imaginação” (ARENDT, 1991, p. 154).

A ação seria ainda imprevisível, já que o agir não se submete ao controle de quem o iniciou. Ao se juntar à ação dos outros (ARENDT, 1991, p. 209), seu curso não pode ser traçado de antemão, adentra o insondável. Em suas palavras, “o novo sempre acontece à revelia da esmagadora força das leis estatísticas e de sua probabilidade que, para fins práticos e cotidianos, equivale a certeza” (ARENDT, 1997, p. 191).

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por meio de uma experiência de amor individualista. Essa interiorização do homem moderno, fechado em si mesmo e na familiaridade, alimenta uma realidade antipolítica e substitui a pluralidade, a distância entre os homens, própria das relações de amizade, pelo amor romântico e fraterno, voltados para o conforto e a segurança da individualidade (ARENDT, 1987). Na configuração moderna, “o ponto central é ‘a preocupação pelo homem’. O homem se preocupa por si mesmo. (Descoberta de si mesmo)” (ARENDT, 1988, p. 42). “Em contrapartida”, diz Arendt, “o ponto central de toda a política é a preocupação pelo mundo”.

Como afirma Sônia Maria Shio, Arendt busca “entrelaçar a ética e a política, por meio de uma ética da responsabilidade pelo mundo” (2006, p. 227), que é “é um apelo para que os seres humanos reflitam sobre as próprias ações”, em oposição a “uma ética pragmática, de meios e de fins, ou seja, da busca do mal menor, ou algo similar, para embasar o agir” (SHIO, 2006, p. 226-227).

A ação humana, voltada para o mundo, funda, em Arendt, o acontecimento histórico. Assim como a ação, ele é único, irrepetível, embora não se desconecte de um contexto histórico (SHIO, 2006, p. 240). O tempo histórico é o tempo da ação humana e não é nem cíclico - como o tempo do labor -, nem linear - como o do trabalho. Mantendo a “singularidade da ação”, o tempo histórico não encadeia os acontecimentos em uma totalidade, como um processo (SHIO, 2006, p. 236-237), mas é aquele em que os homens, por um lado, como sujeitos da história, atuam como agentes do novo, e, por outro, como narradores eticamente responsáveis, compõem suas narrativas acerca de suas ações singulares (SHIO, 2006, p. 242-247). Segundo Arendt, as narrativas dos acontecimentos históricos, únicos e entrelaçados pela memória, formariam a história.

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indivíduo, seja na atuação estatal, surge a soberania, como pura manifestação do livre-arbítrio, revestida do caráter ilimitado da vontade. Em suas palavras,

Se a soberania e a liberdade fossem a mesma coisa, nenhum homem poderia ser livre; pois a soberania, o ideal da inflexível auto-suficiência e autodomínio, contradiz a própria condição humana da pluralidade. Nenhum homem pode ser soberano porque a Terra não é habitada por um homem, mas pelos homens – e não, como sustenta Platão, porque a força limitada do homem o faça depender do auxílio dos outros (AREDNT, 1989, p. 246).

A vontade soberana, para ela, teria a sua utilidade, ao garantir a “previsibilidade aos negócios”, já que estaria associada à “capacidade de dispor do futuro como se este fosse o presente, isto é, do enorme e realmente milagroso aumento da própria dimensão na qual o poder pode ser eficaz” (ARENDT, 1989, p. 257). Ela acentua, no entanto, que, de uma perspectiva primordialmente política, a soberania, entre as pessoas e os grupos, exclui a diversidade, sufocando a vontade alheia, além de ser sempre ilusória, por rejeitar o outro, na ânsia por controle e segurança. Em termos da atuação do Estado, a soberania nega a democracia pela recusa de dissenso interno e pela disputa por primazia externa.

Como Arendt destaca, quando a vontade se transforma em soberania e a liberdade em livre-arbítrio, o poder se degenera em opressão e a autoridade. A capacidade de mando deixa de se basear no respeito para se apoiar na violência, que, para Arendt, é um meio não-político (ARENDT, 1989, p. 212). Em suas palavras:

Essa identificação da liberdade com a soberania é talvez a conseqüência política mais perniciosa e perigosa da equação filosófica de liberdade com livre arbítrio. Pois ela conduz à negação da liberdade humana – quando se percebe que os homens, façam o que fizerem, jamais serão soberanos – ou à compreensão de que a liberdade de um só homem, de um grupo ou de um organismo político só pode ser adquirida ao preço da liberdade, isto é, da soberania, de todos os demais (ARENDT, 1989, p. 212).

