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DIÁLOGOS ENTRE LITERATURA CLÁSSICA INFANTIL E PSICANÁLISE

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267 RESUMO

Este estudo se propõe a abordar a temática da Literatura Infantil e, sobretudo, os contos de fadas, correlacionado-os com aspectos psico-afetivos subjacentes nessas narrativas. Os contos são mais que aventuras repletas de suspense que excitam a imaginação. Por trás de cenas de perseguição, de confrontos com bruxas, monstros e de finais felizes, os dramas presentes nos contos refletem o mundo interior dos seres humanos. Embora o atrativo inicial de um conto de fadas esteja relacionado ao encantamento, seu valor duradouro reside no poder de ajudar as crianças a lidar com os conflitos internos, pois retratam de forma imaginária e simbólica os passos essenciais do crescimento e da aquisição de uma existência independente. A função principal dos contos é integrar o ser humano e mostrar caminhos e alternativas frente às dificuldades e os medos que o acompanha na trajetória de crescimento. A tarefa mais importante e também mais difícil na educação de uma criança é ajudá-la a encontrar significado na vida. E a Literatura ocupa um lugar de grande relevância, possuindo um papel determinante na educação e na formação do sujeito, enquanto construtora do imaginário.

Palavras-chave: Contos de fadas. Emotividade. Literatura infantil RÉSUMÉ

Cet étude propose à aborder la thématique de la Littérature Infantile et, surtout, des contes de fées, en le correlationnant avec des aspects psico-afectifs sous-jacents dans la narrative. Les histoires sont plus que des aventures pleines de suspens qui excitent l’imagination. Les scènes de persécution, de confrontations avec des sorcières, des monstres et de fins heureuses, répresentent les drames qui reflètent le monde intérieur des êtres humains. Bien que l’attrayante initiale d’une histoire de fées soit rapportée à l’enchantement, sa valeur durable habite dans son pouvoir d’aider les enfants à traiter ses conflits internes, puisque ils portraient d’une forme imaginaire et symbolique, les étapes essentielles de

DIÁLOGOS ENTRE LITERATURA CLÁSSICA INFANTIL E

PSICANÁLISE

* Psicóloga, Assistente Social, Mestre em Educação, Mestre em Letras, professora do curso de Psicologia do CES/JF.

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la croissance et de l’acquisition d’une existence indépendante. La fonction principale des histoires est donc, d’intégrer l’être humain et montrer des chemins et des alternatives devant aux difficultés et les peurs qui les accompagnent dans la trajectoire de la croissance. La tâche la plus importante et aussi la plus difficile dans l’éducation d’un enfant est l’aider à trouver une signification dans la vie. Pour cela sert la Littérature : servir de médiatrice dans cette tâche, en possédant un papier déterminant dans l’éducation et dans la formation du sujet, comme constructrice de l’imaginaire.

Mots-clés: Contes de fées. Emotivité. Littérature infantile. INTRODUÇÃO

Literatura e Psicanálise partilham uma ampla fronteira e guardam inter-relações significativas no que tange à possibilidade de interpretações do texto literário. A narrativa de ficção alude à verdade do sujeito, ainda que ele não tenha consciência disso. Os contos de fadas, contados e recontados no decorrer dos tempos, escondem questões inconscientes que, ao serem reveladas, desnudam a alma humana. “Os processos infantis inconscientes só se tornam claros para a criança através de imagens que falam diretamente ao seu inconsciente [...]”, afirma Bettelheim (1980, p. 40), quando faz referência à eficácia dos contos de fadas na resolução dos conflitos internos da criança. E, imaginando, ela pode brincar com temas próprios de sua realidade psíquica, por vezes difíceis, como o amor, a morte, a violência, a rivalidade entre irmãos, a separação e o abandono.

