UFRJ / FACULDADE DE LETRAS
DISCIPLINA: SEMÂNTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA – 2º SEM. 2016 TEXTO, MECANISMOS DE COESÃO E ARGUMENTAÇÃO
Regina Souza Gomes (UFRJ) Os textos não são sequências ou somatórios de frases, mas constituem um todo de sentido, estruturado de modo que as suas partes estejam umas em relação às outras e só assim possam ser interpretadas. Os textos possuem marcas do contexto sócio-histórico em que foram produzidos, todos são objetos históricos. Do ponto de vista da superfície textual, além dos enunciados postos, explícitos, outros conteúdos podem ser inferidos a partir deles, informações implícitas marcadas ou não no enunciado (pressupostos e subentendidos).
Ao tratar dos textos, nós o abordaremos sob dois aspectos: primeiramente atentaremos para os recursos que empregam elementos de natureza linguística, da sua superfície, que são responsáveis pela coerência e coesão textuais e, posteriormente, os elementos de natureza discursiva, enunciativa, que são responsáveis por construir sua argumentatividade.
Mecanismos de referenciação e sequenciação
Todo texto tem mecanismos que constroem o encadeamento coerente e organizado de seu conteúdo, recursos que permitem retomadas de elementos textuais já enunciados e outros que possibilitam a sequenciação das ideias. Num texto, deve haver equilíbrio entre os conteúdos já ditos, retomados e conteúdos novos, que fazem o texto progredir.
Uma das formas de construir a unidade semântica do texto e dar-lhe coesão e coerência é um procedimento chamado de referenciação. Segundo Koch e Elias,
Denomina-se referenciação as diversas formas de introdução, no texto, de novas entidades ou referentes. Quando tais referentes são retomados mais adiante ou servem de base para a introdução de novos referentes, tem-se o que se denomina progressão referencial (KOCH;
ELIAS, 2006, p. 123).
Esses referentes não devem ser entendidos como elementos linguísticos que espelham o mundo diretamente, ou como etiquetas, mas sim como construções (e reconstruções), no próprio discurso, das coisas do mundo, como são percebidas e vistas pelos falantes. As estratégias de referenciação incluem a introdução de um objeto de discurso, sua manutenção ou retomada ou mesmo sua desfocalização, pela introdução de um novo objeto de discurso que passa a ser o foco.
Os textos abaixo, cartas de leitores publicadas no jornal Folha de S. Paulo, em seção específica, servirão como exemplos de como se dá a referenciação nos textos:
TEXTO I
CPI do Cachoeira
É claro que Márcio Thomaz Bastos, autor do artigo “Serei eu o juiz do meu cliente?” (Tendências/Debates, 14/06), não deve ser o juiz de seus clientes. Ele é um advogado e tem o dever de defendê-los, mas, no caso específico de Carlinhos Cachoeira, deveria ter ficado de fora. Thomaz Bastos foi ministro da Justiça e comandou, de certa forma, a investigação sobre Cachoeira realizada pela Polícia Federal.
MARIA S. GARCIA (Curitiba, PR)
TEXTO II
Li com atenção o artigo “Serei eu o juiz do meu cliente?”, de Márcio Thomaz Bastos. O insigne jurista adverte para o “apedrejamento moral, não presunção de inocência” de seu cliente. Ouso discordar do ex- ministro da Justiça. Acho que a indignação dos brasileiros é uma reação normal de cidadãos cansados do rodízio de pizzas servido pelo sistema judiciário e político neste país de impunidade chamado Brasil. Acho, sinceramente, que o nobre e competente jurista deveria escolher melhor seus clientes.
LUIZ CEZARE VIEIRA (Florianópolis, SC) (Painel do Leitor, Folha de S. Paulo, 09/06/12)
No Texto I, é introduzido um “objeto” discursivo, Márcio Thomaz Bastos. Ele é retomado por sintagmas nominais (autor do artigo “Serei eu o juiz do meu cliente?”, Thomaz Bastos), pronomes (ele) ou mesmo pode ser inferido pela terminação verbal dos verbos ( tem, deveria, que apresentam elíptico o termo que lhes serve de sujeito). Com a retomada do termo, vai se construindo no texto uma imagem do sujeito de que se fala, por meio da predicação que recai sobre as expressões nominais, pronomes, elipses (é advogado, foi ministro da Justiça, investigador de Cachoeira...). A maneira como o referente Márcio Thomaz Bastos é retomado no Texto II mostra outro modo de construção desse “objeto de discurso”: insigne jurista, ex-ministro da Justiça, nobre e competente jurista são algumas das expressões que são utilizadas, demonstrando um tom irônico, dada a forma cerimoniosa com que o enunciador faz referência ao advogado, contraposta às expressões menos formais (“cidadãos cansados do rodízio de pizzas servido pelo sistema judiciário...”, por exemplo) e à crítica feita pelo missivista ao comportamento de Bastos.
É importante observar que alguns dos termos introduzidos exigem, para sua compreensão, um conhecimento intertextual, como é o caso do Texto II, que nem cita o nome do tal “cliente”.
Assim, as cartas dos leitores pressupõem o conhecimento do leitor sobre conjunto de notícias que saíram no jornal sobre Carlinhos Cachoeira, cliente de Thomaz Bastos, ou mesmo a leitura do artigo
“Serei eu o juiz do meu cliente?”, citado na carta dos leitores, para que sejam interpretadas.
Ao retomar um determinado referente por meio de diversos recursos (expressões nominais definidas, pronomes, elipses, etc.), o produtor do texto evita a repetição de mesmos termos, tornando o texto mais interessante, menos enfadonho e repetitivo. Mas não é raro que a repetição pura e simples possua um papel importante, dependendo da intencionalidade enunciativa. Em reportagem sobre os embates entre a Reitora da Universidade de São Paulo (USP), Suely Vilela, os estudantes e os professores (“Para dirigentes, reitora não aceita enfrentar divergências”, Folha de S.
Paulo, 21/06/09), o jornalista, ao relatar os fatos, emprega a repetição para a retomada de um referente como recurso argumentativo importante:
A farmacêutica, de 55 anos, formada no campus de Ribeirão Preto, mestrado a respeito das toxinas do veneno de escorpião brasileiro “Tityus serrulatus”, doutorado sobre o “Tityus serrulatus” e livre-docência sobre “Tityus serrulatus”, é considerada na USP como uma pessoa centralizadora – não aceita ser contrariada.