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Devir-tutor : cuidado e vínculo na formação em saúde mental.

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Academic year: 2021

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Cadernos do Cuidado ISSN 2595-0886

DEVIR-TUTOR: CUIDADO E VÍNCULO NA

FORMAÇÃO EM SAÚDE MENTAL

Aisllan Assis1

RESUMO

Neste relato de experiência, pretendo narrar e analisar a vivência de ser tutor. A presença desse agente nos processos de formação em saúde tem se difundido em cursos de diversas modalidades. No entanto, a experiência e o papel desse educador são pouco discutidos nas produções acadêmicas, em especial nos próprios projetos ou processos educativos que o formam e o convocam. A experiência de ter sido tutor no Projeto Caminhos do Cuidado será aqui narrada de modo a explicitar como esse papel combinou o cuidado, expresso na prática educativa, na relação entre os profissionais e na organização do projeto; e o vínculo, na forma da amizade, que oportunizou o trabalho e o aprendizado coletivo. Desse modo, o projeto possibilitou tanto a formação dos agentes comunitários de saúde, auxiliares e técnicos de enfermagem em Saúde Mental como a de um educador sensível e acolhedor que aprende, ensina e cuida a cada encontro, em um devir-tutor. Palavras-chave: Saúde Mental. Capacitação profissional. Agentes comunitários de saúde. Atenção Primária à Saúde.

1 Enfermeiro, mestre em Saúde Coletiva, especialista em Psiquiatria e Saúde Mental. Professor de Saúde Coletiva da

Escola de Medicina da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Contato: aisllanassis@ufop.edu.br

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INTRODUÇÃO

O Projeto Caminhos do Cuidado, formação em Saúde Mental, crack, álcool e outras drogas, é uma das maiores iniciativas já realizadas no campo da educação em saúde para profissionais do Sistema Único de Saúde (SUS). Nascido, gestado e realizado no âmbito da resposta pública ao enfrentamento do crack, o projeto possibilitou encontros de educação e trabalho em saúde, em todo território nacional, voltados para o acolhimento, que tiveram também como objetivo a construção de redes de atenção psicossocial e mudanças nas práticas de cuidado a pessoas usuárias de drogas. Esses encontros tive-ram a participação de coordenadores, formadores e tutores, agrupando um grande número de pessoas com culturas diferentes. Assim, o projeto formou mais de 290 mil agentes comunitários de saúde, auxiliares e técnicos de enfermagem do SUS. Em cada encontro no Caminhos do Cuidado, éra-mos cercados de uma infinidade de conhecimentos e de experiências, que eram mobilizados para o cui-dado de usuários, familiares e trabalhadores que conviviam, nas grandes e pequenas cidades, com os riscos e danos causados pelo uso prejudicial das drogas. Eu participei do Projeto Caminhos do

Cuidado como tutor, e essa participação ocorreu por meio de seleção pública, realizada juntamente com o curso de formação para tutores. Como pro-fissional de Saúde Mental, fui convocado com a responsabilidade de promover os encontros do Pro-jeto, articulando, nesse trabalho, os conhecimentos e os objetivos estabelecidos no programa educativo e também as experiências, histórias e saberes dos participantes do curso. A partir desse processo, pude perceber que ser tutor no Projeto Caminhos

do Cuidado me engajou em uma experiência de aprender e de ensinar em saúde.

Juntamente com dois amigos, também tutores, e apoiado por toda a equipe do Projeto, participei da formação de quatro turmas do curso, em duas cida-des de dois estados brasileiros, no ano de 2014. As muitas memórias, histórias e afetos desses

encon-tros, que têm me acompanhado desde então, foi a principal motivação para compartilhar, neste relato, a experiência de dois aprendizados que contribuíram com o aperfeiçoamento e a humanização de minha prática como profissional de saúde e como educador.

