• Nenhum resultado encontrado

A INFÂNCIA CALON: NOTAS SOBRE O “SER CRIANÇA” ENTRE OS CIGANOS NO VALE DO MAMANGUAPE- PARAÍBA/BRASIL.

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2020

Share "A INFÂNCIA CALON: NOTAS SOBRE O “SER CRIANÇA” ENTRE OS CIGANOS NO VALE DO MAMANGUAPE- PARAÍBA/BRASIL."

Copied!
11
0
0

Texto

(1)

EDILMA DO NASCIMENTO JACINTO MONTEIRO** MARIA PATRICIA LOPES GOLDFARB***

P

esquisar crianças, escutá-las e conhecer seus pontos de vistas sobre al-gum assunto, torna qualquer pesquisa fascinante. Como alerta Fonseca (2006), as crianças têm acesso a espaços que nem sempre os adultos têm, pela forma como conseguem circular pelo grupo e estarem presentes em lugares que não são permitidos para todos; o que nos proporciona olhar contextos sociais numa outra perspectiva.

Neste artigo tematizamos questões geracionais entre um grupo cigano, pensando especialmente as crianças e a infância de ciganos Calon. Segundo Gol-dfarb (2003, p. 23), “os Calon são os chamados ‘ciganos ibéricos’, que se diferen-Resumo: este trabalho traz reflexões sobre a concepção de infância no grupo Calon residente

no litoral norte da Paraíba-Brasil. Trata-se de um estudo de caso, realizado entre os anos de 2013 e 2014, com base bibliográfica em antropologia da criança, etnicidade e grupos ciga-nos. O trabalho de campo foi realizado a partir de observação participante, juntamente com algumas técnicas de pesquisa: entrevista com roteiro semiestruturado com adultos e crianças, grupo focal e desenhos temáticos com as crianças. A pesquisa permitiu conhecer a dinâmica da vida cotidiana entre os Calon, a partir de suas crianças e de seus adultos. Sobretudo, voltou-se para compreender a concepção da infância e as formas de educação/aprendizagem que fazem parte dos processos sociais de crescer e se reconhecer Calon.

Palavras-chave: Ciganos. Infância. Criança. Educação.

* Recebido em: 20.02.2017. Aprovado em: 15.03.2017.

** Mestra em Antropologia Cultural (UFPB). Doutoranda em Antropologia Cultural (UFSC). Bolsista CNPq. E-mail: edilmanjmonteiro@gmail.com.

*** Mestra em Antropologia Social (UFRGS). Doutora em Sociologia (UFPB). Docente na UFPB, área Antropologia. E-mail: patriciagoldfarb@yahoo.com.br.

A INFÂNCIA CALON: NOTAS

SOBRE O “SER CRIANÇA”

ENTRE OS CIGANOS NO VALE

(2)

ciam dos ciganos Rom ou Sinti, pelos aspectos físicos, econômicos e éticos, embora as vincu-lações concretas entre eles possam ser mais próximas do que se imagina”.

Objetivamos compreender como são construídos os ciclos geracionais entre os ci-ganos, com ênfase na infância, ainda atentando para os processos de escolarização correlatos. Este trabalho é fruto de uma pesquisa de campo realizada no período de quinze meses, entre visitas semanais e estadias mais prolongadas, nos anos de 2013 e 2014. Tentou-se praticar a teoria do “deutoaprendizado”, citado por Otavio Velho (2006), que enfatiza a necessidade do antropólogo “aprender a aprender”, sendo necessário que o pesquisador em campo se dispo-nha a conhecer as práticas e concepções do grupo social analisado, tentando alcançar as visões de mundo, aprendendo na prática a viver no contexto do “outro”.

Além da observação participante, também foi utilizada a metodologia de grupos focais com as crianças ciganas, com base nas ideias de Pires (2007) e Cohn (2005b), que re-trataram a utilização de desenhos e perguntas informais na pesquisa com tais sujeitos sociais, juntamente a aplicação da técnica dos desenhos temáticos e livres. O grupo focal que realiza-mos com as crianças aconteceu no período de cinco dias, com a participação de onze crianças ciganas. Também foram realizadas entrevistas abertas com nove ciganos adultos.

