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UNIVERSIDADE FEEVALE Curso de Pós-Graduação Especialização em Poéticas Visuais ALICES: DESENHOS E REFLEXÕES SOBRE O RITO DE PASSAGEM

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEEVALE

Curso de Pós-Graduação Especialização em Poéticas Visuais

ALICES: DESENHOS E REFLEXÕES SOBRE O RITO DE PASSAGEM

Autora: Célia Margela Arnold Orientador: Me. Julio Cesar Da Rosa Herbstrith

Resumo: Este artigo é resultado da produção prática e das reflexões teóricas realizadas durante o Curso de Pós-graduação em Poéticas Visuais, na Universidade FEEVALE. Busca-se construir uma reflexão sobre a menina contemporânea, durante o rito de passagem (adolescência para a fase adulta), a partir de minha produção visual. Destaco aspectos sociológicos e filosóficos, através de desenhos, tendo, como referencial imagético, recortes do filme O Profissional, de Luc Besson, no cruzamento com o clássico infantil Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. O rito de passagem, segundo Arnold Van Gennep, caracteriza-se por um estado de suspensão, conceito chave para pensar minha poética.

Palavras-chave: Desenho. Menina. Rito de passagem. Suspensão.

Abstract: The article is the result of practical work and theoretical reflections made during the Post-graduate course in Visual Poetic, at FEEVALE University. It attempts to reflect on the temporary girl, during the rite of passage (from adolescence to adullthood), starting with my visual assessment. I highlight sociological and philosophical, aspects with drownings as a reference point, outtakes of the film

The Professional, by Luc Besson, and cross referencing it with the children’s classic Alice in Wonderland, by Lewis Carroll. The rite of passage, according to Arnold Van Gennep, is characterized by

a state of suspension, a key concept in my poetic thoughts process. Keywords: Draw. Girl. Rite of passage. Suspension.

1 INTRODUÇÃO

Este trabalho leva em consideração aspectos que percebo do mundo, entre eles a crescente fragmentação e a disjunção na contemporaneidade. A partir daí, comecei a pensar uma poética para expressar plasticamente essas circunstâncias e sentimentos em meus desenhos. Para tanto, faço uma reflexão sobre a menina contemporânea em seu rito de passagem, da adolescência para fase adulta.

(2)

2 São criados desenhos, tendo como referencial imagético, recortes do filme O Profissional (1994) de Luc Besson. O motivo da escolha desse filme é a representação da quebra da estrutura familiar “dita” convencional, ocasionando uma nova concepção de família, onde está incluída uma reflexão sobre o rito de passagem da menina no século XXI. Além de pensar uma questão contemporânea, também viso proporcionar uma experiência estética, através do desenho marcado por rastros, sobreposições de histórias e registros de memória.

A personagem Mathilda, interpretada por Natalie Portman, permite subsídios para pensar o rito de passagem na contemporaneidade, em que as pessoas vivem em um estado de contradições e incertezas. Entendemos por contemporaneidade, a partir dos anos 90 do século XX, onde profundas transformações ocorreram em todos os campos

do conhecimento, como consequência, esse tempo tem sido marcado pela diversidade.

Nos dias de hoje o conceito de família é cada vez mais complexo. É natural que

em meio às transformações que estão se processando tenhamos um olhar receoso diante das mudanças, e, é compreensível que as inovações nos assustem como afirma Zygmunt Bauman1. Cabe a nós lidarmos com essa nova realidade, pois a família deixou de ser patriarcal e, atualmente, é plural conforme a Constituição Federal Brasileira, de

1988, deixa expressa em seu art. 2262/Da Ordem Social3.

A temática recorrente desde minha formação acadêmica tem sido a representação de meninas em rito de passagem, tendo o tempo como uma questão intrínseca, juntamente, com a efemeridade. Essas percepções têm início com o meu estágio no magistério, em uma escola pública de Novo Hamburgo/RS.

Para discutir a infância e o rito de passagem, utilizo os autores: Philippe Ariès, Arnold Van Gennep, Victor Turner e Aldo Natale Terrin. A ideia de juventude, segundo Ariès, revitalizou as sociedades europeias do século XX, marcadas por pensamentos conservadores. Ocasionando um alargamento da ideia de juventude, e com isso, novos valores surgiram. A adolescência se expandiria, empurrando a infância para trás e a

1

Zygmunt Bauman. Modernidade líquida, 2001. p. 43.

2

Disponível em<https://www.senado.leg.br/atividade/const/con1988/con1988_04.10.2017/art_226_.asp> Acesso em: 27 nov. 2018.

3

Resumo do art. 226: “[...] instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos [...]”. Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10645133/artigo-226-da-constituicao-federal-de-1988>. Acesso em: 08 dez. 2018.

(3)

3 maturidade para frente (ARIÈS, 1981, p. 46-47). Gennep, antropólogo alemão, denomina de ritos de passagem a superação de marcos simbólicos, quando o indivíduo, através deles, toma consciência das mudanças em sua vida e na própria sociedade. Ele representa esses ritos através da separação, da margem e da agregação (2011, p. 191), enquanto Turner os nomeia como: preliminares, liminares e pós-liminares (2013, p. 36-52), Terrin os rebatiza de: condição precedente, período de marginalidade e a inserção na nova condição (2004, p. 100). De uma forma geral, os autores citados, pós Gennep, trazem semelhanças nos estudos sobre o conceito de rito de passagem, mesmo concebido em épocas diferentes.

A partir de Gennep crio novos entrelaçamentos com os autores citados, que me possibilitam pensar plasticamente o processo de rito de passagem da menina e contextualizá-la na contemporaneidade. Para isso, faço um cruzamento do clássico infantil Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, com o filme O Profissional, de Luc Besson.

Nessa viagem onírica contada por Carroll, o leitor acompanha as transformações

de Alice. Por sua vez, as ilustrações de John Tenniel (1820-1914) são representativas do

período vitoriano4, criando um contraste entre texto e imagem. A Alice de Carroll dá

passagem para pensar as múltiplas Alices contemporâneas, isso inclui a própria personagem Mathilda de O Profissional. Nesse percurso, surgem articulações entre texto e imagem fílmica enfatizando a multiplicidade de leituras.