O primeiro aprendizado foi ter o cuidado como uma atitude prática e como uma ação terapêutica (AYRES, 2004) durante todos os encontros do curso. Dessa forma, a prática educativa (ensinar e aprender), a relação entre os participantes (acolhi-mento, respeito e afeto) e a organização do curso (qualidade e responsabilidade) operaram o próprio sentido de cuidado que nomeava e estruturava o Projeto, ou seja, os encontros do curso eram encontros do cuidado (ASSIS, 2014) entre tutores, equipes e participantes.

O segundo aprendizado de ser tutor que quero compartilhar é o modo de estabelecer o vínculo nos encontros de educação em saúde. Tornar-se amigo, passar dos papéis de professor-aluno para o de cuidador-cuidador, com os mesmos desafios e sabe-res distintos, possibilitou que tutor e participantes, ao mesmo tempo em que aprendiam e ensinavam, também cuidavam uns dos outros. Escutar, chorar, abraçar, rir foram verbos operados nos encontros do curso que construíram laços de amizade entre todos. Considerando esses aspectos, este relato pre-tende compartilhar como esses dois aprendizados foram possíveis a partir do papel e da vivência de ser tutor. Como toda experiência, essa narração é baseada nas memórias e histórias registradas pelo autor. Para além dos aprendizados compar-tilhados, espera-se também contribuir com os processos de formação e educação em saúde no âmbito do SUS, refletindo sobre o papel do tutor em cursos e projetos.

PELOS CAMINHOS DO CUIDADO

O Projeto Caminhos do Cuidado foi uma inicia-tiva do Ministério da Saúde, tendo como executores a Fundação Oswaldo Cruz, o Grupo Hospitalar

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Conceição e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com o objetivo de oferecer formação na temática do tratamento aos usuários do crack, do álcool e de outras drogas. Essa formação visou principalmente ao reconhecimento, à atuação e à intervenção de profissionais das equipes de Saúde da Família na utilização das drogas citadas, tendo a Reforma Psiquiátrica e a estratégia de Redução de Danos como eixos teóricos políticos principais. O Projeto integrou a resposta pública aos proble-mas relacionados ao uso prejudicial dos tóxicos mencionados e envolveu diferentes grupos e espe-cialistas da área de Saúde Mental (BRASIL, 2013).

A atividade desses grupos incluía ações de Educa-ção Permanente em Saúde (EPS), como dispositivo para a reflexão sobre a relevância do problema no âmbito de cada equipe e território, além de conheci-mentos e técnicas para uso no cotidiano da ação dos trabalhadores nos serviços a que pertenciam.

O Caminhos do Cuidado teve como meta a for-mação da totalidade de agentes comunitários de saúde, além de um técnico ou auxiliar em enfer-magem das equipes de Saúde da Família do país, durante os anos de 2013 a 2015. Essa meta foi alcançada e, ao final do período, foram envolvidos 290.197 trabalhadores dessas categorias, além de 2.198 tutores formados (BRASIL, 2016).

A formação dos agentes e técnicos constituiu--se em cinco encontros semanais, intercalados por atividades de dispersão, que são aquelas desen-volvidas em seu território de atuação e junto à sua equipe de saúde. Além dos agentes comunitários de saúde (ACS) e dos auxiliares técnicos de enfer-magem (ATENF), o Projeto envolveu profissionais que foram selecionados em editais públicos para a função de tutores. Esses profissionais receberam um curso que consistia em quarenta horas de ativi-dades intensas com a equipe pedagógica do Projeto e contemplava dois grandes eixos. O primeiro eixo era intitulado Conhecendo o território, as redes de

atenção, os conceitos, políticas e as práticas de cui-dado em saúde mental. Enquanto o segundo eixo

era denominado A caixa de ferramentas dos ACS e

ATENF na Atenção Básica, tendo como tema trans-versal a Reforma Psiquiátrica, Redução de Danos e Integralidade do Cuidado. Além da formação pre-sencial, foi disponibilizado, ao tutor, um módulo de Educação à Distância, possibilitando o seu acom-panhamento pela equipe pedagógica, que lhe deu o suporte necessário à sua atividade de tutoria.