FAMÍLIA CALON: COMEÇO E CONTINUIDADE DAS RALAÇÕES GERACIONAIS De acordo com S’antanna (1983), os ciganos estruturam os arranjos familiares e, por extensão, a organização social dos grupos, através de uma lógica patrilinear, com práticas que outorgam o poder do homem em relação aos demais membros da família, constituindo o pátrio poder, assim, os homens devem prover materialmente e moralmente a todos. Ela ainda nos diz que, “Esses grupos são formados por várias famílias nucleares, unidas pela linhagem de descendência masculina [...]” (S’ANTANNA, 1983, p. 36), o que se assemelha à organiza-ção dos ciganos pesquisados. As relações familiares baseiam-se em torno da figura do homem, a partir de seu membro mais velho, tido como mais experiente ou sábio.

No universo pesquisado, percebe-se que a mulher cigana é responsável pela manu-tenção e organização de toda casa (conhecida como “rancho”), como também pela educação e bem-estar dos filhos e do marido. Já a relação entre pais e filhos é movida pelo respeito. Todo filho (a) deve respeitar seus pais, embora a lógica de respeito seja diferente da compreendida e vivida em outros contextos sociais. As relações entre crianças e adultos mostram os pais provendo as vontades de seus filhos.

As crianças são muito importantes para o grupo. Segundo S’antanna (1983, p. 37), um “cigano só tem importância para seu grupo, quando se casa e tem seus filhos”. O paren-tesco é muito significativo para eles, pois estabelece a cadeia dos vínculos afetivos, produz e reproduz uma rede de relações sociais de caráter permanente, que constitui grupos de reconhecimento e de pertencimento imediato, que se distinguem de outras unidades sociais maiores, como outras comunidades ciganas ou a sociedade envolvente (HOEBEL E FROST, 2002).

A família é a instituição máxima para os ciganos, constatação que pode ser lida nos textos de Campos (1999), Goldfarb (2013), Fonseca (1996), Ferrari (2010), Santanna (1983), entre outros pesquisadores que estudaram grupos ciganos no Brasil. Entre os ciganos, estes laços podem ser atados pelos casamentos, que ocorrem preferencialmente dentro do grupo, sendo, preferencialmente, endogâmicos. Mas, durante a estada em campo foi possível

(3)

observar que esta regra é aplicada mais às mulheres, visto que, em alguns casos, aos homens é permitido o casamento com mulheres não ciganas.

O casamento é um rito essencial para compreender os processos das etapas gera-cionais entre os Calon, sendo a partir deste evento que pudemos conhecer e compreender mais sobre a infância deste grupo, pois o casamento marca o início e a continuidade das famílias.

CRIANÇAS CALON: PENSANDO A INFÂNCIA CIGANA

Segundo Ariès (1981), a ideia de infância surgiu no Ocidente, entre os séculos XVII e XVIII, e se insere dentro de uma estrutura social generalizante, englobando todas as parti-cularidades em torno desta ideia. O sentido de infância eclode no final do século XVII, pois nos séculos anteriores esta fase, enquanto socialmente significada, não existia. O próprio Ariès (1981) também fala que junto ao advento do sentido de infância, surge o de família, que unidos incentivaram as representações e noções sobre infância. Segundo o autor, “a idade do homem era uma categoria científica da mesma ordem que o peso ou a velocidade o são para nossos contemporâneos” (ARIÈS, 1981, p. 4), havendo assim certo distanciamento entre os indivíduos e seus ciclos de vida.

Cohn (2005), Lopes e Nunes (2002), Tassinari (2007) e Codonho (2007), mos-tram a importância de se conhecer as especificidades das infâncias em contextos variados, apontando que cada grupo social tem suas regras e valores, que são pertinentes para se conhe-cer o período da infância em diferentes grupos, assim como para se pensar as relações entre infância e outras fases etárias. Especialmente com os estudos de Cohn no Brasil, a infância pode ser pensada como plural, pois “[...] o que é ser criança, ou quando acaba a infância, pode ser pensado de maneira muito diversa em diferentes contextos socioculturais” (COHN, 2005a, p. 22).

Com base em Khoan (apud SIQUEIRA, (2007, p. 07) ajuda-nos a compreender esta fase, quando nos diz que é na infância que o sujeito,

[...] adquire sentido em função de sua projeção no tempo: o ser humano está pensado como um ser em desenvolvimento, numa relação de continuidade entre o passado, o presente e o futuro [...], sobretudo, possibilidade, potencialidade.

