Novo Testamento
ORAÇÃO
1 A PAIXÃO E MORTE DE JESUS
Os elementos que conhecemos da Paixão e morte de Jesus, provêm dos
“Evangelhos”. Nunca será demais lembrar que estes textos não tiveram como primeira intenção servirem de documentação histórica sobre a pessoa de Jesus e toda a sua envolvência; são, antes de tudo, textos religiosos, destinados a alimentar a fé dos crentes.
O relato da Paixão e morte de Jesus é certamente dos mais antigos da
catequese primitiva. Impedia que se esquecesse que Aquele que era celebrado pela comunidade como o Senhor vivo e ressuscitado, tinha sido crucificado.
Servia também para manifestar, de forma mais clara, o mistério de Jesus: na Paixão, manifesta‐se o “Kyrios” (o “Senhor”), que morre rodeado por um
esplendor divino e a quem o Pai nunca abandona. A Paixão confirma, assim, que Jesus veio de Deus, cumpriu um mandato do Pai e que o Pai esteve sempre a seu lado, acabando por não deixar que a morte vencesse Jesus, o Filho amado.
Apesar dos relatos da Paixão e morte de Jesus que chegaram até nós serem, fundamentalmente, textos de carácter
teológico, é possível ao historiador utilizá‐los para entender e situar historicamente a morte de Jesus. Podemos tentar, a partir dos textos, destacar alguns elementos históricos sobre o processo de Jesus.
a) o choque com a mentalidade dominante
O ministério de Jesus, o que Ele anunciava, teve, no início, um sucesso espantoso. As multidões seguem‐no porque as suas palavras transmitem
esperança e vêm ao encontro das aspirações das pessoas. É, sobretudo, o seu anúncio de um mundo novo (“reinado de Deus”) que atrai os pobres e
marginalizados: eles sentem, através das palavras de Jesus, que Deus não os exclui nem rejeita e que ‐ ao contrário do que dizem os “chefes” do Povo ‐ todos têm lugar à mesa do banquete do “Reino”. Acresce ainda que os gestos de
perdão e de misericórdia que Jesus todos os dias tem, o seu cuidado com os excluídos, a sua atenção a todos os que estão privados de vida e de liberdade, a doutrina de que o homem é o valor supremo na ordem natural (o sábado foi feito para o homem), tudo isto impressiona as pessoas.
Alguns interrogam‐se se não será ele o Messias esperado; outros consideram‐no um grande profeta (cfr. Mt 16,14); outros surpreendem‐se com a autoridade com que Jesus fala (cfr. Mc 1,27; Mt 7,28‐29)... Numa tarde de maior sucesso, chegam mesmo a querer aclamá‐lo rei (cfr. Jo 6,15).
As autoridades começam a inquietar‐se. Os saduceus (a aristocracia sacerdotal, os verdadeiros detentores do poder
económico e religioso), olham‐no como um perigoso agitador, que ameaça a ordem e, por arrasto, coloca em causa os seus privilégios de classe... Além disso, as palavras de Jesus acerca da riqueza e dos ricos (“ninguém pode servir a dois senhores porque, ou há‐de odiar um e amar o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas” ‐ cfr. Mt 6,24) são uma denúncia vigorosa do estilo de vida e das preocupações deste grupo...
Os fariseus, por seu lado, veem em Jesus um herege, que não aceita a autoridade absoluta da “Lei” e que propõe uma religião nova, baseada no amor e na misericórdia.
As correcções à “Lei” (cfr. Mt 15,10‐20) feitas por Jesus e a denúncia que Ele faz do legalismo que toma uma forma anti‐
humana (cfr. Mc 2,23‐28; 3,1‐6), são uma revolução que ameaça os fundamentos da fé. Gestos como o da purificação do Templo (cfr.
11,15‐19 e par.; cfr. Jo 2,13‐22), apenas confirmam que Jesus é um contestatário, que não está disposto a pactuar com o sistema
religioso estabelecido; e frases como “em verdade, em verdade vos digo que os publicanos e as prostitutas preceder‐vos‐ão no Reino dos céus” (Mt 21,31), são uma provocação inaudita aos que se consideravam os verdadeiros detentores da revelação de Deus.
