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Conhecendo Violências Sofridas por Travestis que Vivem no Centro de São Paulo

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Academic year: 2019

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Denis Gonçalves Ferreira

Conhecendo Violências Sofridas por Travestis que

Vivem no Centro de São Paulo

Mestrado em Psicologia Social

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Denis Gonçalves Ferreira

Conhecendo Violências Sofridas por Travestis que

Vivem no Centro de São Paulo

Mestrado em Psicologia Social

SÃO PAULO 2016

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Banca Examinadora

________________________________________________

________________________________________________

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Agradecimentos

Considero essa uma tarefa árdua. Sou uma pessoa muito agraciada pela vida e pelo Amor, a minha volta tenho pessoas incríveis que me apoiam e sempre estão por perto para ajudar e me fazer feliz. Sendo assim, começo agradecendo a minha família, mãe, pai, Viviane e Andréa, sem vocês nada disso seria possível. Ser o primeiro em uma família de muitos me alegra e me faz pensar que parte disso é em decorrência da educação que recebi de vocês.

Dizem que os amigos são os irmãos que escolhemos, eu confesso que tenho muitos e é impossível colocar aqui o nome de todos que ajudaram a transformar este sonho em realidade. Obrigado aos amigos de Piracicaba que sonham comigo há muito tempo, Cesar, Déia, Carol, Laine, Raquelzinha e Loro, vocês são incríveis. Obrigado aos meus amigos de São Paulo, quando eu mais precisei me socorreram, Rodrigo, Rafa (que não é de São Paulo, mas já sinto como se fosse) e Aline, sou absurdamente grato por vocês existirem na minha vida.

Obrigado ao Franklin por seu apoio e compreensão, você é e tem sido fundamental para a construção de meus projetos e sonhos futuros.

Obrigado aos amigos da PUC, Glaucia, você sabe, sem você esse título tinha continuado na esfera do sonho, meus sinceros agradecimentos a você e todo seu carinho. Cinara, Eliz, Diana, Lidiane, Julia e Claúdia, ah, como foi bom ter vocês junto comigo nessa jornada! Ao pessoal do Nehpsi, muito obrigado também por todas as contribuições nesta pesquisa. Meus agradecimentos também ao pessoal do CRD.

Obrigado ao Saulo que foi preciso como um bisturi na mão de um cirurgião, na hora que eu estava esmorecendo você veio para me ajudar, muito obrigado amigo.

Obrigado a minha orientadora, Maria do Carmo, sempre muito segura nas suas contribuições, sou grato por me ajudar a amadurecer e realizar esta pesquisa.

Obrigado aos professores e funcionários da PUC que estiveram mais próximos a mim neste período intenso, Odair, Ciampa, Bader, Salvador e Marlene, seus conhecimentos me inspiraram e continuam me inspirando na construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

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RESUMO

Na presente pesquisa analisou-se a história oral de três travestis que vivem na região central da cidade de São Paulo com o objetivo de conhecer as violências a que são submetidas ao longo de suas vidas e as formas de enfrentamento que elas desenvolveram. Ao analisar as histórias de vida que as travestis compartilharam, percebeu-se que elas são historicamente vítimas de vários tipos de violações de direitos e outras violências diversas. Visando proporcionar uma discussão detalhada das situações relatadas nas entrevistas, as violências sofridas foram separadas em físicas e psicológicas. O contexto familiar, a vivência na rua, a relação com a polícia e com os clientes apareceram como ambientes e ou situações nos quais as violências físicas e psicológicas ocorreram com maior frequência. As três entrevistadas são pessoas que não moram com suas famílias, não concluíram os estudos em decorrência de preconceitos no ambiente familiar e escolar; uma delas foi usuária de crack e as duas outras ainda são, embora façam uso esporádico; uma mora em pensão, outra está em situação de rua e a terceira vive com um grupo em uma “ocupação”; todas já se prostituíram, porém duas, por possuírem companheiros, deixaram a prostituição; duas são beneficiárias de programas sociais e apenas uma não teve experiência de detenção policial. De modo geral as travestis conseguiram desenvolver estratégias de enfrentamento diante das violências sofridas, tais como: esquiva, uso do riso, revide violento ao serem agredidas e mudanças de cidade. Concluiu-se a pesquisa com a sugestão de que outras pesquisas sejam realizadas a fim de aprofundar o conhecimento sobre as violências sofridas por travestis e suas formas de resistência e enfrentamento. Sugere-se também que estas pesquisas possam ser base de dados para implementação de políticas públicas de prevenção e enfrentamento à violência.

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ABSTRACT

In this research, we analyzed the oral history of three transvestites who live in the downtown area of the City of São Paulo. Our objective was to know about the violence to which they are subjected throughout their lives and ways of resistance they have developed. We could see through the life stories that transvestites have historically been victims of various types of rights violations and other miscellaneous violence. We could see through the life stories, the transvestites have historically been victims of various types of rights violations and several other violence. In order to provide a detailed discussion of the situations reported in the interviews, we separate violence suffered in physical and psychological. The family context, the experience on the street, the relationship with the police and with clients appeared as environments or situations in which the physical and psychological violence more happened in the stories studied. The three interviewed are people who do not live with their families and not have graduated because of prejudice in the family and school environment; one was crack user and the others are still, although they make sporadic use; one lives in a boarding house, another is in the streets and the third lives with a group in an "invasion”; all have prostituted themselves, but two, because they have partners, left prostitution; two are beneficiaries of social programs and only one had no police detention experience. Overall transvestites developed resistance strategies in the face of sustained violence such as: avoidance, use of laughter, violent retaliation by being beaten and migration. We concluded the research with the suggestion that further research be conducted to deepen knowledge about the violence suffered by transvestites and their forms of resistance and confrontation, we also suggest that these studies can be database for implementation of public policies to prevent and combating violence.

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LISTA DE SIGLAS

ABHO – Associação Brasileira de História Oral

BO – Boletim de Ocorrência

CFP – Conselho Federal de Psicologia

CID – Classificação Internacional de Doenças

CRD – Centro de Referência e Defesa da Diversidade

CRT – Centro de Referência e Treinamento Dst/Aids-SP

ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio

LGBTT – Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais

NEHPSI – Núcleo de Estudos em História da Psicologia

SMADS – Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social

SMDHC – Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania

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SUMÁRIO

1.1 A CONSTRUÇÃO DO PROJETO...1

1.2 REVISÃO DA LITERATURA...3

2. CONSIDERAÇÕES SOBRE MÉTODO...11

2.1 HISTÓRIA ORAL COMO POSSIBILIDADE...11

2.2. PRIMEIRA ENTREVISTA...16

2.3. SEGUNDA ENTREVISTA...17

2.4. TERCEIRA ENTREVISTA...18

2.5. O PÓS-ENTREVISTA...19

3.NARRATIVAS DAS HISTÓRIAS DE VIDA...21

3.1. ENTREVISTADA 1...21

3.2. ENTREVISTADA 2...27

3.4. ENTREVISTADA 3...31

4.ANÁLISE E DISCUSSÃO...38

4.1.VIOLÊNCIAS FÍSICAS...39

4.2.VIOLÊNCIAS PSICOLÓGICAS...45

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS...51

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1.1 A CONSTRUÇÃO DO PROJETO

Narrar a construção do projeto implica contar um pouco da minha história e como fui levado a interessar-me por estudar sexualidade e seus desdobramentos no comportamento, nas emoções e na sociedade.

Antes de ingressar na graduação em Psicologia me aproximei de travestis que se prostituíam, esta aproximação se deu por múltiplos fatores, dentre eles a questão social. Ouvindo suas histórias pude perceber que as experiências sexuais relatadas por elas, ainda crianças ou adolescentes, configuravam abuso sexual.

Durante a graduação com bolsa de Iniciação Científica, pesquisei as alterações no comportamento sexual de adultos que haviam sido abusados sexualmente na infância, os resultados me deram pistas a respeito da diversidade sexual apresentada pelos sujeitos que participaram do estudo1 e me lembraram das travestis que havia conhecido anos antes.