Uma característica importante desta literatura é a presença da metáfora que é capaz de apresentar os dramas e conflitos principais por meio do simbólico. Assim, ampara a criança em sua viagem de proteção na intriga e nas personagens, garantindo certa tranquilidade nos processos de identificação. O símbolo dá vida para o material mais arcaico ou sem nome, ou, ainda, para os medos primordiais. A magia da palavra em sua força significante é capaz de operar mudanças estruturais, pois retrata:

[...] não a linguagem constituída de sinais encarregados de trans-mitir mensagens com precisão unívoca e sim a linguagem que desperta e cria mundos imantados de ressonâncias passionais que subvertem as pautas convencionais de exercício da própria vida. (CHEBABI, 1984, p. 121)

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Desta forma, o entrecruzamento da literatura infantil com a psicanálise possibilita um intercâmbio discursivo, ampliando as possibilidades de interpretações. Conforme argumentam Corso e Corso (2006, p. 28), os contos de fadas são “[...] estruturas que permitem gerar sentidos, por isso toda interpretação será sempre parcial. Os contos são formados como imagens de um caleidoscópio, o que muda são as posições dos elementos.” Está nessa abertura de possibilidades interpretativas a riqueza desta literatura, pois ampara as angústias, nomeia o não-dito, amplia o espaço da fantasia e do pensamento. De acordo ainda com esses autores “[...] o que fica de um conto para uma criança é o que ele fez reverberar na sua subjetividade.” (2006, p. 29).

LITERATURA INFANTIL E PSICANÁLISE

Pertence à “Literatura Maravilhosa”1 toda obra em que temática, situação,

atmosfera e mesmo linguagem ou tudo isso junto introduzam o leitor num mundo que não é o da percepção comum. Conforme ressalta Jacqueline Held (1980, p. 25), “[...] o fantástico ou maravilhoso seria o irreal no sentido estético daquilo que é apenas imaginável; o que não é visível aos olhos de todos, mas que é criado pela imaginação.”

O início dos contos de fadas é sempre marcado por frases do tipo: Era uma vez, Há mil anos atrás, Num certo país. Esses inícios sugerem que o que se segue não pertence ao aqui e agora, na verdade, são verdadeiros passaportes de entrada ao universo imaginário das histórias. Esta indefinição deliberada do início dos contos simboliza que se está deixando o mundo concreto da realidade comum. Quando se lê um conto, o leitor é atingido por uma aura de fantasia que o transporta para o mundo da imaginação, envolto em uma névoa, que, embora indescritível, é suficiente para justificar um ambiente onde tudo é possível.

A narrativa do conto de fada começa por uma situação estável que será perturbada por alguma força, resultando em um desequilíbrio. O conflito, base do conto, traz uma desordem e a solução desse conflito faz retornar a ordem. A presença dos diálogos nos contos é de suma importância, pois é através dele que

1 Na teoria literária, conforme Rodrigues (1988), chama-se Literatura Maravilhosa ou Maravilhoso a

interferência de deuses ou de seres sobrenaturais na poesia ou na prosa. Não há questionamentos sobre verossimilhança nesse tipo de universo ficcional. Segundo Tzevetan Todorov (1975) o Maravilhoso é o gênero onde se incluem as obras nas quais não é possível qualquer explicação para os fenômenos (sobre) naturais.

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os conflitos se estabelecem.

A análise estrutural dos “contos maravilhosos”, conforme Coelho, segue os seguintes princípios:

Toda efabulação tem, como motivo nuclear, uma aspiração ou

de-sígnio, que levam o herói (ou heroína) à ação.

A condição primeira para a realização desse desígnio é sair de casa, o herói empreende uma viagem ou se desloca para um ambiente estranho, não familiar.

Há sempre um desafio à realização pretendida: ou surgem obstá-culos aparentemente insuperáveis que se opõem à ação do herói (ou heroína).

Surge sempre um mediador entre o herói (ou heroína) e o objetivo que está difícil de ser alcançado, isto é, surge um auxiliar mágico natural ou sobrenatural, que afasta ou neutraliza os perigos e ajuda o herói a vencer.

Finalmente, o herói conquista o almejado objetivo (1993, p. 100).