De acordo com cada grupo social, esta fase pode ser mais ou menos valorizada, e este valor estará sempre estipulado a partir das normas coletivas. Os ciclos de vida, citados por Oliveira (1982), nos permitem compreender os estágios da vida dos sujeitos, fundamentais para a estrutura funcional das famílias. Assim, consideramos ciclos da vida como, “[...] um conjunto de variáveis independentes ou de controle, utilizadas a explicação de determinado fenômeno [...]” (OLIVEIRA, 1982, p. 04). Deste modo, pensamos a noção de infância na perspectiva desta ser uma das variáveis possíveis desta classificação etária, em que a

[...] abordagem dos ciclos vitais possibilita o estabelecimento de um elo entre estes níveis, por colocar em contato as diversas dimensões do tempo: individual, familiar, social e histórico, articuladas em função dos significados diversos da idade do indivíduo (OLI-VEIRA, 1982, p. 20).

(4)

Assim, torna-se importante conhecer como é definida cada fase do ciclo da vida nos grupos sociais; e neste caso entre os ciganos, cuja idade e certos períodos do ciclo da vida não correspondem à mesma forma de conceituação de outros grupos. Tassinari (2007) mostra-nos noções e visualizações diferentes sobre a infância, como a de grupos indígenas:

Para nos aproximarmos dos conceitos nativos de infância, será importante manter uma distância dessas duas imagens, tanto da candura quanto da crueldade, pois ambas dizem respeito às nossas visões de infância. Será preciso buscar as formas indígenas de conceber as crianças e os adultos, para poder compreender as relações estabelecidas entre eles (TASSINARI, 2007, p. 3).

Desta forma, pensamos ser decisivo compreendermos como os ciganos concebem as fases de vida e, especialmente, o que representa “ser criança” para as próprias crianças e para os adultos neste contexto, pois como aponta Pires (2009, p. 08): “a infância é um espaço de intersubjetividades. Uma criança aprende sobre o mundo que o cerca e toma conhecimento dele nas relações sociais que estabelece com os outros membros da sua comunidade, sejam eles adultos ou crianças”.

Num ponto de vista antropológico, já encontramos estudos sobre infância na com base em estudos de etnicidade, entre os quais podemos citar Nunes (2003), Cohn (2005b); Tassinari (2007, 2009) e Codonho (2007, 2012). Já Casa-Nova (2005, 2009) e Andrade (2011), estão entre os que enfatizam especificidades da infância ente os grupos ciganos. O CASAMENTO COMO RITO DE PASSAGEM: OBSERVAÇÕES SOBRE OS CICLOS DE VIDA

A compreensão sobre o casamento, como uma das etapas do processo de ritual de passagem, partiu das observações realizadas no contexto etnográfico em questão. Seria neste momento, uma fase limiar, como descrita por Turner (1974), que deixa-se de ser criança para entrar da vida adulta, sendo este processo legitimado pelo grupo com a chegada do primeiro filho.

Para os meninos e meninas ciganos, o momento de liminaridade é iniciado ainda cedo, no que chamaríamos de infância, num momento que denominamos como etapa de preparação, fase em que as meninas têm a menarca e os meninos iniciam negociações ou fazem algo que gere proventos.

O processo do casamento pode ser iniciado bem antes da data marcada. Entre os Calon, o casamento, quando é acordado pelas famílias dos noivos, já começa a ser preparado. Essa fase seria o início do processo de transição de criança para adulto. Com o acordo, vem o preparo, a festa, a celebração do matrimônio e o tempo em que as pessoas aguardam com ansiedade o primeiro filho (a) do jovem casal. O casamento é o momento de preparo para assumir responsabilidades maiores com a vinda da criança.

Cabe novamente destacar que as relações de parentesco entre os ciganos estabele-cem uma noção de rede. No contexto da pesquisa, encontramos essa dimensão de relação estabelecida entre duas famílias que se subdividem em grupos domésticos e famílias nucle-ares, esta dimensão ampliada favorece os casamentos no interior do próprio grupo. Assim, observou-se que entre os ciganos o grande sentido da família é a garantia de continuidade do grupo, da segurança deste e de seus membros. Como descrito por Durham (2004, p. 341), a

(5)

“categoria família’ tem uma definição cultural para cada grupo social”, e entre os ciganos tem o sentido de estabelecer pertencimento e permanência.