Como tutor, selecionado por edital público, par-ticipei do curso de formação de tutores do Projeto e realizei, juntamente com outros dois tutores, o curso de formação para quatro grupos de profis-sionais, sendo dois em cidade do interior do estado do Rio de Janeiro e dois em cidade do interior do estado do Mato Grosso. Com esse trabalho, tive contato e experimentei o processo de formação de todo o Projeto, entre o curso de formação de tuto-res e o curso de formação dos profissionais das equipes de Saúde da Família com, aproximada-mente, 200 pessoas em uma diversidade incrível de histórias e conhecimentos.

Pelos Caminhos do Cuidado recebi uma for-mação como tutor que integrou conhecimentos específicos da área de Saúde Mental e do cuidado a pessoas que vivenciam problemas com o uso do crack ou outras drogas. O encontro com especia-listas, os debates e a própria rede de pessoas que comigo participaram do curso propiciaram-me um incremento valioso de conhecimentos e técnicas para o trabalho em Saúde Mental. A cada etapa do curso, sentia-me renovado nas expectativas positi-vas para o enfrentamento dos desafios advindos do trabalho em saúde. Vale destacar que, durante todo o curso de formação de tutores, fomos assessora-dos, acolhidos e cuidados pela equipe do Projeto de maneira atenciosa, desde a hospedagem, o transporte e a alimentação, até as conversas, os aconselhamentos e a demonstração de respeito, que fizeram dessa etapa do Programa uma experi-ência que combinou cuidado e educação em saúde, pois integrou aprendizado, atenção e acolhimento com qualidade (PINHEIRO; CECCIM, 2011).

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Por meio do Caminhos do Cuidado também conheci duas diferentes realidades regionais no encontro com agentes comunitários de saúde, auxiliares e técnicos de enfermagem das equi-pes de Saúde da Família de dois estados do país. Homens e mulheres que, em um esforço incrível de vida e trabalho, seguem oferecendo cuidado a uma enorme quantidade de pessoas, as quais chamam carinhosamente de “meus usuários”.

A diversidade de histórias e experiências com as quais tive contato durante os encontros do curso de formação é impossível de ser completamente enumerada, mas há dois destaques que gostaria de fazer. O primeiro diz respeito às dificuldades e aos desafios que esses trabalhadores enfrentam no cotidiano de seu trabalho. Salários e condições laborais precários evidentes, principalmente na insegurança dos vínculos empregatícios com as prefeituras ou secretarias de saúde; a violência, a pobreza e as más condições sanitárias a que são submetidos, vivendo e trabalhando nas regiões que percorrem todos os dias para cuidar e acolher, e talvez o que mais os angustiavam, as dificulda-des e, às vezes, a incapacidade de lidar com os problemas advindos do prejuízo do uso de drogas por crianças, jovens e adultos nos bairros e comu-nidades, nos quais atuavam como profissionais de saúde. Problemas esses que, muitas vezes, foram relatados como algo experimentado na própria família ou redes de amizades desses profissionais. Nas duas realidades regionais em que estive como tutor do Projeto, os relatos e as histórias remonta-vam a enorme dificuldade que é oferecer cuidado em saúde em realidades nas quais essas questões, trabalho e segurança, ainda são grandes problemas nas comunidades e bairros.

O segundo destaque era a capacidade de superação, organização e qualificação desses pro-fissionais na experiência e no enfrentamento dessas dificuldades e desafios. Mesmo com pouco apoio institucional e contando, muitas vezes, somente com a solidariedade de amigos e da comunidade,

esses profissionais narravam importantes con-quistas e realizações de seu trabalho. Contavam das campanhas, das ações comunitárias em prol da melhoria da saúde da população, das redes de contatos e das ações construídas em torno de problemas graves de uma ou várias pessoas da comunidade, da dedicação e do carinho no atendi-mento aos que dependiam do trabalho das equipes de saúde. Todos esses relatos contrastavam com as enormes dificuldades enfrentadas no dia a dia de labuta, revelando que, apesar de duro e angus-tiante, o serviço em saúde era também revestido de alegrias, solidariedade e grandes conquistas, seja na realização de uma tarefa de qualidade, seja na invenção de soluções para os desafios que a vida e o trabalho em comunidades apresentam.