Para uma maior amplitude de pensamento sobre o contemporâneo, recorro às

ideias das artistas visuais: Sophie Ristelhueber5 e Brígida Baltar6. Sophie me faz pensar

sobre a noção de território e de sua história, com suas ruínas e os vestígios deixados pelo homem em lugares devastados pela guerra. Ela se concentra em revelar eventos e as marcas da história, tanto no corpo como nas paisagens. Já as obras de Brígida Baltar

4

Era Vitoriana: O ideal de beleza do início da era vitoriana (1837- 1860) exigia às mulheres uma constituição pequena e esguia, olhos grandes e escuros, boca pequenina e ombros caídos, cabelos cacheados. A mulher deveria ser algo entre as crianças e os anjos. Retirado de: <http://www.fashionbubbles.com/historia-da-moda/roupas-originais-da-era-vitoriana-1837-ate-1901/> Acesso em: 23 nov. 2018.

5

Sophie Ristelhueber: Artista parisiense, nascida em 1949, fotografa lugares atingidos pela guerra. A paisagem fotografada aparece em fragmentos: danificada, dilacerada, marcada. Esses traços de histórias e conflitos, o qual chama de detalhes do mundo, são como cicatrizes em um corpo, e eles transmitem sensações semelhantes às de feridas mal curadas.

6

A obra de Brígida Baltar (1959) parte de ações da própria artista, captada em fotografias ou em curtos filmes silenciosos. No projeto, desenvolvido entre 1994 e 2001, coleta em recipientes de vidro, elementos naturais, transitórios e efêmeros, como a neblina, o orvalho e a maresia. Nessas coletas a artista explora a memória e a afetividade geradas durante o percurso de seu trabalho.

(4)

4 fazem referência às atmosferas que o silêncio e a névoa sugerem, tais como a delicadeza, o vazio, a suavidade, a invisibilidade, o antiespetáculo, o apagamento e o etéreo.

A metodologia do artigo é interdisciplinar, tem início com um pensar da relação da menina Mathilda em seu rito de passagem com o meu fazer artístico das meninas do século XXI. Para tanto, foram realizados nove trabalhos em desenho, com técnica mista. A partir daí, amplio as relações recorrendo as artistas Ristelhueber e Baltar. O texto está dividido em quatro partes, incluindo a apresentação. A segunda parte refere-se ao processo do trabalho artístico inicial. Na terceira, a relação do filme: O Profissional com a obra Alice no País das Maravilhas. A quarta, a reflexão sobre o rito de passagem na contemporaneidade, incluindo as considerações finais.

2 O CAMINHAR DAS ALICES: UMA RETROSPECTIVA

A temática, em minha produção, tem sido a representação de meninas em rito de passagem, desdobrando-se em questões do tempo e da efemeridade. O desenho de meninas me remete às minhas memórias do final dos anos de 1990, que são as experiências do estágio de magistério, em uma escola pública, em Novo Hamburgo/RS, e da situação vivida pelas crianças que tive contato naquele momento, tanto afetiva quanto material, como também, da desestruturação familiar.

No final do estágio, fui acarinhada por uma dessas meninas com um pequeno objeto de plástico na forma de um anjo, que o irmão havia encontrado no lixão. Guardo-o até hGuardo-oje, entre as cGuardo-oisas de maiGuardo-or significadGuardo-o afetivGuardo-o. RetGuardo-omGuardo-o a lembrança da menina e a transformo em objeto de estudo, criando através dos rastros deixados no desenho, registros de memórias, propícios para uma reflexão contemporânea. Os desenhos abaixo são desdobramentos dessa vivência inicial (figuras 01 e 02).

(5)

5 O trabalho iniciava com um ensaio fotográfico de uma menina especifica, entre nove e onze anos, para criar um banco de imagens. O processo fotográfico tinha

autorização dos pais ou responsáveis, amparadas pelo Direito de Imagem7. Essas

imagens eram transpostas para o suporte desejado, dando início aos desenhos. O

desenho, feito primeiramente com pastel oleoso, possibilitava as sobreposições da tinta acrílica. Com isso, o desenho se constituía, determinando seu próprio tempo. Essa técnica assemelha-se muito aos trabalhos das crianças na pré-escola, em que o desenho, feito em giz de cera resurge depois de pinceladas de tinta. O objetivo é fazer uma aproximação entre o meu desenho e a técnica aplicada com as crianças.

O uso da cor azul, predominante nos trabalhos desse período, objetiva criar uma atmosfera onde o observador mergulhe o olhar sem encontrar qualquer obstáculo. Sendo o azul, a mais imaterial das cores, a natureza o apresenta geralmente em transparências.

Entrar no azul é fazer como Alice: “Passar para o outro lado”8, adentrar no caminho

do sonho9.

7

Disponível em: < https://www.fotografia-dg.com/direito-a-imagem/ > Acesso em: 23 nov. 2018.

8

Alice, personagem criada por Lewis Carroll, 1865.

9

CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos/Azul, Rio de Janeiro: José Olympio, 1999, p. 107. Figura 01-Série: Desenhos. Margela Arnold. Dimensões: 80x68 cm

Fotografia: Fonte: Margela Arnold

Fonte: Margela Arnold (2016)

Figura 02 - Série: Desenhos. Margela Arnold. Dimensões: 70 x 60 cm

(6)

6 Para estabelecer um comparativo com meu trabalho artístico atual, faço um cruzamento de histórias e de tempos: o clássico infantil Alice no País das Maravilhas,

de Lewis Carroll10 (publicado a 04 de julho de 1865) com o filme O Profissional de Luc

Besson, de 199411 (figuras 03 e 04).

A partir do conceito de rito de passagem (adolescência para o mundo adulto), penso plasticamente as questões da menina contextualizada na contemporaneidade. Para isso, busco referências na personagem Mathilda e na Alice do livro, Alice no País das Maravilhas.

O livro é uma das obras mais célebres do gênero literário nonsense12 e conta a

história de uma menina, chamada Alice, que cai em uma toca de coelho. É transposta para um

10

Charles Lutwidge Dodgson, mais conhecido pelo seu pseudônimo Lewis Carroll (1832- 1898), foi romancista, contista, fabulista, poeta, desenhista, fotógrafo, matemático e reverendo anglicano britânico. Lecionava matemática no Christ College, em Oxford. É autor do livro clássico Alice no País das

Maravilhas, além de outros poemas escritos em estilo nonsense ao longo de sua carreira literária.