Com bases nesses princípios, a autora faz uma correlação muito interessante com as características gerais básicas do viver humano, visto que todo ser humano tem um desígnio, uma aspiração, um ideal a ser atingido na vida para sua auto-realização. A busca por esta auto-realização é uma luta que se trava fora de casa com o mundo exterior e diversos são os caminhos a serem percorridos e, na sua maioria, longes e distantes da proteção oferecida pelo ambiente familiar. Nessa busca, o ser humano enfrenta dificuldades e, muitas vezes, recebe ajudas abstratas, isto é, forças praticamente desconhecidas e poderosas que o levam muito acima do que seria previsível, dadas as limitações humanas. Nesse sentido, remete-se à inteligência, intuição, sensibilidade, força de vontade, curiosidade, afetividade, paixões, ânsia de saber e conhecer. A conquista do objetivo é um processo contínuo. Cada conquista corresponde a um fim e a um início, pois a vida é uma eterna luta do viver.

As narrativas maravilhosas transcorrem no mundo da magia, da fantasia, ou do sonho, onde tudo escapa às limitações ou contingências precárias da vida humana, onde tudo se resolve por meios mágicos. Tradicionalmente, essas narrativas maravilhosas chegaram até as pessoas indiferentemente designadas por dois rótulos: contos maravilhosos e contos de fadas. Embora ambos sejam contos de encantamento, diferem entre si quanto à natureza dos acontecimentos

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271 ou aventuras que narram.

Segundo Coelho (1993, p. 155), o conto de fadas

[...] originou-se entre os celtas, com herói e heroínas, cujas aven-turas estavam ligadas ao sobrenatural, ao mistério do além-vida e visavam à realização interior do ser-humano. Daí a presença da fada, cujo nome vem do termo latino “atum”, que significa

des-tino.

Com ou sem fadas, seus argumentos desenvolvem-se dentro da magia feérica (reis, rainhas, príncipes, princesas, fadas, gênios, bruxas, gigantes, anões, objetos mágicos, metamorfoses, tempo e espaço fora da realidade conhecida) e têm como eixo gerador uma problemática existencial.

As fadas são seres sobrenaturais que povoam até hoje as mentes infantis. Representam a possível realização dos sonhos ou ideais, inerentes à condição humana. As fadas são sempre símbolos da bondade, da graça e da beleza. São dotadas de virtudes e poderes sobrenaturais que interferem na vida dos homens, para auxiliá-los em situação de conflitos, enquanto a bruxa é o símbolo da maldade, da mulher má. Essas duas personagens-símbolo, tão marcantes nos contos de fadas, são representações simbólicas do Bem e do Mal. Essa dualidade maniqueísta é a base desses contos. As fadas e as bruxas são veículos da bondade e da maldade, do certo e do errado, da felicidade e da desgraça, “[...] elas vão tecendo a trama dos destinos, comentando e questionando valores, dramatizando a própria vida, para concluir a mensagem pela qual elas também são responsáveis” (CARVALHO, 1982, p. 61).

Já o conto maravilhoso “[...] corresponde ao tipo de narrativas orientais, difundidas pelos árabes, cujo modelo mais completo é a coletânea As mil e umas noites. O núcleo das aventuras é sempre de natureza material/social/ sensorial” (COELHO, 1993, p. 154). São narrativas que, sem a presença de fadas, normalmente se desenvolvem no cotidiano mágico (animais falantes, tempo e espaço reconhecíveis e familiares, objetos mágicos, gênios, duendes, etc.) e têm como eixo gerador uma problemática social. Trata-se sempre do desejo de auto-realização do herói no âmbito socioeconômico através de conquista de bens, riqueza, poder material.

Em relação às especificidades dos contos maravilhosos, Coelho (1993) ressalta alguns elementos que são constantes: A onipresença da metamorfose;

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o uso de talismãs; a força do destino; o desafio do mistério ou interdito; magia e divindade.

Príncipes e princesas, pobres ou plebeus podem ser encantados por algum ente maléfico, transformando-se, via de regra, em animais, como acontece em A Bela e a Fera e A Princesa e o Sapo. O uso dos talismãs é uma constante nos contos maravilhosos. Raras são as histórias em que não é feito o uso de objetos mágicos (espelho mágico, vara de condão, peixe encantado, manto mágico). “Tais soluções atendem, sem dúvida, a uma aspiração profunda da alma humana: resolver de maneira mágica ou por um golpe de sorte, os problemas insuperáveis ou conquistar algo aparentemente inalcançável.” (COELHO, 1993, p. 160 ).