Não espanta, portanto, que as autoridades tenham, desde muito cedo, decidido eliminar o profeta incómodo. Marcos dá conta,
ainda na Galileia, de uma conjura entre fariseus e herodianos para matar Jesus (Mc 3,6). Mateus confirma esse dado, embora não
refira os herodianos (cfr. Mt 12,14). Lucas refere uma tentativa de assassínio de Jesus logo no início do seu ministério, após o
discurso na sinagoga de Nazaré (cfr. Lc 4,29,30). Não há dúvida:
desde o início do seu ministério Jesus despertou inimigos entre os representantes do poder político, económico e religioso. O
projecto do “Reino”, a ser levado até às últimas consequências, não podia terminar senão na cruz.
b) Jesus anuncia a sua morte e ressurreição
Jesus teve consciência disto?
A resposta é, obviamente, positiva. Por várias vezes, Jesus fez referências explícitas à sua morte.
Os três anúncios da Paixão e morte (Mc 8,31; 9,31; 10,33‐34 e par.) são textos onde se reflecte, de forma clara, a consciência que Jesus tinha do caminho a que o levaria o anúncio do “Reino”. Mas estes textos indicam mais que isso: Ele nunca pretendeu recuar: a sua preocupação era seguir o plano do Pai, anunciar o “Reino” e confiar no Deus que não abandona o justo ao poder da morte.
Muitos outros textos dão testemunho desta consciência. Ele mesmo diz aos discípulos que é o esposo que um dia lhes será arrebatado (Mc 2,19‐
20); que tem de receber um baptismo e que se sente angustiado até que esse baptismo se realize (Lc 13,33); que é a pedra rejeitada pelos
construtores, mas cujo destino é converter‐se em pedra angular (Mc 12,10)... Diante da mulher que o unge com perfume, Jesus diz que ela o está a ungir para a sepultura (Mc 14,8). Uma das suas parábolas
apresenta‐o como o filho do proprietário, morto pelos trabalhadores da vinha ((Mc 12,8)... De outra vez declara, com uma certa ironia, que um profeta não pode morrer fora de Jerusalém; e, uma vez que ele está a caminho de Jerusalém dá a entender que sabe o que o espera na cidade (Lc 13,33).
Não há dúvida: Jesus tinha uma consciência nítida de que o anúncio do “Reino”, chocando com a mentalidade dominante, havia de conduzi‐lo à morte. No entanto, com inteira liberdade, continuou a percorrer o caminho do “Reino” e a concretizar o plano do Pai para os homens. Para Jesus, a morte seria o preço a pagar pela destruição das cadeias que oprimiam os homens. Era como o grão de trigo que, morrendo, daria fruto.
c) a última ceia de Jesus com os discípulos
Os “evangelhos são claros ao afirmar que Jesus celebrou uma “ceia” com os discípulos, pouco antes de ser preso. Mas, essa “ceia” teve algum
significado especial? Que significado?
É uma das questões que mais se sublinha no Novo Testamento. Para João, Jesus teria celebrado uma simples “ceia de despedida”, durante a qual teria deixado aos discípulos o seu “testamento” (cfr. Jo 13,1‐17,26);
e teria morrido na véspera da Páscoa, precisamente à hora em que, no Templo, se imolavam os cordeiros para a “ceia pascal”. Para os
“Sinópticos”, a última “ceia” de Jesus com os discípulos teria sido uma
“ceia pascal” (cfr. Mc 14,12‐26; Mt 26,17‐30; Lc 22,7‐38): celebração do Deus libertador, que tirou o seu Povo do Egipto e celebração da Páscoa escatológica (da libertação definitiva do Povo de Deus).
Os dados divergem e os estudiosos não conseguem perceber com clareza de que ceia se tratou; percebem‐se razões quer a favor quer
contra a hipótese da última ceia de Jesus com os discípulos ter sido uma ceia pascal.
Os textos dos “Evangelhos Sinópticos” não descrevem uma “ceia pascal”
em sentido estrito (falta a referência a alguns elementos fundamentais sem as quais ‐ segundo o Rabbi Gamaliel ‐ a “ceia pascal” não cumpria a sua obrigação: o cordeiro pascal, as ervas amargas…).
No entanto, Lucas põe Jesus a dizer, de forma explícita, aos discípulos:
“desejei ardentemente comer esta Páscoa convosco antes de morrer” (Lc 22,15).
Será que os “Evangelhos Sinópticos” descrevem essa “ceia pascal”, de acordo com o que era a prática litúrgica da “ceia do Senhor” celebrada nas
comunidades cristãs primitivas e ignorando, conscientemente os costumes judaicos? Será que a perspectiva dos “Sinópticos” é simbólica (serve para apresentar a morte de Jesus na cruz no dia de Páscoa” como a libertação definitiva do Povo de Deus)?