Pelos Caminhos do Cuidado foi então possível experimentar e conhecer as possibilidades que o trabalho em saúde pode nos proporcionar. No curso de formação de tutor, nos encontros com os profissionais de Saúde da Família e nas diferentes realidades em que estive, aprendi que os desafios e as dificuldades do trabalho em saúde nos territórios de atuação e comunidades são realmente enormes e estão para além da atuação dos profissionais em saúde. Entretanto, aprendi também que esses mesmos profissionais podem e constroem cotidia-namente redes de solidariedade, trabalho coletivo e comunitário, conquistando melhorias importantes nas condições de saúde e, principalmente, garan-tindo que pessoas e comunidades sigam a vida em momentos que combinem sempre não só a dureza das dificuldades, mas também as alegrias e sortilé-gios que o trabalho em saúde nos proporciona.

CUIDADO E AMIZADE NA FORMAÇÃO EM

SAÚDE

Como profissional e educador em saúde, tenho acumulado muitas experiências de ensino-apren-dizagem. Desde a capacitação formal nos cursos de graduação e pós-graduação até os minicursos,

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oficinas, treinamentos ou cursos livres, experimen-tando diferentes técnicas e modelos de educação e formação em saúde. Assim, já vivenciei modelos educativos rígidos e tradicionais, nos quais o profes-sor e o aprendiz mantêm-se mediados por um saber hierárquico que diferencia quem sabe e quem aprende. Nesses modelos, a educação reitera a

estrutura social que diferencia pessoas, classes e poderes (CARVALHO; CECCIM, 2012). Em outros

momentos, conheci e experimentei metodologias de ensino-aprendizagem que buscam tomar os pro-blemas da vida social como mote para o trabalho em equipe e na construção de projetos coletivos de inovação e aprendizado. Ou seja, por meio da pro-blematização e de projetos pedagógicos, aprendi que educação é uma conquista coletiva e, por isso, uma experiência social (BERBEL, 1998).

Mais especificamente, durante minha formação em saúde, dois modelos ou paradigmas influen-ciam-me sobremaneira, seja no trabalho, nas práticas de saúde, seja nos momentos em que atuo como educador ou formador. Dos ensinamentos de Paulo Freire (2007), aprendi que ensinar não é transferir conhecimento, mas sim criar possibili-dades para a produção ou a construção do saber, ou seja, não é uma mera transferência de conteú-dos e conhecimentos acumulaconteú-dos pelo sujeito que sabe e transfere ao outro. Por isso, quem forma também passa por profundas transformações, aprendizados e reaprendizados enquanto forma-dor e, quem é formado também passa pelo mesmo processo. Assim, “não há docência sem discência” (FREIRE, 2007, p. 23), as duas completam-se no processo do ensinar e aprender, e como coloca o autor, “ensinar inexiste sem aprender”.

Do grande mestre, aprendi que o saber comum é resultado da pura experiência, que é necessário valorizar as experiências, ou seja, os saberes que estudantes e educadores trazem de sua vivên-cia sovivên-cial, mas esses saberes trazidos devem ter relação com os conteúdos, bem como devem valorizados de forma que todos os envolvidos

desenvolvam a reflexão e a crítica da realidade na qual vivem em uma pedagogia da autonomia,

voltada para a reprodução e para a sustentabili-dade da vida social.

A essa maestria freiriana tenho integrado o cuidado como valor e dispositivo nos processos educativos que desenvolvo e dos quais participo. Tenho tomado o cuidado como

[...]uma compreensão filosófica e uma ati-tude prática frente ao sentido que as ações de saúde adquirem nas diversas situações em que se reclama uma ação terapêutica, isto é uma interação entre dois ou mais sujei-tos visando o alívio de um sofrimento ou o alcance de um bem-estar, sempre mediado por saberes especificamente voltados para esta finalidade (AYRES, 2004, p. 74).