O determinismo está também presente nas histórias maravilhosas, onde tudo parece obedecer a um destino, a uma fatalidade, da qual não se pode escapar. Há sempre um mistério, um enigma a ser superado, decifrado ou vencido pelo herói ou heroína.

Para que uma história realmente prenda a atenção da criança, ela deve entretê-la e despertar sua curiosidade, mas, para enriquecer sua vida interior, deve estimular-lhe a imaginação, ajudá-la a tornar claras suas emoções, propiciando-lhe o reconhecimento pleno de suas dificuldades e, ao mesmo tempo, sugerir soluções para os conflitos que a perturbam.

Conforme assinala o psicanalista, Bruno Bettelheim, em Psicanálise dos contos de fadas:

Para regular os problemas psicológicos do crescimento (superar as decepções narcísicas, os dilemas edipianos, as rivalidades fraternas; ser capaz de renunciar às dependências da infância, afirmar sua personalidade, tomar consciência de seu próprio valor e de suas obrigações morais), a criança tem necessidade de compreender o que se passa em seu ser consciente, para fazer face igualmente ao que se passa em seu inconsciente (BETTELHEIM, 1980, p. 16). Os contos maravilhosos tocam profundamente no desenvolvimento humano, porque as crianças, no momento em que passam a ter contato com estas histórias, iniciam um processo de construção do eu. A passagem do egocentrismo para o sociocentrismo, do eu para o nós, a fase do eu consciente (Ego), real, afetivo, inteligente, que reconhece e valoriza o outro, como elemento fundamental para a sua própria auto-realização, é vivida de forma muito intensa pela criança. Nessa fase, inicia-se para ela a luta pela defesa de sua vontade e

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desejo de independência em relação ao poder dos pais ou à rivalidade com os irmãos ou amigos. É quando, inconscientemente, a criança tenta construir sua própria imagem ou identidade e se depara com os muitos estímulos ou interdições aos seus impulsos. Bettelheim ressalta que o conto de fadas “[...] é orientado para o futuro e guia a criança – em termos que ela pode entender tanto na sua mente consciente quanto inconsciente – a abandonar seus desejos de independência infantil e a conseguir uma existência mais satisfatoriamente independente.” (1980, p. 19).

Faz-se pertinente lembrar que a criança, até por volta dos seis/sete anos, dá vida ao que toca: animais, plantas, pedras, objetos. É só parar e observá-la brincando, que facilmente perceberemos sua capacidade de animar tudo que deseja: um simples lápis pode se transformar num grande e belo avião ou em outras coisas, basta a imaginação querer. Quando a criança decide brincar de casinha, transfere para objetos, bonecas e para suas próprias atitudes representações de coisas e fatos do mundo real, mas que são, na verdade, realidades imaginárias. Quando a criança veste a máscara de uma personagem, ela faz-de-conta que é Cinderela, que é bruxa e, assim brincando, vivencia dramas que podem ser seus agora, mas que são também antecipatórios do destino humano. De acordo com Wilson Chebabi, “[...] cada criança que brinca comporta-se como um poeta ao criar um mundo próprio, ou melhor dizendo, muda as coisas de seu mundo para uma ordem que atenda melhor os seus desejos.” (1984, p. 110)

O conto maravilhoso reúne na criança a visão animista do mundo que responde às suas necessidades psicológicas. A criança, com sua riqueza imaginária e com sua capacidade de vivenciar o faz-de-conta, mergulha no universo do maravilhoso onde tudo é da ordem do possível e tem vida.

Nas histórias, os sentimentos do bem e do mal aparecem por meio da fada, da princesa, da bruxa, da madrasta, das mágicas, dos encontros e encantamentos, das transformações e falam de um final feliz. Dessa maneira, proporcionam a identificação de emoções como tristeza, raiva, insegurança, angústia, alegria, tranquilidade, medo e irritação, atirando-se em seu imaginário e expressando seus sentimentos com menos angústia pelo exercício do faz-de-conta.