Após a formação como psicólogo, o trabalho de Iniciação Científica proporcionou convites para falar de abuso sexual em comunidades que enfrentavam esta problemática. Nestas palestras fiz contato com pessoas e temas que me instigaram sobre sexualidade. A prática da profissão no consultório também proporcionou esta aproximação, porém relatos de questões sociais, tais como ouvi quando me aproximei

1 Vários autores relataram, em seus estudos, que algumas pessoas que sofreram abuso sexual na infância,

(11)

das travestis e transexuais antes da graduação, não chegavam ao consultório. Travestis e transexuais, na maioria das vezes, não acessam serviços de saúde e assistência social.

Como consequência do meu trabalho com palestras, conheci pessoas que trabalham com a população em condições de vulnerabilidade social no Centro deSão Paulo, o que inclui as travestis. A convite destes trabalhadores sociais, participei como voluntário em algumas ações e o contato com as travestis me fez questionar: como sobrevivem às condições tão adversas de desenvolvimento marcado por toda sorte de violências? Estes sujeitos são conhecidos pelas pessoas?

Partindo destas perguntas ingressei no mestrado desejando conhecer as travestis de maneira sistemática, analisando suas histórias de vida. Deste modo, meu objetivo nesta pesquisa foi dar voz às travestis do centro da cidade de São Paulo, a fim de identificar violências sofridas ao longo da vida e formas de enfrentamento que elas desenvolveram.

Neste percurso estudei a História Oral descrita por Thompson (1992), como um instrumento de mudança capaz de produzir uma sociedade mais justa, e utilizada por Meihy (2000), para dar voz à sujeitos historicamente esquecidos pela história oficial, o que ajudou na escolha do método a ser utilizado.

Maria Isaura Pereira de Queiroz, ao falar de pesquisa qualitativa com método de história oral, afirma: “Para as Ciências Sociais, o importante não é armazenar

documentação nem reconstruir antigas sociedades ou épocas, mas atingir um problema

da estrutura social por meio da coleta de dados (Queiroz, 1988, p 31 apud Pereira,

1991). Nesse sentido nos apropriaremos da visão sociológica para pesquisar as travestis na intenção de pensar a realidade social na qual estão inseridas ao longo da vida.

Partindo desta compreensão, a escolha do centro de São Paulo como campo de pesquisa se deu porque foi considerado como um lugar de alta vulnerabilidadesocial2. Os fatores que contribuem para esta realidade se destacam na facilidade do acesso ao uso de drogas ilícitas, na atividade da prostituição como mantenedora do consumo

2 De acordo com o Plano Nacional da Assistência Social [...] “a vulnerabilidade social materializa-se nas

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abusivo de drogas, no seu histórico vinculado às atividades da sexualidade, e na concentração maciça de pessoas provenientes de diversos lugares, algumas vieram para São Paulo em busca de novas oportunidades que não se concretizaram e por isso estão em situação de rua e mendicância.

1.2 REVISÃO DA LITERATURA

Com indicação dos professores do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da PUC/SP, que haviam orientado pesquisas com temas semelhantes, e alguns alunos, tive acesso a pesquisas que ajudaram a compor a bibliografia consultada e lida para a realização deste capítulo (Garcia, 2008; Leite Jr, 2008; Ornat, 2008; Carvalho, 2014; Brum, 2014; Busin, 2015). Além destas indicações, os colegas do Projeto Muriel3 contribuíram com suas próprias pesquisas, sugerindo a leitura de seus textos (Pelúcio, 2007; Barbosa, 2010). As pesquisas indicadas concentram-se nas áreas de Ciências Sociais, Antropologia, Geografia e Psicologia.

Os trabalhos acima citados me forneceram pistas de outros autores: na Biblioteca Nacional de Teses e Dissertações, do IBICT, encontrei suas pesquisas na íntegra e escolhi algumas pela afinidade com o tema e pela compreensão social que os autores tinham das questões referentes às travestis, sendo eles das áreas de Sociologia, Educação e da Psicologia (Vale, 2005; Nogueira 2009 e 2013; Almeida, 2009; Bonfim, 2009; Pereira, 2011; Müller, 2011; Davi, 2013).

A presente pesquisa não visa aprofundar a discussão feita por Leite Jr. (2008) e Barbosa (2010) a respeito das diferenças entre travestis e transexuais. Há um consenso entre os autores no que diz respeito a considerar a identificação de gênero como algo fluido e performático, ou seja, a mesma pessoa pode se apresentar como travesti ou transexual. Para as travestis pesquisadas neste estudo ficou clara essa fluidez, visto que durante a entrevista elas se identificaram como travesti e transexual em momentos diferentes.

3 Projeto de Pesquisa financiado pela Fapesp com apoio da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo e

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Pereira (2011) afirma que:

O que menos importa é a definição de uma identidade travesti. O fazer travesti é que desestabiliza e promove a produção de um novo paradigma estético da subjetividade, com nuances micropolíticas que envolvem o processo de enunciação” (Pereira, p. 97, 2011).

Deste modo focou-se no discurso das travestis pesquisadas sem tentar encaixá-las ou submetê-encaixá-las em um grupo, permitindo que eencaixá-las falem de suas experiências de fazerem-se travestis e através disso perceber a fluidez presente em suas identificações ao longo da vida, valorizando, assim, a subjetividade.

Entretanto considerou-se pertinente apontar que, para nós, as travestis ou transexuais pertencem a um grupo maior, as pessoas transgênero; isso significa que a categoria transgênero possui ao menos dois tipos de separação: a travesti e a(o) transexual (mulher transexual ou homem transexual). Geralmente a travesti se identifica com o gênero feminino, porém sente-se como se pertencesse a um terceiro sexo, enquanto as pessoas transexuais podem ser masculinas ou femininas, identificando-se sempre com o gênero oposto ao sexo de nascimento (Jesus, 2012).

Leite Jr. (2008) e Barbosa (2010) dizem que a transexualidade está associada a questão médica porque ela ainda é mantida nos manuais de diagnósticos como um Transtorno de Identidade Sexual4. Porém esta pesquisa não considerou os sujeitos pesquisados como portadores de disforias ou transtornos, o que reforça o movimento do Conselho Federal de Psicologia (CFP) que possui uma campanha para despatologizacão das identidades trans5.

Partindo dessa compreensão podemos avançar na apresentação das pesquisas lidas. Várias delas destacam em suas análises problemas ligados às transformações corporais das travestis, inclusive usam a palavra “corpo”, “corporalidade” e “transformações corporais” em seus títulos (Garcia, 2007; Leite Jr, 2008; Nogueira, 2009; Pereira, 2011; Davi, 2013). De modo geral a compreensão dos autores sobre os corpos das travestis diz respeito a serem mais que apenas instituições físicas, mas um

4 Na época da realização destas pesquisas a classificação era Transtorno de Identidade de Gênero,

atualmente a versão atualizada do DSM 5 dá o nome à transexualidade de disforia de gênero.

5 O Conselho Federal de Psicologia (CFP) mantém uma campanha nacional com o objetivo de fomentar a

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instrumento político que é regido por normas sociais e que, sem intencionalidade, ajudam a questionar padrões de gênero construídos sob a influência da heteronormatividade6.

Algumas pesquisas consideram que o processo de feminilização pode ser a questão central para o estigma que as travestis sofrem durante a vida, a justificativa seria porque transitam entre os gêneros e colocam em questionamento os padrões vigentes, que foram e são construídos socialmente e são reforçados pelo discurso heteronormativo (Vale, 2005; Garcia, 2007; Pereira, 2011; Davi, 2013).

Nogueira (2009) afirma que ao mesmo tempo em que as transformações corporais são subversivas, podem ser também uma procura de reprodução dos padrões instituídos e que o corpo é um lugar de interferência política, pessoal e comercial, concluindo que:

[...] as travestis, mesmo diante dos riscos, deformações, mutilações e dores, optam pelas transformações corporais, pois é a partir delas que conseguem afirmar seus desejos de adequação. Assim, as transformações corporais se constituem como essenciais para que as travestis se identifiquem com a estética feminina, levando-as a recorrer tanto às técnicas da biotecnologia moderna, com implantação de próteses de silicone, depilação sofisticada, correções cirúrgicas e dermatológicas, tratamentos hormonais e cosméticos de última geração, quanto às técnicas de aplicação de silicone líquido industrial... (Nogueira, 2009 p. 74)

Em resumo, os autores avançam no sentido de legitimar as transformações corporais como importantes na crítica ao modelo hegemônico, porém Amorim, Vieira e Brancaleoni, (2013) sugerem maior investimento em políticas de redução de danos devido aos ricos que estes procedimentos colocam a vida.