Para compreender mais sobre a família e a própria organização do grupo, numa dimensão geracional e de gênero, segue uma ilustração a partir da experiência do trabalho de campo desenvolvido. Homens (lideranças) Homens Mulheres Crianças Legenda:

Figura 1: Posicionamento dos sujeitos Calon no grupo Fonte: Monteiro (2015).

Como podemos observar, os homens estão na parte mais externa do esquema, pois são considerados os responsáveis pelos contatos iniciais com pessoas externas ao grupo. Geral-mente os primeiros contatos com as famílias Calon são realizados com algum homem cigano ou uma possível liderança do grupo familiar, sendo possível que, no início, outros homens intermedeiem este diálogo. Na medida em que nos familiarizamos e nos tornamos familiares, é possível estabelecer um contato mais próximo com demais membros do grupo, como mu-lheres e crianças.

Nos núcleos domésticos encontram-se as crianças que, embora tenham liberdade de ir e vir, sempre são observadas e protegidas pelos familiares. Os contatos entre crianças e adultos são regulados e limitados à rede de parentesco; uma forma de preservar a segurança das mesmas. Nem todo cigano visitante, mesmo que seja conhecido, tem a liberdade de sair com as crianças ou de dividir com elas as horas do dia.

A dinamicidade da vida cigana é marcada num ritmo cotidiano singular. As mu-lheres têm presença ativa na economia e em toda a rotina da casa, além de serem responsáveis pelas atividades domésticas e, dependendo da situação econômica da família, são elas que saem nas feiras da região lendo a sorte.

A infância é vivenciada em diferentes momentos, mas sempre observamos que este período é um ciclo de proteção e aprendizagem, tendo início desde a gestação até o momento do casamento. E embora os cuidados com os filhos iniciem ainda quando a criança está no ventre da mãe, a gravidez não exclui as mulheres de obrigações diárias, pois este momento de suas vidas não é visto como “doença”.

(6)

CONHECENDO AS CRIANÇAS CALON: OBSERVAÇÕES CONDUZIDAS PELO CAMPO

Entre os ciganos pesquisados, adultos e crianças convivem num processo de inte-ração contínua. As crianças menores são protegidas e cuidadas, mas observamos liberdade de decisão dada a estas, pois desde cedo vão, em companhia de adultos, ao centro da cidade, aprendem a fazer negócios, brincam livremente e podem circular dentro do espaço do seu grupo. A restrição se dá apenas no contato com “estranhos” ao grupo.

Os Calon definem a infância a partir de fases rituais, como o casamento, que representa fase de passagem da infância para a vida adulta. Os ciclos de vida não são de-limitados por fases etárias, depreendendo a importância dos rituais de passagem entre os membros deste grupo.

Nas conversas diárias com crianças e adultos, as repostas sobre a fase da infância oscilavam. A princípio, achávamos que a infância também era compreendida através da ida-de, mas ao longo do processo percebemos que não havia consenso a este respeito, pois cada pessoa nos fornecia uma idade distinta para defini-la. As variações nas respostas mostraram que o problema não residia nas respostas, mas na pergunta que havia sido elaborada.

Assim, passamos a indagar “quando deixa de ser criança entre os Calon? As respos-tas vieram na seguinte direção: “Se deixa de ser criança quando casa”; “Quando casa e se tem filhos”. Ainda, outras respostas, como podemos ver num trecho de uma entrevista com um casal com quatro filhos:

Pesquisadora: Quem é criança aqui? Até que idade se é criança entre os ciganos? AV: - A gente é para ser criança a vida toda.

Pesquisadora: - É?

AV: - Se eu pudesse eu queria ser criança toda a vida, eu. Mas é a partir de quando uma pessoa arrumou uma pessoa, uma mulher se arrumar um homem, a partir dali já se acabou a infância. Já tem que tomar o jeito de pessoa grande, de mulher. Né isso? Se for homem é do mesmo jeito. Já tem o senso de começar a vida para trabalhar, para arrumar dinheiro e cuidar dos filhos. Pesquisadora: - Então deixa de ser criança aí?

AV: - Quando já casa né?

Pesquisadora: - E até que idade se é criança entre os ciganos?

CL:- A gente aqui com quinze anos o cigano ainda diz que é criança. Pesquisadora: O Ever é o quê?

CL: - É criança.

JB: - O Luiz, não é, porque já casou. CL:- A Lua a gente diz que é criança.