As personagens dos contos maravilhosos podem ser reais (humanas) ou simbólicas (bichos, plantas, objetos) e são, na sua maioria, tratadas de forma inespecífica: princesas, príncipes, madrastas, reis, rainhas, sereias, sapos, lobos, lenhadores, fadas, bruxas, gigantes, feiticeiros... Isso, sem dúvida, é um grande

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facilitador para as projeções infantis. Se o animal humanizado permite à criança, na maioria das vezes, libertar-se ao encontrar ou projetar seus desejos e temores pessoais frente à sociedade adulta organizada, é também, em muitos casos, ocasião e suporte que permite transpor simbolicamente situações da vida cotidiana. Se a projeção, por exemplo, se opera sobre o lobo, personificação assustadora nos contos, não é, sem dúvida, mero acaso. “A criança ‘domestica’ o lobo e tudo o que ele simboliza, inserindo-o numa situação cotidiana, familial e cômica. Domestica assim suas próprias angústias.” (HELD, 1980, p. 112).

As personagens nos contos são marcadas sempre por traços de caráter ou comportamento bem nítidos, ou seja, com limites bem definidos, como já se disse. Elas são belas ou feias, pobres ou ricas, fortes ou fracas, boas ou más. Esse maniqueísmo tão presente nos contos de fadas, é importante e necessário para a criança, pois é a maneira pelo qual ela pode colocar ordem na sua visão de mundo que se encontra ainda em formação. Mais tarde, a ambiguidade das realidades será descoberta.

Grande parte da existência humana consiste em reconciliar as divisões básicas no eu que governam os relacionamentos com os outros. Tais divisões têm origem na primária divisão do mundo infantil entre sensações de satisfação (boas) e de insatisfação (ruins): barriga cheia é bom, fome é ruim, calor é bom, frio é ruim, estar no colo, no aconchego, é bom, ser privado de contato é ruim... O mundo do bebê é, inicialmente, dividido entre sensações de prazer e desprazer.

A esse respeito, o psiquiatra e psicólogo infantil, René Spitz (1979) explica que, proporcionalmente ao desenvolvimento e amadurecimento da criança, imagens, sons e sensações desconexas percebidas do mundo exterior se fundem na figura da mãe ou alguém representativo dela. Como a mãe é a maior fonte de sustento, é natural que a criança recorra a ela para satisfazer toda e qualquer necessidade. Para a criança, a mãe é dádiva e amor irrestrito, fonte de tudo que é bom no mundo, mas nem sempre a mãe consegue responder a todas as demandas imediatas do bebê, que começa a perceber que a mesma mãe que gratifica também o frustra. Assim, a única forma de as crianças pequenas lidarem com esse estado de coisas perturbador é dividindo mentalmente a mãe em duas entidades psíquicas distintas: uma gratificante mãe boa e uma frustrante mãe ruim. Dessa forma, a divisão típica dos contos de fadas entre a mãe boa e uma madrasta malvada é útil para a criança.

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275 Segundo Bettelheim, esta divisão

[...] não é apenas uma forma de preservar a mãe interna total-mente boa, quando na verdade a mãe real não é inteiratotal-mente boa, mas permite à criança ter raiva da “madrasta” malvada sem comprometer a boa vontade da mãe verdadeira, que é encarada como uma pessoa diferente. Assim, o conto de fadas sugere a for-ma da criança lidar com sentimentos contraditórios que de outro modo a esmagariam neste estágio onde a habilidade de integrar emoções contraditórias apenas está começando. A fantasia da ma-drasta malvada não só conserva intacta a mãe boa, como também impede a pessoa de se sentir culpada a respeito dos pensamentos e desejos raivosos quanto a ela – uma culpa que interferiria seria-mente na boa relação com a mãe. (1980, p. 86).