O que também pôde ser observado nas pesquisas lidas é que vários autores usam a Teoria Queer7 ou Construcionismo Social para compreender as travestis e estes trabalhos estão concentrados nas áreas de Psicologia, Ciências Sociais e Antropologia (Vale, 2005; Pelúcio, 2007; Garcia, 2007; Leite Jr, 2008; Nogueira, 2009; Barbosa,

6 De acordo com Louro (2008) a heteronormatividade é um tipo de norma social compulsória à

heterossexualidade, atribuindo a ela maior importância e considerando qualquer tipo de comportamento diferente como anormal.

7 De forma reduzida a Teoria Queer pode ser explicada como uma compreensão teórica que expressa o

interesse de desconstruir o discurso que valoriza o masculino e o heterossexual em detrimento das demais variações. Para Louro (2008) esta teoria começou a se consolidar por volta dos anos 90, com a publicação

do livro “Problemas de Gênero” (Gender Trouble) de Judith Butler, porém considera as décadas de 70 e

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2010; Pereira, 2011; Busin, 2015). Partindo desta compreensão, os autores consideram o gênero como algo fluido e performático, o que significa dizer que os padrões de gênero masculino e feminino estabelecidos não são necessariamente correspondentes a construção cultural dos povos, ou seja, as diversas culturas expressam gênero e sexualidade de formas diversas, não existindo um tipo específico de como ser homem ou mulher nas sociedades. A rigidez imposta historicamente em como ser homem ou mulher implica na criação de padrões excludentes. Nestes grupos excluídos estão as travestis, sendo assim, um grupo marginalizado.

De acordo com Leite Jr (2008) e Barbosa (2010), é possível observar que o discurso a respeito da sexualidade vem sendo historicamente construído na tentativa de classificar o normal e o anormal, produzindo, assim, marginalizados. Esses autores afirmam que a Teoria Queer é uma tentativa de desconstruir o discurso médico-científico e moral que visou classificar as pessoas em padrões rígidos de sexualidade e gênero. Deste modo, parece haver um consenso entre os pesquisadores na crítica ao machismo e à heteronormatividade presentes na cultura brasileira, considerando que a travesti está em constante transformação e mudança. (Vale, 2005; Pelúcio, 2007; Garcia, 2007; Leite Jr, 2008; Nogueira, 2009; Barbosa, 2010; Pereira, 2011; Busin, 2015).

A prostituição é um tema recorrente nas pesquisas sobre travestis, apesar de se tratar de um tema polêmico por envolver questões culturais, religiosas e morais, os autores lidam com ele para além destas questões. Algumas pesquisas estudaram especificamente travestis que se prostituíam (Vale, 2005; Pelúcio, 2007; Garcia, 2007; Ornat, 2008; Nogueira, 2009; Bonfim, 2009; Müller, 2011; Davi, 2013; Brum, 2014;). Estes autores concordam que a prostituição se torna a alternativa existente para a subsistência destes sujeitos. As travestis pesquisadas eram pessoas que não terminaram os estudos e saíram de casa ainda adolescentes, o que não permitiu a qualificação para o mercado de trabalho, restando o trabalho sexual como único meio de ganho econômico.

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social desejada pelas travestis, já que várias delas são de famílias de baixa renda (Vale, 2005; Pelúcio, 2007; Garcia, 2007; Ornat, 2008; Nogueira, 2009; Bonfim, 2009; Barbosa, 2010; Nogueira, 2013; Müller, 2011; Davi, 2013; Brum, 2014; Busin, 2015).

Müller (2011) pesquisou casais compostos por homens e travestis e afirma que mesmo em uma união afetiva estável as travestis recorrem à prostituição, visto que não conseguem trabalho formal por não possuírem escolaridade adequada e por transgredirem as normas. Pelúcio (2007) e Busin (2015), consideram que a imagem da travesti está ligada diretamente à prostituição mesmo Busin não tendo pesquisado apenas pessoas ligadas a prostituição.

Brum (2014) fez uma revisão das pesquisas publicadas na Scielo a respeito das nomeações às práticas de prostituição de travestis e transexuais e concluiu que as percepções sociais relacionadas às travestis estão vinculadas à prostituição, reforçando no imaginário social a ideia de que a travesti é um sujeito apenas de práticas sexuais, desconsiderando todas as suas possibilidades de ação no mundo.

O perfil das travestis apresentado pelos pesquisadores tem sido geralmente de pessoas nascidas em famílias pobres, que sofreram agressões domésticas desde crianças, deixaram o lar na adolescência, que vivem com HIV, usam drogas e se prostituem (Vale, 2005; Pelúcio, 2007; Garcia, 2007; Ornat, 2008; Nogueira, 2009; Bonfim, 2009; Barbosa, 2010; Müller, 2011; Nogueira, 2013; Davi, 2013; Busin, 2015). Apesar de terem este perfil, alguns autores dizem que não consideram as travestis como vítimas. Eles afirmam que elas são capazes de ir atrás de seus objetivos pessoais, lidam com situações difíceis da vida de forma criativa e migram em busca da realização de projetos de vida, o que as torna protagonistas de suas histórias e não vítimas (Vale, 2005; Garcia, 2007; Nogueira, 2013; Busin, 2015).

Outra informação recorrente ainda a respeito do perfil das travestis é o uso abusivo de drogas. Os autores relatam os tipos usados (injetáveis, cocaína, crack, maconha e outras) e o uso diário em parte dos casos relatados. O acesso à droga geralmente acontece com a cafetina que exerce também a atividade de traficar (Vale, 2005; Pelúcio, 2007; Garcia, 2007; Ornat, 2008; Nogueira, 2009; Bonfim, 2009; Barbosa, 2010; Müller, 2011; Nogueira, 2013; Davi, 2013; Busin, 2015).

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concluem que as travestis enfrentam faltas de todas as ordens e sugerem maior investimento em políticas de redução de danos no que diz respeito ao uso de drogas.

Denizart (1997) pesquisou durante pelo menos três anos o cotidiano das travestis do Rio de Janeiro e afirma que o processo de se travestir tem três fases: a primeira seria a enrustida, posteriormente assume-se a homossexualidade e por fim assume-se ser travesti. Davi (2013) supera as fases propostas por Denizart apresentando cinco fases: vivências iniciais de travesti; fazendo o corpo; o corpo desvelado na pista; movimentos do ser travesti; sonhos e projetos. Para este autor fica clara a diferença entre orientação sexual e identidade gênero, ou seja, na sua pesquisa não há associação de travestilidade com homossexualidade. Já algumas travestis que participaram da pesquisa de Busin (2015) relatam que se identificam como homossexuais, ou seja, apesar de haver um avanço no que diz respeito ao conhecimento sobre identidade de gênero e orientação sexual, as travestis da pesquisa de Busin, apresentam em suas identificações uma fluidez que não é rígida como é esperada das manifestações da sexualidade.

Parece ser unânime entre os autores pesquisados o relato das violências sofridas pelas travestis ao longo da vida. Todas as pesquisas lidas relatam este fenômeno e alguns autores que o tornaram objeto de suas pesquisas (Vale 2005; Garcia, 2007; Bonfim, 2009; Carvalho, 2014; Busin, 2015).

Vale (2005) diz que “toda a trajetória de um[a] travesti ou transgênero

rodeada de violência...” (p. 132) e “Diversas modalidades de violência participam na

construção da subjetividade de uma pessoa travesti ou transgênero…” (Vale, 2005 p.

162).

Garcia (2007) afirma que

A violência era onipresente no universo das travestis de baixa renda estudadas. Aparecia em diversos contextos, nos abusos sexuais e espancamentos na infância, na marginalização social a elas impingida, na

relação com seus “maridos”, na interação com os clientes, na perseguição

policial, nos insultos e ofensas a elas cotidianamente dirigidos, nos procedimentos de transformação corporal rudimentares a que se submetiam, nos assassinatos de que eram vítimas frequentes, entre outros. Por isso a violência é considerada aqui como um eixo fundamental do universo vivencial das travestis (Garcia, 2007, p. 141).

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regiões de prostituição, violência policial, verbal, simbólica, estigmas em decorrência do HIV, exclusão social na escola, violência econômica e outras (Vale, 2005; Pelúcio, 2007; Garcia, 2007; Ornat, 2008; Nogueira, 2009; Bonfim, 2009; Barbosa, 2010; Müller, 2011; Nogueira, 2013; Davi, 2013; Busin, 2015).