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Arendt compreendeu como “a forma mais extrema de desnaturação da coisa política, posto que suprimem por completo a liberdade humana” (ARENDT, 2007, p. 8).

Em um regime totalitário, o Estado destrói as relações intersubjetivas, instalando a desconfiança entre as pessoas e o terror, que “força cada um a fechar-se em si mesmo, tira-lhes a força de iniciativa e priva todas as interações lingüísticas da capacidade de unificar espontaneamente o que está separado” (HABERMAS, 1993, p. 113). Após ter destruído as estruturas de comunicação e ter tornado as pessoas incapazes de, juntas, gerar poder - ou seja, despolitizando-as -, o totalitarismo as manipula, utilizando-as como instância autorizadora da dominação.

Faremos, aqui, algumas pequenas observações sobre o agir político em Arendt. Tem sido destacado que a reflexão de Arendt sobre o agir político, embora poderosa, teria ficado presa à estetização do político e a uma concepção performativa da ação dos cidadãos no espaço público, o que é uma questão a se levar em consideração.

Arendt pensa o político a partir da democracia ateniense, em que os que participavam da vida política eram os poucos atenienses adultos e do sexo masculino liberados das necessidades do labor e do trabalho. Sua maneira de compreender a política teria herdado uma concepção idealizada da esfera pública, percebida como dimensão do viver livre das necessidades e das privações (SHIO, 2006, p. 21).

Em seu pensamento, as condições de sobrevivência, o cuidado com o corpo e a satisfação das necessidades econômicas são pré-requisitos que se têm por cumpridos antes do ingresso na esfera do político e ademais, não devem ser os temas de relevo na vida pública. Nas palavras de Shio, “os assuntos centrais da política são aqueles que ela considera próprios da ação humana, pura e idealizada, na qual se tratariam de ‘negócios especificamente humanos’” (SHIO, 2006, p. 181).

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pautar por uma perspectiva trágica, em que a política é vista como o espaço da realização de virtudes como coragem, honra, liberdade (MADEIRA, 2006, p. 12). Nesse sentido, a participação na esfera pública parece se revestir de tons predominantemente estéticos (MADEIRA, 2006, p. 13-14).

A práxis, em Arendt (MADEIRA, 2006, p. 22), ainda se ligaria a um ideal de purificação, que exclui da política elementos vistos como não tão dignos, como a ansiedade moral (MADEIRA, 2006, p. 23).

No espaço público, para Arendt, os homens, por meio de feitos heróicos, revelariam quem eles são, ao regerem sua atuação por princípios denominados “virtuosismos” (ARENDT, 1989, p. 234). Tal perspectiva pressupõe uma concepção essencialista, presa à concepção de subjetividade moderna, na forma em que concebida pela proposta fenomenológica.

Da perspectiva fenomenológica, o “ser só aparece”, sem que se possa falar em antecedência lógica do ser sobre a aparência. Por isso, do ponto de vista fenomenológico, a separação entre o que é e o que “meramente aparece” não é sustentável e, menos ainda, a “desvalorização da aparência” (MILOVIC, 2004, p. 92), que permeia o pensamento filosófico desde Platão. Embora essa crítica à desvalorização das aparências seja relevante, o projeto fenomenológico ainda teria ficado preso à subjetividade moderna, ao partir de uma compreensão do ser como experiência intuitiva da consciência, voltada à atribuição de significados aos fenômenos. Essa perspectiva, que pressupõe um intelecto puro, uma dimensão lingüística transparente, reduzida à meio de comunicação, e acontecimentos plenamente presentificados, parece ter tido influência sobre a maneira como Arendt pensa a interação humana.

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2.2 HABERMAS: PARA ALÉM DO INSTRUMENTAL. BUSCANDO UMA RESISTÊNCIA À COLONIZAÇÃO DO MUNDO DA VIDA

2.2.1 Habermas em conversa com Arendt: com o zoon politikon saímos da encenação?

Habermas, em certa medida, herda o pensamento de Arendt, em particular, no que diz respeito à sua compreensão de ação e de poder no espaço público. Herda criticamente, é certo. Acompanhemos a sua análise das concepções do agir e do poder em Arendt, para, um tanto quanto sorrateiramente, introduzirmo-nos no universo habermasiano.