11

No filme O Profissional, Mathilda é uma menina de onze a doze anos que, após o assassinato da sua família pela máfia de drogas, é amparada por um assassino profissional. Para vingar a morte do seu irmão de quatro anos, deseja se tornar uma assassina. Para isso, cuida da casa do seu acolhedor, ensina-o a ler e a escrever, em contra partida, ele a ensina como manusear uma arma.

12

Nonsense é uma expressão inglesa que denota algo sem sentido, nexo, lógica ou coerência. A expressão é frequentemente utilizada para denotar um estilo característico de humor perturbado, que pode aparecer em diversas artes. Naturalmente, isso implica dizer que o surrealismo, bem como o dadaísmo, explora o nonsense.

Fonte: O Profissional (1994) Figura 3: Cenas do filme

Figura 4: Cenas do filme

(7)

7 lugar fantástico povoado

por criaturas peculiares

e antropomórficas13,

revelando uma lógica do

absurdo, com

características dos sonhos (figura 04). Um mundo

repleto de

alusões satíricas14,

com paródias de poemas

populares infantis, ensinados no século XIX, dirigidas tanto aos amigos como aos inimigos de Carroll. Faz também, referências linguísticas e matemáticas frequentes através de enigmas, que contribuíram para a sua popularidade. É uma obra de difícil interpretação, contendo dois livros num só texto: um dirigido às crianças e outro aos adultos.

Nessa viagem onírica contada por Carroll, o leitor acompanha as transformações

de Alice através das ilustrações vitorianas.. Nesse percurso, surgem novas articulações

entre texto e imagem, que enfatizam a multiplicidade de leituras. Hoje, existem caminhos que desdobram novas possibilidades de leituras do que Alice pode vir a ser. Esse trabalho plástico é uma “caça” por Alice em suas metamorfoses contemporâneas.

Alice no País das Maravilhas foi ilustrada por John Tenniel (1820-1914), famoso no período vitoriano. Mostrou uma jovem indefesa e passiva diante de um mundo louco e sem sentido (figura 05). O país das maravilhas mostrava a loucura para almejar a sanidade, o desajuste para se adequar a novas situações sociais e culturais de um período histórico de profundas transformações. Os personagens do livro mostravam para ela como era o sistema, para que aprendesse a nele se integrar.

13

O antropomorfismo é uma forma de pensamento que atribui características ou aspectos humanos a animais, deuses, elementos da natureza e constituintes da realidade em geral. Nesse sentido, toda a mitologia grega, por exemplo, é antropomórfica.

14

A sátira é uma técnica literária que ridiculariza um determinado tema (indivíduos, organizações, estados), geralmente como forma de intervenção política, com o objetivo de provocar uma mudança.

Figura 04 Desenhos de John Tenniel/1865 Figura 04 Desenhos de John Tenniel/1865

Figura: 04 - Desenhos de John Tenniel no livro (1865)

(8)

8 2.1 ALICE: VIAJANTE DO MUNDO DOS SONHOS

A Alice descrita por Carroll é aventureira, aprende com as adversidades, para conhecer-se a si mesma. Para ela, o país das maravilhas não é um campo de batalha, mas uma viagem, um jogo, um jardim, uma aventura. Percebo, então, um distanciamento entre o texto de Carroll e a ilustração de Tenniel. Pois a Alice do ilustrador Tenniel senta emburrada na mesa do chá, sem vontade própria (2000, p. 87), enquanto que, a de Carroll percebe o país das maravilhas como um campo aberto à experiência, existindo, pois, uma contradição entre o texto e as ilustrações. Portanto, questiona-se se as ilustrações são de fato fiéis ao texto ou se criamos, a partir delas, um novo texto.

Um dos problemas da

contemporaneidade é o tempo. Em Carroll, o relógio estagnava na mesa do chá do Chapeleiro Louco, quando o tempo enfurecido parava de funcionar às seis horas da tarde

(2000, p. 89) (figura 06). Percebo

essa situação como uma metáfora,

Figura 06 - Desenhos de John Tenniel (1865) Figura: 05 - Desenhos de John Tenniel (1865)

Fonte: CARROLL (2000)

(9)

9 em que todos aqueles que insistem em

reproduzir as fórmulas e o lugar comum continuam presos ao ritual repetitivo da hora do chá. Relógio, cogumelo, lagarta, borboleta, cartas, coelho, as formas se dissolvem, misturam-se e mudam a todo o momento. Viajante do mundo dos sonhos, Alice descobriu que tudo estava em constante fluxo criador (figura 07).

Se a vida é sonho, Alice não tem como acordar, senão despertar. Não se trata apenas de ler o que está escrito, mas de ouvir que nós mesmos somos outros a cada

leitura e conosco nascem novas Alices. A personagem Alice extravasa as bordas do livro e vive múltiplas aventuras entre constelações de sonhos, pensamentos e afetos. O escritor Carroll deixou a porta do sonho entreaberta para que os leitores possam resignificar o livro Alice em consonância com o seu tempo histórico.

No contemporâneo, a personagem Alice se atualiza, cruza novos portais para o desconhecido, mergulha em novos ritos de passagem, revela-se em um feminino

sibilino15, recriando-se a cada amanhecer.

Carroll, em seu livro, rompe as fronteiras entre o mundo exterior e as experiências da mente, questionando a ideia de uma abordagem mimética. As transformações no universo das artes recriaram as experiências da menina, no corpo a corpo, como o mundo dos sonhos e do maravilhoso. No final do século XX, o espelho de Alice explodiu em milhares de pedaços, proliferando no imaginário coletivo um caleidoscópio de Alices.

3 MATHILDA: UMA ALICE CONTEMPORÂNEA

A personagem Mathilda sofre constantes violências físicas e psicológicas por parte da família. Com o assassinato de todos seus familiares ela é acolhida por um

15

Enigmático, ininteligível, obscuro, "sibilino", de acordo com o Dicionário Priberam da Língua

Portuguesa. Disponível< https://dicionario.priberam.org/sibilino >. Acessado em: 09 nov. 2018. Fonte: Alice no País das Maravilhas

Figura: 07 - Releitura do desenho de Tenniel

(10)

10 vizinho, Léon Montana (Jean Reno). O filme aborda a figura masculina, o assassino, e sua representação para o imaginário da menina, que transita entre pai e amante (figura 08).

Mathilda se encontra em transição e as provas às quais se submete têm como finalidade testar seu poder de resistência e capacidade, requeridos para viver em um ambiente inóspito. Com isso, as palavras de ordem são: resistência, força, potência e virilidade, atributos exigidos para continuar existindo.

O papel da mulher na contemporaneidade é fundamental para a compreensão do que entendemos por família nos dias atuais e na qual Mathilda está inserida. A conquista de um espaço e a condição de sujeito da própria vontade afetou diretamente a estrutura e a organização familiar contemporânea. Os papéis, tanto do homem quanto da mulher, misturaram-se e se alteraram, sendo repensados na sociedade atual.

É natural que, em meio a um processo histórico, ainda vivenciado, tenhamos um olhar receoso diante das mudanças. É bastante compreensível que as inovações nos assustem, portanto, as turbulências do caminho são decorrências naturais do processo

civilizatório16, como menciona Polyana Silva (2015, p. 56).

Cabe uma nova compreensão do conceito de família que, hoje, é multifacetada: famílias monoparentais, recompostas, binucleares, casais com filhos de casamentos anteriores e seus novos filhos, mães criando filhos sem os pais e vice-versa, casais sem filhos, filhos sem pais, meninos de rua, casais homossexuais, inseminações artificiais e úteros de aluguel. Com todas essas mudanças, a Constituição Brasileira, em sintonia à evolução do pensamento científico e à globalização, tem atualizado a legislação.

Por sua vez, o afeto, é o fio condutor dessa nova ordem familiar, onde a

dignidade da pessoa tende a redimensionar a tábua axiológica17 da educação e do

16

SILVA, Pollyana Lima e; RITTO, Cecília. A nova família brasileira. 2015. Disponível em < http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/a-nova-família-brasileira-ibge#Segue%20texto >Acesso em: 15 nov. 2018.

17

AXIOLOGIA: Filosofia dos valores, particularmente dos valores morais.

Figura: 08 – Imagem do Filme

(11)

11 direito, o que conduz a pensar sobre a ética do afeto. Uma ética que atravessa os

caminhos da amizade e da política, para a construção de pessoas melhores18.

Entretanto, no governo Bolsonaro está sendo questionado o conceito de “novas famílias”.

Freud19 (1976), com a invenção da Psicanálise, foi o principal responsável pela

compreensão de um novo discurso sobre o afeto. Nesse discurso cabe a subjetividade, enfim, a legitimação pelo que sentimos. A partir de um sentimento subjetivo abordo o rito de passagem da menina contemporânea, representada através de Mathilda. O estado de suspensão intrínseco do conceito de rito de passagem de Gennep, sobre o qual falaremos posteriormente, é pensado através do desenho, que tende a revelar sutilmente o rastro, o acaso, os registros de um novo tempo (figura 09).

Portanto, a sugestão de névoa é construída através dos brancos que remetem ao cristal e, consequentemente, a uma fluidez observada em todo o espaço que envolve a figura da menina. Em contraponto a isso, a figura está fixada em um determinado instante do movimento do rito de passagem, criando assim, uma ambiguidade, ou seja,

18

SILVA, Pollyana Lima e; RITTO, Cecília. A nova família brasileira. Disponível em < http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/a-nova-família-brasileira-ibge#Segue%20texto >Acesso em: 15 nov. 2018.

19

Freud parte da sua experiência com as histéricas para construir uma teoria dos afetos que é, no entanto, desenvolvida em termos metapsicológicos, nos quais o afeto é definido como um representante da pulsão. Conceito central da metapsicologia freudiana. Disponível em < https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/20706/20706_4.PDF>Acesso em: 14 dez. 2018.

Figura: 09 - Série: ALICES/técnica mista, 54 x 86 cm , 2018

(12)

12 um estado de suspensão. Há uma tentativa de fixar um instante frágil e inquietante. Por sua vez, dá-se uma profusão de tons de branco que se entrelaçam líquidos e fluídos, numa mutação constante.

Para potencializar os sentimentos da Mathilda, ocorre, propositadamente, uma eliminação do cenário, prevalecendo às manchas em contínuos fluxos de cores, que contribuem para revelar o estado psicológico da personagem. Com isso, determinando um entrelaçamento contínuo entre cenário e figura. Ainda, talvez, seja possível referenciar esse entorno por outro ângulo de observação: como uma paisagem banhada por uma tempestade.

Para dialogar com meu trabalho recorro às ideias de Sophie Ristelhueber e Brígida Baltar. Sophie me faz pensar sobre a noção de território e de sua história; com suas ruínas e os vestígios deixados pelo homem em lugares devastados pela guerra. Ela se concentra em revelar os eventos e as marcas da história, tanto no corpo como nas paisagens. A abordagem de Sophie implica que a situação do mundo atual é parte de um incessante processo histórico de destruição e construção. Nas suas fotografias, a superfície de determinados lugares se torna uma espécie de palimpsesto (pergaminhos reutilizados), em que as marcas de décadas de conflito continuam a ser registrados e ressignificados.

Tudo isso pode ser evidenciado pela metáfora da cicatriz, tanto no corpo humano quanto na paisagem. A ocupação pelo tempo, mostrada através de rugas e cicatrizes, também são marcas do embate provocado pela vivência, como se a ação do tempo lapidasse o corpo, tornando-o único e embutido de pura história (figura 10). Essa reflexão é trazida para o meu desenho, em que a metáfora da cicatriz encontra um equivalente nas tatuagens existentes no corpo da menina. Por outro lado, essas marcas dialogam com o rito de passagem e, ao mesmo tempo, se constituem em um detalhe que adquire autonomia própria (figura 11).

(13)

13

Fonte: site GALERIEPOGGI

Figura: 10 - Sophie Ristelhueber/ano: 2011/2012 Dimensões: 500 x 436 m

Figura: 11 - Série: ALICES/técnica mista, 86 x 60 cm , 2018

(14)

14 As obras de Brígida Baltar fazem referência às atmosferas que o silêncio e a névoa sugerem, tais como a delicadeza, o vazio, a suavidade, a invisibilidade, o apagamento e o etéreo.

A névoa, como o silêncio, tem sido uma constante nos trabalhos de diversos artistas, mas o que me interessa são as capacidades de múltiplas representações e como as atmosferas se comportam e podem se conectar em uma rede de significados. Em um tempo em que o excesso de informação parece ser uma tônica irreversível. O trabalho de Baltar explora o outro lado, a partir de “silêncios”.

Em Coleta da Neblina (2002), Baltar investe no artista como personagem, em um contexto em que ficção e realidade convergem, embaralhando as noções concretas sobre o que nos cerca (figuras 12/13). A artista age como uma coletora de imaterialidade, algo que sempre foi identificado como etéreo, entretanto, as suas representações têm volume, peso e densidade. O fato de vagar por uma paisagem coberta pela neblina amplia ainda o senso de silêncio da obra em um mundo regido pelo barulho e pelo ruído.

A obra das artistas citadas é repleta de metáforas, o que também aparece no meu trabalho. “Metáfora”, do grego "mudança" e "transposição", é uma comparação abreviada em que a imagem não está expressa, mas subentendida no processo de interpretação. A metáfora iguala-se ao iceberg, em que, muitas vezes, a parte visível é muito pequena comparada com a parte submersa. Nos trabalhos de arte, a parte que fica na superfície é a parte consciente, já a submersa é relativa ao subconsciente. Os Figura 10

Figura: 12 - Brigida Baltar/ Coleta da Neblina /Ano: 2002

(15)

15 elementos utilizados na minha obra, como o coelho, o cigarro e a tatuagem são gatilhos para adentrar no universo da trama textual do rito, verdadeiras metáforas (figura 13). Essas significações subentendidas criam uma variante de possibilidades de leituras.

O coelho tem por simbolismo, segundo Chevalier (1999), o cofre. Nele se deposita um tesouro material ou espiritual, sendo sua abertura equivalente a uma revelação. O cofre não pode ser aberto senão na hora previamente estabelecida e só pelo

seu detentor legítimo, aquele que possui a chave20.

O cigarro, por sua vez, é visto pelo adolescente

como algo "comum"

gerando uma espécie de status social. Demonstra, assim, pertencer a um grupo de pessoas que possuem interesses em comum. O que ocorre é que, nessa fase, o

20

DICIONARIO dos símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio. 1999, p. 262. Série: ALICES/ano: 2018

Dimensões: 77 x 64 cm

Figura 12

Figura: 14- Série: Série: ALICES/técnica mista, 77 x 64 cm, 2018 Figura: 13- Série: ALICES/técnica mista, 70 x 64 cm ,2018

Fonte: Margela Arnold (2018)

(16)

16 pensamento ainda é muito imaturo, enquanto o corpo começa a se tornar adulto. Tudo no mundo é novo e tudo se quer experimentar. Pode-se dizer que começar a fumar raramente é uma opção individual. A maioria dos indivíduos o faz em uma fase em que as opções de vida se dão em grupo, o que inicialmente é feito pela busca de afirmação (figura 14).

Quanto ao olhar, são múltiplos: olhares incertos, internos, vagos e pensativos. Ora contempla um ponto

futuro, induzindo o

observador a um processo mais demorado e reflexivo.

Produzindo assim, uma

narrativa dinâmica que

instigando a criar novos

significados (figura 15).

4 ALICES: A BUSCA POR UM CONCEITO DE RITO DE PASSAGEM NA CONTEMPORANEIDADE

Segundo Philippe Ariès, no livro História Social da Criança e da Família, publicado em 1960, os homens dos séculos X e XI não tinham um conceito de infância. Esse período, que hoje chamamos de infância, era negligenciado, reduzido a um curto período. A criança ao superar os primeiros perigos diante dos desafios da vida, normalmente, passava a viver em outra casa, afastando-se da família biológica. Logo, as trocas afetivas e as comunicações sociais eram realizadas longe da família. Era comum que as crianças, ao adquirirem independência física, compartilhassem com os adultos trabalhos braçais. De pequena, ela se transformava imediatamente em homem jovem, sem passar pelas etapas da juventude. A passagem por esse estágio da vida era insignificante (1981, p. 52).

Figura: 15 - Série: ALICES/técnica mista, 72 x 63 cm , 2018

(17)

17 A partir do final século XVII, quando começa a se configurar o mundo capitalista, houve uma mudança considerável, que alterou o panorama mencionado anteriormente. Por exemplo, a escola substituiu a aprendizagem direta como meio de educação, ou seja, a criança deixa de aprender através da convivência com adultos, começa assim, um longo processo de “enclausuramento” das crianças, estendendo-se até os nossos dias, ao qual se dá o nome de escolarização (1981, p. 11).

Segundo Ariès:

A arte medieval representava a criança como um homem em escala reduzida. A criança era, portanto, diferente do homem, mas apenas no tamanho e na força, enquanto as outras características permaneciam iguais. Seria então interessante comparar a criança ao anão, que ocupa um lugar importante na tipologia medieval. A criança é um anão, mas um anão seguro de que não permanecerá anão (ARIÈS, 1981, p. 14).

Depreendemos da citação anterior que não existia o entendimento de infância e tão pouco de adolescência. Até o século XVIII, a adolescência foi confundida com a infância.

O primeiro adolescente moderno típico foi o Siegfried de Wagner: a música de Siegfried pela primeira vez exprimiu a mistura de pureza (provisória), de força física, de naturismo, de espontaneidade e de alegria de viver que faria do adolescente o herói do nosso século XX, o século da adolescência (ARIÈS, 1981, p. 46).

Esse fenômeno, surgido na Alemanha wagneriana, penetraria mais tarde na França, em torno dos anos 1900. A "juventude” torna-se um termo literário e uma preocupação dos moralistas, políticos e pesquisadores. A juventude apareceu como depositária de novos valores, capazes de reavivar uma sociedade velha e esclerosada. A partir de então, a adolescência se expandiria, empurrando a infância para trás e a maturidade para frente (ARIÈS,1981, p. 46-47).

Feita essa pequena abordagem relacionada às questões da infância e adolescência, tanto na Idade Média como na primeira e segunda fase do capitalismo, podemos passar a um conceito de rito de passagem, que atenda as transformações culturais e sociais processadas pelas crianças no século XX e nessas duas primeiras

décadas do século XXI. Partimos de Arnold Van Gennep21, antropólogo alemão, que

21

Arnold Van Gennep (1873 - 1957), conhecido por suas descobertas sobre os ritos de passagem. Em seu mais importante livro, Les Rites de Passage/1909 (Os Ritos de Passagem), estudou de forma sistemática os rituais utilizados por diversas sociedades para marcar a transição dos indivíduos de uma para outra condição. Constatou que a maioria dos ritos analisados incluía as fases de separação, transição

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18 deu origem ao conceito de rito de passagem. Ele afirma que, ao longo da vida, o indivíduo realiza a passagem de inúmeras fronteiras que demarcam as idades ou eventos da existência humana. Por exemplo: a passagem da infância para a juventude e desta para a vida adulta, como também, batizados, casamentos, formaturas etc.

Esses “marcos simbólicos” são para Gennep, o que ele denominou de “ritos de passagem”, e é através deles que o homem toma consciência das mudanças em sua vida. Além de representar uma transição particular para o indivíduo, os “ritos de passagem” representam igualmente a progressiva aceitação e participação em determinado grupo social. Trata-se de um processo simultaneamente particular e coletivo.

Para Arnold Van Gennep o rito de passagem é:

[...] viver é continuamente desagregar-se e reconstituir-se, mudar de estado e de forma, morrer e renascer. É agir e depois parar, esperar e repousar, para recomeçar em seguida a agir, porém de modo diferente. E sempre há novos limiares a atravessar [...] (2011, p. 57).

Gennep (2011, p. 191) apontou para uma representação que consiste na separação, na margem e na agregação, rebatizadas por Turner (2013, p. 36-52) como preliminares, liminares e pós-liminares, ou como Terrin (2004, p. 100) expressa: a condição precedente, o período de marginalidade e a inserção na nova condição. Os ritos de passagem são uma resposta adaptativa; os indivíduos são obrigados a mudar de posição dentro de um sistema, saindo do plano individual para o coletivo.

Victor Turner22 elabora outro conceito de rito de passagem que dialoga com o de

Gennep:

As entidades liminares não se situam aqui nem lá; estão no meio e entre as posições atribuídas e ordenadas pela lei, pelos costumes, convenções e cerimonial. Seus atributos ambíguos e indeterminados exprimem-se por uma variedade de símbolos, naquelas várias sociedades que ritualizam as transições sociais e culturais. Assim, a liminaridade frequentemente é comparada à morte, ao estar no útero, à invisibilidade, à escuridão [...] (TUNER, 2013, p. 117).

De uma forma geral, os autores citados, pós Gennep, trazem semelhanças nos estudos sobre o conceito de rito de passagem, mesmo escrito em épocas diferentes. Para esses autores, os sujeitos encontram-se em processo transitório, o qual Turner vai

e incorporação. Concluiu então, que a representação simbólica da morte e da reencarnação contida nesses ritos ilustra os princípios de renovação, indispensáveis a qualquer sociedade humana.

22

Victor Turner (1920-1983), antropólogo britânico que dedicou boa parte de seus esforços intelectuais ao entendimento das simbologias subjacentes aos rituais, deu contribuição significativa à compreensão das práticas rituais ao refinar a noção de liminaridade e elaborar, a partir dela, o conceito de communitas.

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19 denominar de Liminaridade. Portanto, é um período que corresponde a um momento de margem: fase na qual os sujeitos apresentam-se indeterminados (processo transitório de “morte” social), para “renascerem” e reintegrarem-se à estrutura social. Liminaridade é um entre lugar, não sendo possível categorizá-los plenamente.

Os ritos de passagem, então, conferem sentido às transições entre estágios sucessivos da vida dos indivíduos, demarcam um antes e um depois, configurando rupturas com o cotidiano. No entanto, é uma passagem de um período a outro em que o indivíduo se desvincula da condição anterior, situando-se fora das áreas normais de controle normativo. Em última instância, é uma passagem que se caracteriza por um estado de suspensão.

4.1 O ADOLESCENTE NA SOCIEDADE ATUAL

Como já vimos anteriormente, a adolescência surge como categoria, no século XIX, na sociedade europeia e vai se configurar no século XX (PERROT, 1991, p. 160). Esse período crítico da vida é marcado pela pulsão sexual, psíquica e biológica, sendo a puberdade de meninos e meninas objeto de interesse e estudo para pesquisadores das mais diversas áreas.

Entendida como transição da infância para vida adulta, a adolescência ou a puberdade, ou ainda, a juventude são termos, muitas vezes, usados como sinônimos, porém cada área usa um termo de forma particular (GROPPO, 2000, p. 13). O termo puberdade, por exemplo, nas ciências médicas refere-se às transformações no corpo do indivíduo. A concepção de adolescência aparece ligada à psicologia, psicanálise e pedagogia e refere-se às mudanças na mente ou no comportamento. O termo juventude é abordado pela sociologia, tratando das funções sociais da infância e as funções sociais do adulto. Para os cientistas sociais, a juventude é genérica e mal definida para requerer o status de categoria social. As definições transitam por dois critérios, incompatíveis: o critério etário e o critério sociocultural.

O aspecto de transição parece permear igualmente nessas áreas. O jovem é visto como alguém que está no entremeio, não criança (aspecto físico, psicológico, comportamental ou social) e não um indivíduo adulto. É um período de ajustamento sexual, social, ideológico e de luta pela emancipação dos pais, com potencialidade para

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20 novas oportunidades (MANNHEIM, 1973, p. 52-53). O comportamento desse adolescente é culturalmente determinado por instituições sociais e pelo grupo social.

A maturidade tem início com a identidade estabelecida, o indivíduo aparece integrado, independente, podendo manter-se por si mesmo (ERIKSON, 1950, p. 228). É curioso notar a extensão dessa relação atual em uma sociedade que expressa um sentimento pela eterna juventude, do culto ao corpo, da cultura do narcisismo descrita por Lasch (1983), da inversão de posições entre adolescentes e pais, no qual, consultam os filhos sobre o que pensar, fazer, vestir; ou seja, uma sociedade adolescentizada (ANATRELLA, 1995).

4.2 DA MAIORIDADE CIVIL

A legislação brasileira determina a condição de responsável perante a lei para a

maturidade através da maioridade, que é a partir de 18 anos23. O novo Código Civil

(art. 5º, da Lei n. 10.406/2002), que entrou em vigor em 11 de janeiro de 2003, aponta para uma linha divisória que separa as idades das pessoas, tornando-as responsáveis, com capacidade de pleno exercício de seus direitos. A constituição estabelece os direitos políticos das pessoas, entre os quais o direito ao voto, facultado aos maiores de 16 anos e às pessoas acima de 70 anos, e obrigatório para os maiores de 18 anos. O Direito Penal estabelece que não podem ser responsabilizados os menores de 18 anos. Igual tratamento é dado ao menor no Estatuto da Criança e do Adolescente, que estabelece esses dois estágios da vida: criança até 12 anos e adolescente dos 12 aos 18 anos. No Direito do Trabalho, menores de 16 anos não podem ser empregados, a não ser como aprendizes, em que a idade mínima é de 14 anos. O Direito Civil determina as relações entre as pessoas e estabelece a incapacidade (a menores de 16 anos) e as capacidades relativa (para maiores de 16 anos e menores de 18 anos) e plena (para maiores de 18 anos) para os atos da vida civil. Alguns atos possibilitam a maioridade civil antes dos 18 anos, entre eles a emancipação pelos pais, o casamento, a colação de grau em nível superior, o exercício de emprego público efetivo. O casamento só pode realizar-se legalmente após os 16 anos, havendo possibilidade de autorização judicial.

23

Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10730855/artigo-5-da-lei-n-10406-de-10-de-janeiro-de-2002> Acesso em: 15 nov. 2018.

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21 A mudança do Código Civil reafirma que o componente etário está condicionado às situações socioculturais temporárias e provisórias de identificação, tornando-se simplificada a identificação da condição de maturidade por esse aspecto. As dificuldades de conseguir o primeiro emprego e os altos índices de desemprego dificultam (ou adiam) a entrada do jovem no mercado de trabalho formal. As crescentes exigências de escolaridade, a maternidade e a paternidade precoces determinam uma dependência financeira e estendem o período de permanência junto aos pais.

Somados ao considerável aumento da média de vida, nesse início de século XXI, tem-se o alargamento da faixa etária delimitada à juventude, adiando a entrada na vida adulta. A condição de ser adulto parece distanciar-se pela ausência de demarcações institucionalizadas, “[...] os jovens vivem sua situação com crescente insegurança, pois os processos “iniciáticos”, que assegurariam seu inserimento na ordem social e cultural dos adultos, desapareceram há muito tempo” (BALANDIER, 1976, p. 69).

Aos adolescentes, cabe-lhes inventar seus próprios ritos, como afirma Balandier. O consumo de drogas, de bebidas alcoólicas e o tabagismo, por exemplo, tornam-se ritos, pois são colocados como desafio para se entrar em certos grupos. Tais ritos aparecem como resultantes da iniciativa das confrarias e não do sistema social. No grupo familiar, carro novo, celulares, cópia da chave de casa, conta-corrente individual são usados como mecanismos que estimulam a responsabilidade, muitas vezes, fornecidos como forma de acompanhamento e controle do jovem pelos pais. Em um e em outro exemplo, prioriza-se não o que o jovem produz, mas o que compra ou consome. Sob essa perspectiva, a inserção dá-se em apenas uma das esferas da sociedade, vinculando-se poder de compra à responsabilidade. Embora a independência financeira possa ser um acesso para a compreensão sobre os critérios dessa classificação, aproxima-se mais de uma falsa atribuição de responsabilidades. A artificialidade e a banalização suspendem o fluir do rito e, tampouco, o transforma em

rito de causação, pois não objetiva a transformação24.

A incerteza de posições, a liminaridade mostra outro aspecto interessante: o rito de passagem é especial, porque produz uma ambiguidade classificatória e a possibilidade de transgressão e transcendência. Com sua supressão perde-se o movimento, esse continuum. Seu alargamento, hoje, transforma-o em um estado, fixo,

24

SILVA, Pollyana Lima e; RITTO, Cecília. A nova família brasileira (2015). Disponível em < http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/a-nova-família-brasileira-ibge#Segue%20texto >. Acesso em: 15 nov. 2018.

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22 duro, prisional. Com o esgotamento do rito na sociedade contemporânea, desenha-se um vazio identitário. Hoje, o rito de passagem não é mais evidente. Outras manifestações devem representar a transição e apontar para o locus do adulto. Para Edgar Morin (2003) o acontecimento é acidental, perturbador-modificador:

[...] põe em ação uma dialética evolutiva-involutiva: por um lado, desencadeia um processo de reabsorção que, se o acontecimento for perturbador demais, desencadeia mecanismos de regressão, fazendo ressurgir um fundo arcaico protetor e/ou exorcizado (...); por outro lado (...) o acontecimento suscita um processo de inovação que vai integrar e difundir a mudança na sociedade (2003, p. 28).

Atualmente existem leis que determinam limites dos estágios de desenvolvimento do indivíduo. Tais leis servem para nortear as atividades sociais e econômicas na sociedade. Entretanto, os processos de rito de passagem não são determinados exclusivamente por leis. A sociedade está em constantes mudanças e consequentemente, os ritos de passagem também estão

submetidos às transformações culturais de um determinado período histórico. Os ritos de passagem são essencialmente uma questão cultural.

No caso do meu trabalho, as preocupações têm sido perceber como determinado rito (adolescência para a fase adulta) está se configurando na passagem do século XX para o século XXI, mais especificamente nas duas primeiras décadas. A forma de representação da menina não é mais a mesma. Por exemplo, as meninas da obra da desenhista gaúcha Alice Soares, que configuram o rito de passagem das décadas de 1950, 1960 e 1970, têm outra composição (figura 16).

Figura: 16- Alice Soares, Menina no banco, 1977, Giz pastel, 30 x 20 cm

(23)

23

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como foi dito no início desse trabalho, minha poética leva em consideração aspectos que percebo do mundo, entre eles, a crescente fragmentação e disjunção na contemporaneidade. O trabalho se justifica pela técnica que uso para construção dos desenhos, que consiste numa “brincadeira” com os mais diversos materiais, até que os mesmos consigam transcender ao próprio material e, com isso, expressar meus sentimentos e as minhas relações com o mundo a qual pertenço. O rito de passagem também se constitui em experimentar novas vivências diante das incertezas da existência. Portanto, essa relação entre a experimentação dos materiais e às vivências sociais e culturais de uma menina em pleno rito de passagem constroem os desenhos, fazendo uma reflexão sobre as pessoas de um determinado tempo histórico.

Para dialogar com meu trabalho fiz recorrência à personagem Alice, que, em seus constantes desdobramentos, afirma: “Sei que sou contínua transformação” (CARROL, 2000, p. 61). Os meus desenhos, a cada movimento do processo criativo, transfiguram-se, tal como as inúmeras aventuras de Alice. Por sua vez, Mathilda, do filme O Profissional, é outra referência que serviu de inspiração para meus desenhos, como também, para pensar o rito de passagem na atualidade. Também recorri a duas artistas contemporâneas: Sophie Ristelhueber e Brígida Baltar. Elas contribuíram para uma reflexão, tanto das questões formais, quanto a maneira de pensar plasticamente o mundo contemporâneo.

Nessa viagem sensorial, percebo na minha poética, entre outros elementos, a névoa, e nela as transparências, as sobreposições, o lirismo, a ranhura, as formas-pensamento e o lúdico. O olhar e a gestualidade da menina em sintonia com o entorno e a atmosfera de um espaço em suspensão constrói uma narrativa psicológica. Esse ambiente é representado, ora com gestos suaves, ora com pinceladas incisivas. As transformações, as misturas, as fusões dos materiais, representam o efêmero do rito de passagem. Tudo ajuda a expressar os mais diversos sentimentos.

Durante o processo de trabalho, ocorrem verdadeiras metamorfoses em que o desenho transforma-se pela ação do traço e das próprias manchas de tinta em outra coisa inesperada. Ou seja, o desenho surpreende e modifica o próprio artista.

O entrelaçamento dessas várias referências forneceu-me elementos para pensar a minha poética. Surgiram novas formas, tonalidades fluídas e úmidas em palimpsestos,

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24 onde os rastros da parafina, como do pastel, sugerem, muitas vezes, novos fazeres. Isso determinou sobreposições de tempo e de suspensão. O tempo dos tons da tinta e dos traços, seguido dos tempos de espera do fazer, deram sequência ao desenho. Tal maneira de trabalhar revelou rastros, manchas, danças de grafismos, que se misturaram em campos de passagens, os quais são simultaneamente enfáticos e, por outro lado, frágeis e voláteis.

O curso de poéticas, que originou este trabalho, desencadeou novos olhares, estabelecendo um processo reflexivo mais agudo sobre o meu fazer artístico, pois o artista também produz conhecimento. Sendo assim, desenho uma fantástica aventura do eterno transformar-se, diante da imprevisibilidade que é a vida.

REFERÊNCIAS

ANATRELLA, Tony. Adolescentes sem fim: 12/30 anos, puberdade, adolescência,

pós-adolescência. "Uma sociedade adolescente". Interminables adolescences: les 12/30

ans, puberté, adolescence, postadolescence. “Une societé adolescentrique”. Paris: CERF/Cujas, 1995.

ARIÉS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Tradução: Dora Flaksman, 2. ed. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1981.

BALANDIER, Georges. “Pais e filhos, primogênitos e caçulas”. Antropo-lógicas. Tradução de Oswaldo Elias Xidieh. São Paulo, Cultrix/EDUSP, 1976.

________ . O dédalo: para finalizar o século XX. Tradução: Suzana Martins. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1999.

BALTAR, Brígida. Site itaucultural. Disponível em

<http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa17557/brigida-baltar>Acesso em: 25 nov. 2018.

BAUMAN, Zygmund. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. BESSON, Luc. O Profissional, França: Columbia Pictures: 1994.

CARROLL, Lewis. Alice no país das maravilhas. Tradução: Isabel Del Lorenzo. 2. ed. São Paulo: Summus, 2000.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números). Tradução: Vera da Costa e Silva. 14. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999.

(25)

25 DA MATTA, Roberto. Apresentação. In: GENNEP, Arnold van. Os ritos de passagem. Tradução: Mariano Ferreira. Petrópolis: Vozes, 1977. p. 11-21.

ERIKSON, Erik H. Infância e sociedade. Childhood and society. New York: W.W. Norton, 1950.

FREUD, Sigmund. Inibições, sintomas e ansiedades, ESB v. 20, Rio de Janeiro: Imago, 1976.

GENNEP, Arnold Van. Os Ritos de Passagem: estudo sistemático dos ritos da porta e da soleira, da hospitalidade, da adoção, gravidez e parto, nascimento, infância, puberdade, iniciação, coroação, noivado, casamento, funerais, estações, etc. Tradução de Mariano Ferreira. 3. ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 2011.

GROPPO, Luis A. Juventude: ensaios sobre Sociologia e História das juventudes modernas. Rio de Janeiro: DIFE, 2000.

LASCH, Christopher. A Cultura do Narcisismo: a vida americana numa era de esperanças em declínio. Tradução: Ernani Pavaneli Moura. Rio de Janeiro: Imago, 1983.

MANNHEIM, Karl. Diagnóstico de nosso tempo. Tradução: Octavio Alves Velho. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.

MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX: necrose. Tradução: Maura Ribeiro Sardinha, v. 2, 3 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.

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TERRIN, Aldo Natale. O rito: antropologia e fenomenologia da ritualidade. Tradução: José Maria de Almeida. São Paulo: Paulus, 2004.

TURNER, Victor, O processo ritual: estrutura e antiestrutura, Chicago: Aldine Publishing Co, 1969; trad. Bras. Nancy Campi de Castro. Petropolis: Vozes, 2013.

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