Pesquisadora: - Então se é criança até a época de casar, seria isso? CL: - Até se casar, é.

Pesquisadora: - Quando se casa é que deixa de ser criança? CL: - É, que deixa de ser criança, é.

Para os adultos e crianças do grupo, a fase da infância seria aquele período anterior ao ritual do casamento, podendo haver variações em casos específicos. Tomamos Van Gennep (2013, p. 87) para embasar esta ideia dos ciclos da vida como marcados por rituais, onde “[...] as cerimônias do casamento neste caso, como entre muitos outros povos, têm o caráter de rito de passagem de uma classe de idade a outra”:

DLM: Eu me casei com 13 anos.

Pesquisadora: Tem idade limite para ser criança?

DLM: - A pessoa deixa de ser criança quando se formar, o homem é quando se casa... Porque tem regras que a menina pode fazer e uma moça nem uma mulher não pode fazer, então para as meninas tem um tempo antes, que é quando ela se forma.

Pesquisadora: E quando é que se deixa de ser criança?

IR: -Quando arrumar um namorado, quando casar, arrumar sua casa, ter seu rancho. Vai de-pender. Com 12 anos, 13 anos, cigano já tá casando.

(7)

Durante os encontros ocorridos no grupo focal, realizado com as crianças, foi feita, conjuntamente, a seguinte pergunta: “E quando se deixa de ser criança aqui nos Calon?”. As respostas das crianças foram todas dadas em torno do casamento e da formação de uma nova unidade doméstica.

Com base na pesquisa, observamos que para entender as formas de sociabilidade entre estes ciganos era preciso antes de tudo compreender como eles estabeleciam os períodos da vida, e como estes eram vividos. Verificamos que, diferentemente do que concebe o ECA no Art. 2º, a infância entre os ciganos não pode ser quantificada em termos de idade, pois esta não define um período geracional, mas está imbricada em fases estabelecidas pelo grupo. Ainda observamos a não existência da categoria adolescente como uma fase geracional:

A fase da infância é um período que compreende a proteção dos familiares para com suas crianças, principalmente seus pais, é o período de aprendizagem, momento o qual as crianças aprendem ser Calon e Calin e também num período final desta fase, é o momento da preparação, tempo quando começam a realizar atividade segundo a divisão de gênero do grupo. (MONTEIRO, 2015, p. 113) No contexto etnográfico, ao perguntarmos sobre quem são os velhos/anciãos do grupo, as crianças citaram algumas pessoas que possuem netos, mesmo que nem cheguem a ter sessenta anos.

Abordando a ideia de que os ciclos de vida entre os ciganos não são marcados por uma determinada idade, mas pelas uniões matrimoniais, reprodução e formação de unidades familiares, esboçamos as etapas do ciclo de vida dos ciganos como divididas em três momen-tos: infância (que subdivide - segundo observação- nos momentos de proteção, aprendizagem e preparação), a juventude/adulto e a velhice.

A CENTRALIDADE DAS CRIANÇAS NO GRUPO

Os cuidados com as crianças entre os Calon se iniciam ainda no período da gesta-ção, que desde o nascimento ficam, sobretudo, a cargo das mães. Observou-se que as crianças são muito valorizadas e ter filhos é motivo de muita satisfação.

Segundo a pesquisadora portuguesa Casa-Nova (2005), o que importa entre grupos ciganos é que as crianças apreendam os valores significativos e comuns ao grupo. No contex-to pesquisado, os ciganos possuem boas condições financeiras, e as crianças ganham muicontex-tos brinquedos, não importando o valor deste, que deve ser usado de acordo com as necessidades e desejos das crianças. Observa-se que alguns brinquedos se relacionam diretamente com ob-jetos prediletos de seus pais, a exemplo dos carrinhos eletrônicos que são pontos referenciais e de comparação com o automóvel dos seus pais.

Quando as meninas vivenciam a menarca (primeira menstruação) e os meninos começam a fazer negócios, estes passam a interagir de forma mais intensa com os adultos. É o momento em que os meninos começam a acompanhar os pais para observar as negociações e trocas comerciais, no futebol1, nas conversas que são as mais variadas (jogos, criação de galos, negociações, viagens em família), etc. Nesta inserção, os meninos vão adquirindo a ideia de como devem se portar, de como é ser um homem cigano, etc.

