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O cortesão e o modelo de disciplinamento

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Academic year: 2021

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Celso Kraemer1

“Não me pergunte quem sou e não me diga para permanecer o mesmo: é uma moral do estado civil; ela rege nossos papéis. Que ela nos deixe livres quando se trata de escrever”. (M. Foucault, Arqueologia do Saber, p.20).

RESUMO

Este trabalho tem por objetivo fazer uma leitura possível do livro O Cortesão, de Baldassare Castiglione, na ótica da definição de padrões de comportamento. Pretende mostrar, a partir de bibliografias auxiliares, que a obra de Castiglione, embora escrita no interior e dedicada à Corte Renascentista, em muitos aspectos está na raiz da modernidade. A partir disso, pretende-se evidenciar que o ideal de homem das sociedades modernas foi cunhado e desenvolvido ainda na sociedade de corte. Embora possam ser sinalizadas diversas rupturas da sociedade de corte do renascimento (amparadas em conceitos de comunidade e de vida familiar) para a sociedade moderna (amparada na idéia de Estado-Nação) há muita continuidade de uma para outra. Pode-se afirmar, inclusive, que a ascensão da burguesia não significou a criação de um novo modo de ser para o homem, mas apenas a universalização do padrão definido pela sociedade de corte para todas as camadas da sociedade.

PALAVRAS-CHAVE: Educação. Renascimento. Modernidade.

1. DADOS INTRODUTÓRIOS

Se partirmos da tese de que o estudo de algo do passado geralmente está motivado por circunstâncias ou problemas que afetam o pesquisador no presente, partimos, no presente estudo, de uma certa incomodação, um certo mal-estar com o mundo no qual

1 Mestre em Educação (FURB) e Mestrando em Filosofia pela pUC/SP. Professor de Filosofia na

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vivemos. O que se nos apresenta é a sensação de que muita coisa à nossa volta, no tocante ao comportamento das pessoas, ao seu modo de agir, é padronizada, mantida por pressão social, sem espontaneidade, artificial. Uma sensação de zelo generalizado pela aparência, um prestar atenção nos mínimos detalhes, sobre mim e sobre os outros para que o aparecer diante dos outros esteja adequado aos padrões, para que o olhar do outro que me julga, me aprove. Isso nos causa a sensação de que todo o empenho que move as pessoas esteja alavancado pelo disfarce, pela dissimulação, diante de si, frente ao olhar dos outros, seja em relação à roupa, aos cabelos, ao modo de falar, de pensar (pensar corretamente), de andar, maneira de manifestar suas emoções, seus afetos e desejos, tudo, do mais superficial ao mais profundo na existência das pessoas parece estar afetado por este imenso jogo de aparências e encenações. Sempre nos pareceu algo quase impossível encontrar algumas pontas históricas de onde se possa começar a compreender como se montou esta complexa trama do que poderíamos chamar de mundo da aparência, da inautenticidade, da dissimulação, da representação, do disfarce.

A partir do estudo do Renascimento Italiano, tenho a impressão de que algumas pontas, donde se origina o processo dissimulador, possam ser encontradas. Talvez essas pontas não sejam as originais nem A Origem desse vasto processo em direção à dissimulação, ao disfarce. Mas algumas sinalizações positivas, que tornam possível pensar, ou seja, elaborar no pensamento, o que foi ou quais as coisas que contribuíram, em nossa história, para que nos tornássemos pessoas com esse determinado modo de ser no mundo com os outros.

Da vasta produção artística, cultural e bibliográfica do Renascimento, pretendemos focar o livro de Baldassare Castiglione, O Cortesão, publicado pela primeira vez em 1528. Das múltiplas possibilidades temáticas do livro, pretendemos dirigir nossa análise para a questão da educação e do comportamento. Após verificarmos os pressupostos da educação e os padrões de comportamento apresentados no livro, pretendemos buscar as pontes que relacionam a obra de Castiglione a nossos dias.

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2. MOMENTO DE TRANSIÇÃO HISTÓRICA

Inicialmente, pretendemos situar um pouco o universo pelo qual o mundo renascentista estava se desenvolvendo, na passagem do século XV para o XVI. Segundo Agnes Heller,

o Renascimento constituiu uma época de grandes personalidades multifacetadas. A ciência, a política, a filosofia e a arte podiam vangloriar-se de seus grandes representantes. Encontramos (...) exemplos de versatilidade e da mais fanática e apaixonada unilateralidade, de moderação estóico-epicurista e da mais desenfreada falta de escrúpulos. Burckhardt2 afirma com razão que ninguém tinha medo de ser conspícuo,

de parecer diferente dos outros; os homens seguiam obstinadamente seu rumo na vida(...) Heller, 1982: p.163).

Nietzsche, na “Genealogia da Moral”, demonstra que os homens, até esse momento, anterior, portanto, à modernidade “não tinham de construir artificialmente sua felicidade, de persuadir-se dela, menti-la para si, (...) e do mesmo modo, sendo homens plenos, repletos de força e portanto necessariamente ativos, não sabiam separar a felicidade da ação” (Nietzsche, 1998: p. 30).

Também Arendt destaca o caráter essencialmente exterior e ativo da vida antes da modernidade:

mas a esfera pública, a polis, era permeada de um espírito acirradamente agonístico: cada homem tinha constantemente que se distinguir de todos os outros, demonstrar, através de feitos ou realizações singulares (...), a esfera pública era reservada à individualidade; (...) lugar em que os homens podiam mostrar quem realmente e inconfundivelmente eram (Arendt, 2001: p. 51).

Mas essa característica do Renascimento, de um homem voltado para o exterior, para o mundo, para o agir, não perdura. Já no início do século XVI verificamos que o

2 Jacob Burckhardt, A Cultura do Renascimento Italiano Um Ensaio. Tradução: Sérgio Tellaroli. São Paulo:

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homem exterior, “com o aprofundamento da crise dessa época, cedeu o lugar a um afastamento do mundo, à retirada dos homens para os seus problemas interiores e para a introversão” (Heller, 1982: p.163). O que está em curso é uma modificação significativa do modo de ser do homem. “A postura, os gestos, o vestuário, as expressões faciais – este comportamento ‘externo’ (...) é a manifestação do homem interior, inteiro” (Elias, 1994: p. 69). As pressões sobre o indivíduo vão aumentando significativamente. Aos poucos se vai constituindo, ao longo dos séculos XVI e XVII, uma nova concepção do espaço público, uma modificação que transita da idéia de comunidade para a idéia de sociedade. Hannah Arendt expressa muito bem as implicações que essa mudança traz:

Um fator decisivo é que a sociedade, em todos os seus níveis, exclui a possibilidade de ação, que antes era exclusiva do lar doméstico. Ao invés de ação, a sociedade espera de cada um de seus membros um certo tipo de comportamento, impondo inúmeras e variadas regras, todas elas tendentes a ‘normalizar’ os seus membros, a fazê-los ‘comportarem-se’, a abolir a ação espontânea ou a reação inusitada (Arendt, 2001: p. 50).