Para Vale (2005), o preconceito, gerador de violências, pode ser explicado porque as travestis rompem com o padrão bíblico de relacionamento e gênero, tornando-se pecadoras e merecedoras de castigos. Garcia (2007) tornando-segue uma linha tornando-semelhante, mas diz que por romperem com padrões de gênero tornam-se um grupo periférico, podendo, assim, ser agredidas. Nogueira (2013) acrescenta que as violências contra as travestis têm fundamento e são mantidas socialmente por não haver punição de crimes contra esse público.

Pereira (2011) estudou notícias e manchetes de jornal a respeito de travestis concluindo que o material analisado também apresenta as travestis geralmente ligadas a questões referentes à violência, construindo sua imagem ligada às manchetes policiais, porém reconhece que um grupo politizado de travestis está apresentando outras formas de ser travesti que não estejam associados a este perfil. Barbosa (2010) notou que a imagem da travesti também está associada às páginas policiais.

Busin (2015) diz que o questionário do Censo não possui questões referentes à identidade de gênero, tornando esta população invisível às políticas públicas, o que gera também uma invisibilidade oficial sobre as violências sofridas8.

Para o objetivo desta pesquisa gostaria de destacar a pesquisa bibliográfica sobre a produção científica brasileira no período de 2001 até 2010 em relação a travestis. As autoras (Amaral, Cruz, Silva e Toneli, 2014) afirmam que apesar da maioria das pesquisas publicadas neste período falarem das violências sofridas, não há ainda levantamentos específicos para serem norteadores de políticas públicas de prevenção e enfrentamento. De acordo com estas autoras há uma concentração dos trabalhos em temas como AIDS, transformações corporais e prostituição, o que também foi percebido nas pesquisas usadas na construção deste texto (Vale, 2005; Garcia, 2005;

8 Em comemoração aos 14 anos da Lei Estadual Anti-homofobia, n 10.948/01, o governador do Estado de

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Pelúcio, 2007; Garcia, 2007; Ornat, 2008; Nogueira 2009;2013; Pereira. 2011; Davi, 2013; Brum, 2014).

Foi possível observar também que as pesquisas são predominantemente qualitativas e usam métodos como: etnografia, entrevistas semiestruturadas, história oral de vida, observação participante, diário de campo e grupo focal.

De modo geral parece haver um consenso entre os pesquisadores sobre o perfil das travestis no Brasil e seus dilemas com o corpo, com a prostituição, com as drogas e as violências. Este consenso existe também com a sugestão de que políticas públicas sejam elaboradas para garantir os direitos de saúde, assistência, moradia, direitos humanos e outros às travestis, que historicamente têm enfrentado violações de várias formas.

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2. CONSIDERAÇÕES SOBRE MÉTODO

2.1 HISTÓRIA ORAL COMO POSSIBILIDADE

Em decorrência dos objetivos propostos nesta pesquisa considerou-se a abordagem metodológica da História Oral a melhor escolha para alcançá-los. É importante salientar que a História Oral é considerada como um método de pesquisa e não meramente um conjunto de técnicas e por meio deste método, os resultados foram alcançados, podendo, assim, propor discussões teóricas por meio de outros autores.

Uma das possibilidades de realização desta pesquisa se deu por sua inserção no Grupo de Estudos em História da Psicologia da PUC/SP, o Nehpsi, que possibilitou reflexões sobre métodos diferentes para realização de pesquisas que visam a produção de conhecimento em vistas de um projeto de mudança social.

A partir das leituras realizadas a respeito do método história oral percebe-se que existem algumas formas de fazê-la, sendo assim, segue uma contribuição que inclui a apresentação dessa abordagem, sua aceitação na academia e chegada no Brasil, assim como a descrição do modo como ela será utilizada nesta pesquisa.

Em conferência proferida em 1998, no X Congresso Internacional de História Oral, Philippe Joutard afirmou que questionar a legitimidade do uso das fontes orais na pesquisa era como travar embates superados. Porém, Gomes (2014) lembra que o conferencista provavelmente estivesse fazendo referência à realidade científica de outros países, visto que, ainda em 1998, pesquisas e projetos resultantes de fontes orais eram vistos com desconfiança, mas Gomes (2014) afirma que muitas coisas aconteceram e atualmente a batalha pode estar realmente vencida e seu uso na pesquisa científica é aceito, apesar das críticas ainda serem persistentes.

(21)

proporcionou uma melhoria no armazenamento das informações, mas evidenciou a divisão de classes, visto que a classe trabalhadora não tinha acesso à educação, sendo majoritariamente composta por pessoas não letradas e consequentemente excluídas do voto e em última instância não tinham voz.

Devido ao fato da oralidade ter sido um recurso dos não letrados, as fontes orais tiveram dificuldades para serem aceitas como método de pesquisa na comunidade científica moderna; Meihy (2000) considera que no Brasil essa resistência se deu por três fatores: o primeiro foi a forte tradição francesa vinculada à cultura formal e à escrita, não valorizando a transmissão oral; o segundo, a falta de vínculos universitários com a cultura popular brasileira; o terceiro, a ditadura militar que coibia a gravação de depoimentos, experiências e opiniões. Essa resistência, entretanto, não impediu algumas ações no sentido de produzir pesquisas através deste método.

Outro motivo apresentado para a resistência do uso de relatos orais na pesquisa científica é explicado por Barbosa & Souza (2009), que problematizam o avanço da ciência moderna através de dados empíricos, numéricos e com pesquisas que poderiam ser replicadas a fim de alcançar os mesmos resultados, ficando à mercê os relatos orais que consideram prioritariamente a subjetividade e o contexto social. Para estes autores as maiores críticas ao uso de biografias se deram devido ao comparativo feito com as pesquisas quantitativas e o método cartesiano de fazer pesquisa.

Paul Thompson, historiador social e um dos fundadores da Oral History

Society e editor do Oral History Journal, envolveu-se com a história oral porque ao

estudar a história inglesa notou uma falta de documentos e arquivos suficientes para sua compreensão; então, encontrou no relato das pessoas a possibilidade de usá-los para contar a história. Em decorrência de suas pesquisas, Paul Thompson percebeu que as biografias poderiam ser um recurso para incluir na história oficial os excluídos e marginalizados. Suas pesquisas contribuíram para aceitação dos relatos orais na comunidade científica (Thompson, 1992).

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Através deste método, a história deixou de ser apenas a de heróis e nobres; sujeitos antes estigmatizados tornam-se também personagens que as pessoas têm interesse de conhecer; deste modo a história oral é uma maneira democrática de fazer ciência. Por meio dela os indivíduos tornam-se contadores de suas próprias histórias, dando significado pela singularidade como pelo coletivo que representam. Meihy considera que: “[...] para ser garantida como método, as fontes orais precisam ser

ressaltadas como o nervo da pesquisa e sobre elas os resultados são efetivados.”

(Meihy, 2000, p. 31).

Pereira (1991) diz que o uso de biografias na pesquisa sociológica teve seus primeiros passos no Brasil no início dos anos 50, com um grupo de cientistas sociais da USP, dentre eles Maria Isaura Pereira de Queiroz, Renato Jardim Moreira e Florestan Fernandes, coordenados por Roger Bastide.

No ano de 1992, o Departamento de História da USP sediou o Congresso

Internacional América 92: raízes e trajetórias, que pôs em tensão o uso da história oral.

Um dos direcionamentos do evento foi a proposta de criação da Associação Brasileira de História Oral (ABHO), que foi efetivada dois anos depois e hoje o método é aceito e utilizado por diversas disciplinas (Meihy, 2000 p. 47).