Com o tempo, as duas representações maternas são psicologicamente transformadas nas partes boa e ruim da percepção do eu que a própria criança começa a desenvolver dentro de si. Ela, como os adultos, está a todo momento num turbilhão de sentimentos contraditórios, mas, enquanto os adultos aprenderam a integrá-los, a criança é esmagada pelas ambivalências dentro de si mesma. Experimenta a mistura de amor e ódio, desejo e medo, como algo incompreensível. Não consegue orientar-se nem perceber-se em um só e mesmo momento boa e obediente, má e rebelde. Assim como também não consegue compreender estágios intermediários, pois as coisas ou são tudo luz ou tudo escuridão. Uma pessoa ou é só coragem ou só medo; a mais feliz ou a mais miserável; a mais bela ou a mais feia. E, ao transformar as divisões do eu em uma aventura que coloca as forças do bem contra as forças do mal, as narrativas maravilhosas, sobretudo, contos de fadas, ajudam as crianças a lidar com as forças negativas presentes no eu, uma vez que projetam inconscientemente parte delas mesmas em várias personagens da história, usando-os como repositórios psicológicos para elementos contraditórios do eu.

A esse respeito, Bettelheim afirma:

A apresentação das polarizações de caráter permite à criança com-preender facilmente a diferença entre as duas, o que ela não po-deria fazer tão prontamente se as figuras fossem retratadas com mais semelhança à vida, com todas as complexidades que carac-terizam as pessoas reais. As ambiguidades devem esperar até que

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esteja estabelecida uma personalidade relativamente firme na base das identificações positivas. Então a criança tem uma base para compreender que há grande diferença entre as pessoas e que, por conseguinte, uma pessoa tem que fazer opções sobre quem quer ser. Esta decisão básica, sobre a qual todo desenvolvimento ulterior da personalidade se constituirá, é facilitada pelas polarizações do conto de fadas (1980, p. 17-18).

As crianças, então, só terão condições psicológicas internas de compreender as ambiguidades do ser humano depois de uma trajetória de amadurecimento. Antes disso, ela compreende, percebe que os indivíduos são basicamente diferentes entre si.

A criança identifica-se com o herói bom e belo, não devido à sua bondade ou beleza, mas por sentir nele a própria personificação de seus problemas infantis. Identificadas com os heróis ou heroínas do mundo maravilhoso e participando de suas angústias e perigos, a criança é levada, inconscientemente, a resolver sua própria situação, superando o medo que a inibe e ajudando-a a enfrentar os perigos e ameaças que sente à sua volta, pois medos, os mais variados, estão presentes no cotidiano de todos. Medo de escuro, medo de injeção, de cachorro, de lobisomem, de ladrão, medo de dentista, de ser reprovado na escola. Temores reais ou imaginários, temor dos mais fortes, dos que agem na sombra ou a descoberto... Medos com os quais todos convivem, dum jeito ou de outro, numa intensidade ou noutra, que se aprende a enfrentar, a desviar, a superar, a substituir, com os quais se aprende a conviver ou a lidar. Os problemas com que a criança se depara e não pode resolver no momento tornam-se manejáveis, porque o desapontamento no presente é abrandado, acalmado pelas visões de vitórias futuras, vivenciadas e retratadas nos contos.

Nesse sentido, o conto maravilhoso responde a uma necessidade muito profunda da criança, porque ela vê representadas nas histórias muitas das insatisfações próprias. Conforme argumenta Bettelheim:

Quando todos os pensamentos mágicos da criança estão personi-ficados num bom conto de fadas – seus desejos destrutivos, numa bruxa malvada; seus medos, num lobo voraz; as exigências de sua consciência, num homem sábio encontrado numa aventura, suas raivas ciumentas, em algum animal que bica os olhos de seus ar-quirrivais – então a criança pode finalmente começar a ordenar

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sas tendências contraditórias. Isto começado, a criança ficará cada vez menos engolfada pelo caos não manejável. (1980, p. 82). Nos contos, os processos internos são traduzidos em imagens. Cada criança, ao escutar uma história, investirá as cenas de emoções e sentimentos próprios, de acordo com seu momento vital. Por exemplo, quando o herói é confrontado por problemas internos difíceis, que parecem desafiar uma solução, seu estado psicológico não é descrito; a história mostra-o perdido numa floresta impenetrável e densa, sem saber que caminho tomar, desesperado em encontrar uma saída. Para todos que ouvem as histórias, as imagens e os sentimentos de estar perdido numa floresta profunda e escura são únicas e singulares.