Habermas considera que a concepção arendtiana de poder consegue fugir do modelo teleológico de ação, como aquele de que parte Max Weber, em que “um sujeito individual (ou um grupo, que pode ser considerado como um indivíduo) se propõe um objetivo e escolhe os meios apropriados para realizá-lo” (HABERMAS, 1993, p. 100). Do ponto de vista weberiano, o poder é a capacidade de ser bem sucedido na realização de objetivos, pela utilização de meios que venham a influenciar a vontade dos outros. Essa capacidade, Arendt não vê como poder, e sim como violência.

Diversamente de Weber, Arendt pensa a partir de um “modelo de ação comunicativo”, em que o agir que gera poder não é aquele baseado na “instrumentalização de uma vontade alheia para os próprios fins, mas na formação de uma vontade comum, numa comunicação orientada para o entendimento recíproco” (HABERMAS, 1980, p. 103).

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a) excluir da esfera política todos os elementos estratégicos, definindo-os como violência; b) isolar a política dos contextos econômicos e sociais em que está embutida através do sistema administrativo; c) não poder compreender as manifestações da violência estrutural (HABERMAS, 1993, p. 110-111).

Habermas escreve que “Arendt estiliza a imagem da polis grega, transformando-a na essência do político, construindo dicotomias conceituais rígidas entre ‘público’ e ‘privado’, Estado e economia, liberdade e bem-estar, atividade político-partidária e produção” (1993, p. 111).

Ele, então, buscará pensar a práxis com elementos que Arendt considerava unicamente da dimensão da poiesis. Com isso, não entenderá, como Arendt, a ação estratégica como exclusivamente ligada à ação instrumental. Para Habermas, a ação estratégica deve ser levada em consideração como forma de exercício do poder político. Em suas palavras,

A ação estratégica também se realiza dentro dos muros da cidade; ela se manifesta nas lutas pelo poder, na concorrência por posições vinculadas ao exercício do poder legítimo. Devemos distinguir a dominação, ou seja, o exercício do poder político, tanto da aquisição e preservação desse poder, como da sua gestação (HABERMAS, 1993, p. 111).

Ele entende que ação estratégica participa da esfera do político, embora não seja a fonte de legitimação do poder ali gerado e nem totalize o espaço público. Ou seja, a ação política não se restringe à dimensão estratégica, embora não a exclua. Em suas palavras:

Não obstante, não podemos excluir do conceito do político o elemento da ação estratégica. Definiremos a violência exercida por meio da ação estratégica como a capacidade de impedir outros indivíduos ou grupos de defender os seus próprios interesses.

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formam convicções comuns num processo de comunicação não-coercitiva” (HABERMAS, 1993, p. 112).

Habermas acentua ainda que Arendt parte da distinção aristotélica entre teoria e prática, dissociando a argumentação teórica, capaz de fornecer critérios para a distinção entre “convicções ilusórias e não-ilusórisa”, da formação da opinião. Com tal separação, Arendt não pode “compreender o acordo sobre questões práticas como uma formação racional de vontade” e percebeu o acordo de vontades como contrato, promessa mútua, deixando de o fundar sobre o “próprio conceito de práxis comunicativa” (HABERMAS, 1993, p. 112).

Para comentar outros aspectos da práxis em Habermas precisaremos de um pouco mais de espaço, o que nos faz entrar no tópico seguinte.

2.2.2 Agir comunicativo em Habermas

Há, em Habermas, uma proposta de prática reflexiva emancipatória, baseada na linguagem. Sua teoria crítica visa oferecer condições teóricas – “guardar o lugar”, em suas palavras - para uma “reflexão pública comum sobre os fundamentos da ordem social” (ROCHLITZ, 2005, p. 143-147).

A reflexão pública e a força do melhor argumento poderiam, segundo Habermas, fazer frente à colonização, pelo poder e pelo dinheiro, das interações sociais voltadas para o entendimento.

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professados em certo contexto ético; por outro, permite que a racionalidade econômica e burocrática impregne as interações sociais.