Considerando a citação, tenho experimentado o cuidado nas práticas educativas das quais participo como “uma ação integral, que tem significados e sentidos voltados para a compreensão de saúde como o direito de ser” (PINHEIRO et al., 2005, p. 21) e, por isso, como um dispositivo que possibilita tanto o encontro educativo, a produção de conhe-cimento e da saúde coletiva como a autonomia e a liberdade de educadores e aprendizes.

Essa combinação entre Pedagogia da Autonomia e o Cuidado como valor em saúde foi experimen-tada ao máximo durante o Projeto Caminhos do

Cuidado e se tornou minha principal referência para educação e formação em saúde. Afinal, como tutor, participei e realizei curso de formação em uma experiência educativa que necessariamente passava por aprender e ensinar. Compartilhar saberes, histórias e experiências era o modo, ou modelo, que a equipe técnica do Projeto, eu, tutor, e os profissionais da Saúde da Família tínhamos para nos apropriar de conhecimentos e construir práticas e projetos voltados para o desafio que é cuidar de pessoas e famílias que sofrem com o uso prejudicial das drogas. Cuidar passou a ope-rar tanto nos objetivos do curso, das práticas em

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saúde ali desenvolvidas, como também na relação entre tutores, profissionais e equipe. Pois, como objetivo e mediação, o cuidado era o que ligava e dinamizava a experiência de ensino-aprendizagem nos encontros do projeto.

A essa construção educativa foi possível estabe-lecer um vínculo entre os participantes do Projeto, em especial entre os agentes comunitários de saúde, auxiliares e técnicos de enfermagem, que propiciou confiança e respeito mútuo, favorecendo o aprendi-zado e o processo grupal (BARBOSA; BOSI, 2017). A amizade foi um modo e um resultado da relação entre mim e os profissionais. Afinal, compartilhar todos esses momentos, histórias, confidências e expectativas assegurou a construção de um vín-culo que excedia os papéis de educador-aprendiz e nos levou ao reconhecimento mútuo de capaci-dades, certezas e incertezas, mas principalmente de que tínhamos, pelo menos naqueles encontros, a possibilidade de nos tornar amigos, de ensinar, de aprender e de nos cuidar mutuamente.

Assim, a sua concepção, os cursos e os encontros do Projeto Caminhos do Cuidado possi-bilitaram uma prática educativa na qual todos nós participantes tivemos a oportunidade de produzir saberes e práticas, considerando nossas histórias e conhecimentos; quando aprender e ensinar eram gestos de uma construção coletiva. O cuidado era objetivo e mediador dessa experiência e a ami-zade, o vínculo que resultou desses momentos de educação em saúde.

O DEVIR-TUTOR: APRENDER, ENSINAR,

CUIDAR

O devir é trans-histórico, sub-histórico, supra-histórico, espacial, geográfico, inten-sivo, não está preso a coordenadas prévias de um pulsar do tempo, por isso é ele quem cria suas coordenadas (por exemplo, a de um tempo flutuante, tempo não pulsante, tempo crônico), produzindo aberrações,

desequilíbrios, conjunção de incompossí-veis... Para usar termos mais consagrados e às vezes até banalizados, produzindo a diferença, o novo. (PELBART, 1993, p. 82).

A citação anterior expressa, em seu contexto original e a forma que tomarei aqui, o sentido da experiência de ser tutor no Projeto Caminhos do

Cuidado, um devir. Quando ingressamos em um tra-balho, em especial no trabalho em saúde, mesmo que tenhamos a instrumentalidade dos saberes e das técnicas, ou ainda experiência anterior, será sempre o novo, o que há no devir que nos fará mais ou menos preparados ou exitosos. Isso porque as sutilezas e diferenças que regem o encontro entre sujeitos, subjetividades, histórias e contextos pro-movem sempre algo novo, seja nos vínculos que estabelecemos, seja nos afetos e emoções compar-tilhados nesses encontros. Dessa forma, o trabalho em saúde é atualizado constantemente e diaria-mente nos inúmeros encontros e desencontros do cuidado no sistema de saúde e nas comunidades.