Seja como fôr, não há dúvida de que, para os “Sinópticos”, a “ultima ceia” de Jesus com os discípulos teve um significado pascal. Não é, apenas, a celebração da saída dos hebreus do Egipto... É a celebração da última e definitiva
intervenção libertadora de Deus na história dos homens: esta intervenção acontece em Jesus e com Jesus. O que se celebra é o momento culminante da história da salvação: o momento em que Deus, através de Jesus, liberta e salva definitivamente os homens. A “última ceia” de Jesus com os discípulos anuncia esse mundo futuro (“Reino de Deus”) onde o Povo de Deus terá vida e
felicidade, sem estar mais sujeito à opressão.
d) a prisão de Jesus
Os quatro “Evangelhos” narram a prisão de Jesus. Em relação ao essencial, todos estão de acordo: Jesus foi preso no monte das Oliveiras (situado no lado oriental da corrente do Cédron), numa propriedade chamada
“Getsémani” (cfr. Mc 14,32‐52; Mt 26,30‐56; Lc 22,39‐53). É natural que Jesus se tenha refugiado no Monte das Oliveiras. “A arqueologia patenteia‐
nos as grutas antigas onde Jesus, naturalmente, devia passar as noites com os seus discípulos. A mesma arqueologia também demonstra a existência dum lagar de azeite muito importante naquele lugar, o que vem condizer com os textos evangélicos, uma vez que a palavra “Getsémani” significa precisamente «lagar de azeite»” (Carreira das Neves, Jesus Cristo, História e Fé, pág. 227).
À frente do grupo que prendeu Jesus, estava Judas, um dos discípulos.
Porque é que Judas se prestou a este papel? Por causa da soma ridícula de trinta moedas de prata?
Tendemos a dar uma resposta negativa. Essa referência será uma alusão a Zac 11,12. Na realidade, seguindo palavras do Pe. Joaquim Carreira das Neves, pode‐
se por em questão se Judas seria mesmo um venal ou um corrupto. Ele amava Jesus como todos os demais. Talvez se diferenciasse dos outros por uma febre política, bem à maneira de alguns grupos religiosos judeus de então. Tudo dá a entender que terá duvidado do Mestre como líder religioso‐político (...). As suas esperanças terão ficado frustradas porque a lógica de Jesus não era a sua lógica.
Ele pensava à maneira do Antigo Testamento e o que aconteceu poderá ter sido Judas a passar uma «rasteira» a Jesus para que ele se assumisse definitivamente (cf. Carreira das Neves, Jesus Cristo, História e Fé, pág. 207).
Se assim foi, Judas pensaria que, entregando Jesus, obrigá‐lo‐ia a começar a revolução que instauraria o “Reino de Deus”.
Como Jesus não reagiu e se deixou prender, Judas terá entrado em desespero e suicidou‐se.
A fuga dos discípulos é verosímil. A ideia era prender Jesus e não todo o grupo. Lucas não menciona essa fuga: tem a ver com o seu estilo de evitar factos lamentáveis ou pouco
edificantes.
e) o processo
Os quatro evangelistas apresentam notáveis diferenças sobre os acontecimentos que se seguiram à prisão de Jesus. Mateus e Marcos falam de duas reuniões do Sanhedrin ‐ uma de noite e outra pela manhã (Mt 26,57; 27,1; Mc 14,53; 15,1).
Lucas fala apenas de uma única sessão, realizada “quando se fez dia” (Lc 22,66).
Arqueólogos descobriram recentemente local onde Jesus poderá ter sido julgado. Encontraram‐se ruínas do que se pensa ter sido o Palácio de Herodes
http://zap.aeiou.pt/arqueologos‐terao‐descoberto‐local‐onde‐
jesus‐cristo‐foi‐julgado‐54513
e) o processo
Historicamente, podemos aceitar que Jesus foi conduzido a casa do sumo‐sacerdote Caifás. Aí, houve um primeiro encontro entre Jesus e vários membros do Sanedrin. Jesus foi acusado, no decurso dessa sessão, de se ter manifestado contra o Templo (cfr. Mc 14,58 e par.) e de se ter apresentado como o Messias, Filho do Deus bendito (Mc 14,61 e par.). É de crer que, durante o interrogatório, Jesus tenha deixado transparecer a sua consciência de estar ligado ao Pai e ao advento do “Reino de Deus”.
Não havia dúvidas: estava a blasfemar e era “réu de morte”. A segunda reunião do Sanedrin não foi um julgamento, mas sim um encontro “para precisar as modalidades das acusações que iriam ter contra Jesus diante de Pilatos” (Carreira das Neves, Jesus Cristo, História e Fé, pág. 241).
Não há dúvida: quem decidiu a morte de Jesus foram os chefes religiosos judeus, certamente preocupados com a sua revolução religiosa e as consequências que daí poderiam advir.
Discute‐se se o Sanedrin teria ou não, na época de Jesus,
competência jurídica para pronunciar uma condenação à morte. Por isso, o historiador não consegue saber, com absoluta certeza, se o
Sanedrin pronunciou uma sentença jurídica, confirmada posteriormente por Pilatos, ou se se contentou apenas em dar uma opinião (uma
proposta) ao procurador romano.
De qualquer forma, parece claro (sobretudo nos textos de Marcos e Mateus) que as autoridades judaicas foram as grandes responsáveis pela morte de Jesus.
O Sanedrin leva, então, Jesus diante de Pilatos, o procurador romano (habitualmente residia em Cesareia marítima; mas vinha a Jerusalém por ocasião das festas, para cuidar da manutenção da ordem pública).
Pilatos era, de acordo com Flávio Josefo, um homem pouco escrupuloso, brutal, que cometeu muitos erros políticos. No entanto, os relatos evangélicos apresentam‐no como alguém que se apercebe da inocência de Jesus e quer salvá‐lo. Tenta libertar Jesus questionando os acusadores sobre o mal (como se Pilatos não encontrasse tal mal), e recordando o costume de libertar um preso por altura da celebração da Páscoa (Mc 15,6‐ ‐11 e par). Tenta também
comover a multidão, apresentando Jesus flagelado (Lc 23,16). No entanto, as autoridades judaicas não transigem: querem a morte de Jesus.
Pilatos, enquanto político, terá querido evitar um motim. Se acontecesse, durante a festa da Páscoa, com tanta gente presente em Jerusalém, teria consequências imprevisíveis. Então, entrega Jesus para ser crucificado. A decisão de Pilatos é o fundamento jurídico para a morte de Jesus.
f) a crucifixão
Uma vez pronunciada a sentença de Pilatos, desencadeou‐se o
processo que conduziu à morte de Jesus. O lugar da execução, fora das muralhas, era um lugar oportuno para que os transeuntes que entravam ou saíam da cidade pudessem presenciar o espectáculo (tinha sempre cariz castigador e didáctico: castiga‐se o culpado;
adverte‐se outros para que não incorram na mesma infracção).
A imposição de que uma pessoa ajudasse o condenado a levar a cruz, não tem nada de improvável (Mc 15,21). Jesus estaria
esgotado pelo tratamento que havia recebido, especialmente pela flagelação. Este cansaço de Jesus é também corroborado pelo facto de Jesus não ter estado muito tempo com vida na cruz (Mc 15,44).
O condenado só levava o braço transversal da cruz. Tratava‐se de uma viga que era pendurada num poste, fixo no lugar do suplício.
Essa viga formava com o poste um T (crux commissa) ou uma cruz (crux immissa).
Como todos os condenados, Jesus levava pendurado ao
pescoço um letreiro que indicava o motivo da condenação (Mc 15,26). Condená‐lo como «rei dos judeus» seria, para as
autoridades romanas um argumento de dissuasão. Procurava‐se desencorajar qualquer pessoa que sentisse a tentação de
sublevar a população por motivos nacionalistas.
Quando Jesus chegou ao lugar do Gólgota, deram‐lhe vinho
misturado com mirra. Era um costume judaico, que se destinava a anestesiar um pouco as dores do condenado. A repartição das
vestes do condenado entre os soldados, era habitual para os romanos.
Jesus morreu suficientemente depressa para que Pilatos ficasse admirado. Os “bandidos” crucificados com Jesus (a palavra grega utilizada para designá‐los parece indicar que se trata de
revolucionários políticos) duraram, sem dúvida, mais tempo. A sua crucifixão ao lado de Jesus dava a tudo aquilo as aparências de um assunto político.
A morte de Jesus teve algumas testemunhas. Próximo,
encontravam‐se algumas mulheres que o seguiam (Mc 15,40). Os discípulos, aparentemente, estão escondidos. Segundo Marcos, foi um membro do Sanedrin que tirou Jesus da cruz (Mc 15,43).