O desligamento da ação dos contextos tradicionais particulares cria condições para o desenvolvimento da economia capitalista e do Estado, regulados pelo direito, e o “mundo da vida” vai sendo sufocado pelos sistemas de ação instrumental, regidos pelos poderes econômico e administrativo. Como destaca Manfredo Araújo de Oliveira (1993, p. 15-16):

A modernização da sociedade significa então o processo de marginalização da ação comunicativa e a constituição de contextos de ação regrados pelo direito positivo. Na medida mesma em que as empresas se transformam em sistemas auto-regulados, passa para o primeiro plano da vida social a organização jurídica. (...) O desenvolvimento da sociedade moderna é, assim, a institucionalização das relações mercantis e do poder político pelo direito positivo.

Com esse panorama de fundo, Habermas se pergunta sobre como uma norma é válida, ou seja, quando uma norma existente é legítima, deve ser obedecida. Nessa pergunta, o que está em jogo são as condições da crítica social.

Partindo-se da filosofia da consciência, há uma séria dificuldade para a sustentação de uma crítica à forma de se pensar o social ou à estrutura macrossocial, já que, nesse caso, ou aquele que critica está se auto-refutando, ou está se posicionando em um não-lugar. Admitindo-se que há uma dimensão inerente à linguagem que está voltada para a reflexão interacional, para o entendimento e para a “sociabilidade comunicativa” (HABERMAS, 1989, p. 533), o lugar de uma crítica à colonização do mundo da vida pelas outras dimensões da linguagem deixa de ser um não-lugar, ou o lugar de alguém que se auto-contesta, e passa a ser a esfera da discussão pública.

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Como dissemos, o pensamento de Habermas não se movimenta no espaço da filosofia da consciência, mas naquele aberto pela virada lingüístico-pragmática, que se dá com Frege e Wittgenstein. Com a virada lingüística, “não é mais a mente e sim a proposição que diz o mundo”; e com a virada pragmática, “o centro da linguagem não é mais a proposição assertórica, mas as formas de vida, os falantes que têm condições de entenderem-se entre si, sobre algo do mundo” (FAVRETTO, 2008, p. 51).

Com este horizonte filosófico, Habermas não entende o sujeito como uma dimensão preexistente ao diálogo intersubjetivo, mas como alguém que se forma compartilhando a linguagem com os outros. Nas palavras de Giovanna Borradori (2004, p. 72):

Enquanto no modelo monológico o interlocutor individual preexiste à comunicação intersubjetiva, em Habermas, a comunicação intersubjetiva é a condição de possibilidade para o interlocutor individual. Dessa perspectiva, o interlocutor não é um agente livre, mas uma unidade funcional de uma comunidade de interlocutores.

Seguindo em direção ao agir comunicativo, levemos em conta as várias formas de ação concebidas por Habermas: o agir teleológico (estratégico), que visa à realização de um objetivo e se pauta pela adequação entre meios e fins; o agir normativo, orientado pelo esforço em adequar-se a papéis; o agir dramatúrgico, ligado à auto-representação em público e, por fim, o agir comunicativo, voltado ao entendimento mútuo entre falantes (HABERMAS, 1989).

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“escopo ilocucionário das expressões lingüísticas, consubstanciado no desejo ou intenção de compreensão que é imanente à fala” (CIARLINI, 2002, p. 12).

Partindo da teoria de Austin, Habermas irá pensar o agir comunicativo como interação social, por meio da linguagem:

Chamo comunicativas às interações nas quais as pessoas envolvidas se põem de acordo para coordenar seus planos de ação, o acordo alcançado em cada caso medindo-se pelo reconhecimento intersubjetivo de pretensões de validez (...) [N]o agir comunicativo um é motivado racionalmente pelo outro para uma ação de adesão - e isso em virtude do efeito ilocucionário de comprometimento que a oferta de um ato de fala suscita. Que um falante possa motivar racionalmente um ouvinte à aceitação de semelhante oferta [ocorre, se dá] pela garantia assumida pelo falante, tendo um efeito de coordenação, de que se esforçará, se necessário, para resgatar a pretensão erguida (...) (HABERMAS, 1989, p. 79).