Seguindo o raciocínio de Arendt, podemos deduzir que a constituição da sociedade, num mesmo movimento, instituiu o indivíduo e fez desaparecer nele a possibilidade da singularidade pela instituição de padrões de comportamento, adaptando-o aos espaços sociais. É o que Norbert Elias chama de processo civilizador e que Nietzsche assim descreve:

o sentido de toda cultura é amestrar o animal de rapina ‘homem’, reduzi-lo a um animal manso e civilizado, doméstico (...) que não tenhamos mais o que temer no homem; que o verme ‘homem’ ocupe o primeiro plano e se multiplique; que o ‘homem manso’, o incuravelmente medíocre e insosso, já tenha aprendido a se perceber como apogeu e meta (...) doentio, exausto, consumido (...) (Nietzsche, 1998: p. 33-34).

Talvez com palavras mais enfáticas Nietzsche expressa o mesmo desconforto, mal-estar com o modo de ser do homem do seu tempo, que expressamos no início deste trabalho. E esse modo de ser parece haver-se multiplicado, generalizado, ‘universalizado’ em nosso tempo, com as sociedades de massa e os controles cada vez mais efetivos através

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dos mecanismos tecnológicos de comunicação e controle, não só do indivíduo, mas da própria vida (biopolítica e biocontrole).

A nosso ver, o livro de Castiglione, O Cortesão, situa-se neste momento de transição entre o que Heller chamou de passagem do homem exterior para o homem interior. Certamente nem Castiglione nem seus contemporâneos tinham ciência das enormes implicações que os acontecimentos de seu tempo viriam a ter para a história. Partimos do pressuposto que Castiglione não tinha a intenção de instituir um novo padrão para a totalidade da sociedade futura. O que conseguimos depreender da leitura do livro é que Castiglione está ocupado com a corte, a definição de um padrão qualitativamente superior, virtuoso para a corte, e não para a sociedade em geral, que ainda nem existia, nos moldes em que a entendemos em nossos dias. Por outro lado, estavam sendo lançados os germes para a sociedade em sua concepção moderna. E, em parte, é isso que pretendemos mostrar nas páginas que se seguem.

3. OS COSTUMES DA ÉPOCA

Para localizarmos brevemente o leitor com o cotidiano das pessoas, seus hábitos e costumes, extraímos do livro O Processo Civilizador, de Norbert Elias, algumas citações que vão ilustrar esse universo. Lembramos ao leitor que, em primeiro lugar, as citações aparecem na forma de proibições, interdições, aconselhamentos, o que demonstra que tais coisas, sobre as quais versam as proibições, eram praticadas habitualmente. Em segundo lugar, queremos lembrar ao leitor que estes conselhos eram dados, em geral, a adultos, senhoras e senhores das classes mais elevadas da sociedade de corte. As classes inferiores da população, naquele momento (final do século XV, início do século XVI) ainda não estavam sendo visadas por essa educação.

3.1 Os Costumes à Mesa

Se um homem bufa como uma foca quando come, como acontece com algumas pessoas, e estala os beiços como um camponês bávaro... (Elias, 1994: p. 77)

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Se estiver comendo com outra pessoa no mesmo prato ou fatia de pão, como freqüentemente acontecia, use a mão de fora (Idem, p. 78).

Não coces a garganta com a mão limpa enquanto estiveres comendo; se tiveres que fazer isso, faze-o com o casaco. Não limpes os dentes com a faca. Tampouco constitui boas maneiras afrouxar o cinto à mesa. Não é decente enfiar os dedos nos ouvidos ou nos olhos, como fazem algumas pessoas, nem esgravatar o nariz enquanto se come” (idem, p. 98-99). “O que você pensa que este nobre Bispo e sua corte teriam dito daqueles que vemos, às vezes, caídos como porcos com seus focinhos na sopa, sem erguer a cabeça e virar os olhos, e ainda menos as mãos, da comida, resfolegando com as bochechas como se estivessem soprando uma trompa ou abanando um fogo, não comendo, mas se empanzinando, sujando os braços até os cotovelos e depois reduzindo seus guardanapos a um estado que faria um trapo de cozinha parecer limpo? Não obstante, esses porcos não têm vergonha de usar os guardanapos assim emporcalhados para enxugar o suor (o qual, devido à maneira voraz e excessiva como comem, freqüentemente lhes escorre da testa e rosto para o pescoço), e mesmo assoar neles o nariz, como fazem muitas vezes Elias, 1994, p. 101).

Tampouco é decoroso que tire da boca alguma coisa que já mastigou e a coloque na tábua de cortar, a menos que seja um osso do qual já sugou o tutano... (Elias, 1994, p. 101).

Entre 1640 E 1680: “no passado, as pessoas comiam em um prato comum e enfiavam o pão e os dedos no molho. Hoje todos comem com colher e garfo...” (idem, p. 102).

Em 1672: “Se todos estão se servindo do mesmo prato, evite pôr nele a mão antes que o tenham feito as pessoas de mais alta categoria e trate de tirar o alimento apenas da parte do prato que está à sua frente... Você não deve tomar a sopa na sopeira, mas colocá-la no seu prato fundo... É muito indelicado tocar qualquer coisa gordurosa, molho ou xarope, com os dedos, à parte o fato de que o obrigaria a cometer mais dois ou três atos indelicados. Um deles seria freqüentemente limpar a mão no guardanapo e suja-lo como se fosse um trapo de cozinha, de modo que as pessoas que o vissem enxugar a boca com ele se sentissem nauseadas” (idem, p. 102-103).

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Em 1714: “Não é educado beber a sopa do prato, a menos que você esteja no seio de sua própria família. É contra o decoro dar a carne a pessoas para que a cheirem e não deve, em hipótese alguma, devolver a carne ao prato comum se a cheirou. Não jogue no chão ossos, cascas de ovos ou cascas de qualquer fruta. O mesmo se aplica a caroços de frutas. É mais educado tirá-los da boca com dois dedos do que cuspi-los na mão” ( idem, p. 105-105).

3.2. Do hábito de Assoar e Escarrar

Final da Idade Média: “Se cuspires por sobre a mesa, ou então sobre ela, hás de passar por homem descortês. Quando lavares as mãos após as refeições, não cuspas na bacia... Não escarres por cima da mesa, como fazem os caçadores” (idem, p.156).

No século XV: “Não assoe o nariz com a mesma mão que usa para comer a carne”.

Em 1530: “Vire-se quando escarrar, para que o escarro não caia sobre alguém. Se alguma coisa purulenta cai no chão deve ser pisada para que não provoque repugnância em alguém” (idem).