Para Meihy (2000), este método pôde ser pensado para a realidade brasileira, quando disciplinas como Antropologia, Sociologia, Psicologia e História abriram-se para o debate multidisciplinar, e com a abertura política em 1983, que fomentou interesse em recuperar o tempo perdido. Neste período “[...] museus, arquivos, grupos isolados e sobretudo a academia manifestavam certa ansiedade na busca de

entendimento para se promover debates em torno da história oral. ” (Meihy, 2000

p.46)

Meihy (2000) definiu história oral como:

Um conjunto de procedimentos que se iniciam com a elaboração de um projeto e continuam com a definição de um grupo de pessoas a serem entrevistadas, com planejamento da condução das gravações, com a transcrição, conferência do depoimento, com a autorização para uso, arquivamento e, sempre que possível, com a publicação dos resultados que devem, em primeiro lugar, voltar ao grupo que gerou as entrevistas. (Meihy, 2000 p. 29)

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de transformar a palavra oral em escrita, mantendo os significados do que foi dito, porém resguardadas as correções ortográficas, gramaticais e repetições, mas possibilitando ao leitor a experiência de perceber elementos que não são possíveis de serem notados na transcrição.

Nesse sentido, não interessa ao pesquisador buscar a verdade dos fatos, mas compreendê-la dentro de seu contexto cultural, social e histórico. Biasoli-Alves (1995) considera que esse tipo de método leva em consideração as subjetividades dos narradores e o contexto social em que estão inseridos. Deste modo, as biografias servem em última instância para compreensão de fenômenos sociais e históricos presentes em grupos, cidades, estados ou países. Pereira (1991) considera que os indivíduos são expressões de si próprios e dos grupos a que pertencem, assim, a história pessoal acaba por ser a história referente ao grupo de pertença.

De modo geral os autores concordam que para a realização deste método existem pelo menos duas formas de fazer a coleta de dados, a primeira uma entrevista aberta, sem roteiro, com o objetivo de recolher informação sobre toda a trajetória dos sujeitos e a segunda maneira uma entrevista temática, ou seja, com o interesse de aprofundar em temas específicos de um sujeito ou grupo de pessoas.

Para esta pesquisa utilizou-se o primeiro modo de entrevistar, permitindo que as travestis falassem de suas histórias e durante a conversa que se seguiu, o pesquisador fez questionamentos na tentativa de estimular a memória sobre as histórias pessoais de cada travesti.

Na expectativa de que as travestis falassem de todas as situações vividas, sabendo que algumas poderiam não ser agradáveis de serem lembradas, a postura do pesquisador foi sempre com o interesse de proporcionar uma conversa fluida e sem nenhum tipo de juízo de valor, na tentativa de criar um ambiente acolhedor.

Importante informar ao leitor que a primeira entrevistada foi encontrada através do contato de uma amiga que trabalha com populações vulneráveis no centro de São Paulo e os outros dois contatos foram através de colegas de trabalho no Centro de Referência e Defesa da Diversidade9 (CRD). Devido a minha aproximação com o tema

9 Centro de Referência e Defesa da Diversidade é um equipamento conveniado a Secretaria Municipal de

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e com trabalhadores da área social, fui convidado a integrar a equipe de atendimento neste equipamento no decorrer da pesquisa.

Em decorrência de meu trabalho no CRD pude ser identificado pelas travestis como um agente de apoio. Geralmente elas procuram o serviço para encaminhamentos aos serviços de saúde e demais serviços da Assistência Social. O trabalho do serviço visa a restauração dos vínculos familiares e a construção de projetos de vida que fujam do estereótipo criado sobre a população LGBTT. A possibilidade de serem atendidas sem preconceitos, sendo chamadas pelo nome de sua escolha (o nome social) e o fato de trabalhar para a promoção de seus direitos permitiu que minha relação com elas fosse proveitosa.

Tenho contato diário com as situações que pretendi analisar nesta pesquisa, ou seja, escuto histórias de travestis como rotina do meu trabalho e consigo perceber violações de direitos que as acompanham desde muito novas, antes mesmo de poderem identificar-se como travestis. As violações que costumo ouvir dizem respeito à falta de escolaridade por vários motivos, mas os que mais se destacam são o preconceito vivenciado no ambiente escolar; as agressões físicas e psicológicas dos familiares e dos clientes; a humilhação e desrespeito dos equipamentos públicos de atendimento e a relação de exploração das cafetinas que ao mesmo tempo é visto, por elas, como uma relação de apoio.

Para evitar qualquer interferência nas entrevistas, pedi aos colegas de trabalho que me colocassem em contato com travestis que se disporiam a falar comigo, ou seja, as entrevistadas não são pessoas que eu preste atendimento, mas que eventualmente me veem no trabalho ou possuem amigas que eu já atendi ou atendo.

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2.2. PRIMEIRA ENTREVISTA

Para alcançar o objetivo da pesquisa, decidi que faria contato com travestis que encontrasse na Cracolândia10 e que estivessem dispostas a falar de suas vidas. No dia 26 de junho de 2015, sábado à tarde, fui ao bairro da Luz e tentei encontrar alguma travesti interessada em falar de sua história, como não obtive sucesso, fiz contato telefônico com Juliana, uma amiga pessoal que trabalha com pessoas em situação de vulnerabilidade social na Cracolândia em São Paulo. Ela deu o número de telefone da Thalyta. Fiz contato telefônico e me identifiquei como amigo da Juliana, disse que estava fazendo uma pesquisa e gostaria de conhecer a história dela. Ela aceitou, mas pediu que eu explicasse pessoalmente, marcamos para o mesmo dia. Aproximadamente cinquenta minutos depois ela escreveu uma mensagem via celular dizendo que estava indo ao meu encontro, em um bar geralmente frequentado por pessoas que trabalham nos escritórios da região.

Nós nos apresentamos e eu a convidei para tomar um café, deste modo, poderíamos conversar melhor. Thalyta questionou-me se poderia entrar no restaurante, visto que estava com shorts acima do joelho e uma blusa que deixava sua barriga à mostra, acreditei que não haveria problemas, disse isso a ela e entramos. Havia várias pessoas sentadas no salão, pedi que ela escolhesse um lugar para sentarmos, Thalyta escolheu o lugar mais afastado das pessoas, não aceitou café ou comida, tomamos sucos.

Enquanto esperávamos os sucos, apresentei o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), explicando que gravaria e transcreveria para posterior análise e apresentação. Nossos sucos chegaram e quando ia ligar o gravador, Thalyta, que olhava a maior parte do tempo para as pessoas no salão, disse que gostaria de contar sua história, mas que tinha por costume trabalhar no sábado à tarde e por isto não poderia passar muito tempo comigo. Ela se dispôs a contar sua história dois dias após aquele primeiro encontro e pediu que eu a encontrasse em seu apartamento, localizado nas proximidades do restaurante. Terminamos nosso suco, paguei a conta e saímos do

10 Este nome é dado a região ao entorno da estação de Metro e Trem do bairro Luz, centro de São Paulo.

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restaurante. Nos despedimos na rua e reforcei o combinado, nos veríamos na segunda-feira.

No dia combinado, antes de sair de casa mandei uma mensagem perguntando se poderia ir, ela respondeu que sim. Quando cheguei no seu endereço a comuniquei, após alguns minutos de espera ela abriu a porta de acesso. Thalyta mora no terceiro andar de um prédio habitado predominantemente por profissionais do sexo e não há elevador; quando desceu, bastante constrangida, falou que não poderia conversar comigo porque naquele momento tinha chegado uma amiga para visitá-la. Falei que não havia problema e perguntei se ela podia em outro dia; pediu que eu voltasse no dia seguinte no mesmo horário.

Voltei na manhã seguinte e Thalyta me recebeu, abriu a porta e subimos as escadas na penumbra, entramos no apartamento, um quarto com banheiro. Dentro do quarto há uma cama de casal, um guarda-roupa e uma mesa onde fica a TV, no banheiro ela fez questão de me mostrar uma goteira proveniente do encanamento do apartamento acima.

Thalyta sentou na cama e pediu para eu sentar também, ofereci TCLE para ela assinar, liguei o gravador e pedi que contasse sua história. Antes de começar a entrevista solicitei que ela desligasse a TV, expliquei que poderia atrapalhar a gravação, ela desligou e começou a falar, porém ficou incomodada e pediu para ligar a TV e deixá-la sem som, aceitei. Ela falou durante uma hora e vinte e sete minutos, alguns momentos sendo estimulada com perguntas em outros falando espontaneamente.

À medida que Thalyta começou a dispersar-se e ter maiores pausas na sua fala entendi que tinha dito o que considerava importante, perguntei se havia mais alguma coisa que gostaria de falar, ela respondeu que sim; após ter falado o que gostaria, agradeci sua disponibilidade e informei que se ela lembrasse de algo e quisesse me contar era para fazer contato comigo, nos despedimos e fui embora.