A vida vai se construindo num processo intenso de interação com a vida cotidiana dos adultos. As crianças participam de algumas conversas, até mesmo as conversas mais sérias,

(8)

que na maioria das vezes são realizadas através da linguagem do Chib2, que desde cedo as crianças vão aprendendo. As primeiras experiências no mundo adulto compõem a constru-ção do ser Calon, quando podem ingerir algum tipo de bebida alcoólica (essas são observadas e controladas pelos mais velhos e compõem um tipo de ritual), dirigir automóveis, pilotar motos, etc. As meninas também experimentam, numa menor proporção, a direção dos auto-móveis e de motos e lidar com o mundo externo, mas sempre acompanhadas de suas mães.

Para muitas crianças ciganas, o ingresso na escola se da após os oito anos de idade3, num momento em que elas já possuem uma certa autonomia. Em alguns dos casos, no con-texto observado, as crianças desistem da escola por não se habituarem ao concon-texto escolar. Os pais raramente submetem seus filhos a regras que não são as suas ou às dos seus pares. Em um dos dias que estivemos em campo, presenciamos um menino de seis anos dizendo a um outro com mais idade: “Eu sei ser homem, homem cigano sabe se cuidar!”; em outra circunstância, vivenciamos um menino de nove anos o momento que ele interpelou sua mãe: “Mãe, eu quero aquela menina para casar, eu já sou um homem, já tenho dinheiro [...]”.

Entre os ciganos a categoria adolescente não é utilizada pelos mais velhos, só al-gumas crianças a citam. Mas quando perguntamos no grupo focal: “Quando se deixa de ser criança entre os ciganos?”, afirmaram que “a infância só acaba quando o cigano casar”. Tal afirmação concisa foi aliada à observação participante, que permitiu verificar que as relações, cotidianamente estabelecidas entre estes sujeitos sociais, são fulcrais para dimensionar cada papel social no interior das famílias, permitindo ter uma dimensão dos grupos geracionais que ali formados, compreendendo a importância da criança/infância em tal grupo.

Segundo Casa-Nova, a socialização das crianças ciganas em Portugal é um momen-to extremamente importante, momenmomen-to em que aprendem a ser ciganos e valorizar coisas em comum:

No que concerne aos processos de socialização primária e à eventual influência do tipo de exercício ocupacional parental nestes processos, as famílias ciganas da comunidade valorizam (embora nem sempre de forma consciencializada), [...] domínio de si, autonomia e curiosidade, mas também segurança e responsabilidade, com uma desvalorização relativa da ordem, da lim-peza e da disciplina (embora apresentando diferentes gradações). Esta valorização, a par com a socialização de crianças e jovens em valores culturais que consideram superiores aos valores transmitidos pela sociedade maioritária (o respeito e o não abandono dos mais velhos; o carinho e o não abandono das crianças; a solidariedade com os doentes e a preservação da virgindade das raparigas até ao casamento), a forte coesão e proteção grupal em momentos de forte tensão e exposição individual no que se refere a relações inter-étnicas, bem como o medo que, como forma de poder e de estratégia de sobrevivência, suscitam nos outros, é parcialmente explicativa da segurança e algum sentimento de superioridade evidenciados pelos elementos de etnia cigana em relação à restante sociedade (CASA-NOVA, 2005, p. 201).

As crianças e os adultos mostraram que o período da infância é decisivo para a cons-trução do ethos4 cigano. A frequência em ambientes escolares acontece sem grandes pressões, pois embora os ciganos valorizem a escola e tudo o que ela pode representar para seus filhos, os pais não a impõem, valorizando muito mais o que é apreendido no interior seu grupo.

Deste modo, as gerações não podem ser pensadas a partir e dados etários estritos. Como aponta Paes (1993), as características culturais que formam os grupos geracionais

(9)

são historicamente definidas pelas pessoas que vivenciam tais características em fases de suas vidas.

Assim, o tempo e as motivações que diferenciam crianças e adultos entre os ciganos Calon não podem ser compreendidos apenas em função dos limites de idade, pois como nos diz Bourdieu (1983), estas divisões são sempre arbitrárias, variando e sendo objetos de mani-pulação dos grupos sociais.

CONCLUINDO

De acordo com a pesquisa, concluímos que o cotidiano, junto aos valores cultu-rais correlatos, é vivido, compartilhado, ensinado, fazendo parte do processo de educação das crianças, que vão aprendendo o que representa ser um Calon/Calin, em oposição a um não cigano/não cigana.