Em 1558: “É também indelicado a pessoa coçar-se à mesa. Nessa ocasião e lugar, o homem deve abster-se também, tanto quanto possível, de escarrar. A proibição deve-se só à mesa” (idem).

Em 1714: “Não escarre tão longe que tenhas que procurar o escarro para pisá-lo” (idem, p. 157).

Em 1774: “nas igrejas, nas casas dos grandes, em todos os lugares onde reina a limpeza, você deve escarrar no lenço” (idem, p. 158).

Em 1859: “Escarrar a todo o momento é um hábito repugnante. (...) Além de grosseiro e atroz, é muito ruim para a saúde” (idem).

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Em 1910: “Você já notou que hoje relegamos para algum canto discreto o que nossos pais não hesitavam em exibir abertamente? Por isso mesmo, certa peça íntima tinha um lugar de honra... ninguém pensava em ocultá-la da vista. O mesmo se aplica a outra peça de mobília não mais encontrada em residências modernas, cujo desaparecimento alguém lamentará talvez nesta era de “bacilofobia”: estou me referindo à escarradeira” (idem).

3.3, Do Comportamento no Quarto

“Na sociedade medieval (...) era inteiramente normal receber visitantes com camas (...). Era muito comum que muitas pessoas passassem a noite no mesmo quarto(...) mesmo homens e mulheres no mesmo quarto e não raro, hóspedes que iam passar a noite ali” (Elias, 1994, p. 164).

“De modo geral, as pessoas dormiam nuas na sociedade leiga(...). Isso se aplica também às mulheres. No mínimo era incomum ir para a cama com a roupa de uso diário. Isso despertava a suspeita de que a pessoa pudesse ter algum defeito corporal, o que usualmente ocorria” (idem, p. 164-165).

As mudanças no hábito de dormir são notáveis nos séculos XV a XVIII:

Séc. XV: “Se assim acontecer, à noite ou em qualquer tempo, de teres que te deitar com qualquer homem que seja superior a ti, reserva-lhe o lado da cama que mais seja do agrado dele, e deita-te do outro lado, pois é aquele teu quinhão”(Elias, 1994: p. 162).

Neste período as citações não fazem nenhuma menção ao ocultamento do corpo, por critérios morais, apenas hierárquicos.

Já em 1530, a nudez começa a ser percebida com os olhos da moral: “Quando se despir, quando se levantar, não se esqueça do decoro e cuidado para não expor aos olhos de outras pessoas qualquer coisa que a moralidade e a natureza exigem que seja ocultada. Se dividir a cama com um companheiro, deite-se sossegadamente. Não mexa o corpo, pois isto pode descobri-lo ou causar inconveniência ao companheiro, puxando dele as cobertas” (Elias, 1994:163).

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Em 1555: “Se divide uma cama com outro homem, fique imóvel. Tome cuidado para não aborrecê-lo, nem se descobrir com movimentos bruscos“ ( idem, p. 163).

Já em 1729 La Salle, nas Lês Règles de la bienséance et de la civilité chétienne, muda completamente o tom da conversa: “Você não deve... nem se despir nem ir para a cama na presença de qualquer outra pessoa. Acima de tudo, a menos que seja casado, não deve ir para a cama na presença de qualquer outra pessoa do outro sexo” (Elias, 1994, p. 163).

Conforme apontou um estudo de Rudeck, publicado em Jena, no ano de 1887, “chegamos à conclusão surpreendente, que ... a vista da nudez total era a regra diária até o século XVI. Todos se despiam inteiramente à noite antes de ir dormir e da mesma maneira nenhuma roupa era usada nos banhos a vapor” (Rudeck, citado por Elias, 1994: p. 165).

Conforme Elias, o Processo Civilizatório é o padrão de bom comportamento que, desde a Idade Média, “a classe alta secular usou para dar expressão à sua auto-imagem” (Elias, 1994: p. 76). Mas no Renascimento a “exigência de ‘bom comportamento’ é colocada mais enfaticamente. Todos os problemas ligados a comportamento assumem nova importância” (Elias, 1994, p. 91). Obseva-se uma tendência sempre maior de as pessoas se observarem e se policiarem quanto aos hábitos, bem como observarem aos demais. Aparecem pela primeira vez livros dedicados inteiramente à questão dos costumes, como o livro de Erasmo de Rotterdam, Da Civilidade em Crianças, O Cortesão, de Baldassare Castigione e Galateo, de Della Casa.

4. O CORTESÃO – BALDASSARE CASTIGLIONE

Baldassare Castiglione nasceu em 1478 perto de Mântua. Era filho de um pequeno proprietário rural que servia militarmente aos Gonzaga3. Foi enviado à corte de Ludovico

3 Lembramos que à época do Renascimento, os modernos estados ainda não haviam se constituído, nem

tampouco a idéia de sociedade, nos moldes em que a conhecemos hoje. Os grandes proprietários constituíam a instância de abrigo e identidade para os grupos populacionais. É uma espécie de Grande Família, de um soberano ou de qualquer outra pessoa importante. Uma família desse gênero contava, por vezes, com milhares de pessoas. A Corte constitui-se pelas pessoas que são meticulosamente registradas nos documentos

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Sforza, em Milão, em 1490, para aperfeiçoar seus estudos. Com a morte do pai teve de voltar a Mântua, para servir Francesco Gonzaga. Em 1504 transfere-se para Urbino, a serviço do Duque Guidobaldo de Montefeltro, que era casado com Elisabetta Gonzaga, casa na qual o pai de Baldassare já servira. Na época de Castiglione, a Corte de Urbino contava com 350 membros, divididos, como em geral as cortes eram divididas, em duas partes: a casa de magnificência, com fidalgos e fidalgas, era a parte mais nobre da corte, e a casa de providência, com cozinheiros, copeiros, lavadeiras, guardas, capelães, médicos, cantores... Eram as pessoas encarregadas dos serviços propriamente ditos.

Castiglione, segundo seu próprio testemunho, escreveu o livro O Cortesão para homenagear a ”força das virtudes do duque Guido e a satisfação que sentira durante aqueles anos na amável companhia de pessoas tão extraordinárias” (Castiglione, 1997: p. 3). Castiglione faz uma apologia da Corte de Urbino

(...) podeis claramente saber quanto a corte de Urbino era superior a todas as demais da Itália, (...) atrevo-me a falar confiantemente, (...) podendo comprovar o que digo com o testemunho de muitos homens dignos de fé que ainda vivem e, pessoalmente, viram e conheceram a vida e os costumes que naquela casa floresceram um dia (p. 187-8).