2.3. SEGUNDA ENTREVISTA

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marquei com ela numa padaria nas proximidades. Sugeri uma padaria para tentar evitar qualquer interferência que pudesse haver se a entrevista fosse realizada no próprio espaço em que ela é atendida, ela aceitou, marcamos para dois dias depois deste primeiro encontro.

Ela vive em situação de rua, não possui celular ou outro meio de contato que não o encontro pessoal, deste modo, contei com sua palavra para que a entrevista acontecesse.

No dia combinado, Vanessa estava lá. Diferente das roupas da Thalyta, ela estava com calça jeans e blusa de moletom, não expondo seu corpo e não se sentiu constrangida para entrar no estabelecimento, imagino também porque conhecia meu trabalho e tinha o meu serviço como um ponto de apoio. Sentamos e a garçonete logo nos atendeu, fizemos o pedido e enquanto esperávamos o pedido chegar, expliquei melhor a respeito da pesquisa, os objetivos e no que consistiria a conversa, ela compreendeu e aceitou, ofereci o TCLE para que assinasse, liguei o gravador e durante cinquenta e três minutos ela contou o que considerou relevante. Tive que fazer mais perguntas do que para a entrevistada anterior, pedindo para detalhar as situações relatadas, visto que no começo da entrevista ela pediu que eu fizesse as perguntas, pois facilitaria para ela responder.

Durante a entrevista deixou seu café e misto de lado, ambos esfriaram, pedi algumas vezes que comesse para não esfriar, mas ela preferiu falar; a uma certa altura pedi a garçonete que esquentasse o sanduíche dela e então ela comeu. Antes de irmos embora, agradeci a oportunidade de ouvir sua história e Vanessa pediu que eu comprasse um lanche para seu companheiro, que esperava nas proximidades da padaria, comprei e a avisei que se lembrasse de algo e quisesse me contar que me procurasse através no Centro de Referência e Defesa da Diversidade.

Antes de realizar a terceira entrevista, em conjunto com minha orientadora, decidimos que seria pertinente procurar a segunda entrevistada para sugerir alguns aprofundamentos. Em um dia que ela foi para atendimento no Centro de Referência, solicitei ter mais uma conversa com ela, mas ela disse que já havia dito “tudo o que queria”.

2.4. TERCEIRA ENTREVISTA

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convite para participação da pesquisa, uma conversa na mesma padaria que levei Vanessa. Apesar de afirmar querer participar, Jamilly não disponibilizava de horários para a entrevista, o que demandou persistência e, na quarta tentativa, ela disse que poderia no domingo, dia 18 de outubro de 2015, à tarde. Estava tentando agendar com ela no período da manhã, porém na quarta tentativa ela me disse que no prédio que mora só há energia elétrica durante a noite e ela aproveita para assistir televisão madrugada adentro, o que faz com que ela passe a manhã dormindo, por isso minha falta de sucesso ao agendar no período matutino.

Uma hora antes da entrevista Jamilly me ligou quatro vezes querendo saber se estava confirmado. Ela havia sido convidada para ajudar a ocupar um prédio e estava em dúvida se iria ao meu encontro ou ajudava o movimento de moradia do qual faz parte. Confirmei que estava a caminho, mas ela insistiu em ligar novamente para confirmar.

Na hora marcada ela estava lá, porém, levou seu companheiro. O dia estava muito frio e ambos estavam agasalhados, entramos no estabelecimento, expliquei que a entrevista consistiria em ela me contar sua história. Após a explicação, Jamilly assinou o TCLE, liguei o gravador, fizemos os pedidos à garçonete e começamos a entrevista, que durou quarenta e sete minutos.

Diferente das demais entrevistas, o companheiro de Jamilly ficou presente durante a entrevista, levantando duas vezes para fumar.

Ao ser questionada se poderia usar seu nome na redação da dissertação, Jamilly afirmou que se não pudesse ela não estaria disposta a falar, afirmou que deseja que as pessoas saibam quem ela é, e que eu tinha autorização para usar seu nome social.

2.5. O PÓS-ENTREVISTA

Depois de realizadas as três entrevistas, comecei a transcrevê-las. Esse processo me ajudou a perceber elementos para os quais não havia percebido enquanto conversava com as entrevistadas.

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sentido do que havia sido dito na entrevista e tendo o cuidado de contemplar todas as situações relatadas, assim como evidenciar as emoções expressas.

À medida que terminei de transcrever e comecei o processo de transcriação, escrevi algumas palavras sobre impressões pessoais do que havia despertado minha atenção para o conteúdo das histórias de vida. Estas impressões serviram para perceber como a violência, seja ela física ou psicológica, atravessa a vida das travestis entrevistadas.

A partir do material obtido, notei que alguns temas emergiram em todas as entrevistas, dentre eles: os vínculos familiares geralmente fracos, mas constituintes e lembrados com saudosismo; as violências sofridas durante a vida dentro da própria família, com os clientes, com a polícia, e na sociedade em geral; as drogas, sendo quase que unânime elas dizerem que foi ou ainda é um dos seus piores problemas; os enfrentamentos com a polícia, que acontecem em alguns casos pelo exercício da prostituição ou por cometerem algumas atividades ilícitas; a dança como recurso para fortalecimento pessoal; e a condição travesti colada às violações de direitos de diferentes formas.

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3. NARRATIVAS DAS HISTÓRIAS DE VIDA

3.1. ENTREVISTADA 1

Nasci em Belém do Pará, norte do Brasil. Na minha infância eu morava com minha mãe, minha meia irmã, por parte de mãe, e meu padrasto. Eu não me dava bem com ele desde muito novinha. Teve uma vez que ele tentou abusar sexualmente da minha irmã. Nós dormíamos em rede e numa noite que minha mãe passou fora ele chamou minha irmã para dormir na cama com ele, eu percebi sua maldade e sem que ele notasse deitei na cama também, ele chupou minha perna achando que era a perna da minha irmã. Na manhã seguinte, quando minha mãe chegou ele inventou que eu tentei fazer sexo oral nele e minha mãe acreditou, me deu uma surra, depois da surra me deu um banho de água e sal e me colocou de joelhos em cima de duas tampas de garrafa de cerveja... (risos). É, porque em Belém é assim!

Por causa dessa situação, minha mãe abandonou a casa. Eu contei para ela a verdade e mostrei a marca da chupada dele na minha perna, muito decepcionada ela foi embora e nos deixou, eu e minha irmã com ele. Não aguentei por muito tempo, eu devia ter uns 9 anos de idade11.

Próximo de casa viviam duas mulheres com filhos que precisavam de uma pessoa para cuidar dos filhos delas, como eu precisava de um lugar para morar, fui cuidar das crianças e fiquei morando um tempo com elas. Passou um tempo e essas mulheres mudaram para o interior, eu não fui com elas, estudava ainda e não quis deixar a escola, fiquei sem muitas opções, então, tinha um homem que eu conhecia que tinha uma casa que não usava, pedi a ele que deixasse eu e minha mãe morar na casa, ele deixou. Ele era uma espécie de cliente.

Nessa época eu já me prostituía, lembro a primeira vez que fiz um programa, o cliente tentou me levar no motel, mas precisava de documento, eu não tinha, saímos e fomos para outro que não pedia documentos. Eu sempre fui muito “assanhadinha” desde pequena.

Voltei a morar com a minha mãe nessa casa emprestada. Teve uma vez que duas travestis e um homossexual me assaltaram e me bateram, devia ser rivalidade de

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rua mesmo, mas eu conhecia alguns policiais. Eles me viram e perguntaram se eu estava bem, contei para eles o que tinha acontecido e eles começaram a procurar as assaltantes. Achamos elas dentro de uma van... elas tiveram que devolver tudo o que tinham roubado.