A criança sente qual dos contos é verdadeiro para sua situação interna momentânea e também é capaz de perceber onde a história lhe fornece uma forma de poder enfrentar um problema difícil. Segundo Bettelheim,

Só escutando repetidamente um conto de fadas e sendo dado tempo e oportunidade para demorar-se nele, uma criança é ca-paz de aproveitar integralmente o que a estória tem a lhe oferecer com respeito à compreensão de si mesma e de sua experiência de mundo. Só então as associações livres da criança com a estória fornecem-lhe o significado mais pessoal e assim ajudam-na a lidar com problemas que a oprimem. (1980, p. 74).

Nos contos infantis, as histórias se encerram na conquista do objetivo e com o eterno E foram felizes para sempre... como se a conquista fosse durar inalteradamente. Isso é uma forma de fortificar o Ego infantil para o enfrentamento de novos conflitos que, com certeza, hão de vir. Conforme assinala Carvalho (1982, p. 185), “[...] é simplesmente uma expressão metafórica, para significar que a felicidade daqueles que se amam supera a transitoriedade do tempo e até transcende a própria vida.”

Auxiliar a criança a crescer jamais quis dizer preservá-la de qualquer choque, nem pô-la ao abrigo do real. Propiciar-lhe um crescimento harmônico, significa dosar a abordagem do real de certas realidades, de certos problemas, principalmente por intermédio do diálogo. Há e haverá sempre lobos, e não será protegendo-as, mas, pelo contrário, expondo-as progressivamente à vida é que se oferece apoio para ajudá-las a encontrar o verdadeiro amadurecimento.

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outras possibilidades de ser para que possa, finalmente, escolher-se. A tomada de consciência de si e a construção da personalidade, iniciadas na infância, representam um caminho longo e lentamente percorrido. Na procura de si mesma, a criança desejando ser adulto e, de maneira mais ampla, ser outro, não importando como e por que meio, projeta-se com prazer sobre o herói ou heroína. Nesse sentido, assinala Bettelheim:

Os contos de fadas, à diferença de qualquer outra forma de lite-ratura, dirigem a criança para a descoberta de sua identidade e comunicação, e também sugerem as experiências que são neces-sárias para desenvolver ainda mais o caráter. Os contos de fadas declaram que uma vida compensadora e boa está ao alcance da pessoa apesar da adversidade – mas somente se ela não se intimi-dar com as lutas do destino, sem as quais não se adquire verdadei-ra identidade. Estas estórias prometem à criança que, se ela ousar se engajar nesta busca atemorizante, os poderes benevolentes vi-rão em sua ajuda, e ela o conseguirá (1980, p. 32).

Uma obra literária sobrevive e se perpetua através de seus leitores que a consagram quando se identificam com o que ela se propõe. Segundo Carvalho, “[...] quando a criança ouve ou lê uma narrativa, ela a recria, comporta-se como um ficcionista, recriando a sua realidade e reorganizando o seu próprio mundo” (1982, p. 179). Dessa forma ela amplia o seu universo perceptível, possibilitando-lhe novas dimensões e novas perspectivas em seu universo afetivo.

Para atrair a atenção do leitor, para ser ratificada a história, Held sublinha:

A história deve sempre ser de maneira tal, que cada um possa, como num espelho, encontrar nela certa essência do ser humano, de qualquer ser humano, de si mesmo: Tradução de necessidades, de angústias, de desejos, conscientes ou não. Verdades psicoló-gicas das personagens que devem possuir coerência interna, ser irmãs dos homens, mulheres, crianças que encontramos todos os dias. [...] Enraizamento necessário dos mil detalhes, comportamen-tos da vida cotidiana ( 1980, p. 151)

A criança intuitivamente compreende que, embora essas histórias sejam irreais, não são falsas, que ao mesmo tempo em que os fatos narrados não

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acontecem na vida real, podem ocorrer como uma experiência interna e de desenvolvimento pessoal, e que as histórias retratam, de forma imaginária e simbólica, os passos essenciais do crescimento e da aquisição de uma existência independente.