O estilo literário adotado por Castiglione é o diálogo e para isso ele constrói o livro como se fosse a transcrição de diálogos supostamente havidos na Corte de Urbino4. Ele divide o livro em 4 segmentos (quatro livros), cada livro correspondendo a uma noite de diálogos na corte. Cada livro contém um tema determinado.

Assim, o primeiro livro propõe-se a cunhar um cortesão ideal, que poderia ser tomado como referência, tanto no comportamento quanto nas habilidades e virtudes. O segundo livro pretende mostrar de que modo e quando o cortesão deve utilizar suas habilidades e virtudes. O terceiro livro pretende cunhar a companheira do cortesão, a chamada dama de cortesia ou dama palaciana. O quarto livro descreve os objetivos do cortesão, que, segundo Castiglione, é servir o príncipe.

financeiros da família e que estão diretamente ligadas ao senhor dessa família, prestando serviços direta ou indiretamente. Nomes como Gonzaga, são nomes a famílias desse gênero.

4 O estilo literário simulando diálogos corresponde ao estilo Neoplatônico que estava em voga no

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Partindo do que acima dissemos sobre os hábitos e costumes do cotidiano das pessoas, à época de Castiglione, a leitura do livro nos apresenta algumas surpresas. Muito longe daquela rusticidade do cotidiano, verifica-se um grande refinamento nos costumes do Cortesão. Mesmo levando-se em conta que, o que Castiglione pretende é “dar forma a um cortesão sem nenhum defeito e merecedor de todos os louvores” (p.30) atribuindo-lhe o “máximo de perfeição: isto é, inteligência, beleza de rosto, elegância de corpo e daquela graça que à primeira vista sempre o torne muito apreciado por todos” (p.30), verifica-se uma forte tônica da questão do comportamento refinado, perpassando todo o livro de Castiglione. Em nenhum momento o autor deixa de ressaltar a importância de que o cortesão “não se distancie nunca dos atos louváveis e governando-se com aquele bom discernimento que não o deixe incorrer em alguma tolice; mas ria, brinque, graceje, dance, de maneira que assim sempre demonstre ser engenhoso e discreto, e que tudo o que fizer ou disser seja gracioso” (p.38). Esse refinamento, esse equilíbrio, essa discrição, que perpassam o livro todo, são, para a época, conceitos idealizados. Mesmo assim, não deixa de chamar a atenção a importância que Castiglione lhes atribui.

Para não termos a impressão de que Castiglione ignorava o mundo concreto no qual vivia, tem um momento em que ele mostra ter ciência dele. Verifica-se que ele sabe contra quais coisas, ou seja, contra os instintos, contra a espontaneidade, contra o que Nietzsche chamou de ingenuidade, deve atuar a educação:

No início, portanto, o cortesão deve procurar causar boa impressão e considerar coisa danosa e mortal fazer o contrário; (...) Às vezes, pensando ser argutos e engraçados, na presença de damas honradas e não raro a elas próprias, começam a dizer sujíssimas e desonestas palavras; e quanto mais as vêem enrubescer, mais se consideram bons cortesãos e continuam a rir, e deleitam-se entre si com as belas virtudes que imaginam possuir. (...) à mesa, sopas, molhos, gelatinas, tudo jogam uns no rosto dos outros, e depois riem; e quem mais sabe fazer esse tipo de coisas considera-se o melhor e mais alegre cortesão(...) se convidam um gentil homem (...) ele não quer aderir a tais gracejos selvagens (Castiglione, 1997: p. 125).

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O termo selvagem, empregado por Castiglione, acentua o que ao longo do processo de criação e institucionalização da sociedade foi e continua sendo empregado, em oposição a civilizado e racional.

O segundo elemento importante que destacamos do livro de Castiglione é a maneira como ele encara o ser humano e a educação. Para ele, nascer em uma classe nobre ou plebéia não faz nenhuma diferença, pois “muitos, filhos de mui nobre sangue, foram cheios de vícios; e, ao contrário, muitos plebeus honraram com virtude sua posteridade (...) creio que existem muitas outras causasalém do nascimento para nossa diversidade de graus de nobreza e baixeza” (p.29). O pressuposto com que ele pensa o ser humano distancia-se da idéia de uma suposta superioridade por nascimento. Ao contrário, já antecipando o espírito da modernidade. Diz ele:

concordo com o que dizeis sobre a felicidade daqueles que nascem dotados de bens da alma e do corpo, mas isso se verifica tanto nos plebeus quanto nos nobres, pois a natureza não possui distinções tão sutis; ou melhor, como disse muitas vezes, se descobrem elevadíssimos dons da natureza em pessoas de baixa condição (p.30).

Não provindo do nascimento, Castiglione faz ver que a sabedoria, o comportamento virtuoso, a excelência de uma pessoa depende fundamentalmente da educação. Diz ele: “o homem que se considera carente de algumas delas não deve desanimar nem perder a esperança de chegar a um bom nível (...) e em tudo que tiver de fazer ou dizer, sempre que possível, medite e prepare-se bastante, procurando mostrar porém que tudo lhe vem de improviso”(p. 127). Ressaltamos aqui o caráter dissimulador que a educação assume.

A educação assume importância fundamental. Ao longo de todo o livro Castiglione fala dela direta ou indiretamente. No quarto livro ele expõe com clareza seu pensamento sobre a educação e de que modo ela deve operar para ser mais eficiente; na fala do Sr. Gaspar, um dos personagens dos diálogos, Castiglione expõe a questão, na forma de pergunta:

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como haveis elogiado tanto a boa educação e demonstrado quase certeza de que esta seja a causa principal para fazer o homem virtuoso e bom, gostaria de saber se a formação que há de proporcionar o cortesão ao príncipe deve começar pelo hábito, e até diríamos pelos costumes cotidianos, os quais, sem que ele se dê conta, o familiarizam com o bem fazer; ou se deve começar mostrando-lhe com razão a qualidade do bem e do mal e fazendo com que conheça antes de se pôr a caminho (p. 294).

E na fala do Sr. Ottaviano, outro personagem dos diálogos, dá a resposta:

assim como o espírito e o corpo são duas coisas em nós, também a alma está dividida em duas partes, das quais uma tem dentro de si a razão e a outra o instinto. E como na geração o corpo precede a alma, assim a parte irracional da alma precede a racional(...). Por isso devemos primeiro cuidar do corpo e depois da alma; a seguir, primeiro do instinto e depois da razão(...) pois, assim como a virtude intelectiva se aperfeiçoa com a doutrina, também a moral se aperfeiçoa com o hábito. Portanto, deve-se antes instruir com o costume, o qual pode governar os instintos ainda não passíveis de razão e com aquele bom uso voltá-los para o bem; depois consolidá-los com a inteligência, a qual, embora só mais tarde mostre o seu brilho, permite fruir mais perfeitamente as virtudes para quem educou o espírito através dos costumes, nos quais consiste tudo (p. 295).