Desde o período de socialização primária, as crianças aprendem a linguagem cigana e sabem diferenciar um Calon de um não cigano; sabem fazer negócios, cortejar meninas, valorizar o ouro, assim como as meninas vão aprendendo a se enfeitar, se embelezar e apreciar bons calçados, uma boa peça de ouro, e a observar alguns meninos como possível marido para um futuro próximo.

Desse modo, a infância compreende fases sucessivas: o momento de proteção, apren-dizagem e preparação para tornar-se um adulto Calon. Ser criança entre os Calon compreende um tempo maior da vida, que se estende até o matrimônio, momento em que a menina e o menino se tornarão homem e mulher e iniciarão uma nova família a partir da vinda dos filhos. Nesse sentido, não se pode tratar a infância como categoria homogênea, isto seria anular a grande diversidade que nos cerca. Temos que considerar os grupos, as questões de classes, as religiões, as questões de gênero, os grupos étnicos que abarcam a realidade social brasileira e os sujeitos sociais e historicamente diversos.

THE CHILDHOOD CALON: NOTES ON “BEING A CHILD” AMONG THE CIGANS IN THE MAMANGUAPE-PARAÍBA/ BRAZIL VALLEY

Abstract: this work reflects on the childhood conception in Calon group resident in the northern coast of Paraiba, Brazil. This is a case study, with a bibliographical basis on child anthropology, ethnicity and gypsy groups. Fieldwork was conducted from participant observation, along with some research techniques: interview with semistructured script with adults and children; focus group and themed designs with children between the years 2013 and 2014 in interspersed visits. The research allowed to know the dynamics of everyday life among the Calon, from their children and their adults. Especially the research turned to understand the childhood conception, and forms of education / learning that are part of social processes to grow and recognize Calon.

Keywords: Gypsies. Childhood. Child. Education. Notas

1 No caso pesquisado, os ciganos jogam futebol quase todos os dias após o almoço, numa quadra próxima às residências.

(10)

3 No Estado Brasileiro se estabelece a entrada das crianças no período de alfabetização com seis anos de idade. 4 Conforme Geertz (2008), o ethos refere-se a expressões e formas simbólicas, a um estilo de vida de uma dada

cultura ou grupo cultural. Referências

ANDRADE, Simone Meneses. As Representações do Espaço Geográfico de Crianças Ciganas da Cidade de Sousa-PB. Monografia em Geografia, Universidade Federal de Campina Grande, Centro de Formação de Professores, Campus IV, Cajazeiras, 2011.

ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1981. BOURDIEU, Pierre. “A juventude é apenas uma palavra”. In: Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Editora Marco Zero, 1983.

CASA-NOVA, Maria José. Etnicidade e Educação Familiar. Rev. Teoria e Prática da Educação, v.8, n.2, p.207-214, maio/ago, 2005.

______. Etnografia e Produção do Conhecimento: Reflexões críticas a partir de uma investigação com ciganos portugueses. Lisboa, 2009. (Olhares, 8).

CODONHO, Camila G. Aprendendo entre pares: a transmissão horizontal de saberes entre as crianças indígenas Galibi-Marworno (Amapá, Brasil). Dissertação de Mestrado em Antropo-logia. Universidade Federal de Santa Catarina, 2007.

______. Cosmologia e infância Galibi-Marworno: aprendendo, ensinando, protagonizando. IN: TASSINARI, Antonella, et. al. (Orgs). Educação Indígena: reflexões sobre noções nativas de infância aprendizagem e escolarização Florianópolis: Ed. DaUFSC, 2012.

COHN, Clarice. Antropologia da Criança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005a. ______. O desenho das crianças e o antropólogo: reflexões a partir das crianças meben-gokré-xikrin. In: REUNIÃO DE ANTROPOLOGIA DO MERCOSUL. Anais da VI Reunião de Antropologia do Mercosul. Montevidéu/Uruguai, 2005 b.

DURHAM, Eunice Ribeiro. A dinâmica da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

FERRARI, Florência. O mundo passa - uma etnografia dos ciganos Calon e suas relações com os Brasileiros. Tese de Doutorado em Antropologia Social. Universidade de São Paulo, 2010. FONSECA, Isabel. Enterre-me em pé: os ciganos e sua jornada. São Paulo: Companhia das letras, 1996.