O agir comunicativo supõe o reconhecimento de todos como participantes do discurso, sem exclusão - independentemente da aceitação ou da contestação dos conteúdos discursivos enunciados -, o que, em especial, distingue a ação comunicativa da estratégica. A fala de um participante do discurso precisa levar em conta as falas dos demais, pode ser contra-argumentada, é relativizada pelas outras instâncias discursivas (HABERMAS, 1989, p. 148).

No espaço intersubjetivo da linguagem, os falantes desenvolvem sua competência lingüística para a interação social que, segundo Habermas, seria inerente a fala, ainda que exercida em diferentes níveis. A linguagem compreendida como exercício da competência lingüística funcionaria assim, nas palavras de Giovanna Borradori:

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Nos atos de fala, segundo Habermas, os participantes do discurso reconhecem, uns em relação aos outros, pretensões de validade (à verdade, à correção e à veracidade) (HABERMAS, 2004, p. 354 e 440). Para Habermas, essas pretensões integram a racionalidade comunicativa universalmente.

Pensando a pragmática da linguagem, Habermas se utiliza, em parte, das contribuições de Piaget e Kohlberg, para associar uma concepção de estágios do aprendizado cognitivo e moral da criança à idéia do desenvolvimento da competência lingüística. Como Regina Célia do Prado Fiedler (2006, p. 97) destaca,

(...) influenciado por Piaget e Kohlberg, Habermas propõe uma reconstituição de modelos racionais de desenvolvimento moral e cognitivo que poderia ser observado tanto na esfera individual quanto social. Esse desenvolvimento se dá a partir de uma perspectiva egocêntrica para uma interação universal e reflexiva, a qual poderá originar uma moral pós-convencional.

Haveria “três níveis de desenvolvimento moral, de interação e de evolução comunicacional” (DOMINGUES, 1999, p. 120) e a passagem de um nível para outro é compreendido em termos de processo de aprendizagem. Nesses níveis, nas palavras de Habermas, as pessoas

(...) estabelecem os espaços de possibilidade para as relações sociais, consistindo naquelas inovações que se tornam possíveis por meio de passos de aprendizados, reconstituíveis mediante a lógica do desenvolvimento, e que institucionalizam um respectivo novo nível de aprendizado da sociedade (HABERMAS, 1975, p. 168 e 185 apud DOMINGUES, 1999, p. 121).

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No nível convencional, seria ultrapassado o egocentrismo estrito e alcançada uma situação social em que o indivíduo, em um primeiro estágio, identifica-se com um grupo e busca conformar sua ação às regras sociais, assumindo papéis. No segundo estágio desse nível, o indivíduo passaria a orientar a sua ação pela lei. Aqui “os princípios básicos de interação” são internalizados e se desenvolve “um caráter de 'lealdade' e apoio as regras morais da sociedade” (FIEDLER, 2006, p. 97).

O último nível de desenvolvimento seria o pós-convencional, autônomo ou fundado em princípios. Sobre esse nível, transcrevo as palavras de Regina Célia do Prado Fiedler (2006, p. 98):

O indivíduo busca uma autonomia em relação aos princípios morais a fim de fundamentar outras normas morais ou as próprias normas existentes. (...) Este processo de diferenciação comunicacional constitui-se em discurso. Este nível compreende dois estágios:

“Estágio 5” - A orientação legalista social contratual - Refere-se à realização do discurso orientado por análises de princípios gerais de direito e justiça, por meio dos quais as sociedades, bem como os indivíduos, procuram examinar criticamente suas regras, instituindo, simultaneamente, “leis gerais democráticas” (as constituições, por exemplo) obtidas consensualmente, e ao mesmo tempo buscam relativizá-las em função de valores e opiniões pessoais autônomas. Este ponto de oscilação motivacional entre autonomia e heteronomia caracteriza uma evolução fundamental no raciocínio humano e humanitário, pois se concretiza com a formação da solidariedade entre pares, comunitária e socialmente, pela busca do agir voltado ao entendimento mútuo.

“Estágio 6” - A orientação no sentido de princípios éticos universais - O que é moral e justo é definido pela consciência guiada por princípios éticos autonomamente construídos, tornando o discurso mais abstrato, à medida que se afasta dos acontecimentos factuais da vida prática, e mais éticos, à medida que é construído pela compreensão lógica e pela universalidade. Os princípios de justiça, de reciprocidade e de igualdade são definidos e revelados por meio de um discurso dialético de “busca cooperativa da verdade”.

