• Nenhum resultado encontrado

O PENSAMENTO POLÍTICO DOS MILITARES BRASILEIROS

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "O PENSAMENTO POLÍTICO DOS MILITARES BRASILEIROS"

Copied!
33
0
0

Texto

(1)

O PENSAMENTO POLÍTICO DOS MILITARES BRASILEIROS: A DOUTRINA DE “SEGURANÇA NACIONAL” REVISITADA (1930-1985)1

Rodrigo Lentz*

Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do País e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais? (…) Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais

General Eduardo Villas Bôas, comandante do Exército Brasileiro, em 3 de abril de 2018.

Uma Constituição não precisa ser feita por eleitos pelo povo. Já tivemos vários tipos de Constituição que vigoraram sem ter passado pelo Congresso eleito

General Hamilton Mourão, em 13 de setembro de 2018.

RESUMO

Ao menos desde 1985 afastados do protagonismo político, os militares brasileiros novamente passaram a participar ativamente do poder político nacional. Embora jamais deixassem de “fazer política”, o recente “regresso à proa” veio acompanhado de traumas políticos com o regime de 1964 e um profundo desconhecimento sobre o que, afinal, pensam os militares pós-1985. Nesse sentido, o presente artigo busca preencher uma lacuna de sistematização do pensamento político dos militares a partir do principal documento político doutrinário das Forças Armadas: o Manual

1 Uma versão prévia desse artigo, intitulada “O pensamento político dos militares do Brasil pós-1988: os fundamentos consolidados em 1975 pela Doutrina da Escola Superior de Guerra”, foi apresentada na 42º edição da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), no GT31: teoria política e pensamento político brasileiro – conflito, poder, legitimidade e estado, ocorrido em 22 a 26 de outubro de 2018 na cidade de Caxambu, MG. Trata-se de parte inicial de tese de doutoramento sobre o pensamento político dos militares brasileiros pós-88, junto ao programa de Ciência Política da Universidade de Brasília (Unb). ____________________

* Mestre pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), doutorando em ciência política pela Universidade de Brasília (Unb). Bolsista CAPES/BRASIL. Contato: rodrigolentz@gmail.com

(2)

Básico da Escola Superior de Guerra. Após uma breve revisão dos estudos pioneiros, é proposta uma categorização da chamada Doutrina de Segurança Nacional segundo as versões do Manual Básico de 1975 (governo Geisel) e de 1983 (governo Figueiredo). Essa categorização define os núcleos normativo, político e instrumental do pensamento e como cada um deles aborda os grandes temas da ciência política. Com isso, o estudo objetiva conferir maior clareza conceitual a uma tradição de pensamento político que possibilite análises comparativas sobre permanências e descontinuidades no atual pensamento e, assim, identificar os fundamentais desafios à democracia que o mesmo apresente.

Palavras-chaves: Pensamento político. Militares. Democracia. Brasil

THE BRAZILIAN’S MILITARY THOUGHT: THE NATIONAL SECURITY DOCTRINA REVISITED (1930-1985)

ABSTRACT

Devoid of political protagonism at least since 1985, the Brazilian military once again began to participate actively in national political power. Although they never ceased to “do politics”, the recent “return to the game” was accompanied by political traumas with the 1964 regime and a deep doubt about what the military thinks about politics after 1985. In this sense, the present article seeks to fill a gap of systematization of the political thinking of the military in Brazil. To do so, we will start with an analysis of the main doctrinal political document of the Armed Forces: The Basic Manual of the Brazilian War College. After a brief review of the pioneering studies, a categorization of the so-called National Security Doctrine is proposed according to the versions of the 1975 Basic Manual (Geisel government) and 1983 (Figueiredo government). This categorization defines the normative, political, and instrumental cores of thought and how each one approaches the major themes of political science. From these procedures, the study aims to provide greater conceptual clarity to a tradition of political thought that allows comparative analysis of the continuities and discontinuities in the current military political thought and, thus, identify the fundamental challenges to democracy that it presents.