Neste pequeno trecho vê-se como Castiglione dá prioridade aos costumes na ação de educar e como essa ação educativa deve visar o corpo.

A vasta pesquisa que Michel Foucault fez sobre a educação, o disciplinamento do corpo, localiza o início desse processo no século XVII. A pesquisa de Foucault não incluiu o livro de Castiglione, mas pela importância que este dá ao corpo na educação sobre o qual deve-se fazer incidir o disciplinamento, poder-se-ia, tranqüilamente incluí-lo, pelo menos enquanto predecessor das práticas disciplinares pesquisadas por Foucault. Segundo Foucault, “houve, durante a época clássica, uma descoberta do corpo como objeto e alvo do poder (...) ao corpo que se manipula, se molda, se treina, que obedece, responde, se torna hábil ou cujas forças se multiplicam”(Foucault, 1989: p.125). Olhando-se o livro de Castiglione por este ângulo, um vasto conjunto de expressões que perpassam o livro adquirem um novo sentido. Aquilo que, inicialmente, parecia ser apenas dissimulação,

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como um jogo para constituir uma aparência adequada a determinados padrões, aparece agora como treinamento, adestramento do corpo. O livro está todo perpassado por expressões do tipo: “talvez para dizer uma palavra nova, usar em cada coisa uma certa ‘sprezzatura’ displicência que oculte a arte e demonstre que o que se faz e diz é sem esforço e quase sem pensar” (p. 42). Castiglione valoriza tanto o treino, o adestramento físico e mental para atingir tal perfeição, que, ao fazer as coisas, elas sejam feitas “com tal facilidade que pareça que o corpo e todos os seus membros estejam naturalmente naquela posição e sem nenhum esforço” (Castiglione, 1997: p. 45). “Por isso me agrada muito ver um jovem (...) que se controle, sem aqueles modos inquietos que freqüentemente se vêem em tal idade (...) tem em si uma certa altivez contida, por que parece movido não pela ira, mas pelo juízo e antes governado pela razão do que pelo apetite” (p. 101).

Estas idéias sobre a educação, sobre o corpo e a valorização dos costumes é encontrada mais tarde em um regulamento de escola, datado de 1716, citado por Foucault, em Vigiar e Punir:

A escola tende a constituir minúsculos observatórios sociais para penetrar até nos adultos e exercer sobre eles um controle regular: o mau comportamento de uma criança é um pretexto para se ir interrogar os vizinhos (...); depois os próprios pais, para verificar se eles sabem o catecismo e as orações e se estão decididos a arrancar os vícios das crianças (Foucault, 1989: p. 186).

O que se verifica, duzentos anos depois do livro de Castiglione, é que, com o amplo processo de modificação em curso, a passagem para a sociedade nos moldes em que a entendemos até os dias atuais, já está bastante avançada. As instituições que dão suporte a esta sociedade, já estão quase todas criadas e em pleno funcionamento (instituições mais visíveis, como escola, hospital, mas também as invisíveis, como a vigilância, o controle, o disciplinamento).

E a educação disciplinar do corpo, um corpo que se comporte disciplinarmente, é sempre identificado como comportamento virtuoso, comportamento civilizado, ser racional, que se guia pela razão. Criou-se, ao longo destes séculos, uma aversão, um verdadeiro pânico a tudo que seja vida instintiva, vida do corpo, com conceitos que se tornaram

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pesados, como incivilizado, selvagem, irracional. E na forma científica mais elaborada conceitos como doente mental, patológico, anormal. Nesses conceitos, anormal não é alguém que simplesmente não quer ser submisso às normas, mas alguém que possui uma anomalia, uma deficiência, uma demência; neste sentido é que pode se dizer que, no século XIX e XX, aquilo que foi cunhado exclusivamente como norma ideal de conduta, como padrão de comportamento para a classe nobre da corte do século XV e XVI, passou a ser visto como natureza humana e tudo o que é diverso a esse padrão como anomalia, doença.

O Terceiro Livro de O Cortesão, de Castiglione, se propõe a descrever a Cortesã Perfeita, também chamada de Dama de Cortesia, no qual Castiglione destacou a importância da mulher. Mas a importância da mulher, sempre está relacionada ao homem:

nenhuma corte, por maior que seja, pode ter ornamento ou esplendor por si mesma, nem alegria sem mulheres, nem cortesão algum ser gracioso, agradável ou corajoso, nem jamais praticar um ato elegante de cavalaria, se não seja movido pela convivência, pelo amor e pelo prazer de uma mulher; assim o discurso sobre o cortesão é sempre imperfeitíssimo se as mulheres, interpondo-se, não oferecem sua parte daquela graça com a qual tornam perfeita e enriquecem a cortesania.

O senhor Magnífico, um dos personagens do livro de Castiglione, recebeu a incumbência de representar a perfeita cortesã. E ele inicia sua exposição da seguinte maneira:

E, como o senhor Gaspar disse que as mesmas regras estabelecidas para o cortesão servem também para a dama, tenho opinião diferente; pois, embora algumas qualidades sejam comuns e, assim, necessário tanto para o homem quanto para mulher, existe, afinal algumas outras que mais se ajustam à mulher que ao homem, e algumas convenientes para o homem, às quais ela deve se manter alheia. O mesmo digo quanto aos exercícios corporais; mas sobretudo me parece que em suas atitudes, maneiras, palavras, gestos e procedimentos a mulher deve ser muito diferente do homem; dado que a ele convém demonstrar uma certa virilidade sólida e determinada, à mulher cai bem uma ternura suave e delicada, com modos em cada movimento seu, de doçura feminina, pois ao andar, estar de pé e falar deve parecer mulher sem nenhuma semelhança com o homem. Acrescentando assim esta advertência às

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regras que estes senhores ensinaram ao cortesão, penso que de muitas dessas ela pode se valer e adornar-se de ótimas condições, (...) porque julgo que muitas virtudes de espírito são tão necessárias à mulher quanto ao homem, igualmente a nobreza, a recusa da afetação e o fato de possuir graça natural em todos os seus atos, ter bons costumes, ser engenhosa, prudente, não soberba, não invejosa, não maledicente, não fútil, não litigiosa, não inepta (191-192).

Aqui Castiglione diferencia os papéis da mulher e do homem, embora eleve a condição da mulher em dignidade, diferencia claramente os gêneros em papéis distintos. Em diferentes momentos do Livro de O Cortesão percebe-se com muita intensidade, que a nova concepção da vida em sociedade distribui-se em papéis e que a cada tipo social distinto corresponde à vivência de papéis específicos.

Vê-se ainda que Castiglione se propõe criar um novo papel, o da dama, que, segundo suas palavras ainda não existe na sociedade de sua época: “e certamente trabalho bem menor me daria representar uma dama que merecesse ser rainha do mundo do que uma perfeita cortesã, pois desta não sei de quem seguir o exemplo” (p. 191).