GEERTZ, Cliford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.

GENNEP, Arnold Van. Os ritos de passagem: estudo sistemáticos dos ritos da posta e da solei-ra, da hospitalidade, da adoção, gravidez e parto, nascimento, infância, puberdade, iniciação, coroação, noivado, casamento, funerais, estações, etc.; Petrópolis: Vozes, 2013.

GOLDFARB, Maria Patrícia Lopes. Os Ciganos. Galante, Fundação Hélio Galvão, n. 02 Vol. 1, 2003.

______. Memória e Etnicidade entre os Ciganos Calon em Sousa-PB. João Pessoa: Editora Uni-versitária da UFPB. (Coleção Humanidades), 2013.

HOEBEL, E. A., FROST, E. L. Antropologia Cultural e Social. São Paulo: Cultriz, 2002. LOPES, Aracy da Silva; NUNES, Ângela (Orgs.). Crianças Indígenas, ensaios antropológicos. São Paulo: Mari/Fapesp/Global, 2002.

(11)

a concepção de infância entre ciganos no vale do Mamanguape-Pb. Dissertação de Mestrado em Antropologia. Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2015.

NUNES, Ângela. “Brincado de Ser Criança”: contribuições da etnologia indígena brasileira à antropologia da infância. Tese de doutoramento, Departamento de Antropologia, ISCTE, Lisboa, Portugal, 2003.

OLIVEIRA, Maria Coleta Ferreira Albino. “Algumas notas sobre “ciclo vital” como perspec-tiva de análise”. In: Encontro de Estudos Populacionais, 2. Anais. Águas de São Pedro, ABEP, 1982.

PAES, José Machado. Culturas Juvenis. Lisboa: Imprensa nacional Casa da Moeda, 1993. PIRES, Flávia Ferreira. Ser adulta e pesquisar crianças: explorando possibilidades metodoló-gicas na pesquisa antropológica. Revista de Antropologia (São Paulo), v. 50, 2007.

______. Pesquisando crianças e infância: abordagens teóricas para o estudo das (e com as) crianças. Cadernos de Campo (USP), v. 17, 2009.

SANTANA, Maria de Lourdes. Os ciganos: aspectos da organização social de um grupo ciga-no em Campinas. São Paulo: FFLCH/USP, 1983.

SIQUEIRA, Romilson M. Cultura, subjetividade e infância. Educativa, v. 10, 2007.

TASSINARI, Antonella. “Concepções Indígenas de Infância no Brasil”. In. Revista Tellus, ano 7, n.13, Campo Grande: UCDB, p.11-25, 2007.

______. “Múltiplas Infâncias: o que a criança indígena pode ensinar para quem já foi à escola ou A Sociedade contra a Escola”, Comunicação apresentada no 33º Encontro da ANPOCS. Anais da 33º ANPOCS, Caxambu, 2009.

Referências

Documentos relacionados

No entanto, maiores lucros com publicidade e um crescimento no uso da plataforma em smartphones e tablets não serão suficientes para o mercado se a maior rede social do mundo

Beatriz Cardoso Carla Veloso Filipe Santos João Pedro Teixeira José Manuel Teixeira Maria Júlia Lopes Pedro Granate Ricardo Frada Susana Castro

Com base no trabalho desenvolvido, o Laboratório Antidoping do Jockey Club Brasileiro (LAD/JCB) passou a ter acesso a um método validado para detecção da substância cafeína, à

coordenar estudos, pesquisas e levantamentos de interesse das anomalias de cavidade oral e seus elementos, que intervirem na saúde da população; Examinar os dentes e

Nos tempos atuais, ao nos referirmos à profissão docente, ao ser professor, o que pensamos Uma profissão indesejada por muitos, social e economicamente desvalorizada Podemos dizer que

Aos trabalhadores contratados para o trabalho em regime administrativo, cujos horários encontram-se definidos na CLÁUSULA 16 e aqueles contratados para trabalhar em regime

Para tanto, desenvolvemos um estudo in vitro, onde observamos a produção de D(-) lactato por cepas de Escherichia coli em regime de aerobiose e de. anaerobiose,

O plano americano procura assegurar que todo “universo”do setor - redes, aparelhos, conteúdo e aplicações – seja Saudável com as seguintes linhas de ação: :