Conforme argumenta Marly Amarilha, em Estão mortas as fadas? Literatura infantil e prática pedagógica:

A linguagem e os enredos literários proporcionam à criança a pos-sibilidade de sucesso, em duas dimensões. Uma, que é subjetiva, a criança pode viver no livro aquilo que mais a atrai, sem receio de ser assistida, principalmente, por um adulto e pode lidar com seus problemas e angústias em tempos e espaços só seus, por outro lado, mantém-se relacionada ao real, ela tem consciência de que não deixa de ser leitor. Essa duplicidade de atividade intelectual familiariza a criança com o simbólico e com suas possibilidades intelectuais, dando-lhe, portanto, auto-estima e identidade psico-lógica e social. Psicopsico-lógica porque lida com seu mundo interior, social porque exercita suas habilidades de leitura. (1977, p. 55). Esta é exatamente a mensagem que os contos transmitem à criança: que uma luta contra dificuldades na vida é inevitável, é parte intrínseca da existência humana. Se a pessoa não se intimida, mas se defronta de modo firme com as opressões inesperadas e, por vezes injustas, ela dominará todos os obstáculos e, ao fim, emergirá vitoriosa. Portanto, as narrativas maravilhosas ensinam às crianças que na vida real é imperioso que se esteja sempre preparado para enfrentar as intempéries da vida. E, nesse sentido, os contos dão também sugestões de coragem e otimismo que serão necessários à criança para atravessar e vencer as inevitáveis crises de crescimento. “Embora a fantasia seja irreal, os bons sentimentos que ela nos dá sobre nós mesmos e nosso futuro são reais e estes bons sentimentos reais são o de que necessitamos para sustentar-nos.” (BETTELHEIM, 1980, p. 157).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As narrativas maravilhosas, sejam elas os contos maravilhosos ou os contos de fadas, devem estimular a inteligência, a afetividade, a emoção, o pensar, o querer, o sentir. É através da fusão, da complementaridade dos dois mundos,

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Realidade e Fantasia, Razão e Imaginação, não uma contra a outra, mas uma pela outra, que se auxilia as crianças em seu crescimento integral, propiciando um conhecimento de si e do mundo, o que supõe, quase sempre, mediação do adulto através do diálogo.

A imaginação de uma criança desempenha um papel importante em todos os aspectos do seu desenvolvimento. Na esfera intelectual, ela é capaz de, graças à imaginação, experimentar, explorar, manipular idéias, sem ficar presa pelas regras da lógica. Na esfera emocional, pode dar liberdade a seus desejos, temores, esperanças e impulsos agressivos. Frequentemente, emprega a imaginação no seu desenvolvimento social, pois grande parte das suas brincadeiras com outras crianças se desenrola em cenários imaginários, onde podem enfrentar problemas pessoais que, na vida real, são para ela demasiado difíceis de tratar. E por exercer uma atividade estimulante da imaginação, os contos maravilhosos sempre foram e continuam sendo um dos elementos mais importantes na literatura destinada às crianças, porque os significados simbólicos dos contos estão ligados aos eternos dilemas que o ser humano enfrenta ao longo de seu amadurecimento emocional.

Artigo recebido em: 12/09/2008 Aceito para publicação: 20/10/2008

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281 REFERÊNCIAS

AMARILHA, Marly. Estão mortas as fadas? Literatura infantil e prática pedagógica. Petrópolis: Vozes, 1977.

BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

CARVALHO, Bárbara Vasconcelos de. A literatura infantil: visão histórica e crítica. 2. ed. São Paulo: Edart, 1982.

CHEBABI, Wilson. Literatura e psicanálise. In: KHÉDE, Sônia Salomão. Os contrapontos da literatura: arte, ciência e filosofia. Petrópolis: Vozes, 1984. p. 102-122.

COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil: teoria, análise e didática. 6. ed. São Paulo: Ática, 1993

CORSO, Diana Lichtenstein; CORSO, Mário. Fadas no divã: psicanálise nas histórias infantis. Porto Alegre: Artmed, 2006.

HELD, Jacqueline. O imaginário no poder: as crianças e a literatura fantástica. São Paulo: Sumus, 1980.

RODRIGUES, Selma Calasans. O fantástico. São Paulo: Ática, 1988.

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Referências

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