Só que duas semanas depois eu conheci um rapaz em uma festa, ele quis me pagar bebida, eu disse que não bebia. Como eu tinha que ir para rua me prostituir tentei me despedir dele e ele me chamou para ir na casa dele, aceitei, eu jamais imaginaria que ele queria fazer maldade comigo. Chegando na casa dele, fui espancada, ameaçada de morte. Ele era amigo das travestis que me assaltaram e cafetão, ele queria dinheiro para não me matar, só que era uma quantia enorme de dinheiro... Não tinha como eu conseguir... fiquei apavorada, até que consegui negociar com ele, menti que levaria o dinheiro para tentar me salvar. Antes de sair da casa ele me bateu mais ainda, eu fiquei quase desfalecida. Ninguém me ajudou, eu estava quase pelada... andando pela rua consegui uma carona e chegando em casa, fui direto para a casa da vizinha, que ficava nos fundos da minha casa, tive medo da minha mãe me ver no estado que eu estava. A vizinha ficou assustada quando me viu, pediu para eu tomar um banho e disse que depois me levaria ao hospital. Implorei para ela não falar nada para minha mãe, mas minha mãe acordou e me viu. Ela quis saber o que tinha acontecido e depois que eu expliquei ela disse que não dava mais para eu morar com ela, que eu deveria ir morar com minha irmã que era casada.

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Estava com 16 anos e uma cafetina de São Paulo me mandou a passagem, minha mãe foi comigo na Rodoviária de Belém se despedir, ela implorou para eu não usar drogas12.

Eu cheguei, não foi exatamente em São Paulo, foi em Santo André, ficava na Industrial13, tinha um monte de meninas por lá. Logo nas primeiras semanas a polícia já me parou, eles queriam meus documentos, eu já tinha sido ensinada como enganar eles; liguei para minha mãe no truque14 e ela disse para o policial que enviaria o dinheiro da passagem de volta. Os policias acreditaram e me deixaram em paz, só que tive que falar com a cafetina, ela não gostou muito da história, me deu duas opções: voltar para Belém ou ir para casa de outra cafetina em Diadema. Sem pensar muito escolhi ir para Diadema, não queria voltar para Belém.

A cafetina de Diadema tinha duas casas, uma no litoral e outra em Diadema, só que ela era mafiosa15, disse para um homem que eu já tinha feito programa que eu gostava de crack... mentira dela, eu nunca tinha usado, mas o cliente me ofereceu uma quantidade boa de dinheiro para usar com ele e eu aceitei, não é todo dia que aparece cliente com dinheiro. Foi a pior coisa que fiz, minha perdição começou neste dia. Depois que experimentei não consegui ficar mais sem.

Teve um dia que a cafetina espancou uma pernambucana porque ela não pagava a diária. Ela cobrava cinquenta reais a diária, se não pagasse iria para conta, se não pagasse a conta, apanhava. Depois deste dia eu quis ir para a casa no litoral, fiquei assustada com a cena que vi.

No litoral eu continuei usando crack, até que veio uma amiga de Belém atrás de mim. Minha mãe percebeu que tinha alguma coisa errada comigo quando a gente se falava por telefone e por isso ela pediu para uma outra travesti descobrir onde eu estava para ir atrás de mim. Quando ela chegou lá nem me reconheceu, eu estava muito acabada de usar crack, usava de dia e de noite, de imediato eu também não a reconheci. Na tentativa de me ajudar ela me trouxe para São Paulo, aqui na Cracolândia. Quando

12 Pergunto novamente a idade para ter noção a respeito do seu transporte, ainda menor de idade, entre

Estados sem a presença dos responsáveis e o envolvimento com a prostituição.

13 Bairro da cidade de São Bernardo do Campo que reúne um número expressivo de profissionais do sexo.

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cheguei aqui foi pior, no começo eu não usei, mas depois minha situação piorou. Eu nunca fui de ficar dormindo na rua igual aquele pessoal fica, mas eu usava todos os dias.

Nessas de usar, conheci uma outra bicha16 que me ofereceu para vender em troca de estadia no hotel, eu aceitei. Comecei a traficar até que um dia a polícia descobriu e veio nos abordar, eu e a outra travesti que morava comigo no hotel. Eu estava com poucas pedras, ela estava com várias e tentou enganar o policial, pelo jeito que estava indo a coisa eu achava que nem seria presa, só que o policial ficou muito revoltado que ela tentou enganar ele e levou nós duas.... Fiquei presa 4 anos e 8 meses!

Logo nos primeiros meses que fiquei no presídio queria trocar de penitenciária, a que eu estava era muito ruim para as travestis, mas o carcereiro não quis me dar ouvidos, eu sem muita paciência cuspi no rosto dele, para que? Apanhei um monte e fiquei sete dias no castigo17. Depois disso, minha vida dentro do presídio virou um inferno, eles encrencavam comigo em tudo. Meus braços são todos marcados18, certa altura eu tinha que cortar meus braços para mostrar para eles que se eu era capaz de fazer isso comigo eu seria capaz de fazer coisas piores com eles, só assim para eles não me baterem.

Uma coisa boa que aconteceu na cadeia foi eu não ter usado crack. Lá dentro tem todo tipo de droga, mas o crack deixa a gente doidinha, qualquer hora vira um e passa a faca em você, por isso eu não usei, não vou mentir, eu só usei maconha e cigarro, os dois eu não consegui parar.

Teve uma vez que meu silicone injetável inflamou todo e eu tive que ficar pelada na frente de todos para eles acreditarem e me atender. Queriam me levar para um hospital que eu sei que as bichas quando vão para lá são amputadas, eu protestei, não queria aquele hospital, queria a medicação para desinflamar. Tive que negociar porque eles disseram que não tinham a medicação e iam ter que comprar, falei que pagava quando saísse e eles aceitaram. Tomei a injeção e fiquei boa, imagina se tivessem me levado para o hospital!

Dentro do presídio eu descobri que existem regras próprias, as facções mandam lá dentro e os agentes penitenciários estão a serviço deles, ficam o dia todo na internet

16 Eventualmente ela chama outras travestis de bicha, sem que isso seja de forma pejorativa.

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vendo preço das coisas para negociar com os bandidos. As travestis não podem deitar com os homens, se isso acontecer o homem tem que ir para a cela das bichas.

Com relação ao meu cabelo eu até estranho... eles não cortaram muito, foram só duas vezes, uma quando cheguei e outra quando a psicóloga arrumou um trabalho para mim. Essa história é boa! A psicóloga organizou uma festa para juízes e promotores e eu ajudei na festa, dancei, gostava muito de dançar, ela ficou muito grata com minha ajuda na festa e acelerou o meu processo para o regime semiaberto.

No tempo que passei no presídio a mãe de uma travesti que eu conhecia foi visitar ela e eu implorei para ela avisar a minha mãe que eu estava viva, já tinha um tempo que eu não conseguia mais contato, eu perdi o número dela e nem sabia nem se ela estava viva. Depois que saí do presídio fui descobrir que ela não deu o recado, não sei por que fez isso, mas o fato é que o tempo todo que fiquei presa não tive e não dei noticia nenhuma para minha mãe.

Consegui cumprir a minha pena e sai na condição de ir no Fórum assinar por alguns meses; depois que saí do presídio tirei meus documentos a primeira vez na vida, nunca tinha tirado um RG, CPF... nada, eu nunca tive documentos19. Mas para tirar esses documentos foi difícil porque eu precisava da minha certidão de nascimento, só que eu não sabia que cartório eu tinha sido registrada. Como eu vim morar aqui no centro depois que saí do presídio um cliente me deu o telefone de todos os cartórios de Belém e eu fui ligando de um em um, mas não consegui, até que tive a maior surpresa. Uma travesti conhecida minha lá da minha cidade, soube que eu tinha saído do presídio, sabia que minha mãe estava atrás de mim passou o meu telefone para minha mãe e ela me ligou20... (choro). Não gosto nem de lembrar deste dia, quase morri de tanto chorar, fazia anos que não falava com minha mãe, ela achava que eu tinha morrido. Através desse contato com ela consegui minha certidão de nascimento e consegui tirar meus documentos.

Eu acho que vou visitar a minha mãe, estou com saudades, mas fico preocupada com o calor, Belém é muito quente e lugar quente deixa minha pele queimando e vermelha por causa do silicone e vou colocar as próteses também, estou

19 Nesse momento ela se levanta sorridente e pega uma pasta para me mostrar seus documentos.

20 A entrevistada se emocionou bastante ao lembrar-se do dia que retomou o contato com a mãe

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guardando dinheiro... depois que colocar meus peitos eu vou21, mas vou para ficar uns três meses apenas, eu não acostumo mais com o calor de lá. O bom é que agora a gente se fala por telefone.