Segundo a lei judaica, era necessário enterrar um executado antes do pôr‐do‐sol.
Se se adopta a cronologia de João ‐ a mais provável ‐ tudo isto aconteceu numa tarde de sexta‐feira, dia 7 de Abril do ano 30 (cfr.
Beaude, Jesus de Nazaret, págs. 190‐193).
g) o sentido da morte de Jesus
Que sentido teve a morte de Jesus? Ele foi a “vítima” que o Pai exigiu, a fim de nos perdoar os nossos pecados? Essa terá sido a linguagem encontrada pelos primeiros cristãos para falar da morte de Cristo. Fundamenta‐se na teologia dos sacrifícios do Antigo
Testamento. Mas à luz do caminho percorrido até hoje, não será, concerteza, a linguagem mais adaptada para nos dar o sentido da morte de Jesus.
A morte de Jesus deve de ser entendida noutro contexto: enquadra‐se com o que foi a sua vida e a sua missão. Desde cedo, Jesus apercebeu‐se que o Pai o chamava a uma missão: anunciar a Boa Nova aos pobres, sarar os corações feridos, pôr em liberdade os oprimidos. Para concretizar este projecto, Jesus passou pelas estradas da Palestina “fazendo o bem” e anunciando a proximidade de um mundo novo, de vida, de liberdade, de paz e de amor para todos. Ensinou que Deus era amor e que não excluía ninguém, nem mesmo os pecadores; ensinou que os leprosos, os
paralíticos, os cegos, não deviam ser marginalizados, pois não eram amaldiçoados por Deus; ensinou que o dinheiro não pode ser o “deus” do homem; ensinou que o homem é o valor mais importante, que deve sobrepor‐se até às mais sagradas leis religiosas; ensinou que ninguém tem o direito de excluir ou escravizar um homem ou mulher, muito menos em nome de Deus; ensinou que são os pobres e os marginalizados os preferidos de Deus e aqueles que têm o coração mais
disponível para acolher a novidade do “Reino”; ensinou que só os que aceitam pôr em causa o seu egoísmo e converter‐se é que são dignos de ser “filhos de Deus”.
O projecto libertador de Jesus entrou em choque ‐ como não podia
deixar de ser ‐ com a atmosfera de egoísmo, de má vontade, de opressão que dominava a Palestina. As autoridades políticas e religiosas sentiram‐
se incomodadas com a denúncia de Jesus: não estavam dispostas a
renunciar a esses mecanismos que lhes asseguravam poder, influência, domínio, privilégios; não estavam dispostos a arriscar e a aceitar a
conversão proposta por Jesus. A pregação do “Reino de Deus” que
convida ao amor, à simplicidade, à humildade, ao perdão, ao serviço, veio incomodar todos os instalados.
A morte de Jesus é a consequência lógica do anúncio do “Reino”:
resulta das tensões e resistências que o anúncio do “Reino” provoca entre os dominadores deste mundo.
Se podemos dizer que a morte de Jesus só se entende no
contexto da sua vida, também podemos dizer que a morte de
Jesus é o culminar da sua vida: é a afirmação mais radical daquilo que Jesus pregou: o amor que se dá até às últimas consequências.
Na cruz, vemos aparecer esse homem novo, que ama os outros com radicalidade e que não tem medo de lutar, até ao fim, contra todas as causas objectivas que causam medo, exploração,
opressão, sofrimento. A cruz acaba por ser símbolo dessa vida nova de comunhão e de fraternidade que Jesus veio iniciar.
Na cruz, nasce o homem novo: o homem que não tem medo de se dar a si próprio para eliminar aquilo que rouba a vida e a felicidade e que, em última análise, é o pecado.
.2 A RESSURREIÇÃO DE JESUS
Os “Evangelhos” não descrevem a ressurreição de Jesus.
Informam‐nos, apenas, sobre o sepulcro vazio e referem as aparições do ressuscitado.
Mesmo em relação a estes dois pontos, os relatos não são coincidentes quanto aos pormenores; são‐no, no entanto,
quanto ao essencial.
a) o sepulcro vazio
Todos os evangelistas afirmam, embora de diferentes maneiras, que o túmulo de Jesus foi encontrado vazio na manhã do primeiro dia da semana.