Keywords: Polity thought. Military. Democracy. Brazil.

EL PENSAMIENTO POLÍTICO DE LOS MILITARES BRASILEÑOS: UNA REVISIÓN DE LA DOCTRINA DE “SEGURIDAD NACIONAL” (1930-1985)

RESUMEN

Al menos desde 1985 alejados del protagonismo político, los militares brasileños nuevamente pasaron a participar activamente en el poder político nacional. Aunque nunca dejaron de “hacer política”, la reciente “la vuelta al juego” vino acompañado

(3)

de traumas políticos con el régimen de 1964 y un profundo desconocimiento sobre lo que, al final, piensan los militares después de 1985. En este sentido, el presente artículo busca llenar una laguna de sistematización del pensamiento político de los militares a partir del principal documento político doctrinal de las Fuerzas Armadas: el Manual Básico de la Escuela Superior de Guerra. Después de una breve revisión de los estudios pioneros, se propone una categorización de la llamada Doctrina de Seguridad Nacional según las versiones del Manual Básico de 1975 (gobierno Geisel) y de 1983 (gobierno Figueiredo). Esta categorización define los núcleos normativo, político e instrumental del pensamiento y cómo cada uno de ellos aborda los gran temas de la ciencia política. Con ello, el estudio tiene como objetivo conferir mayor claridad conceptual a una tradición de pensamiento político brasileño que posibilite análisis comparativos sobre permanencias y discontinuidades en el actual pensamiento y, así, identificar los fundamentales desafíos a la democracia que el mismo presente.

Palabras claves: Pensamiento político. Militares. Democracia. Brasil. 1 INTRODUÇÃO

Acontecimentos recentes na política brasileira trouxeram de volta “quem nunca foi”. Participando ativamente no debate público, na articulação e da organização política, os militares passaram a ser considerados relevantes na disputa de poder e, paradoxalmente, um motivo de grande preocupação para a democracia. Isso porque, depois de 1985, quando deixaram o comando do poder executivo, pouco se estudou sobre como pensam, o que planejam, como se comportam e como interpretam o processo democrático, sobretudo em momentos de crise e instabilidade.

Portanto, o estudo dos militares para a ciência política justifica-se por serem um dos principais atores políticos do período moderno, sobretudo no Brasil. Buscando contribuir na compreensão desse fenômeno histórico, o presente artigo tem como principal objetivo revisitar o pensamento dos militares sobre a política. Se dedica a entender como esse pensamento se desenvolveu até o último governo autoritário comandado pelos militares, buscando estruturá-lo a partir dos principais temas da ciência política contemporânea. Após revisitar estudos que descreveram a chamada “doutrina de segurança nacional”, são analisados os manuais doutrinários da Escola Superior de Guerra (ESG) de 1975 (governo Geisel) e 1983 (governo Figueiredo). Com isso, uma categorização desse pensamento é submetida ao crivo do espaço público.

A busca por compreender como os militares pensam a política merece, como toda investigação científica, um método claro e adequado ao problema de pesquisa. E esse é um grande desafio que certamente será enfrentado de forma insuficiente pelo presente artigo. Entretanto, no anseio de reduzir as

(4)

probabilidades de erros, foram adotadas algumas escolhas metodológicas possíveis até o momento.

Primeiro, centrar o foco em temas centrais para a ciência política:

poder, estado e sociedade. Segundo, ter como fonte principal do pensamento

político dos militares os manuais doutrinários da Escola Superior de Guerra (ARRUDA, 1983; SANTOS, 2010; STEPAN, 1986). Há aqui um pressuposto de que todo o sistema de ensino militar, em razão do princípio hierárquico, segue os fundamentos políticos dessa Escola. Logo, sem prejuízo da sabida heterogeneidade interna, é nela que se encontrará a “espinha dorsal” do pensamento oficial dos militares no país.