Eu tenho muita vontade de trabalhar, ser igual às pessoas, voltar a estudar. Eu trabalho nem que seja de faxineira, qualquer coisa. Quero sair da prostituição, já foi o tempo que prostituição dava dinheiro aqui em São Paulo.

Acho que a última coisa que queria te contar22 foi uma vez que um cliente quis me fazer maldade, me chamou para usar droga com ele e na hora de pagar o programa ele se recusou, brigamos, mas eu não sei brigar, então quebrei o carro dele e ele me colocou para fora. Um outro rapaz me viu e se ofereceu para me ajudar, ajudar nada, ele queria fazer maldade também, perguntou o preço do meu programa, eu disse e fomos para casa dele, chegando lá ele se transtornou, me forçou a beber uma bebida e me espancou, depois de me bater ele me mostrou várias fotos de travestis mortas, que ele tinha matado... eu pensei que iria morrer, fiquei muito assustada. Ele me deixou no quarto e foi tomar banho, falou que iria tomar banho e depois que transássemos ele me mataria, mas que não adiantava eu fugir, ele iria me achar. Ouvia a voz da minha mãe dizendo: “corre, foge!” Foi o que eu fiz, para minha sorte ele deixou a porta aberta, saí correndo até achar uma casa em que pudesse pedir socorro, eu estava em pânico, tive a certeza que tinha chegado minha hora de morrer. Dois caras abriram a porta e depois que eu contei a história eles chamaram a polícia. Como era de madrugada e a casa do cara era muito escondida não conseguimos achar, voltei para casa e por causa disso eu não saio com japonês em hipótese alguma, o rapaz que tentou me matar era japonês, eu criei um trauma.

Era isso o que eu tinha para falar, minha vida não foi fácil, mas falar dela ajuda um pouco, às vezes a gente não conversa com ninguém.23

21 A cirurgia para colocação das próteses mamárias já estava marcada para algumas semanas após a

entrevista e tive notícias, dela mesmo, que correu tudo bem.

22 Ela começou a ter maiores pausas na fala, questionei se havia mais alguma coisa que ela gostaria de

dizer antes de terminarmos.

23 Questiono se ela se sente contemplada contando tudo o que queria e se havia gostado de falar da sua

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3.2. ENTREVISTADA 2

Bom, meu nome é Vanessa, tenho 24 anos, nasci no interior de São Paulo, tenho três irmãos, sendo uma mulher casada, um homem casado e uma menina de sete anos. Logo depois do meu nascimento meus pais se mudaram para outra cidade e lá construíram um barraco de madeira em um terreno ocupado. Nós éramos muito pobres, meu pai era pedreiro e minha mãe empregada doméstica. Hoje eles moram no mesmo lugar, disseram que a casa já é de alvenaria e tem documentação; desde que saí de lá não voltei.

Muito novinha eu já me sentia diferente, era afeminada e por ser trans meu pai me agrediu muito, apanhei várias vezes porque estava usando calcinha da minha mãe, transformando shorts em saia e outras coisas de criança. Eu sei que não é o corpo que faz uma mulher, mas eu quero por prótese de mama para me sentir mais completa, tudo o que eu tenho de corpo foi por causa de hormônio. Na época de criança minha mãe chegou a me levar na psicóloga para tratar a minha sexualidade, eu ficava desenhando lingerie... (risos).

Meus pais tinham muito preconceito comigo. Minha mãe teve que sair de casa comigo várias vezes por causa do meu pai, mas ela sempre tinha que voltar, não iria desfazer a família por minha causa. Meu pai me bateu demais. Meu irmão jogava pedra em mim e dizia que não queria irmão viado.

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Fiquei na minha cidade até os dezoito anos, lá conheci uma bicha que me chamou para vir para São Paulo, eu aceitei, ela disse que eu poderia ficar na casa da família dela, só que não era verdade. Chegando aqui, na Zona Leste, a família dela não me aceitou, comecei a ficar na rua a partir de então. Fiquei um tempo por lá, comecei a usar drogas, mas me disseram que o centro era melhor. Sem saber muito bem como chegar, vim andando até o centro e cheguei na Luz.

Na Luz eu fui bem recebida, não estranhei muito, eu tinha um dinheiro e já cheguei comprando pedra, desse jeito todos acharam que eu tinha dinheiro, talvez por isso que fui bem aceita. Eu confesso que estou lutando para sair, o crack é vicioso.

Deixa eu contar, a Luz ao mesmo tempo que foi acolhedora é um cenário horrível, aquela sensação de que a qualquer momento alguém pode te ferir. Quando a gente usa achamos que estão nos perseguindo e por isso ninguém quer ficar por perto depois do uso. Lá eu já vi muita gente morta, muita gente puxando faca um para o outro, mas também tem muita risada, quando uma bicha tem problema se juntam todas e caem para cima24. Teve vezes de ficarmos só olhando o nóia25 todo se contorcendo e dando risada. Sabe, na minha vida eu sofri muita violência, só por ser travesti.

Eu me prostituía para pagar meu vício, fiz isso até entrar no Projeto Transcidadania. Cliente é o que mais tem no centro de São Paulo, se você for qualquer hora do dia ou da noite vai aparecer uma maricona para fazer programa e tem vários hotéis na região, bem baratinhos. No paredão da Luz não tem que pagar para nenhuma cafetina, lá é livre e tem cliente para todas.

Atualmente eu tenho ajuda profissional com a equipe do Transcidadania e do CRD, além da igreja inclusiva, quero deixar as drogas. A prostituição eu já deixei, quero começar a viver, porque prostituição não é vida, o pior da prostituição é você deitar cada dia com uma pessoa diferente e estar exposta a tudo, sem contar que tem alguns clientes que não pagam, só querem fazer maldade com a bicha.

No tempo que fiquei na Luz, tive algumas amigas, mas confiar em travesti é a pior coisa que alguém pode fazer. Não sei onde estão minhas amigas hoje, sumiram, podem estar mortas, presas, não sei que fim que deram.

24 Expressão usada para dizer que brigam fisicamente.

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Eu confesso que até tenho uma vontade de ver meus pais, uma vontadezinha, mas sofri muito com eles, fico com receio de voltar por causa do preconceito. Recentemente meu pai falou pelo telefone para eu ir para lá, disse que me aceitaria. Foi um técnico do CRD que conseguiu o contato.

Em um atendimento ele me perguntou se eu não tinha nenhuma informação dos meus pais, disse que a única coisa que lembrava era o nome do colégio que eu estudei e eu sabia que é o colégio que minha irmãzinha estuda, ele foi danado. Achou o telefone da escola, perguntou se minha irmã estudava lá, eles disseram que não podiam passar muita informação, mas ele deu o número do CRD e minha mãe ligou, foi uma choradeira, ela chorando de lá e eu aqui. Meu irmão também disse para eu voltar, ele é evangélico.

Não sei como estão as coisas de preconceito, mas nas redes sociais26 eu vejo que essas coisas de trans também chegaram lá, talvez por isso eles querem que eu volte, mas não sei como seria tratada se voltasse.

Esse tempo todo que fiquei em São Paulo eu morei na rua, teve só uma vez que fui para casa de cafetina, foi péssimo. Ela não deixava as meninas se divertirem, se via uma menina no bar, já cobrava a diária adiantada. Está certo que tinha travesti que dava o doce27 mesmo, a cafetina só queria garantir o dela, ela era boa, eu entendo ela. Eu pagava certinho as diárias, mas fiquei pouco tempo.

Eu não vou para Centro de Acolhida porque é muito preconceito, tanto de funcionários quanto de usuários, eu prefiro ficar na rua. Mesmo passando fome e frio, fome principalmente em época de feriado prolongado, as pessoas saem da cidade e não passa ninguém para dar comida e frio porque São Paulo é muito frio e tem aqueles que roubam a minha manta. Já aconteceu algumas vezes de me roubarem e eu passar frio de noite. E tem o meu marido, ele não gosta de Centro de Acolhida.

Falando no meu marido, deixa eu falar como conheci ele. Eu fui na Matilha Cultural ver filme com uma amiga e ele estava lá, era para ele ter ficado com minha amiga, mas durante o filme ele pegou na minha mão, eu disse para ele que não era certo

26 Ela tem contato com a família e amigos da sua cidade de origem por meio de redes sociais, deste modo

consegue perceber que as discussões sobre pessoas travestis ou transexuais é algo que vai além da cidade de São Paulo.

Referências

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