Lucas apresenta um grupo de mulheres a ir ao sepulcro de Jesus para ungir o corpo com aromas e perfumes; no entanto, encontram o túmulo vazio e recebem de “dois homens com trajes resplandecentes”
a notícia de que Jesus ressuscitou (cfr. Lc 24,1‐12). Marcos e Mateus, por seu lado, falam de um grupo de mulheres que, antes de entrar no túmulo, reparam que a pedra da porta do sepulcro foi removida. Um anjo (Mateus) ou um jovem vestido com uma túnica branca (Marcos), anunciam que Jesus ressuscitou e convidam as mulheres a comprovar que o seu corpo não está ali (Mc 16,1‐8; Mt 28,1‐7).
Que pensar destes dados?
Muitos consideram o dado do sepulcro vazio como ‘não histórico’: seria uma construção da comunidade para afirmar a fé na ressurreição. No entanto, se este dado fosse uma construção da comunidade, como é que a comunidade teria posto um grupo de mulheres como
testemunhas (recordar que, no contexto da sociedade palestina de
então, o testemunho das mulheres não tinha qualquer valor jurídico, por elas serem consideradas naturalmente mentirosas)?
Também se deve observar, como o exegeta protestante P. Althaus, que a mensagem pascal não poderia ter‐se mantido em Jerusalém, nem durante uma hora, se o sepulcro de Jesus não estivesse, de facto, vazio (cfr. Dorado, A Bíblia Hoje, pág. 268).
Outros consideram que o facto de o túmulo ter aparecido vazio não
significa nada: o corpo poderia ter sido roubado, transladado para outro lugar ou, até, reanimado (no caso de a morte de Jesus não ter sido real, mas apenas aparente). Também se fala no “túmulo errado”: como Jesus foi sepultado à pressa, as mulheres não teriam fixado bem o autêntico túmulo de Jesus e teriam procuraram o corpo no túmulo errado...
De facto, estas objecções devem ter feito sentido para os discípulos. É por isso que, a princípio, ninguém acredita na ressurreição (os textos
mais tardios ‐ de Mateus e de João ‐ têm, no entanto, o cuidado de dizer que o corpo de Jesus não foi roubado). Os próprios discípulos de Emaus (cfr. Lc 24,22‐24) recusam acreditar que o sepulcro vazio signifique que Jesus ressuscitou.
O sepulcro vazio parece ser um facto; mas, por si só, não constitui uma prova da ressurreição de Jesus. “Os discípulos não apelam nunca à
descoberta do sepulcro vazio para robustecer a fé da Igreja ou para refutar e convencer os adversários. A fé no ressuscitado é, pois, independente do sepulcro vazio. Tal sepulcro não determina o
acontecimento pascal; quanto muito, apenas o ilumina. O sepulcro vazio não é um artigo de fé: não é fundamento nem objecto da fé pascal.
Segundo a mensagem neo‐testamentária, não é preciso acreditar
através do sepulcro vazio e, muito menos, no sepulcro vazio. A fé cristã não convoca o sepulcro vazio, mas o encontro com o Cristo vivo: “Porque buscais entre os mortos aquele que está vivo”? (Lc 24,5) (Hans Kung, Ser Cristiano, págs. 463‐464).
b) as aparições do ressuscitado
Os relatos das aparições de Jesus ressuscitado não são coincidentes.
São narrativas autónomas, embora com um objectivo único ‐ transmitir a fé na ressurreição.
O primeiro testemunho é de Paulo e aparece na primeira carta aos Coríntios. Paulo, pretendendo reforçar a fé dos Coríntios na
ressurreição, diz que Jesus ressuscitado “apareceu a Cefas e, em
seguida aos doze. Depois, apareceu a mais de quinhentos irmãos de uma só vez, a maior parte dos quais ainda vive, enquanto alguns morreram. Depois, apareceu também a Tiago e, a seguir, a todos os apóstolos. E em último, apareceu‐me também a mim...” (1 Cor 15,5‐8).
Os outros relatos são muito variáveis. Marcos, por exemplo, termina o seu
“Evangelho” com a apresentação do sepulcro vazio e o anúncio da ressurreição às mulheres (cfr. Mc 16,1‐8) (vimos já que os relatos marcianos de aparição de Jesus ressuscitado ‐ cfr. Mc 16,9‐20 ‐ são um acrescento posterior que não fazia parte da obra original); Lucas apresenta a aparição aos onze exclusivamente em Jerusalém (com uma referência a Emaús) (Lc 24,13‐53); Mateus apresenta as aparições de Jesus ressuscitado aos discípulos, na Galileia (Mt 28, 28,16‐20); e, finalmente, João fala de aparições em Jerusalém (cfr. Jo 20,19‐29) e na Galileia (cfr Jo 21,1‐14).
“Se estivermos bem atentos ao estudo das aparições, facilmente chegamos à conclusão que estes relatos têm a ver com a óptica própria de cada evangelista, seja cristológica, seja eclesiológica, ao mesmo tempo na dependência da
tradição eclesial (catequética e pastoral) e das testemunhas oculares” (Carreira das Neves, Jesus Cristo, História e Fé, pág. 298).
Os relatos das aparições do ressuscitado não são, pois, reportagens gravadas dos acontecimentos. Também devemos renunciar ao outro extremo: considerá‐los como simples invenções da Igreja primitiva...
Abandonadas essas posições extremas, ficamos com o facto das
aparições, atestadas por Paulo e pelos evangelistas: não podemos, sem mais, negar toda a confiança ao testemunho de Paulo, dos evangelistas e desses quinhentos irmãos de que Paulo fala.
Em relação aos relatos que chegaram até nós, temos de ver neles catequese feita pela comunidade cristã primitiva, a partir dos
testemunhos daqueles que encontraram Jesus vivo e ressuscitado. No estado actual dos textos, é muito difícil perceber o que aconteceu: eles reflectem a fé da comunidade em Jesus ressuscitado (embora essa fé parta dos testemunhos).
c) a ressurreição: um facto histórico ?
A ressurreição de Jesus será um facto constatável pela ciência histórica?
De forma nenhuma. Estamos diante de algo que escapa à observação
histórica e que se situa no âmbito da fé. A ciência histórica não tem meios para comprovar algo que ultrapassa o âmbito humano.
No entanto, dizer que a ressurreição de Jesus não pode ser
comprovada pela ciência histórica, não significa que ela não seja um acontecimento real. Alguns críticos consideraram que a ressurreição de Jesus, uma vez que não podia ser comprovada pela história, era apenas um produto da imaginação ou da idealização da comunidade crente; mas é um erro crasso considerar que é real apenas aquilo que pode ser
objectivamente comprovado pela história.
Que valor histórico dar aos relatos de ressurreição que chegaram até nós?
Claude Geffré considera que os textos não nos apresentam informadores, mas testemunhas da ressurreição. O informador seria alguém que procura transmitir uma informação objectiva sobre um acontecimento; a testemunha, neste
contexto, não é aquele que relata de forma objectiva e racional o que viu, mas é um crente, cujo testemunho não é neutro: está influenciado pela dimensão da fé (Claude Geffré, Le Christianisme au risque de l’interpretation, págs. 107‐128).
A ressurreição de Jesus, tal como nos é transmitida pelos textos que
chegaram até nós, é um acontecimento interpretado, que não se pode atingir a não ser a partir da linguagem própria da fé pascal. É por isso que temos uma multiplicidade de relatos: trata‐se de uma experiência de fé, que cada um “diz”
na sua linguagem própria. “O testemunho dos apóstolos não é uma crónica de acontecimentos, mas o acontecimento da palavra que resulta inseparavelmente da experiência de um fenómeno real e da interpretação crente” (Carreira das Neves, Jesus Cristo, História e Fé, pág. 320).
Há, no entanto, um facto que pode ser verificado
historicamente: a espantosa transformação operada nos discípulos.
De um grupo isolado, com medo, frustrado, desanimado vemos, de repente, nascer uma comunidade viva, decidida, animada, cheia de esperança e que parte pelo mundo a anunciar o projecto libertador de Jesus de Nazaré. É esta transformação que é preciso explicar; e a explicação torna‐se mais fácil à luz dos relatos da ressurreição: foi o encontro com Jesus vivo e ressuscitado que transformou os
discípulos e os tornou testemunhas a partir de Jerusalém e até aos confins do mundo.
d) o sentido teológico da ressurreição de Jesus
Para Jesus, a ressurreição ou glorificação, significa a sua proclamação solene como Filho de Deus, como Messias libertador, como Kyrios
(“Senhor”) dos homens e do universo. É a prova que Jesus veio do Pai. É a demonstração de que Deus não abandonou Jesus na sua luta contra o egoísmo, a opressão, o pecado.
Para nós, a ressurreição de Jesus significa, em primeiro lugar, uma libertação. Em Cristo, a morte é vencida e inaugura‐se uma nova vida. A partir de Cristo, o homem não precisa mais de condicionar os seus actos e atitudes com medo das forças inibidoras da morte. Cristo mostrou que o fim último do homem não é o desaparecimento e o esquecimento, mas uma vida nova ‐ a vida de Deus. A partir daqui, o homem pode enfrentar a vida com alegria, com tranquilidade e com esperança, dando um
sentido novo aos seus actos.
Em segundo lugar, a ressurreição de Jesus mostra que faz sentido lutar pela verdade, pela justiça e pela paz, contra os mecanismos de opressão e de
injustiça. Não há morte para quem entrega a sua vida na luta pela fraternidade:
esses tornam‐se filhos de Deus e, como Jesus, serão glorificados. Sempre que o homem se esforça ‐ à imagem de Jesus ‐ por construir um mundo novo, está a construir uma vida nova, para si e para os seus irmãos. Deus garante essa vida nova a quem se esforça por viver de acordo com dinamismos de amor, de
justiça, de fraternidade.
Em terceiro lugar, a ressurreição de Jesus é uma manifestação do “Reino de Deus” na sua plenitude. É a amostragem desse mundo novo de homens novos que Jesus veio semear. Apresenta aquilo que os servidores do “Reino” podem esperar se continuarem a viver nessa dinâmica; anuncia um mundo onde todos ‐ mesmo o pobre, o oprimido, o marginalizado, o injustiçado ‐ terão vida em
abundância.
Há algo que é fundamental ter em conta: a ressurreição de Jesus não é um acontecimento isolado do passado, que se torna para nós uma
simples recordação; mas é algo cuja força sentimos, que transforma a nossa vida e lhe dá sentido, que nos inspira na construção de um mundo de paz e de justiça, que nos transmite confiança e esperança. É,
portanto, algo que está vivo, cujo dinamismo actua no nosso coração e que, através de nós, transforma o mundo.
A partir da ressurreição de Jesus, estamos, todos os dias, a
ressuscitar ‐ nós, as coisas, o mundo. Porque este dinamismo de vida que Jesus vivo e ressuscitado nos transmitiu, continua a agir em nós e, através de nós, a transformar o mundo.
.3 SEGUIR JESUS CRISTO HOJE
Hoje, Jesus de Nazaré está presente e actuante naqueles que, no vasto âmbito da história e da vida, levam adiante a causa do
“Reino de Deus”. Independentemente da coloração política ou ideológica e da adesão a alguma religião ou credo cristão,
sempre que o homem busca o bem, a justiça, o amor, a
solidariedade, a comunhão, o entendimento entre os homens, aí está presente Jesus ressuscitado. Sempre que o homem se
empenha em superar o próprio egoísmo e em construir um mundo mais fraterno e mais justo, está a construir o “Reino de Deus”
No entanto, Jesus está hoje presente no mundo de uma forma especial nos seus seguidores ‐ os cristãos. Ser cristão não é copiar os gestos de Jesus; ser cristão, significa possuir a mesma atitude e o mesmo espírito de Jesus, incarnando‐se dentro da realidade
concreta em que estamos inseridos. Significa, sobretudo,
empenhar‐se para que haja um mundo de paz, de fraternidade, de amor, de abertura e entrega a Deus. Isso implica denunciar e
combater tudo o que gera ódio, divisão, ateísmo, em termos de estruturas, de práticas, de valores, de ideologias; significa anunciar e realizar numa práxis comprometida, amor, solidariedade,
fraternidade na família, na escola, no sistema económico, nas relações políticas.
Este comprometimento levará, inevitavelmente, a crises, a confrontos, a sofrimentos de toda a ordem. No caso de Jesus, levou‐o à cruz; mas a
ressurreição mostrou que este combate vale a pena e que a morte não deve meter medo a quem luta para construir este mundo novo.
Ser cristão significa ainda ‐ à imagem de Jesus ‐ solidarizar‐se com aqueles que são crucificados neste mundo: os que sofrem violência, os que são
explorados, os que são marginalizados, os que são espoliados dos seus direitos...
Defendê‐los, promovê‐los, atacar todas as práticas que roubam a humanidade a homens e mulheres, assumir a causa da libertação de todos os escravos, é a tarefa do cristão.
Jesus viveu assim. A cruz foi a consequência lógica deste compromisso. Mas ele mostrou‐nos a todos que viver comprometido com esta causa, é viver a
partir de um dinamismo que a morte não pode vencer.