Em seguida Castiglione dedica-se a delinear o comportamento e a roupa para a mulher cortesã. Aparece o tema da educação e da dissimulação. A mulher deve fazer parecer que é natural a ela aquilo que adquiriu por intermédio da educação. Trata-se de treinar tanto o hábito, desejá-lo, ajustar-se a ele até o ponto em que não pareça mais fingimento, esforço ou representação do papel, até o ponto em que a pessoa se confunda com o papel (personagem social) representado. Castiglione, nas palavras do senhor Magnífico, assim se expressa:

Deve também adequar as roupas a tais propósitos e vestir-se de maneira que não pareça fútil e leviana. Mas como às mulheres é lícito e imperioso preocupar-se mais que os homens com a beleza, e existindo diversos tipos de beleza, deve essa mulher ter senso para saber quais são as roupas que lhe acrescentam graça e mais se adequam aos exercícios que pretende fazer naquele momento, e usá-las; e, conhecendo em si uma beleza amável e alegre, deve ajudá-la com os movimentos, com as palavras e as roupas, devendo tudo isso tender para o alegre; (...) Assim, se for um pouco mais gorda ou magra do que o razoável, de pele clara ou morena, valer-se de roupas, porém de modo mais dissimulado que seja

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possível; e, mantendo-se delicada e elegante, demonstrar sempre que a isso não dedica estudo nem esforço (p.196-197).

Após haver delineado a moral, as virtudes, o padrão de comportamento e a aparência da dama palaciana, Castiglione entra em uma longa discussão sobre as relações de gênero, sobre o valor da mulher, sua inferioridade ou não em relação ao homem.

À época, ainda estavam presentes o machismo e as idéias que a Igreja Católica havia cunhado sobre a mulher durante a Idade Média. Castiglione apresenta estas idéias, para, em seguida rebatê-las:

Insisto em dizer que homens sapientíssimos deixaram escrito que a natureza, porque sempre quer e se dispõe a fazer as coisas mais perfeitas, se pudesse, produziria continuamente homens; e, quando nasce uma mulher, trata-se de um defeito ou erro da natureza, contrário à aquilo que ela gostaria de fazer; como sucede quando alguém nasce coxo, cego ou com qualquer outra deficiência e nas árvores há muitos frutos que jamais amadurecem. Assim, a mulher pode ser considerada um animal produzido pela sorte e pelo acaso; (Essa idéia é defendida por Santo Tomás de Aquino, segundo Uta Ranke-Heineman, no livro Eunucos pelo Reino de Deus) e, para comprová-lo, observai as ações do homem e da mulher e daí julgai sobre a perfeição de um e de outro. Contudo, sendo esses defeitos das mulheres culpa da natureza que assim as produziu, não devemos por isso odiá-las, nem deixar de ter por elas o respeito que lhes convém; porém, estimá-las mais do que de fato valem me parece um erro evidente (p. 199).

Aqui surpreende como os argumentos em defesa da igualdade de condições da mulher em relação ao homem são apresentados por Castiglione. Para ele não há diferença, nem natural, nem moral, nem intelectual entre homem e mulher. Castiglione expõe seu pensamento acerca da mulher através da fala do senhor Magnífico, um dos personagens dos diálogos, da forma como segue:

Sobre a imperfeição das mulheres (...) respondo, segundo o parecer de quem sabe e conforme à verdade, que a substância em qualquer coisa não pode receber em si nem o mais nem o menos. (...) Assim um homem não pode ser mais perfeitamente homem que outro e, conseqüentemente, não será o macho mais perfeito que a fêmea. (...) e todas as coisas que

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podem entender os homens podem igualmente ser entendidas pelas mulheres; e onde penetra o intelecto de um pode muito bem penetrar o da outra (p. 199-200).

(...) sobre a perfeição de um e de outro a partir das obras, digo que, (...) nas histórias antigas e nas modernas, haveis de verificar que continuamente a virtude esteve tanto entre as mulheres quanto entre os homens; e que também houve algumas que promoveram guerras e obtiveram gloriosas vitórias, governaram reinos com suma prudência e justiça, e fizeram tudo aquilo que foi feito pelos homens, assumiram causas, acusaram e defenderam de modo muito eloqüente perante juízes(p. 200-201).

(...) e não sei como podeis dizer que a natureza não pretende produzir as mulheres, sem as quais a espécie humana não se pode conservar, o que, mais que tudo, essa mesma natureza deseja. (...) Destarte a natureza, como se girasse em círculo, executa um movimento eterno e de tal maneira doa a imortalidade aos mortais. Para isso são necessários o homem e a mulher. É bem verdade que a natureza pretende sempre produzir as coisas mais perfeitas, por isso pretende produzir o homem como espécie, sem privilégio do macho ou da fêmea; ao contrário, se produzisse sempre machos, faria uma imperfeição; pois da união do macho e da fêmea resulta um composto que preserva a espécie humana, sem o qual as partes se destruiriam (p. 201-202).

Confesso que tive certa surpresa ao ler o livro três de O Cortesão. Na compreensão que eu tinha até aquele momento, os conceitos sobre a inferioridade da mulher, cunhados na Idade Média, mantinham-se intactos até a modernidade. Aí meu estranhamento ao me deparar com as idéias que aparecem em Castiglione. A partir da leitura do livro de Norbert Elias, O Processo Civilizado, percebemos que no casamento das sociedades de corte, “pela primeira vez fora quebrado o domínio do marido sobre a esposa. O poder social da esposa é quase igual ao do marido. A opinião social é formulada, em alto grau, pelas mulheres” (Elias, 1994: p. 183). Esta pode ser chamada de uma primeira onda de emancipação da mulher, foi bastante ofuscada pela Reforma e Contra Reforma religiosa, que não só deu um corte radical a essa emancipação feminina, como também deu força a todo movimento moralista e disciplinador.

Chama a atenção como Castiglione não faz derivar os conceitos, as virtudes nem a moral de nenhum princípio metafísico nem religioso, mas da própria natureza e da

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educação. Neste sentido, pode-se perceber que seu escrito já antecipa o espírito da modernidade, dos princípios humanistas da concepção moderna de homem.

5. CONSIDERAÇÕES A CERCA DA IMPORTÂNCIA DA CORTESANIA

Pretendemos apresentar, a seguir, algumas considerações que nos parecem ser relevantes a partir da leitura de O Cortesão, de Castiglione e da adoção de padrões para o que se passou a chamar de cortesania, de onde deriva nosso moderno conceito de Cortês.

A primeira consideração é a de que o tema da cortesania implica fundamentalmente a definição e adoção de padrões de comportamento e de interação social, que constituem uma mudança geral e radical na forma de ser, de agir e de pensar do ser humano no Ocidente. Não é uma mudança apenas na aparência externa, mas no próprio ser do homem e da mulher.