A terceira escolha, além de revisitar categorizações de três obras fundamentais sobre o pensamento político dos militares do regime de 1964 – Eliézer Rizzo de Oliveira (1987), Joseph Comblin (1980) e Alfred Stepan (1985), foi analisar duas versões do documento doutrinário da ESG, chamado de

Manual Básico: edição de 1975 (governo Geisel), considerado, pelas pesquisas

junto a sua biblioteca, a primeira versão consolidada da doutrina, desde a fundação da Escola; (ii) edição de 1983 (governo Figueiredo). Nesse sentido, a metodologia adotada assemelha-se àquela usada por Alfred Stepan no exame das mudanças e permanências da doutrina de segurança nacional brasileira formulada pela ESG durante a abertura, se valendo do exame de documentos oficiais (STEPAN, 1985).

A síntese de todas essas fontes é realizada a partir de uma categorização de natureza qualitativa. Enquanto técnica metodológica, a pesquisa se valerá da inferência descritiva a partir da categorização do pensamento político extraída das fontes primárias. Na formulação das categorias, foram adotadas as diretrizes de Laurence Bardin (2009) para análise de conteúdo documental. Ainda, é adotado o método de estruturação do sistema de crenças de elites políticas elaborado para análise de coalizões de grupos de interesses (ACF – Advocacy Coalition Framework, em tradução livre) que traz três categorias estruturais: a) Núcleo normativo (deep core) – as bases de valores fundamentais, conforme crenças ontológicas; b) Núcleo Político (policy core) – estratégias básicas e posições políticas para efetivar as crenças fundamentais em determinada área específica; c) Núcleo instrumental (secondary aspects) – informações e ferramentas para efetivar o núcleo político por meio da ação política (SABATIER, 1993).

2 MILITARES E POLÍTICA: DAS RELAÇÕES DE PODER AO PENSAMENTO POLÍTICO

Há muitas abordagens, recortes e interpretações sobre os militares na política. Do ponto de vista teórico, este artigo se fundamenta em dois campos

(5)

de estudos: o (i) papel dos militares nas relações de poder (COELHO, 1976; BRIGAGÃO; PROENÇA JR., 2007; HOBSBAWM, 1985; HUNTINGTON, 1996; FINER, 1962; JANOWITZ, 1967; FEAVER, 1999); (ii) enquanto uma elite política moderna (BLONDEL; MÜLLER-ROMMEL, 2007; MOSCA, 1939; DAHL, 1970; MILLS, 1981; POULANTZAS, 1986). É a partir dessas duas compreensões básicas que situo o problema do pensamento político dos militares.

Até onde se logrou encontrar, a literatura mais específica é menos desenvolvida se comparada com a grande área de relações civis militares e estudos de brasilianistas sobre o militarismo no Brasil. Tal escassez foi apontada por Eliézer Rizzo de Oliveira, para quem da insuficiência de estudos seria “sintomático o pequeno número de obras que abordam este tema” (OLIVEIRA, 1987, p.19).

É de Oliveira (1987) um dos primeiros estudos buscando suprir essa lacuna. O autor analisa os governos Castelo Branco e Costa e Silva com base na ideologia da segurança nacional desenvolvida pela Escola Superior de Guerra (ESG). A obra argumenta que a doutrina de segurança nacional se fundamentava numa ideologia das classes dominantes para enfrentar uma crise de hegemonia de classe eclodida em 1964. Com isso, a doutrina ergueu seus principais alicerces no pensamento autoritário brasileiro (Oliveira Vianna, Alberto Torres e Francisco Campos), na divisão social do trabalho complementar, consensual e não contraditória; e num Estado forte, regulador e protetor da iniciativa privada (OLIVEIRA, 1987).

No ano seguinte é publicado o estudo de Joseph Comblin (1980) sobre a ideologia da segurança nacional na América Latina. A obra tornou-se referência sobre a influência dos Estados Unidos na formação do pensamento político-militar no continente durante a Guerra Fria. Segundo Comblin, a doutrina, em 1971, existia apenas no Brasil, mas se espalhou rapidamente nos militares do Uruguai, