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A escuridão da noite e o universo em que vivemos

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Academic year: 2021

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A escurid˜

ao da noite e o universo em

que vivemos

Domingos Soares

Por que o c´eu ´e escuro `a noite? O que este simples fato nos ensina sobre o universo em que vivemos?

“— Ora, o c´eu ´e escuro `a noite porque o Sol est´a iluminando o outro lado da Terra! O que isto tem a ver com a totalidade do universo em que vivemos?”, algu´em poderia muito apropriadamente argumentar.

Mas, se o universo ´e infinito e possui infinitas estrelas e gal´axias, haver´a certamente uma estrela em qualquer dire¸c˜ao para a qual olharmos. A ´area que o Sol ocupa no c´eu ´e 180.000 vezes menor que a ´area de todo o c´eu. Desta forma dever´ıamos esperar que o c´eu brilhasse com a intensidade de 180.000 s´ois, mesmo `a noite! Seria imposs´ıvel a nossa vida no interior de t˜ao extraordin´aria fornalha!

Sendo assim torna-se perfeitamente razo´avel a quest˜ao: “— Por que o c´eu, num universo infinito em extens˜ao e com infinitas estrelas, ´e escuro `a noite?”

A escurid˜ao do c´eu noturno, nos termos do par´agrafo anterior, ´e conhecida na literatura cient´ıfica como o “paradoxo de Olbers”. Este nome deve-se ao m´edico e astrˆonomo alem˜ao Heinrich Olbers (1758-1840), que em 1823 chamou a aten¸c˜ao para a quest˜ao, e apresentou uma poss´ıvel solu¸c˜ao — que logo se revelou falha.

Olbers argumentou que a luz das estrelas distantes era absorvida pela mat´eria interestelar e que, portanto, o c´eu noturno n˜ao deveria brilhar t˜ao intensamente como o disco solar. Esta interpreta¸c˜ao ´e falha porque o meio interestelar, com o passar do tempo, tornar-se-ia t˜ao quente que passaria a brilhar t˜ao intensamente quanto um disco estelar! Toda a radia¸c˜ao que sobre o meio interestelar incidisse seria reemitida.

O problema ´e mais antigo, no entanto. N˜ao foi Olbers o primeiro a levantar a quest˜ao. Merece men¸c˜ao o grande astrˆonomo Johannes Kepler

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(1571-1630), provavelmente o primeiro a propor este problema. Galileu Ga-lilei (1564-1642), o grande astrˆonomo italiano, apontou, pela primeira vez, a rec´em-inventada luneta para o c´eu, em 1609. Entre outras grandes descober-tas, ele logo verificou que a Via L´actea era na verdade constitu´ıda por um grande n´umero de estrelas. Kepler, que acreditava num universo finito, argu-mentou, ent˜ao, que a escurid˜ao do c´eu noturno era uma evidˆencia de que ele estava com a raz˜ao, isto ´e, o universo era de fato finito. O n´umero de estrelas vis´ıveis na Via L´actea n˜ao era suficiente para tornar o c´eu noturno brilhante como a superf´ıcie do Sol. Veremos a seguir que tamb´em Kepler estava enga-nado. A solu¸c˜ao do “paradoxo de Olbers” n˜ao exclui a possibilidade de um universo infinito.

Imagem obtida pelo Telesc´opio Espacial Hubble de uma regi˜ao do aglomerado globular Messier 4. O c´eu n˜ao ´e totalmente recoberto por estrelas, mesmo nesta regi˜ao t˜ao densamente povoada (Imagem: NASA e H. Richer/Universidade da Col´umbia Britˆanica, Canad´a).

Neste ponto da discuss˜ao ´e bastante ´util a utiliza¸c˜ao de uma analogia. Suponhamos um observador no meio de uma extensa floresta. Existem mui-tas ´arvores, distribu´ıdas mais ou menos uniformemente, por todo o lado.

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Suponhamos ainda que cada ´arvore possui um diˆametro m´edio igual a “d” — 20 cm por exemplo. E que as ´arvores estejam separadas umas das ou-tras por uma distˆancia m´edia “L” — 2 metros, por exemplo. Cada ´arvore ocupar´a, portanto, uma ´area m´edia total “A”, igual a L vezes L, o que no nosso exemplo corresponder´a a 4 metros quadrados. ´e relativamente f´acil mostrar, teoricamente, que o observador n˜ao conseguir´a enxergar nada al´em de uma distˆancia “D” igual a A/d. A sua linha de vis˜ao sempre encontrar´a um tronco de ´arvore, se a floresta possuir uma extens˜ao maior do que D.

Teremos, portanto, em nosso exemplo acima, que, al´em de uma distˆancia de 4/0,20=20 metros, a nossa vis˜ao ser´a obstru´ıda pelo que poderemos cha-mar de um “muro” de troncos de ´arvores. Esta distˆancia ´e chamada de “distˆancia de recobrimento”, ou, “limite de fundo”. A previs˜ao te´orica pode facilmente ser verificada numa floresta de verdade! E funciona!

O resultado D=A/d ´e fisicamente bastante razo´avel: se a ´area m´edia ocu-pada por uma ´arvore ´e pequena, intuitivamente, percebemos que a distˆancia de recobrimento deve ser pequena tamb´em — a floresta ´e muito densa; intui-tivamente, tamb´em, percebemos que, se os troncos das ´arvores forem muito grossos, ser´a menor a distˆancia de recobrimento. Em linguagem matem´atica, dizemos que a distˆancia D ´e diretamente proporcional `a ´area ocupada por uma ´arvore e inversamente proporcional ao diˆametro da ´arvore.

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Esta floresta n˜ao ´e grande o suficiente para que vejamos um “muro” de troncos ao fundo. Podemos discernir claramente faixas do c´eu. Se a floresta fosse mais densamente povoada de ´arvores e se os troncos fossem mais largos, a vis˜ao do c´eu de fundo poderia, eventualmente, ficar completamente bloqueada (Imagem: Roman Zakharii).

O que isto tem a ver com a solu¸c˜ao de nosso problema? Vamos ver. No caso do cosmos, temos ao inv´es de uma ´area “A”, um volume “V” m´edio, ocupada por uma estrela — ou, uma gal´axia, o que n˜ao faz diferen¸ca para o argumento. Cada estrela apresenta para o observador um disco de ´

area m´edia “s”. Podemos ent˜ao calcular a “distˆancia de recobrimento” para este caso tamb´em. E que representar´a a distˆancia na qual ver´ıamos um c´eu recoberto, com a intensidade luminosa do disco solar. Esta distˆancia vale, de forma an´aloga ao exemplo da floresta, V/s. Em n´umeros, o que significa isto?

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repre-sentante de todo o universo. Uma estrela, na vizinhan¸ca do Sol, ocupa um vo-lume m´edio de 100 anos-luz c´ubicos, que ´e a grandeza “V” em nossa equa¸c˜ao. Consideremos o disco solar, para o qual conhecemos “s”, como representante de todos os discos estelares, e obteremos, ent˜ao, para a distˆancia de recobri-mento, a imensa distˆancia de 6.000 trilh˜oes de anos-luz! A Via L´actea possui um diˆametro de 100.000 anos-luz. Isto significa que, considerando apenas a Via L´actea, n˜ao existem estrelas suficientes para o recobrimento do c´eu com radia¸c˜ao estelar.

E se considerarmos todo o universo? A distˆancia de recobrimento ser´a muito maior pois as gal´axias — os “lares” das estrelas — est˜ao separadas por distˆancias imensas.

O inglˆes Edward Harrison (1919-2007), que foi professor em´erito de F´ısica e Astronomia da Universidade de Massachusetts, nos Estados Unidos, foi o respons´avel pela apresenta¸c˜ao da solu¸c˜ao definitiva do enigma da escurid˜ao do c´eu noturno.

Em um not´avel livro, intitulado “A escurid˜ao da noite: um enigma do universo”, escrito em 1987 e publicado em portuguˆes, em 1995, pela Jorge Zahar Editor Ltda., ele apresenta todos os detalhes hist´oricos do problema, e discute as solu¸c˜oes propostas — um total de 15! A d´ecima quinta ´e a solu¸c˜ao que ele apresenta, e, a definitiva. A sua solu¸c˜ao representa uma s´ıntese do que h´a de correto em algumas das solu¸c˜oes apresentadas.

Entre os proponentes das solu¸c˜oes para o enigma encontram-se os j´a men-cionados Kepler e Olbers, o f´ısico irlandˆes William Thomson (1824-1907) — lorde Kelvin —, e, surpreendentemente, um poeta e prosador, o americano Edgar Allan Poe (1809-1849).

Poe, tamb´em um cientista amador, publicou em 1848, um ano antes de sua morte, um ensaio intitulado “Eureka: A Prose Poem” (“Eureka: um Poema em Prosa”), onde, entre outras coisas, ele apresenta a ideia — correta — de que o c´eu noturno n˜ao ´e brilhante porque a distˆancia das estrelas de fundo ´e t˜ao grande que a sua luz ainda n˜ao teve tempo de nos atingir, devido `a velocidade finita da luz. Implicitamente, ele considera que as estrelas possuem idade finita pois, caso contr´ario, apesar da finitude da velocidade da luz, teria havido tempo suficiente para que a sua luz nos atingisse.

Lorde Kelvin foi mais al´em. Essencialmente, ele concorda com Poe. A sua importante contribui¸c˜ao ´e de natureza cient´ıfica. Ao contr´ario de Poe, cujos argumentos s˜ao de car´ater especulativo, ele mostrou, atrav´es de c´alculos de-talhados, que n˜ao s´o a velocidade finita da luz era um ingrediente importante na solu¸c˜ao do enigma, mas que tamb´em a existˆencia finita das estrelas era, de

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fato, fundamental. Antes da luz das estrelas mais distantes nos atingir, elas deixariam de brilhar. Outras estrelas nasceriam, mas Kelvin calculou que a quantidade de luz que nos atinge ´e, em qualquer instante, finita e muito pequena.

A prop´osito, Kelvin n˜ao acreditava em paradoxos: “— Em ciˆencia n˜ao existem paradoxos”, afirmou certa vez, em 1887, num discurso acadˆemico. Para ele, os paradoxos eram resultados de mal-entendidos, em outras pala-vras, do uso equivocado do conhecimento cient´ıfico, dos fatos experimentais e das evidˆencias observacionais exibidas pela Natureza.

Harrison fez o c´alculo do limite de fundo, para todo o universo, utilizando dados astronˆomicos atualizados, e encontrou, ao inv´es dos 6.000 trilh˜oes men-cionados acima, uma distˆancia de 100 bilh˜oes de trilh˜oes de anos-luz! Mesmo sendo esta distˆancia t˜ao grande, o universo pode ser maior, e poder´ıamos ter um c´eu “infernalmente” recoberto de luz. Por que, afinal de contas, isto n˜ao acontece? Como a idade m´edia das estrelas ´e da ordem de 10 bilh˜oes de anos — que, incidentemente, ´e a dura¸c˜ao de “vida” prevista para o Sol — conclui-se que antes da sua luz nos atingir, ou seja, ap´os percorrerem 10 bilh˜oes de anos-luz, elas simplesmente deixam de emitir luz, por chegarem ao final de seu ciclo evolutivo. Outras estrelas s˜ao formadas, mas a energia total dispon´ıvel em cada instante n˜ao ´e suficiente para que o c´eu seja t˜ao brilhante como o disco solar.

Aqui entra a contribui¸c˜ao de Kelvin, atrav´es de seus c´alculos. Em 1901, ele mostrou que a raz˜ao entre o brilho do c´eu noturno e o brilho do disco solar ´e igual `a raz˜ao entre o tempo de vida das estrelas e o tempo necess´ario para a luz percorrer a distˆancia de recobrimento. Com os dados apresentados acima vemos, ent˜ao, que o brilho m´edio do c´eu noturno ´e, na realidade, igual a 10 bilh˜oes de anos divididos por 100 bilh˜oes de trilh˜oes de anos, ou um d´ecimo trilion´esimo, do brilho do disco solar!

A conclus˜ao final de Harrison, e que sintetiza de forma bastante simples os c´alculos de Kelvin, ´e de que n˜ao h´a energia suficiente no universo para que o c´eu se apresente excessivamente brilhante, como afirma o paradoxo de Olbers. O universo pode n˜ao ser infinitamente grande, mas ´e grande o suficiente para n˜ao ser totalmente preenchido por uma radia¸c˜ao t˜ao intensa quanto aquela que observamos diretamente no Sol.

Quer dizer, o universo ´e realmente muito grande, mas a disponibilidade de energia n˜ao ´e suficientemente grande para que o c´eu noturno brilhe com a intensidade do disco solar.

Referências

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