Como tutor do Projeto, experimentei esse devir em todos os momentos. No curso de formação de tutores, a expertise dos especialistas e os conhe-cimentos compartilhados abriram e acentuaram diferentes linhas de compreensão que tinham acerca dos processos de saúde-doença-cuidado a usuários de drogas e seus familiares. Era o devir--aprender que experimentava ao me capacitar para um trabalho também novo e ainda pouco discutido nos processos de educação em saúde. Ser tutor colocou-me em um devir no qual aprender era a possibilidade de qualificação profissional e a opor-tunidade de trabalho.

Nos encontros com agentes comunitários de saúde, auxiliares e técnicos de enfermagem, nos dife-rentes contextos, nos quais atuei como ministrante do curso de formação, experimentei o devir-ensinar. As diferentes histórias e experiências trazidas pelas pessoas que encontrei nesses percursos apresenta-vam-me sempre algo novo, mesmo que as situações ou precariedades se repetissem, a novidade vinha

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do modo de lidar e da maneira como aquilo me afetava e fazia com que eu construísse soluções e práticas que até então desconhecia. O devir-ensinar passa por escutar e deixar se afetar pelas histórias das pessoas, integrando aquilo que se sabe e o que não se sabe para construir juntos projetos de saúde e de trabalho. Ensinar é ao mesmo tempo um encontro repentino com um conhecimento vivido e atualizado constantemente e, por isso, não se encerra nas técnicas ou metodologias, mas está sempre aberto ao que surge.

O papel de tutor no Projeto Caminhos do

Cui-dado colocou-me frente a situações nas quais as emoções emergiam com força. Foram vários os momentos em que as pessoas choravam, riam, abraçavam-se e falavam do que sentiam, relatando histórias de cuidado e de trabalho com outras pessoas que enfrentavam graves adoecimentos e dificuldades. Entre um filme, um debate ou uma caminhada pelo território de atuação, as emoções eram compartilhadas e integravam a experiência de ensino e aprendizagem. Era impossível não ser afetado e também não se emocionar ao escutar e compartilhar todos esses sentimentos e emoções. Não era possível também ignorar o papel que se afirmava para o tutor nesses encontros, cuidar. Ser tutor passava por escutar com atenção e respeito, abraçar e acolher o rompante de uma emoção expressa no choro, rir e se alegrar quando era possível inventar e construir uma saída, enxergar uma perspectiva nova para um desafio persistente. O devir-cuidar era a resultante da experiência de aprender e ensinar que colocava todos em frente a suas emoções e formas de acolhimento e cuidado.

Ser tutor no Projeto Caminhos do Cuidado pro-piciou-me uma experiência de trabalho que se fez em um devir de aprender, ensinar e cuidar. Para além da tensão estruturante que se atualiza nos processos de formação e de educação em saúde (especialmente as que desafiam o modelo biomé-dico), o papel de tutor pode, e me parece que deve integrar o saber e o sentir (BONET, 2004) para além

das técnicas, protocolos ou objetivos determina-dos. Desse modo, o devir, esse desconhecido, mas esperado, pode ser o novo tempo da experiência educativa em saúde, ou seja, mesmo instrumentali-zado e preparado para a prática pedagógica, o tutor, ou educador, será feito também no novo, e pode integrar ao seu papel ações ainda não descritas ou pensadas nas rotinas e projetos pedagógicos.

No contexto do SUS e da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (PNEPS), as sin-gularidades, contextos e práticas de saúde são ao mesmo tempo objeto e objetivo dos processos educa-tivos (FEUERWERKER, 2014). Dessa forma, o papel do tutor no Projeto Caminhos do Cuidado atualizou essas diretrizes nos momentos em que colocava todos ante um devir de aprender, ensinar e cuidar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo de formação dos tutores e o trabalho destes no Projeto Caminhos do Cuidado foi objeto de análise de Santos e Ferla (2017), quando mos-traram que houve um deslocamento da imagem dos usuários de álcool e de outras drogas. Esses indivíduos passaram a ser vistos com desejos, singularidades e histórias de vida, o que lhes propor-cionou a possibilidade de serem cuidados por esses profissionais nos serviços de saúde com menos receio e preconceito. Além disso, evidenciou-se que os tutores perceberam novas possibilidades de cuidado aos usuários de álcool e de outras drogas e compreenderam a atenção básica como espaço privilegiado para esse cuidado. Para os autores citados, a formação e o convívio com as turmas de agentes comunitários de saúde, auxiliares e téc-nicos de enfermagem proporcionaram o acúmulo de novos saberes, ampliando as possibilidades de cuidado no cotidiano do trabalho.

Às conclusões desses autores integro as que elaborei a partir dessa experiência narrada. O Pro-jeto Caminhos do Cuidado proporcionou-me, além de complemento à minha formação profissional,

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a oportunidade de experimentar o cuidado como dispositivo para a educação e a formação em saúde. Por meio desse Programa, foi possível aprender e ensinar em encontros nos quais todos podiam, a partir de seus saberes e histórias, construir estra-tégias e práticas que voltavam novamente para o cuidado às pessoas atendidas pelas equipes de Saúde da Família.

Os encontros e as atividades realizados eram momentos nos quais emoções e sentimentos emergiam nos relatos e histórias, por isso, cuidar foi também a forma de acolher uns aos outros e, por isso, entre abraços, escutas, choros e risos foi possível construir amizade, vínculo que intensifica a prática educativa e o cuidado.

A partir de minha experiência, pude perceber que o papel de tutor não está completamente defi-nido ou discutido nos processos educativos que os formam ou convocam, e, portanto, ações e práticas sempre estão abertas ao novo e ao inesperado. Por meio da participação no Caminhos do Cuidado, foi possível experimentar esse papel integrando o ensinar, o aprender e o cuidar durante todas as etapas do Projeto, em especial nos encontros com os profissionais de saúde nos diferentes territórios que o trabalho em saúde nos leva a percorrer.

Por assim dizer, ser tutor mostrou-se um devir que combinou o aprender, o ensinar e o cuidar em uma experiência de educação em saúde na qual cuidado e amizade são objetivo e ligação entre edu-cadores e profissionais de saúde.

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REFERÊNCIAS

ASSIS, Aisllan. Acompanhando Manu: álcool e drogas nos (des)encontros da rede de cuidados. In: RAMMINGER, T.; SILVA, M. (Org.). Mais substâncias para o trabalho em saúde com usuários de drogas. Porto Alegre:

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BARBOSA, Maria Idalice Silva; BOSI, Maria Lúcia Magalhães. Vínculo: um conceito problemático no campo da Saúde Coletiva. Physis, Rio de Janeiro, v. 27, n. 4, p. 1003-1022, dez. 2017.

BERBEL, Neusi Aparecida Navas. A problematização e a aprendizagem baseada em problemas: diferentes termos ou diferentes caminhos? Interface (Botucatu), Botucatu, v. 2, n. 2, p. 139-154, fev. 1998.

BONET, Octavio. Saber e sentir: uma etnografia da aprendizagem da biomedicina. Rio de Janeiro: Editora

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______. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e Educação na Saúde. Caminhos do Cuidado:

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FEUERWERKER, Laura C. Micropolítica e saúde: produção do cuidado, gestão e formação. Porto Alegre:

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SANTOS, Francéli Francki dos; FERLA, Alcindo Antônio. Saúde mental e atenção básica no cuidado aos usuários de álcool e outras drogas. Interface (Botucatu), Botucatu, 2017.

INFORMAÇÕES SOBRE O ARTIGO

Recebimento – 21-09-2017

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