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"Direito de morte e poder sobre a vida": uma narrativa sobre o atendimento ao aborto na Maternidade Escola Januário Cicco Natal/ RN

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes

Departamento de Ciências Sociais

Fabiana Damasceno Galvão

“Direito de morte e poder sobre a vida”: uma narrativa sobre o

atendimento ao aborto na Maternidade Escola Januário Cicco Natal/ RN

Natal/ RN 2010

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Fabiana Damasceno Galvão

“Direito de morte e poder sobre a vida”: uma narrativa sobre o atendimento

ao aborto na Maternidade Escola Januário Cicco Natal/ RN

Monografia apresentada à banca avaliativa do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito para obtenção do título de bacharel em Ciências Sociais.

Orientador: Professor Dr

º

Alexsandro Galeno Araújo Dantas

Natal/ RN 2010

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Fabiana Damasceno Galvão

“Direito de morte e poder sobre a vida”: uma narrativa sobre o atendimento

ao aborto na Maternidade Escola Januário Cicco Natal/ RN

Monografia apresentada ao Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito para obtenção do título de bacharel em Ciências Sociais, a ser aprovada pela Banca Examinadora composta pelos/as seguintes professores/as:

Natal – RN, _____, de__________ de 2010.

________________________________________________________ Drº Alexsandro Galeno Araújo Dantas (UFRN/ PUC – Orientador)

________________________________________________________ Drª Rozeli Maria Porto – (UFSC/ PPGS/UFRN)

________________________________________________________ Drº Edmilson Lopes Junior – (UFRN/ UNICAMP)

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4 Catalogação da Publicação na Fonte.

Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA).

Galvão, Fabiana Damasceno.

“Direito de morte e poder sobre a vida”: uma narrativa sobre o atendimento ao aborto na Maternidade Escola Januário Cicco Natal/RN / Fabiana Damasceno Galvão. – 2010.

73 f.

Monografia (Graduação em Ciências Sociais) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Departamento de Ciências Sociais, Natal, 2010.

Orientador: Prof. Dr. Alexsandro Galeno Araújo Dantas.

1. Aborto – Aspectos sociais. 2. Maternidade Escola Januário Cicco. 3. Feminismo. I. Dantas, Alexsandro Galeno Araújo. II.

Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.

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5 A Diogo Damasceno (in memorian).

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6 AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a minha mãe Iraci Damasceno e a minha irmã Leila Cavalcanti Damasceno, sem o esforço das quais eu não teria acessado uma universidade pública e de qualidade. Obrigada pelos ensinamentos, pelo aconchego, cumplicidade e compreensão durante essa jornada!

A Eduardo de Medeiros pela revisão e colaborações feitas nesse trabalho, pela companhia e pelo carinho.

À Marília Ferreira, e Leonardo Ferreira pelo incentivo.

A Aléssio de Medeiros e a tia Ciada Damasceno, pelo incentivo e motivação. À vó Ursulina Maria Damasceno por eternizar o arroz de leite da infância da minha vida.

Aos educadores e educadoras e, portanto, mestres que em minha trajetória escolar e acadêmica depositaram as sementes necessárias à curiosidade motivadora da busca por conhecimento.

Ao professor Alex Galeno por apresentar-me leituras de Maria Rita Kehl durante o curso da disciplina Teoria Sociológica IV, e, sobretudo pela sua paciência e contribuições na orientação desse trabalho.

A professora Rozeli Maria Porto e o professor Edmilson Lopes Junior pela atenção e por aceitarem o convite em participar da composição da banca de avaliação desse trabalho.

A(o)s funcionários do cotidiano do CCHLA: Germano, Borges, Martinha, pelos sorrisos de corredor, durante o cafezinho de cada dia. A(o)s funcionárias(os) que trabalharam na Biblioteca Setorial do CCHLA: Angelike, Wigder, Joanilson, e o ex estagiário Alex Barbosa. Aos demais funcionários terceirizados ou não, da limpeza, da copa, que contribuem com a manutenção das atividades nas instalações do setor II, e do CCHLA. Aos demais, das secretarias, Tarcísio (CS), Adriano (DAN), póstumo Geraldo (PÓS- CS).

À prima Andrea Damasceno pelas aulas à noite me apresentando ciências a partir da Física.

Às amigas: Naylini Sobral por apaixonadamente compartilhar “migalhas de existência” e por celebrá-las também; Cintya Araújo e Carol Miosotis pela valiosa e

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7 duradoura amizade; Andressa Moraes pelas contribuições com esse trabalho; e Pamela Castilhos por compartilhar textos desse curso comigo.

Às mulheres do Coletivo Leila Diniz, principalmente Analba Brazão, Daiany Ferreira e Maria do Socorro Santos Ribeiro pela confiança e força.

Ao corredor do Setor II, como um pedaço de lugar, um espaço fluído e utópico de marginalidades poéticas e necessárias a existência da minha vida.

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8 “A crítica feminista também deve compreender como a categoria das mulheres, o sujeito do feminismo, é produzida e reprimida pelas mesmas estruturas de poder por intermédio da qual busca-se a emancipação”

(Judith Butler)

“Pode ser, muito bem, que falemos mais dele do que de qualquer outra coisa: obstinamo-nos sempre nessa tarefa; convencemo-nos por um estranho escrúpulo de que dele não falamos nunca o suficiente, que somos demasiado tímidos e medrosos, que escondemos a deslumbrante evidência, por inércia e submissão, que o essencial sempre nos escapa e ainda é preciso partir a sua procura. No que diz respeito ao sexo, a mais

inexaurível, e impaciente das sociedades talvez seja a nossa.” (Michel Foucault)

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9 RESUMO

Explora a interrupção da gestação na Maternidade Escola Januário Cicco. Explana o que representa a interrupção da gestação para algumas sociedades desde a antiguidade até os dias atuais. Constrói, ainda, uma investigação sobre o aborto no campo do feminismo, das ciências médicas e no campo religioso. É feita uma abordagem sobre o Aborto na tentativa de aliar literatura feminista, teoria sociológica e direitos humanos explorando o exercício dos profissionais da área médica a partir de suas falas conflitantes entre o que diz a norma e o que realizam na prática cotidiana. Para tanto, utiliza-se de entrevistas estruturadas, pesquisa de bibliografia sobre o tema e observação participante para a construção de um diário de campo, na perspectiva de fazer uma fotografia do espaço destinado ao serviço do aborto em Natal. A pesquisa revela que no ano de 2010 foram realizados mensalmente em torno de 400 procedimentos relacionados ao aborto/pós-aborto nas maternidades de Natal, dos quais cerca de 250 ocorrem na Maternidade Escola Januário Cicco; 100 na maternidade do Hospital Santa Catarina e 50 na Maternidade Leide Moraes.

Palavras-chave: Aborto – Aspectos Sociais. Maternidade Escola Januário Cicco. Feminismo.

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10 ABSTRACT

It explores the interruption of pregnancy in Maternity Hospital Januário Cicco. It explains what represents the interption of pregnancy for some societies from antiquity to the present day. It also builds a research on abortion in the field of feminism, medical sciences and religious. An approach on abortion is done in an attempt to combine feminist literature, sociological theory and human rights by exploring the exercise of medical professionals from their conflicting statements between what are the rules and who perform it in daily practice. For this purpose, we use structured interviews, research literature about the subject and participant observation to the construction of a diary, from the perspective of making a photography of the space devoted to the service of abortion in Natal. The research reveals that are performed monthly around 400 procedures related to abortion / post-abortion care in hospitals in Natal, of which about 250 occur in Januário Cicco Maternity School, 100 at the Hospital Santa Catarina and 50 in the Maternity Leide Moraes.

(12)

11 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AMB – Articulação de Mulheres Brasileiras AMIU – Aspiração Manual Intra Uterina CDD – Católicas pelo Direito de Decidir

CFEMEA – Centro Feminista de Estudos e Assessoria COREM – Conselho Regional de Enfermagem

MEJC – Maternidade Escola Januário Cicco

PROSARE – Programa de Apoio a Projetos em Sexualidade e Saúde Reprodutiva PSDB – Partido Social Democrata Brasileiro

SESAP – Secretaria Estadual de Saúde

SPM – Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres SUS – Sistema Único de Saúde

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12 LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1: El Movimiento Feminista Alemán [1]. p. 16. FIGURA 2: Em nome de Deus? p. 32.

FIGURA 3: El Movimiento Feminista Alemán [2]. p. 34. FIGURA 4: Tira da Mafalda. p. 37.

FIGURA 5: Cartaz no corredor da MEJC [1]. p. 43. FIGURA 6: Cartaz no corredor da MEJC [2]. p. 44. FIGURA 7: Sala de Curetagem da MEJC. p. 45. FIGURA 8: Sala de Descanso? [1] p. 46.

FIGURA 9: Sala de Descanso? [2] p. 47. FIGURA 10: Mulheres e Movimentos [1]. p. 57. FIGURA 11: Mulheres e Movimentos [2]. p. 57.

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13 Sumário

1 INTRODUÇÃO ... 15

2 UMA BREVE HISTÓRIA DO ABORTO ... 16

2.1 Aborto e Feminismo ... 20

2.2 Aborto e Direitos Humanos no Brasil ... 24

2.3 Legislação sobre o aborto no Brasil ... 26

2.4 A Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento ... 26

2.5 A Ostensiva Fundamentalista Cristã nas eleições à presidência do do Brasil em 2010 ... 29

3 INSTRUMENTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS 2.4 A Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento ... 34

3.1 Aborto: quando é o início da vida? Vida biológica ou vida social útil? ... 34

3.2 Apresentação de Campo ... 26

3.3 Entrevistas ... 40

3.4 Interrupção da Gestação no Rio Grande do Norte: um Caso de Aborto ... 41

3.5 Analisando as entrevistas ... 47

3.5.1 Violência Institucional ... 50

3.5.2 Sobre a Objeção de Consciência ... 52

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 58

REFERÊNCIAS ... 61

ANEXOS ... 65

ANEXO A - Roteiro profissional de entrevistas da pesquisa PROSARE, aplicadas no ano de 2008 ... 66

ANEXO B - Roteiro institucional de entrevistas da pesquisa PROSARE, aplicadas no ano de 2008 ... 68 ANEXO C - Roteiro de entrevistas redimensionadas, aplicadas no ano de

(15)

14 2009 ... 69 ANEXO D - Roteiro de entrevistas redimensionadas, aplicadas no ano de 2009 ... 70 ANEXO E - Roteiro de entrevista direcionada a militante

feminista ... 71 ANEXO F - Roteiro de entrevista direcionada a assistente social da

(16)

15 1 INTRODUÇÃO

Ao longo da minha infância, desenvolvi, ou desenvolveram em mim, educadores e educadoras que passaram pela minha vida, incluindo meus progenitores e familiares, a afeição pelas ciências. De uma compreensão infantil sobre elas, tinha a imagem mental, passada pelos livros didáticos de anos atrás, que o trabalho de qualquer cientista se dava pela manipulação de pipetas, bastões de vidro, béckers, etc. que geralmente os colegas das ciências exatas e biomédicas utilizam. Passados anos de vida escolar, vieram experimentações de leituras de literatura, poesia, filosofia, assim como de ciências, entre elas, li autores como Machado de Assis, Álvares de Azevedo, Jostein Gaarder, o próprio Karl Marx, James Gleick, etc, o que me fez despertar para os questionamentos sobre o homem, a função da religião na minha própria vida, e da importância que deveria dar ao conhecimento dos fenômenos e fatos baseados em constatações empíricas. Daí em diante, tracei caminhos que me fizeram ingressar na universidade, e portanto no estudo acadêmico de uma ciência. No caso, das ciências humanas.

Tive interesse especificamente, pelas que me proporcionassem conhecer também mais sobre mim mesma, e sobre a casualista existência humana, daí, a escolha pelas Ciências Sociais.

Passado o ensino básico (médio), imediatamente, no ano de 2005 ingressei no curso de Ciências Sociais nesta universidade. Ainda em novembro do ano de 2007, final do terceiro ano da graduação, comecei um estágio curricular no Coletivo Leila Diniz1 sob a coordenação de Daiany Ferreira Dantas e Maria do Socorro Santos Ribeiro2 no projeto intitulado “Direitos sexuais, reprodutivos e liberdades democráticas: construindo diálogos com profissionais da rede de saúde de Natal e Mossoró”, sob financiamento do Programa de Apoio a Projetos em Sexualidade e Saúde Reprodutiva (PROSARE).

1

Organização Não Governamental que trabalha com ações e estudos feministas em Natal desde o ano de 2002; tem como proposta transformar o cenário local através de ações de ativismo político pautadas por uma articulação nacional (Articulação de Mulheres Brasileiras); também realiza estudos no campo das desigualdades de gênero.

2

Daiany Dantas é militante, Jornalista, e atualmente aluna do doutorado no curso de Comunicação na Universidade Federal de Pernambuco. Maria do Socorro Santos Ribeiro, mestre em Ciências Sociais com habilitação na área de antropologia.

(17)

16 Seguindo um dos objetivos do projeto político feminista para a afirmação dos princípios de laicidade do Estado na perspectiva de alcançar direitos sexuais e reprodutivos, houve incidência na rede de serviço público de saúde em Natal e Mossoró,3 paralelamente foi traçado um diagnóstico sobre a situação do atendimento às mulheres em situação de abortamento, e o atendimento ao Aborto Legal. Foram elaboradas ações de “formação” política fundamentadas na pedagogia feminista junto aos profissionais dos serviços de saúde, lideranças de organizações, movimento de mulheres e movimento feminista. Através de uma metodologia de diálogo foram realizados debates com profissionais, militantes e usuárias do Sistema Único de Saúde (SUS), também um seminário e uma exposição sobre o tema em um shopping da cidade de Natal.

Foi feito um levantamento da situação do atendimento médico hospitalar e do posicionamento ético, moral e religioso dos profissionais da área de saúde obstetrícia que trabalham diretamente com a interrupção da gestação, ou mesmo na recuperação da mulher após um procedimento abortivo, através de curetagem4 ou Aspiração Manual Intra Uterina (AMIU)5.

A partir dessa pesquisa foi possível elaborar um mostragem da dinâmica dos serviços públicos de atendimento a saúde em Natal que tem relação com o aborto. Ao final do ano de 2008, resolvi delimitar esse corpus à Maternidade Escola Januário Cicco (MEJC), e trabalhar as lacunas deixadas por esse projeto na pesquisa de monografia. Pelo acúmulo de material empírico e bibliografia da área, resolvi construir um trabalho de pesquisa sobre o atendimento ao aborto em Natal, focalizando a maternidade e o seu modus operand6 sobre o aborto.

3

No entanto esse trabalho abordará apenas os dados referentes à localidades do município de Natal. 4

Procedimento de limpeza do útero após um aborto, o qual necessita anestesia geral ou analgesia locorregional. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002)

5

Procedimento de aspiração da cavidade uterina, que em sua maioria são utilizados analgésicos, ou anestesias mais leves (ibidem).

6

Modus Operandi/ Modus Operandi/ [Lat.] Loc. Subst. Modo pelo qual um indivíduo, ou uma organização desenvolve suas atividades ou opera (HOUAISSE, 2008, p. 1.943).

(18)

17 A. Dificuldades vivenciadas

Utilizar dados institucionais já existentes e coletar novos dados, redimensionando e focalizando na MEJC, foi um grande desafio, por se tratar de um Hospital Escola de altíssima relevância nos serviços obstetrícios para a saúde sexual e reprodutiva de mulheres e famílias atendidas pela Rede do SUS da Grande Natal e do Estado do Rio Grande do Norte (RN).

B. A pesquisa

Esse trabalho foi elaborado na perspectiva de levantar informações sobre: Historiografia do aborto; De quem parte a decisão em se fazer o aborto? Os homens também abortam? Sabe-se que o corpo é da mulher. Mas será mesmo dela? Quando em uma situação de dependência emocional e econômica, quando seu parceiro opina em não ter o filho, mesmo ela querendo, ela vai abortar? Por quê? Em um país que se diz democrático e laico7, como considera-se o Estado brasileiro, as diferenças de crenças e religiões não deveriam ser levadas em conta a partir, primordialmente, do cumprimento das regras normativas dos profissionais das instituições públicas principalmente?

Sobre o assunto foram pesquisadas obras publicadas por organizações feministas da sociedade civil como o Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA), SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia, Jornadas Pelo Direito ao Aborto Legal e Seguro, Católicas pelo Direito de Decidir (CDD), e foram consultados os arquivos do projeto PROSARE no Coletivo Leila Diniz.

Ao longo do curso de graduação em Ciências Sociais foi estabelecida uma maior aproximação e identificação com os instrumentos metodológicos e as áreas de pesquisa da sociologia e da antropologia. O primeiro volume da História da

7

Laico adj s.m. (1899 cf CF’) 1 que ou aquele que não pertence ao clero nem a uma ordem religiosa; leigo <um membro l. da congregação> <um l. no meio do clero> 2 que ou aquele que é hostil a influência, ao controle da Igreja e do clero sobre a vida intelectual e moral, sobre as instituições e os serviços públicos <é próprio de um espírito l. referenciar o conhecimento cientifico> <os l. se opõem ao ensino religioso nas escolas públicas> adj 3 que é independente em face do clero e da Igreja, e, em sentido mais amplo de toda confissão religiosa <educação l.> 4 relativo ao mundo profano ou a vida civil <moral l.> <virtude> (ibidem, 2008, p. 1.714).

(19)

18 Sexualidade: a vontade de saber, Michel Foucault, foi bastante consultado e contribui com a idéia de Bio-política da população como mecanismos de regulamentação sobre os processos anatômicos, biológicos, e políticos que permearam a sociedade européia entre os séculos XVI e XIX, e que ainda hoje operam sobre a vida dos indivíduos. Danda Prado fornece um panorama histórico do tema. Com um olhar teórico, a militante faz uma viagem ao passado histórico do aborto desde a antiguidade clássica, às religiões, o direito, os movimentos sociais, etc. Judith Butler contribuiu na compreensão da teoria de Michel Foucault sobre o dispositivo da sexualidade e o bio-poder como forma de técnicas diversas para obter a sujeição dos corpos e o controle das populações8.

No capítulo um é apresentado uma breve explanação sobre a história do aborto, um desenvolvimento da historicidade do aborto ao longo das sociedades antigas até a atualidade, à visão ocidental; como se constituiu a concepção hegemônica de criminalização do aborto a partir das concepções da Igreja e das transformações sociais desenvolvidas pelo fortalecimento do capitalismo. É também apresentado o Feminismo como um movimento histórico e legítimo defensor da legalização do aborto no Brasil; a legislação que trata do aborto na jurisdição brasileira; o significativo diálogo entre o movimento feminista e a perspectiva dos direitos humanos como uma alternativa, uma redução de danos à política atual globalizante e neoliberal; e o fundamentalismo religioso presente na campanha eleitoral 2010 a presidência do Brasil.

Sabe-se que o aborto é realizado em grande escala, porém não se fala sobre o assunto como deveria, o problema é colocado em segundo plano. Na campanha eleitoral passa sorrateiro, sem problematização do tema para não comprometer a campanha presidencial com a perda de parcela do eleitorado que se diz contrária ao aborto.

No capítulo dois é apresentado o campo e os números. São elaboradas reflexões a partir da visão de estudiosos contemporâneos, sobretudo, Michel Foucault e sua noção de Bio-poder, como um elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo e aos mecanismos de controle; a objeção de consciência como um dispositivo legal de violência institucional.

8

(20)

19 Os ambientes são apresentados com o auxilio de fotografias retiradas como material de campo, que revela um atendimento realizado em ambientes pouco agradáveis, sem muita privacidade, nem humanização, nas salas e ante-salas, como o que acontece na maioria dos grandes Hospitais Públicos.

Foi constatado que há um grande número de abortos sendo realizados, e sabe-se que o risco de vida aumenta de acordo com o nível de precariedade com que ele é conduzido. O aborto é um assunto pouco debatido, em conversas furtivas cotidianas ou familiares dificilmente se fala sobre ele. Quando de fato é constatado que há vida?

Nessa pesquisa foi verificado que em Natal, na Maternidade Escola Januário Cicco, realizam-se cerca de 250 curetagens mensalmente, na maternidade do Hospital Santa Catarina são realizados 100 procedimentos e na Maternidade Leide Moraes, 50. Esse tipo de dado não é divulgado pela grande mídia, não se buscam maiores quantidades de recursos financeiros e humanos para atender as mulheres nessa situação. Por quê? Há diferenciação de uma vida em potencial e um indivíduo integralmente concebido? Quando falar sobre vida social útil? E sobre indivíduo?

(21)

20 Figura 1: El Movimiento Feminista Alemán [1].

Fonte: DREWITZ, 1983.

“Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico, define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto de civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino.”

(22)

21 2 UMA BREVE HISTÓRIA DO ABORTO

O que é aborto? Derivada do latim, a palavra aborto quer dizer privação de nascimento, no sentido etimológico: ab significa privação, e ortus, nascimento.9 Abortamento10 é mais utilizado na área médica do que aborto.

O sexto mandamento da lei de Deus no livro do êxodo (20, 13) diz “não matarás” (BÍBLIA, 1993, p. 78), isso justifica em parte porque o aborto para a Igreja é algo ilegítimo e imoral (SANTOS, p 14), e que não pode ser legalizado. O aborto é contrário à lei moral cristã. Caetano Veloso, cantor “adepto de uma irreligiosidade feroz” (ANTENORE, 2010, p 29), em sua composição Haiti diz “(...) E o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto E nenhum no marginal (...)”11. O trecho da música representa o pensamento de uma parcela de religiosos cristãos, ele Ilustra bem a perspectiva da Igreja católica sobre o aborto, que o condena e o vê como crime (pecado) de altíssima gravidade quando comparado aos crimes hediondos como estupro, ou homicídio.

Dom José Cardoso Sobrinho, arcebispo de Olinda e Recife, optou pela excomunhão da menina de nove anos e também de sua mãe, no município de Alagoinha, Pernambuco12, isso mostra como alguns representantes da Igreja Católica agem e se posicionam diante de situações semelhantes a que ocorreu. Fica evidente a contradição filosófica e ética que a Igreja apresenta quando se compadece mais dos criminosos, agressores e sujeitos do crime do que das vítimas da violência, que geralmente são mulheres.

9

Etimologia retirada no site: <http://br.monografias.com/trabalhos904/aborto-crime-polemico/aborto-crime-polemico.shtml> acessado em 24 de agosto de 2008.

10

Abortamento é a interrupção da gravidez até a 20ª- 22ª semana e com produto da concepção pesando menos que 500g. Aborto é o produto da concepção eliminado no abortamento. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2005, p. 22).

11

(VELOSO, 1995. CD. Faixa 5). 12

Caso da menina de 9 anos de Alagoinha em Pernambuco, que foi abusada sexualmente pelo padrasto durante cerca de 3 anos, e ao engravidar, a notícia tomou grande repercussão na mídia, que publicizou a Excomunhão anunciada pelo José Cardoso Sobrinho. A menina poderia recorrer ao serviço de aborto legal, ela tinha o respaldo das duas situações de aborto previsto em lei, abuso sexual e caso de risco de vida para a gestante, e mais que nesse caso a gestante era uma criança de 9 anos. Apesar de tudo isso o Arcebispo representante da Igreja Católica naquelas localidades excomungou (criminalizando) a mãe da menina que decidiu submeter a filha ao procedimento de interrupção da gestação e receber a assistência médica necessária.

(23)

22 Mulheres que são violentadas sexualmente, ou quando estão com gravidez que traz risco de vida têm a opção de realizar um aborto em instituições hospitalares responsáveis pelo procedimento do Aborto Legal. Em Natal a Maternidade Januário Cicco está habilitada para realizar tal procedimento, juntamente com a Maternidade do Hospital Dr. José Pedro Bezerra mais conhecido como Hospital Santa Catarina, localizado na Zona Norte da cidade.

Notavelmente é ainda desde o código de Hamurábi que vêm os primeiros dados escritos que dispomos do aborto na história (cerca de 1700 anos antes de Cristo). Nele o aborto era visto como algo que contrariava os interesses do pai e do marido e como algo danoso à mulher. Sobretudo, economicamente o marido era o grande prejudicado, porque além da interrupção da gestação impedir a perpetuação da herança e da prole, servia como prova para denunciar o adultério feminino, ou mesmo uma gravidez concebida na ausência do marido (PRADO, 2007).

Através da reprodução a sociedade controlou a sexualidade da mulher ao longo dos últimos séculos, dessa forma da antiguidade até os dias atuais o aborto seria uma perversão feminina por que ele serve para esconder as gestações que se originam do sexo fora do casamento, os frutos do adultério. (FOUCAULT, 1977, p. 43)

De acordo com a lei de Mileto, os filhos eram considerados propriedade privada do pai, que “tinham direito de vida e de morte” sobre eles, por isso mulheres que abortavam eram condenadas à morte quando abortavam sem a autorização do marido (PRADO, 2007, p. 47). Aspásia, médica grega que viveu em Atenas no ano 500 antes de Cristo e deixou como legado o registro mais antigo de documento sobre o aborto escrito por uma mulher, no qual descreve as várias posições fetais. Pesquisou também sobre prevenção de abortos e métodos de contracepção. Já Hipócrates, em seu juramento, promete “não dar à mulher grávida nenhum medicamento que possa fazê-la abortar”, porém ensinava à parteiras técnicas anticonceptivas e abortivas. Isso porque a chegada de uma criança em algumas situações significava ameaça à família, como sobre o direito a herança. Portanto naquele tempo o aborto era um recurso à garantia dos direitos do cidadão. E porquê não à vontade da mulher, que era na verdade o que Sócrates recomendava, “facilitar o aborto quando a mulher o desejar”? (PRADO, 2007).

(24)

23 acreditava que as mulheres acima de quarenta anos deveriam abortar. Para ele o aborto também serviria para controlar o aumento da população. Aristóteles usava o termo “animado” para fetos com sessenta dias após a concepção. Este, assim como Platão, também acreditava que o aborto deveria ser utilizado para controle de população (PRADO, 2007).

Em Esparta o aborto era proibido, tinha-se uma grande preocupação em aumentar a população para com isso atingir uma maior quantidade de guerreiros e atletas, e também como enfatiza Michel Foucault (1977, p. 128), cabia ao Estado soberano decidir sobre o nascimento ou morte das crianças, e como viviam em contextos de guerra os malformados ou deficientes eram descartados (PRADO, 2007).

Na Roma antiga, a maioria dos filósofos não reconheciam a existência de vida no feto, e o direito de vida ou morte do mesmo estava sob o poder do pai, assim como sob os filhos nascidos até sua maioridade. No Direito romano não se constam registros sobre a prática do aborto, porém as mulheres que o praticavam contrariando o marido eram submetidas ao Tribunal Doméstico, que unido às queixas do marido ressentido, impunha castigos às culpadas (PRADO, 2007).

Segundo o poeta Ovídio as patrícias abortavam para contrariar seus maridos. Em seus escritos Marcial satirizava esse acontecimento (PRADO, 2007).

Como se vê, desde os gregos e romanos o aborto era praticado. Naquela época, baseado em receitas com plantas e ervas com poderes medicinais o aborto era ensinado pelas mulheres como medida contraceptiva. Soranos, ginecólogo grego que viveu por volta do século II, já registrava receitas contraceptivas e abortivas em seus escritos (PRADO, 2007, p 39).

Com a queda do Império Romano e o cristianismo legitimado como religião oficial, o Estado passa a ser representado por preceitos cristãos, e dogmas,13 que passam a fazer parte do cotidiano da população, e opinar sobre a vida dos cidadãos, sobre os nascimentos e também sobre o aborto. Considerado um ato que

contrariava a moral conservadora da época que alegava o controle demográfico e a manutenção dos “bons costumes” para abominarem práticas que iam de encontro a seus anseios, como o homossexualismo que até então era concebido como costume

13

Dogma s.m. (a1710 cf. MBEst) 1 TEL ponto fundamental de uma doutrina religiosa, apresentado como certo e indiscutível, cuja verdade se espera que as pessoas aceitem sem questionar < d. da Santíssima Trindade> (HOUAISSE, 2008, p. 1.071)

(25)

24 aceito. O adultério e o divórcio também passam a ser mal vistos pelo Estado

controlador com o interesse de disseminar os costumes da boa moral cristã,

apoiando famílias grandes com bastante filhos. O aborto permaneceu ainda por um longo tempo como uma prática comum, apesar de não ser aceitável.

Para Santo Agostinho havia o momento da hominização, etapa na qual o ser humano recebe alma. Nos homens esse processo aconteceria quarenta dias após a concepção e nas mulheres oitenta dias após a concepção. Santo Tomás de Aquino desenvolveu a idéia da concepção hilemórfica do ser humano categorizando-o como uma unidade constituída por dois elementos: matéria e forma substancial (corpo e alma) (HURST, 2000, p. 23).

A culpabilização da mulher em relação à prática do aborto houve desde legislações antigas, ela sempre foi considerada o sujeito do crime (PRADO, 2007, p. 51), mas se agrava quando além dos impedimentos trazidos para a conservação da família tradicional, a realização da interrupção de uma gestação fora do casamento, ou mal desejada por uma jovem solteira subverte a autoridade tanto do marido, quanto da Igreja sobre o corpo e a autonomia da mulher e coloca em risco a ordem social. Para muitos a interrupção só deveria ser permitida por lei com a permissão do marido, que teria o direito de puni-la ou não, sendo ele o “único” afetado.

Em todo o mundo, mulheres engravidam porque o método falhou, porque foram violentadas sexualmente, ou mesmo porque fizeram sexo e não utilizaram nenhum método. E por isso são obrigadas a manter gestações que não desejam, porque o discurso hegemônico propagado pela maioria das religiões que se amparam no berço do cristianismo é da valorização da vida como uma negação da existência de vida de outros seres vivos e dos fatores sociais que envolvem aquela situação. Essas religiões limitam-se no discurso da explicação do início da vida quando afirmam que há vida após a concepção simplesmente, sem considerar a vida “com todos os seus pressupostos cósmicos, a análise quântica dos campos e redes de energia nem suas possíveis alterações físico-químicas” (BOFF apud CAVALCANTE, 2006, p.17).

(26)

25 2.1 Aborto e Feminismo

A construção política do sujeito procede vinculada a certos objetivos de legitimação e de exclusão, e essas operações políticas são efetivamente ocultas e naturalizadas por uma análise política que toma as estruturas jurídicas como seu fundamento (BUTLER, 2003, p. 19).

Para Judith Butler o movimento feminista tem como um dos fundamentos de seus anseios políticos para a transformação da sociedade a luta pelo reconhecimento da categoria das mulheres como sujeito político e de direitos (BUTLER, 2003).

A autonomia das mulheres diante de diferentes modelos da manha sutil do poder (BUTLER, 2003, p. 7) que se exerce sobre elas em diferentes esferas e escalas se deu de várias formas e em várias camadas da sociedade ao longo da história.

Após a década de 1960 com a invenção da pílula anticoncepcional as mulheres puderam gozar de uma vida sexual sem a finalidade unicamente reprodutiva. A Revolução Industrial, a inserção das mulheres nos postos de trabalho e a invenção da pílula foram eventos significativos para essas mudanças, que garantiram autonomia sexual, e o início da desmistificação da maternidade enquanto função biológica e destino comum a todas as mulheres.

O desenvolvimento de anticoncepcionais mais eficazes vem libertando de forma definitiva a sexualidade feminina das amarras da concepção e, assim, tem possibilitado às mulheres desfrutarem de uma vida sexual mais livre e plena. Os medicamentos para interromper a gravidez (o Citotec, por exemplo), apesar da sua proibição no Brasil, são usados em larga escala, facilitando a opção pelo aborto, principalmente entre mulheres em situação de violência. (MOTTA, 2000, p. 125)

A grande utilização e eficácia da pílula anticoncepcional revela que sua invenção venha a ser um mecanismo da indústria farmacêutica mundial atrelada a outras instâncias de poder como a Igreja e o Estado para manter parâmetros estatísticos de natalidade e portanto exercerem algum tipo de controle sobre a sexualidade feminina e a reprodução (FOUCAULT, 1977, p. 58; 137).

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26 Esse seria um dos motivos para impedir a livre prática do aborto? Mas isso não seria um pensamento conspirativista? Pois se há como evitar uma gravidez indesejada com a pílula e os outros métodos, para que a liberação do aborto? Não há como negar a importância da pílula e de todos os outros métodos contraceptivos para a vida da mulher e da sociedade moderna. Mas também deve-se considerar os inúmeros casos de gravidez ocorridas mesmo com a utilização da pílula, o que comprova que nenhum método é 100% eficaz, pois mesmo Quando utilizado corretamente, sem que nenhum comprimido seja esquecido, a chance de ocorrer gravidez existe, apesar de ser menor que 1,0 % (uma gestação a cada 100 mulheres por ano de uso)14.

Michel Foucault (1977, p. 101) teoriza sobre o dispositivo de sexualidade e o dispositivo de aliança. O primeiro diz respeito “as sensações do corpo, a qualidade dos prazeres, a natureza das impressões”; enquanto o outro “está ordenado para uma homeostase do corpo social a qual é sua função manter, seu momento decisivo é a ‘reprodução’”. Segundo ele é a partir do século XVIII que ocorre a formação dos principais elementos do dispositivo da sexualidade que são: o corpo feminino (com a histerização15); a masturbação infantil; o controle dos nascimentos; e em menor proporção a classificação dos perversos. O dispositivo da aliança atua na manutenção dos patrimônios e no controle do corpo da mulher. Ainda nesse século houve uma preocupação com a procriação e a valorização exclusiva da sexualidade adulta e matrimonial. O dispositivo da aliança se articula com a economia para exercer o papel de transmissão das riquezas, já o dispositivo da sexualidade se articula com ela para produzir modos sutis de controle.

É a partir da análise do dispositivo da sexualidade que fundamentamos a importância do aborto na construção da sociedade moderna. Já que além do corpo a própria reprodução passou a ser observada e ter maior controle dos dispositivos de poder, como o Estado e a Medicina, analogamente o aborto aqui apareceria como um duplo ou um terceiro delito feminino ao matrimônio, visto que a sua prática poderia ser a condenação de um adultério, ou seja, de um ato perverso feminino, ou mesmo poderia ser um mecanismo não legal para o controle da natalidade.

14

ELANI CICLO: comprimidos. Responsável Técnico: Cíntia Delphino de Andrade. São Paulo: LIBBS, 2009. Bula de remédio.

15

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27 O aborto também é considerado uma forma de resistência e de contravenção feminina à maternidade compulsória. Segundo Foucault (1977, p. 127), o estado moderno assume o papel do soberano e tem o poder sobre a vida e morte dos cidadãos. O aborto seria uma contravenção feminina porque ele anuncia o pecado original, o ato fundador, ou por ele se configurar como uma recusa, uma reação feminina contrária ao código e a religião:

O aborto como forma de resistência propriamente dita representa uma reação feminina às diversas modalidades de violência emocional, física e sexual a que a mulher se vê submetida. É um ato de autonomia: um exercício de poder em que a mulher se recusa a manter a gravidez por projetos de mudança de vida como trabalhar, rompimento da relação conjugal e porque não deseja criar o filho sozinha. A decisão pelo aborto representa a quebra de muitos paradigmas: a mulher quebra o paradigma social, quando toda a sociedade considera a maternidade a maior realização feminina e ela interrompe a gravidez. A mulher quebra o paradigma legal, quando se coloca como transgressora do discurso oficial vigente num país que considera o aborto como crime. Para Simone de Beauvoir, o código obstina-se em fazer do aborto um delito e isto obriga a mulher “a executar essa operação delicada clandestinamente”. Essa autora refere que as mulheres interiormente respeitam a lei que infringem e sofrem ao cometer o delito. Sem dúvida, isso pode ser ainda mais difícil para aquelas que professam uma religião (MOTTA, 2000. p. 133).

Na década de 1970, influenciadas pela luta da liberação sexual pautada no movimento feminista da Europa e dos Estados Unidos, feministas brasileiras imbricadas também na luta pela democracia no Brasil, inseriram em sua agenda política a pauta do aborto e dos direitos sexuais. Em 1990, no Hospital do Jabaquara no Estado de São Paulo, foi criado o primeiro serviço público de aborto legal do país. Em 1999, com o lançamento e divulgação da primeira edição da Norma Técnica de Atenção Humanizada, o serviço de aborto legal passou a ser legalmente oferecido pelo SUS (JORNADAS, 2009).

Ao longo da história da humanidade sabemos que o aborto foi e é ainda muito praticado; ainda hoje é criminalizado em alguns lugares por questões políticas, econômicas, religiosas, etc. A criminalização das mulheres que praticam o aborto

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28 reafirma uma postura autoritária e reacionária que algumas instâncias de poder estabelecem sobre o corpo e a sexualidade das mulheres. O movimento feminista, representado por ativistas de todo o mundo, elenca a pauta do aborto a cerca de um século, atualmente visando o fortalecimento do estado democrático através do combate às desigualdades de gênero e na garantia dos direitos humanos das mulheres.

O aborto é pauta recorrente desse movimento e do movimento de mulheres. A sociedade precisa refletir sobre o assunto, sobre a violência institucional que mulheres são submetidas cotidianamente; sobre os abortos conjugais, provocados geralmente por mulheres que vivem em contextos conjugais de violência.

No Brasil segundo a Secretaria de Políticas para as Mulheres acontecem anualmente cerca 1,4 milhão de abortos espontâneos e inseguros (SECRETARIA ESPECIAL DE POLÍTICAS PARA AS MULHERES, 2005, p. 6). Ele está na quarta causa de morte materna, o que aponta o número de 76/100.000, ou seja, setenta e seis mulheres mortas para cada 100.000 nascidos vivos (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2009, p. 31).

Para alterar esse cenário o movimento feminista compreende que deve haver uma mudança de mentalidade, principalmente no que se refere à compreensão sobre o que é a existência humana.

O que o movimento feminista propõe com a descriminalização do aborto no Brasil não é algo radicalmente demoníaco, muito pelo contrário, é pensando em uma forma de visibilizar e trazer o tema para debate, com estratégias de combater a alienação social16, como um elemento agravante nos números de óbitos por complicações relacionadas ao aborto. É para combater o problema do grande número de mulheres mortas todos os anos no Brasil por complicações relacionadas à gestação, e também para garantir a liberdade da mulher decidir sobre o assunto, sobre a sua capacidade de reproduzir, sobre a sua sexualidade e possivelmente sobre se quer ou não manter uma gestação, mesmo que seja saudável, se por algum motivo do âmbito econômico, pessoal e íntimo ela não desejar levar a gestação adiante, que o serviço deve ser assegurado na Rede Pública de Saúde.

16

Para Marilena Chauí (1994, p. 170) o fenômeno da alienação social é o desconhecimento das condições histórico- sociais produzidas pela ação humana; a aceitação passiva de que o que existe, existe porque é natural “pela vontade de Deus” e não por condições históricas determinadas anteriormente.

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29 2.2 Aborto e Direitos Humanos no Brasil

Em 1994 ocorreu a Conferência do Cairo sobre População e Desenvolvimento, na qual ficou estabelecido “a alteração do tratamento legal conferido à interrupção da gestação”; e em 1995, a IV Conferência Mundial Sobre Mulher em Beijing, onde foi construído um Plano de Ação incluindo compromissos internacionais sobre a questão do aborto, e quando ficou constatado que o aborto é um problema de saúde pública devido ao grande número de mulheres que morrem em decorrência de complicações provocadas por ele todos os anos, principalmente as mulheres que vivem em países do Terceiro Mundo como o Brasil, onde a morte em decorrência de abortamento ocupa o quarto lugar segundo dados do Ministério da Saúde. Na Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial sobre a Mulher ficou estabelecido que “as mulheres devem ter acesso a serviços de qualidade para o tratamento de complicações resultantes de aborto” (apud CAVALCANTE, 2006, p 98).

No Brasil, o processo de colonização tornou-o um país escravocrata, católico e patriarcalista. O processo de nacionalização foi movido por sucessivas vontades de catequização, muitas vezes impulsionada pelo poder econômico e ideológico do cristianismo.

O Estado brasileiro é laico. De acordo com o art. 19, inc. I da constituição: "É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público” (BRASIL b, 2005, p. 11).

Por se tratar de uma democracia recente os conceitos de laicidade e de democratização do Estado estão sorrateiros no debate político, vamos encontrá-lo menos timidamente no movimento feminista, que pauta direitos a partir de uma perspectiva de igualdades de gênero e tem na laicidade do Estado17 um dos

17

Após a Reforma Protestante houve a necessidade de que o Estado fosse um arbitro neutro e isento. O Estado Moderno é Laico quando não toma partido por nenhuma religião e afasta-se por igual de todas elas, e, portanto, não toma partido por uma ou outra religião. (BATISTA, 2006, p. 5- 6).

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30 argumentos mais legítimos para defender a legalização do aborto (JORNADAS, 2009).

No cenário político local como é o caso da bancada da Câmara de Vereadores de Natal encontramos um bom exemplo onde são colocadas crenças e expressões religiosas em meio aos discursos que tratam de decisões importantes para a população natalense.

O principio da laicidade do estado é deixado de lado quando nas repartições públicas são colocadas esculturas religiosas, são feitas rezas antes das plenárias (na câmara aqui de Natal é rotineiro, já foi presenciado o Vereador Adenúbio Melo filiado ao PSB fazendo citação da Bíblia enquanto se discutiam políticas públicas com recorte de gênero) e coisa parecida.

Um Estado que se diz laico não deveria tolerar tal situação, pois não há que se confundir o papel do Estado com o da Religião na vida das pessoas, mas como esse princípio de laicidade não é levado a sério em um país de maioria católica, o que pertence ao âmbito privado e as questões das crenças pessoais também terminam sendo levadas ao âmbito público e se reverberando nas questões de cunho coletivo.

Quais são os valores da sociedade brasileira? Quais são as forças políticas que existem hoje? Há uma tendência de secularização18 do estado? Os valores morais devem ser redimensionados para uma valorização à vida a partir da reafirmação do valor humano nos processos de decisão política.

Surge então o questionamento: como a Igreja posicionaria seu discurso em acordo com a descriminalização da prática do aborto? Já que “os maiores interesses e poderes que as religiões têm são os segredos, ancorados nos mitos” (FOUCAULT, 1977, p 36), diante do silêncio provocado ao que vem do sexo, como então ela acrescentaria a livre prática do aborto nos seus dogmas?

18

Secularização s.f. (1789 cf. MS¹) ação ou efeito de secularizar-se 1 transformação ou passagem de coisas, fatos, pessoas, crenças em instituições, que estavam sob o domínio religioso, para o regime leigo <s. de um cemitério> 2 transferência de bens ou pessoas do regime religioso ou monástico, passando os bens ao regime civil, e as pessoas ao regime secular, leigo 3 absolvição do voto de clausura; dispensa dos votos monásticos 4 JUR ação e efeito de subordinar ao direito civil o que era de direito canônico.

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31 2.3 Legislação sobre o aborto no Brasil

No Brasil, até o Código Criminal do Império o aborto não era punido em nenhuma circunstância, foi a partir de 1830 que o aborto entrou nos crimes contra a pessoa e nos crimes contra a vida. Isso perdurou até a elaboração do Código Penal da República em 1890, que estabeleceu a redução da pena para aquelas mulheres que alegassem a intenção em “ocultar desonra própria” (PRADO, 2007, p. 51) através do aborto. Um escape jurídico para as mulheres que eram punidas por abortarem gestações oriundas de relacionamentos extraconjugais.

Elaborado em 1940, o código penal (Art. 128,I) criminaliza a prática do aborto exceto nos dois casos: gravidez decorrente de violência sexual/ estupro ou quando a gestação põe em risco a vida da mulher, quando não há outra forma de salvar a vida da gestante, a punição é tanto para a mulher quanto para o médico ou qualquer pessoa que o execute (PRADO, 2007, p. 49-50).

2.4 A Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento

A Norma Técnica de Prevenção e Tratamento dos Agravos resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes foi elaborada pelo então ministro da saúde José Serra no ano de 2002, ela é um guia para o atendimento à mulheres e adolescentes violentadas sexualmente.

No Brasil em 2005 foi formada uma Comissão Tripartite que deliberou sobre o aborto, essa comissão foi composta por representantes dos poderes Legislativo, Executivo e da sociedade civil, para debater o tema e levantar questões resultando em um Anteprojeto de Lei que propõe a legalização do aborto a ser encaminhado ao Congresso Nacional (FLEISCHER, 2009, p. 78). Para uma prática como o aborto vir a ser legalizada nos dias atuais em um país como o Brasil, com bastante influência religiosa, seriam necessárias múltiplas investidas da sociedade civil no cenário político, já que o que apresenta-se delibera sobre a vida da população com práticas obscurantistas e ultra-conservadoras.

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32 Apesar da legalização total do aborto não ter ocorrido no Brasil, em 2005 foi publicada a Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento pelo Ministério da Saúde, representado pelo então ministro Humberto Costa. Essa norma prevê um atendimento humanizado às mulheres em situação de abortamento, com acolhimento orientado por princípios ético-legais e bioéticos, sem questionamentos ou qualquer julgamento de valor moral ou religioso que cerceiem o âmbito pessoal da paciente. A intenção é que o atendimento ocorra de forma integrada em parceria com a comunidade e os outros serviços públicos oferecidos de atendimento à mulher (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2005, p. 10).

A Norma Técnica é o reconhecimento do Governo brasileiro à realidade de que o aborto realizado em condições inseguras é importante causa de morte materna; que as mulheres em processo de abortamento, espontâneo ou induzido, que procuram os serviços de saúde devem ser acolhidas, atendidas e tratadas com dignidade; e que a atenção tardia ao abortamento inseguro e às suas complicações pode ameaçar a vida, a saúde física e mental das mulheres (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2005, p. 6).

A maioria das mulheres do país sequer conhecem seus direitos e a garantia de atendimento no caso, por exemplo, de uma violência sexual, ou quando estão com gravidez que apresenta risco de vida para a gestante. Nesses dois casos elas tem legitimamente o amparo judicial para recorrerem aos medicamentos disponíveis e evitar uma gestação decorrida de estupro, ou um filho que lhe custe a própria vida. Esse é um direito assegurado, e a Norma Técnica faz inúmeras ressalvas a necessidade do acompanhamento psicológico e humanizado a essas mulheres, e a disponibilização e utilização da pílula do dia seguinte como um dos medicamentos iniciais; ou mesmo, sem precisarem apresentar o Boletim de Ocorrência, serem submetidas ao procedimento da interrupção da gestação legal.

O Ministério da Saúde consolida, com a publicação desta Norma Técnica, instrumento de ação para produzir resultados práticos que reflitam respeito à cidadania feminina e expressem os cumprimentos das Resoluções da Cúpula do Milênio das Nações Unidas (Nova Iorque, 2000), que definiu como uma de suas metas a redução dos níveis de mortalidade materna em

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33 75%, até o ano 2015, em relação aos índices da década de 1990 (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2005, p. 5).

Na decisão da utilização da curetagem e não a AMIU, a Norma Técnica elaborada pelo Ministério da Saúde no ano de 2002, diz: A escolha do tipo de anestesia deve considerar as condições clínicas de cada caso e respeitar a situação emocional da mulher. Nesse caso a mulher necessariamente deverá utilizar anestesia, o que configura esse, como um serviço de alto custo para o Sistema Único de Saúde/ SUS.

Todo o pessoal de saúde tem "responsabilidade" na identificação dos casos de violência e na atenção integral às pessoas que encontram-se nessa situação, ainda que desempenhem papéis e funções diferentes no processo. É recomendado que toda mulher vítima de violência sexual seja orientada a registrar a ocorrência. Entretanto, deve-se levar em consideração que, em determinadas circunstâncias, é muito difícil para ela apresentar queixa à polícia e ela não pode ser obrigada a realizá-la em nenhuma circunstância.

Caso a mulher não aceite ser atendida por um profissional do sexo masculino, deve-se compreender a dificuldade que ela apresenta nesse momento. Essa postura não significa uma agressão em relação ao profissional em questão e esse posicionamento deve ser respeitado e, sempre que possível, atendido (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002, p. 11).

A Folha de São Paulo no ano de 2005 publicou: “Uma nova norma do Ministério da Saúde autoriza os médicos da rede pública a fazer aborto em mulheres que aleguem ter engravidado após estupro, mesmo que não haja boletim de ocorrência ou um outro documento comprovando a violência sexual”. Isso levando em conta que até 1999 o conhecido BO era necessário para a realização do aborto. O que torna isento da ilegalidade o profissional que realizar aborto em caso de alegação de violência sexual (CAVALCANTE, 2006, p. 6).

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34 2.5 A Ofensiva Fundamentalista19 Cristã nas eleições à presidência do Brasil

em 2010

O ano de 2010 será lembrado por inúmeras situações importantes, dentre elas um fato de grande relevância para o processo democrático que ocorre no país: a ameaça de uma caça às bruxas em pleno século XXI.

A Revista Carta Capital no dia 13 de outubro publicou:

Em 3 de outubro, um domingo, os brasileiros acordaram cedo, votaram, decidiram democraticamente pelo segundo turno das eleições presidenciais e foram para a cama no século XXI. Mas acordaram no dia seguinte em plena Idade Média, com a religião e o aborto no centro do debate político. (MENEZES, 2010, p. 20)

E foi realmente o que aconteceu. Daí em diante os fatos desencadeados no 2º Turno da Campanha do candidato tucano20, José Serra, foi a utilização de imagens apelativas e sentimentalistas sobre a maternidade humana. Um apelo onde ficou claro o objetivo e o projeto político do candidato, que não apresentou um plano de governo consistente, se ocupando principalmente em atacar a candidata adversária.

A candidata petista, Dilma Rousseff, foi hostilizada pelo candidato do PSDB; sua participação na ditadura militar foi demonizada; declarações feitas por ela, anos anteriores, sobre sua compreensão e seu posicionamento a respeito do aborto foram utilizadas contra ela.

Atuantes de uma ofensiva fortalecida pelo resultado das urnas no dia 3 de outubro e representantes de pastorais e de congregações cristãs ligadas ao PSDB trabalharam a questão da maternidade e do aborto como algo superficial e simples, não se preocuparam em problematizar, e politizar o debate sobre a questão do aborto, sobre suas causas e conseqüências. Reduzindo-o a uma prática ilegal e que deve ser punida.

19

Fundamentalismo SM (1922) 1 REL Movimento religioso e conservador, nascido entre os protestantes dos E.U.A. no inicio do século, que enfatiza a interpretação literal da bíblia como fundamental à vida e à doutrina cristãs [Embora militante não se trata de movimento unificado, e acaba denominando diferentes tendências protestante do século XX] 1.1 REL a doutrina desse movimento 1.2 REL adesão a essa doutrina 2 pext. qualquer corrente, movimento ou atitude de cunho conservador e integralista, que enfatiza a obediência rigorosa e literal a um conjunto de princípios básicos; integralismo. (HOUAISS, 2008, p. 1404).

20

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35 Ainda segundo a Carta Capital:

O maior alvo dos detratores do PT na Igreja é o Plano Nacional de Direitos Humanos lançado pelo governo Lula. Deturpados os itens do plano, em sua terceira versão e que continham os mesmos trechos quando divulgados pela administração de Fernando Henrique Cardoso, aparecem em panfletos colocados anonimamente nas caixas de correios às vésperas do primeiro turno. Todos os itens foram alvo de criticas da CNBB21 na época do lançamento do PNDH, mas o exagero é evidente na propaganda apócrifa (MENEZES, 2010, p. 22).

É uma inverdade a afirmativa no cartaz (ver figura 2), que o terceiro Plano Nacional dos Direitos Humanos é um Programa do Partido dos Trabalhadores. O Plano é o resultado de momentos de discussão de inúmeras Conferências feitas em todo o país por representantes da sociedade civil organizada e movimentos sociais. Ele é uma continuidade do segundo PNDH elaborado durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (Carta Capital, 2010, p 22).

Esse cartaz estava circulando pela web, entre os materiais (anônimos ou não) de campanha do candidato José Serra já que atacavam diretamente as propostas da sua adversária política Dilma Roussef e de seu partido o PT.

21

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36 Figura 2: Em nome de Deus?

Fonte: Revista Carta Capital, 2010, p. 23.

A onda fundamentalista religiosa se insere no cenário político e ganha corpo e peso nas instancias do legislativo nacional. Terminado o momento de inquisição vivido na ultima eleição à presidência do Brasil a discussão sobre o aborto volta a Câmara dos Deputados que agora quer rever o Projeto de Lei que propõe a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) e que investigue o aborto clandestino no Brasil.

No dia 10 de novembro de 2010 no site da Câmara dos Deputados é publicada a notícia:

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37 Parlamentares da bancada evangélica estiveram reunidos nesta quarta-feira com o presidente da Câmara, Michel Temer, para pedir a instalação ainda neste ano da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) criada em 2008 para investigar o aborto clandestino no Brasil. Divergências sobre o tema acabaram inviabilizando o início dos trabalhos da CPI (PRADO, Leonardo; 2010).

O direito, através do exercício Legislativo seria uma forma de violência legalizada. A partir de denuncias e de trabalho investigativo, a polícia tem a finalidade de prender e punir mulheres culpadas, já que investiga quem são as mulheres que abortam clandestinamente. Segundo Michel Foucault (1977, p. 85) o próprio sistema de direito que se exerce através da coação física foi uma maneira de exercer a violência; e os indivíduos considerados moralmente tradicionais estão fadados a seguir os preceitos instaurados nesses discursos hegemônicos do Estado e da Igreja. O Estado, portanto, com o papel de administrar estruturas que prestam serviços a população, como hospitais e maternidades, realiza um adestramento dessa população.

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38 “Seriam os fatos ostensivamente naturais do sexo produzidos discursivamente por vários discursos científicos a serviço de outros interesses políticos e sociais?”

(Judith Butler)

“os homens tendem a encarar o aborto com displicência; considerando-o como um desses numerosos acidentes a que a malignidade da natureza condenou as mulheres; não medem os valores que se acham empenhados no aborto.” (Alda Britto Motta)

Figura 3: El Movimiento Feminista Alemán [2]. Fonte: DREWITZ, 1983.

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39 3 INSTRUMENTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS

As ciências médicas com a categorização das enfermidades conduzem pesquisas e projetos políticos que dão margem à invisibilidade da dimensão social e humana nos processos. Neste capítulo expõem-se elementos teóricos de autores e autoras que contribuem para a análise das falas dos profissionais, considerando-se a interrupção da gestação como um problema de gênero22. Elabora-se uma investigação sobre a história da sexualidade, sobre a regulamentação do sexo, que por meio de uma bio-política conduzida pelo Estado, pelas elites e pela religião sob a motivação do controle sobre o sexo da população, e principalmente das mulheres, apresenta-se como contribuição para o desenvolvimento do capitalismo (FOUCAULT, 1977, p 29).

3.1 Aborto: quando é o início da vida? Vida biológica ou vida social útil?

Quando existe a constatação que de fato uma porção de matéria esta viva? “Quando ela ‘faz alguma coisa’, como mover-ser, trocar material com o meio, etc.” (SCHRODINGER, 1997, p. 81).

O equilíbrio termodinâmico ou estado de entropia máxima caracteriza-se pela ausência de movimentos e trocas de matéria com o meio. Nesse caso Erwin Schrodinger exemplifica:

22

Judith Butler enfatiza os problemas não como algo negativo, mas como algo evitável; e que devemos nos relacionar com eles na incumbência de descobrir a melhor maneira de criá-los e de tê-los. O aborto apresenta-se como um problema de gênero, pois ele relaciona-se com a seguinte significação da autora “os problemas de gênero algumas vezes exprimem, de maneira eufemística, algum misterioso problema fundamental, geralmente relacionado ao pretenso mistério do feminino.” (BUTLER, 2003, p. 7).

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40 “Se um copo é cheio com água pura e um segundo com água com açúcar e ambos são colocados juntos em uma caixa hermeticamente fechada a temperatura constante, parece a princípio que nada acontece e se cria impressão de completo equilíbrio. Mas depois de um dia mais ou menos, nota-se que a água pura, em virtude de sua pressão de vapor mais alta, vagarosamente evapora e se condensa sobre a solução. Esta transborda. Só depois que a água pura evaporou totalmente é que o açúcar atinge seu objetivo de ficar igualmente distribuído por toda água liquida disponível. Essas lentas aproximações do equilíbrio não poderiam jamais ser confundidas com manifestações de vida, e não as levaremos aqui em consideração. Referi-me a elas para me livrar da acusação de imprecisão” (SCHRODINGER, 1997, p. 82).

Parece que é de espasmos científicos como esse que os pró-vida23 adeptos da teoria criacionista24 se apropriam para validar suas teses sobre a vida desde a concepção. É pela troca de materiais e nutrientes do feto com o meio (com as entranhas maternas) que caracteriza-se a vida? O autor afirma ainda: é por evitar o decaimento inerte de “equilibro” que um organismo parece tão enigmático. Ele refere-se ao metabolismo (comer, beber, respirar) como a forma desses organismos evitarem o decaimento, o estado inerte (para os seres vivos/ humanos seria a morte?).

Um embrião humano, portanto, evita seu decaimento provavelmente dessa mesma maneira, mas em condições diferentes. Da mesma maneira porque, mesmo sabendo-se que não há no instinto humano conhecimento, sabe-se que é por instinto, para desenvolver-se e manter-se vivo que ele precisa dessas trocas de energias e nutrientes com o meio. As condições são diferentes porque ele está atrelado ao corpo da mulher gestante, a qual as razões de existir não se limitam ao impulso/ instinto, que é o que move (em hipótese) um embrião/ feto. Nessa

23

Formados geralmente por pessoas ligadas a organizações ou líderes religiosos que vêm na proibição do aborto uma valorização à vida. Conhecidos mundialmente como pro-life, o termo é utilizado para designar grupos que apelam pelo direito fundamental à vida, considerando-a a partir da concepção e incluindo a vida intra-uterina como valor universal. Baseiam-se em descobertas da Embriologia e da Genética, para construir sua principal argumentação contra o aborto; A comparação é quase inevitável: o Pró-Vida atua como uma versão mais elaborada da igreja do bispo Edir Macedo. “Dirige-se à classe média alta e, portanto, utiliza meios mais complexos de persuasão. O discurso dos monitores é articulado. No lugar de trechos bíblicos, supostas referências científicas. De Einstein a Freud e Jung, proliferam citações que procuram emprestar credibilidade aos ensinamentos” (SERPA, 2010).

24

O Criacionismo, baseado nas Teorias da Abiogênese da Biologia que são conhecidas por falarem sobre a origem da vida na terra, está classificado como uma das argumentações que apresentam a origem dos seres vivos a partir da matéria bruta/ inanimada de maneira continua (LOSPES, 2001).

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41 perspectiva a tutela sobre a vida e a morte do feto/ embrião, no lugar de ser (mesmo que muitas vezes simbólica) do médico (representante do poder do Estado, soberano) deveria ser da mulher gestante (FOUCAULT, 1977, p. 128).

Será que a sociedade através da política/ ou a política através da sociedade vai tratar o aborto nos próximos anos com alguma indignação quanto a esse adestramento de indivíduos em torno dessa vida de embalagem produzida pelo capitalismo, e consumida pelos pró-vida? Será que as mulheres jovens, trabalhadoras, em idade reprodutiva, reconhecem a própria vulnerabilidade nesse contexto de criminalização?

O que analisa-se neste trabalho é o cenário social, a evidência da existência de um bio-poder com o fortalecimento do discurso da Igreja nesse debate sobre aborto. O bio-poder ramifica-se na atuação do Estado através da medicina com a histerização das mulheres, a disciplina do corpo, a regulação das populações e o desenvolvimento do capitalismo, que também se beneficia da medicalização dos discursos que fizeram passar nossas sociedades de uma simbólica do sangue para uma analítica da sexualidade (FOUCAULT, 1977, p. 132- 139).

Nesse cenário, organizações pró-vida alicerçam e fundamentam seus argumentos em favor da vida do feto em detrimento da vida da mulher gestante.

Em meio a realidades de miséria humana o papel do médico como soberano ganha corpo. A tira abaixo retirada do livro infantil Mafalda e Seus amigos, de Quino, ilustra bem essa supervalorização do trabalho da medicina na atualidade.

Figura 4. Tira da Mafalda. Fonte: QUINO, 1999, p. 15.

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42 Durante um longo período o sexo permaneceu em forma de subterfúgios sociais, impulsionado pela Igreja durante séculos, esse silêncio na verdade tinha o intuito de instituir o controle sobre o que era dito sobre a sexualidade humana, algo da ordem do desejo, do sexo (FOUCAULT, 1977, p. 29).

Para a Igreja às confissões assumem um papel central na ordem dos poderes civis e religiosos (FOUCAULT, 1977, p. 58). No que diz respeito à sexualidade humana, ela certamente ocultou a velada prática do aborto, valorizando-a como um segredo, e como pecvalorizando-ado (FOUCAULT, 1977, p. 36). Porém o que ervalorizando-a dito, nas alcovas, na presença das damas de companhia ou mesmo às concubinas, era velado pela regulamentação da confissão, obrigatória aos fiéis cristãos, que só a devem fazer na presença de um representante da Igreja, um padre.

É no murmúrio do que era classificado como perversões e coisas proibidas tanto pela Igreja católica do século XVI ao XIX, quanto pela medicina e as outras instâncias de poder, que entra o aborto, camuflado pelo delito do adultério feminino, e já condenado pela Igreja e pelo Estado como uma ameaça a honra masculina e ao matrimônio.

Com isso nas sociedades atuais, não muito diferente de algumas das mais antigas, o modelo heteronormativo hegemonicamente se instaura como exemplar, análogo aos tipos Ideais de Weber25 (JASPERS, 1997, p. 129) “O casal legitimo, e procriador dita a lei” (FOUCAULT, 1977, p. 9), ou seja, um homem e uma mulher com algum envolvimento conjugal (sexual e amoroso) de preferência com filhos, legitimam a família tradicional (monogâmica, heterossexual, branca, cristã...) e são reconhecidos enquanto seres humanos e sujeitos exemplares. Esse modelo dita as regras de comportamentos e envolvimentos humanos nas sociedades ocidentais.

Observemos que o aborto como delito relacionado ao sexo e o desejo feminino, foi “banido das coisas ditas (...) e definiu-se de maneira mais estrita onde e quando não falar dele” com isso se deu limites de sua presença nas conversas furtivas e cotidianas. Michel Foucault (1977, p. 22) afirma que para dominar a livre circulação do sexo no discurso, falou-se demasiado nele, porém onde, quando e com quem falou dele é que se restringiu, ficando reservada a fala somente à

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Para auxiliar na compreensão da analogia com os tipos ideais de Weber, podemos consultar Karl Jaspers que diz que é preciso pensá-los como instrumentos para elevar a máxima consciência aquilo que é especifico da realidade humana em cada caso.

Referências

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