A segunda consideração é a de que as mudanças no comportamento já estão amparadas em uma mudança na concepção de homem, que é tido fundamentalmente como um ser dotado de razão e é esta razão que deve legislar, governar, dominar e disciplinar o corpo e todas as suas funções, necessidades e desejos, como bem escreveu René Descartes “a maior utilidade da sabedoria reside em ensinar-nos a dominar nossas paixões e a controlá-las com tanta habilidade que os males que possam causar sejam bem toleráveis, podendo-se deles retirar até mesmo a alegria” (Descartes, As Paixões da Alma, art. 212)5.

Esta mudança na concepção de homem fez com que se passasse de um homem voltado para fora, para o mundo, para as obras, para o exterior, para um homem que se volta sobre si mesmo, que presta atenção sobre si, que faz de si mesmo a grande obra à qual se aplicar, da qual cuidar. Que se preocupa com seus pensamentos, seus desejos, sua linguagem, seus gestos, suas expressões, ocupado em exercer um controle disciplinar rigoroso sobre si, o que Agnes Heller, no livro O Homem do Renascimento chamou de Homem Interior, que

5 Aqui é utilizada a tradução brasileira de Helena Martins, do Dicionário Descartes de John Cottigham, RF,

Zahar, 1995, p. 133. Na Coleção Os Pensadores, Ed. Abril, edição de 1973 – René Descartes -, tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior, o Art. 212 de As Paixões da Alma, p. 304, está assim traduzido: “mas a

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se volta para a interioridade. Constitui-se, a partir daí, um modelo de subjetividade. Mas é uma subjetividade que, como diz Elias, “forçou ambos os sexos a adotar autodisciplina nova e mais rigorosa” (Elias, 1994: p. 183). Ou, usando uma expressão de Pelbart, “Esses fluxos formatam nossa subjetividade, revolvendo nossa inteligência e conhecimentos, nossas condutas, gostos, opiniões, sonhos e desejos, em suma, nossos afetos” (Pelbart, 2000: p. 36). Embora essa expressão de Pelbart é usada por ele em um contexto diferente, das profissões ligadas a vídeo, informática, imagem, publicidade, creio que ela também se aplica ao modelo de educação cunhado a partir das sociedades de corte.

A terceira consideração é a de que o tema da padronização do comportamento era um tema geral por volta do século XV e XVI, perpassando os diferentes países, como França, Itália, Espanha, Inglaterra, com exceção da Alemanha, que, por razões que não iremos expor aqui, não desenvolveu os mesmos conceitos e práticas daquilo que passou a ser chamado de civilidade, boa educação, comportamento racional e outros adjetivos valorativos, que ocultam práticas de domesticação, adestramento, disciplinamento e enquadramento exercitados pela prática da educação a partir daqueles conceitos. São mudanças gerais que estão ocorrendo, com a constituição de novos atores sociais, forma-se uma nova classe superior, com elementos de origens sociais diversas e, “por esta razão, a questão do bom comportamento uniforme torna-se cada vez mais candente, às pressões dos demais e do controle social (...) o código de comportamento torna-se mais rigoroso e (...) mais sutil” (Elias, 1994: p. 91).

A quarta consideração é a de que a definição dos padrões de comportamento apela constantemente aos preceitos da representação e da dissimulação por lhe faltar legitimidade psicológica ou biológica. A dissimulação (disfarce, camuflagem, hipocrisia, segundo o Dicionário de Língua Portuguesa)6 é um artifício introduzido na educação e que veio justamente suprir a lacuna da ausência de fundamento na instituição dos padrões de comportamento. O tema da dissimulação aparece direta ou indiretamente em toda bibliografia da época (séc. XV e XVI). No livro O Cortesão o conceito aparece diretamente citado várias vezes, ou empregado sem citá-lo diretamente. Castiglione demonstra que a

manejá-las com tal destreza que os males que causam são muito suportáveis, tirando-se mesmo certa alegria de todos”. Nesta tradução também está evidente o modelo da alma (razão) disciplinando o corpo.

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virtude consiste em “construir aos olhos dos outros uma boa aparência” (Limongi, 2002: p. 76), o que evoca um possível desnível ou descompasso entre a apreciação pública do valor de um homem e o seu valor intrínseco. Maquiavel demonstrou que também na política o tema da dissimulação era recorrente, pois, segundo ele, ao príncipe mais importa parecer ter certas qualidades do que de fato possuí-las” (Limongi, 2002, p. 75). Baltasar Gracián publicou, em 1647 o Oráculo Manual e Arte da Prudência, no qual afirma: “Fazer e fazer parecer. As coisas não passam pelo que são, mas pelo que parecem(...) Há coisas que são outras e não o que parecem. A boa exterioridade é a melhor recomendação da perfeição interior” (citado por Limongi, 2002, p.79). Blaise Pascal e T. Hobbes tematizaram a dissimulação na moral e na política. Igualmente Francis Bacon dedicou-se ao tema da dissimulação. O sociólogo norte americano definiu a corte renascentista “como a representação de si na vida cotidiana, ou como afirma a rainha Isabel( da Espanha) digo-vos que nós, príncipes, estamos sempre num palco”(Burke, 1991: p.113). O que nos parece é que a maneira representada ou dissimulada de viver, sobretudo com o moderno conceito de sociedade, tornou-se o modelo instituído de viver até nossos dias.

A quinta consideração é a de que os preceitos do que é bom e do que é ruim, do que é certo e do que é errado em termos de civilidade e comportamento racional, foi primeiramente definido pela aristocracia nas chamadas sociedades de corte sem nenhum outro critério além de sua vontade de se diferenciar das classes ou gentes inferiores, não aristocráticas. Como diz Norbert Elias, o termo politesse ou civilité, antes de formado e fixado o conceito de civilisation tinha a função de “expressar a auto-imagem da classe alta européia em comparação com os outros, que seus membros consideravam mais simples ou mais primitivos, e ao mesmo tempo caracterizar o tipo específico de comportamento através do qual essa classe se sentia diferente de todos” (Elias, 1994: p. 54) aqueles que eles julgavam inferiores. Depois, no contato cada vez mais intenso entre aristocracia e burguesia, esses padrões, definidos pela aristocracia, se disseminaram entre os mais variados níveis sociais e econômicos, até se universalizarem para toda sociedade. Assim, pelas mãos da burguesia, associada ao Espírito da Reforma e da Contra-Reforma religiosa, com todo moralismo que daí se depreendeu, o modelo disciplinar de enquadramento tornou-se o modo de ser do homem ocidental. É neste sentido que podemos afirmar que todos somos burgueses. “A burguesia (...) permaneceu estreitamente vinculada à tradição

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de corte em seu comportamento e no controle de suas emoções, mesmo depois de demolido o edifício do velho regime” (Elias, 1994: p. 63).