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2.2.3 Acordo em torno de questões morais e democracia procedimental

Segundo Habermas, na modernidade, em que as doutrinas morais perdem sua justificação teológica (HABERMAS, 2002, p. 49) e deixam de ser obrigatórias, a norma moral precisa ser fundamentada, aceita publicamente, em um acordo intercomunicativo. Normas morais válidas seriam aquelas submetidas a um processo de justificação pública em que o “melhor argumento” fosse selecionado, em um acordo discursivo (HABERMAS, 2002, p. 53-54).

Em Habermas, é a aceitação pública, alcançada por meio de um processo em que os participantes possam apresentar seus argumentos, exercitando sua ação comunicativa, que confere validade a uma norma moral. Nesse aspecto, Habermas fala de uma comunidade de consenso, uma comunidade de fala, que, na sua teoria, não seria definida temporalmente, uma vez que incluiria os membros atuais e também, por suposição, os participantes futuros.

Esse processo de justificação pública conferiria à norma aceitabilidade racional, verdade. As verdades morais a que se chega nas discussões públicas acabam por permear, segundo Habermas, as esferas da política, da ética e do direito.

No pensamento habermasiano (2004), há uma forte relação entre a liberdade, como princípio, e a verdade, como valor; entre saber moral e conhecimento racional; entre razão prática e razão teórica. Para Habermas, a reflexão prática não se restringe à instrumentalidade, mas se refere à capacidade de “autovinculação da vontade pelo discernimento”, em que se entende discernimento não em termos de assertividade, mas de “reflexão sobre as experiências, práticas e formas de vida comuns” (HABERMAS, 2002, p. 39). Essa dimensão da razão é a que orienta os juízos éticos e morais (o saber moral).

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seria possível dizer que um juízo moral é falso ou verdadeiro (HABERMAS, 2004, p. 275), para além de contextos éticos particulares.

Para avaliar juízos morais em termos de sua verdade ou falsidade, Habermas parte de uma “situação ideal de fala”, uma situação contrafática, em que haveria a igual distribuição dos direitos de comunicação aos envolvidos, em uma esfera pública não-violenta e onde todos fossem francos uns com os outros (HABERMAS, 2002, p. 42). Habermas introduz essa situação ideal, para que a verdade que surja de uma discussão concreta não seja vista como definitiva, última, mas como provisória e falível (HABERMAS, 2002, p. 179).

Segundo Habermas, a relação entre saber moral e conhecimento racional não é causal, nem é de isomorfia, mas sim de paralelismo. Isso porque ele parte de Piaget, para quem um aprendizado moral acompanha o desenvolvimento das faculdades cognitivas.

Haveria assim, um espaço de diferença entre a experiência, enquanto compreensão prática, e o conhecimento8.

Embora diferenciadas, tais dimensões se desenvolveriam, segundo Habermas, em paralelo. Considerando esse paralelismo entre razão prática e razão teórica, Habermas se pergunta se seria possível avaliar, em termos de verdade, a moralidade de um mundo social que, não sendo um dado, é “estruturado de relações interpessoais que, de certa maneira, nós mesmos produzimos” (HABERMAS, 2004, p. 276). Ou seja, se a distância entre as dimensões da experiência e do conhecimento é suficientemente larga para abarcar um julgamento.

Seu ponto de vista é o de que o paralelismo não impede a avaliação moral, já que, nem de tão perto, nem de tão longe, a experiência se faz acompanhar pelo conhecimento. Em outros termos, os juízos morais não se reduzem a reflexos de um certo contexto histórico, nem estão totalmente dissociados da experiência. A ressalva de Habermas é a de que a verdade

8 A questão aqui tangencia, de uma perspectiva moral, a tematização de Agamben (2005) sobre a separação

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desta avaliação moral, após a virada lingüística, não pode mais ser entendida em termos de correspondência, e sim como aquela que emerge de uma instância pública de justificação, uma comunidade de falantes.