A sexta consideração é a de que a educação, a partir do século XVI, passou a se ocupar cada vez mais cedo com a domesticação, o disciplinamento, o enquadramento do indivíduo aos padrões de comportamento/ação/ pensamento previamente definidos por um certo modelo. Se no século XV a preocupação era com o adulto, o cortesão, esta idade foi sendo reduzida no século XVI, até atingir o indivíduo ainda na infância. Em 1530 Erasmo de Rotterdam publica um livro chamado Da Civilidade em Crianças (De Civilitate Morum Puerilum). Esta obra “teve imensa circulação. No conjunto, houve mais de 130 edições (...) Praticamente não tem limites o número de traduções, imitações, seqüências (...) Em 1534, veio a lume sob forma de catecismo e nesta ocasião já era adotado como livro-texto para a educação de meninos” (Elias, 1994, p.68). A aplicação dos padrões civilizados de comportamento, auxiliados por novas técnicas e novos conhecimentos sobre educação, com a invenção da escola, nos seus moldes de instituição moderna, com o surgimento da pedagogia, da psicologia, da sociologia etc, imprimiu-se um novo tipo de memória no homem ocidental, que só se lembra de si mesma (civilidade) e morre de medo de tudo que “cheira” irracionalidade, incivilidade, barbárie, vida instintiva etc. Como diria Hannah Arendt, as “ciências do comportamento visam reduzir o homem como um todo, em todas as suas atividades, ao nível de um animal que se comporta de maneira condicionada” (Arendt, 2001: p.55). Ou como diria Nietzsche,

com a ajuda de tais imagens e procedimentos, termina-se por reter na memória cinco ou seis ‘não quero’ com relação aos quais se fez uma promessa, a fim de viver os benefícios da sociedade – e realmente! Com a ajuda dessa espécie de memória chegou-se finalmente à ‘razão’! – Ah, a razão, a seriedade, o domínio sobre os afetos, toda essa coisa sóbria que se chama reflexão, todos esses privilégios e adereços do homem: como foi alto seu preço” Quanto sangue e quanto horror há no fundo de todas as ‘coisas boas (Nietzsche, 1998: p.

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A sétima consideração é a de que os padrões de civilização que o homem ocidental instituiu, a nova memória que ele se impôs, trazem uma série de problemas para o homem moderno atual.

Se até o século XVI

a proibição não estava ainda gravada, como autocontrole, no indivíduo a ponto de tornar embaraçoso o próprio ato de falar em público” (Elias, 1994: p. 176), “eles existem como enclave na sociedade do século XIX e XX. O medo e a vergonha com que a área sexual da vida instintiva, como muitas outras, é cercada desde os primeiros anos, a ‘conspiração do silêncio’ observada no discurso social a respeito desses assuntos, está praticamente completa. É proibida a simples menção (...) na presença de crianças, o que constitui um crime que lhes macula a alma ou, no mínimo, um erro muito grave de condicionamento (Elias, 1994: p. 176).

Von Raumer, em 1857 publicou o livro A Educação das Meninas no qual afirma que “Estas coisas não devem ser comentadas absolutamente na presença de crianças(...) As crianças devem ser deixadas por tanto tempo quanto for possível na crença de que um anjo traz para a mãe os bebês.( Elias, 1994: p. 179). Evidentemente não são racionais os motivos pelos quais se passou a constituir barreiras tão densas com relação a todos os assuntos relativos aos instintos, às necessidades orgânicas e todas as funções do corpo, desde a prisão de ventre até a atividade sexual. Segundo Norbert Elias,

A preocupação principal é a necessidade de inculcar ‘recato’ ( isto é, sentimento de vergonha, medo, embaraço e culpa) ou, mais exatamente, comportamento que se conforme ao padrão social. E sentimos que é imensamente difícil para o próprio educador vencer a resistência da vergonha e do embaraço que, para ele, envolve essa esfera (Elias, 1994: p.180).

Novamente Nietzsche é muito enfático a esse respeito;

O ensombressimento do céu acima do homem aumentou à medida que cresceu a vergonha do homem diante do homem (...) refiro-me à moralização e ao amolecimento doentios, em

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virtude dos quais o bicho ‘homem’ aprende afinal a se envergonhar de seus instintos (...) que lhe tornam repulsivas a inocência e a alegria do animal, e sem sabor a própria vida (Nietzsche, 1998: p. 56-57).

Elias mostra ainda que

A pressão aplicada sobre adultos, para privatizar todos seus impulsos (em especial os sexuais), a conspiração do silêncio, as restrições socialmente geradas à fala (...) tudo isso constrói uma grossa parede de sigilo em volta do adolescente. O que torna o esclarecimento sexual tão difícil não é só a necessidade de fazer o adolescente se conformar ao mesmo padrão de controle de instintos e de domínio como adulto. É, acima de tudo, a estrutura da personalidade dos próprios adultos que torna difícil falar sobre essas coisas secretas (Elias, 1994: p. 181).

Todo esse rigoroso controle das emoções, dos instintos, da vontade, faz com que o tema da dissimulação, em todos os espaços da vida no interior das modernas instituições, seja bastante atual, com a agravante de que, aquilo que no século XVI era conscientemente percebido como dissimulação, no século XX e XXI é confundido com a natureza humana, com essência humana, com a verdade do que é o ser humano.

Podemos tomar a nós mesmos como exemplo. Sem o recurso à dissimulação, quantos de nós sujeitar-se-iam, pacificamente, às rotinas do trabalho, da vida doméstica, à mediocridade das instituições sociais controladoras e disciplinadoras e ainda aparentando gostar?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BURCKHARDT, Jacob. A Cultura do Renascimento na Itália. Tradução Sérgio Tellaroli.São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

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BURKE, Peter. GARIN, Eugênio (Org.) O Homem Renascentista. Lisboa: Presença, 1991.

CASTIGLIONE, Baldassare. O Cortesão. Tradução de Carlos Nilson Moulin Louzada. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

ELIAS , Norbert. O Processo Civilizador. Vol. I – Uma história dos Costumes. Tradução de Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir – História da Violência nas Prisões. 7ª ed. Tradução Lígia M. Pondré Vassallo. Petrópolis: Vozes, 1989.

HELLER, Agnes. O Homem do Renascimento. Lisboa: Presença, 1982.

LIMONGI, Maria Isabel. Hobbes e o Véu do Cortesão. Cadernos Espinoseanos VIII. P. 75-97, 2002.

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral – uma polêmica. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

PÉL BART, Peter. A Vertigem Por um Fio – Políticas da Subjetividade Contemporânea. São Paulo: Iluminuras, 2000.

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