Assim, há, para Habermas, uma relação interna entre verdade e juízo moral, entendendo-se verdade não em termos de assertividade da razão, de cogência do argumento, mas de “aceitabilidade racional”. Tal aceitabilidade, em Habermas, diz respeito à forma como o juízo moral passa a ser aceito pela sociedade, ou seja, ao procedimento, às condições em que o consenso discursivo ocorre e não propriamente ao argumento. O procedimento que tornaria o argumento aceitável seria aquele que se aproximasse da situação contrafática, o que aconteceria quando fosse garantida a participação de todos os envolvidos na discussão, sem que ninguém fosse coagido a aceitar ou refutar pontos de vista. A verdade moral construída assim estaria revestida de aceitabilidade racional.

Ainda que exista uma relação interna entre verdade e justificação, entre experiência e conhecimento, Habermas entende que existe uma dimensão da verdade “que ultrapassa todas as justificações” (HABERMAS, 2004, p. 55), um potencial excedente de verdade, sempre além de uma situação real. Essa compreensão de uma verdade excedente emerge da inclusão, no pensamento habermasiano, da distância efetiva, embora paralela, entre as dimensões da experiência e do conhecimento.

Sua maneira de justificar o excesso de verdade passa pelo argumento de que a situação fática dos debates, os discursos reais a partir dos quais se dá o processo de justificação, sempre guarda uma insuficiência, em relação ao que será aprendido no futuro. Por isso, diz Habermas, a verdade a que se chega no debate público, embora não seja falsa, é sempre insuficiente.

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sairia do mundo da vida para ser levada à discussão pública quando as experiências cotidianas deixassem de fornecer respostas para ela. Além disso, argumenta que, sanadas as dúvidas por meio de uma ampla discussão pública, não faria mais sentido continuarmos discutindo e, assim, poderíamos voltar à ação a qual, influenciada pelos rumos da discussão pública, teria outros encaminhamentos, geraria novas dúvidas, sendo levada novamente ao espaço de discussão pública e assim por diante.

Tendo visto que Habermas liga verdade à moralidade e à prática discursiva, podemos introduzir a pergunta: de que maneira Habermas vê a justiça? A justiça, para ele, decorreria da própria práxis argumentativa realizada em um contexto em que os pressupostos comunicacionais da argumentação fossem assegurados a todos os participantes, por meio da proteção dos direitos humanos e do processo democrático. Ou seja, Habermas relaciona verdade, moralidade, democracia procedimental e justiça.

O conteúdo da justiça seria dado pelos juízos morais válidos, em cada contexto social. Cito suas palavras:

[...] Consiste em saber como relações interpessoais podem ser legitimamente reguladas. Não se trata de reproduzir fatos, mas de invocar normas dignas de reconhecimento. São normas que merecem reconhecimento no círculo de seus destinatários. Evidentemente, esse tipo de legitimidade mede-se, conforme o contexto social, por um consenso existente sobre o que é considerado justo. A interpretação de ‘justiça’ reinante a cada vez determina a perspectiva a partir da qual se avaliará a casa vez os modos de ação, indagando se ‘são igualmente boas para todos’. Pois só então tais práticas merecem reconhecimento geral e podem assumir um caráter obrigatório para os destinatários. Com base em tal compreensão de fundo, os conflitos entre ‘partes’ opostas podem ser eliminados mediante razões que convençam ambos os lados, ou seja, podem ser eliminados ‘imparcialmente’, no sentido literal do termo (HABERMAS, 2004, p. 295).

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convivessem em tolerância. Aqui, uma forte aproximação de Habermas com o pensamento kantiano e o “reino dos fins”. Kant postula que cada pessoa é um fim em si mesmo e que, como agentes morais, os seres humanos deliberam, em conjunto, acerca dos fins que pretendem dar às suas ações.

Acentue-se que, para Habermas, no contexto das democracias constitucionais, a convivência pluralística seria realizada por meio do exercício da virtude política da tolerância. A respeito, Giovanna Borradori destaca que “sua defesa da tolerância emerge de sua concepção de democracia constitucional como a única situação política capaz de abrigar comunicação livre e sem coação e formação de um consenso racional” (BORRADORI, 2004, p. 29).

Para compreender a maneira como Habermas relaciona o processo democrático e o direito, resvalamos para o próximo tópico.

2.2.4 O direito positivo e a realização da justiça na teoria habermasiana

Referências

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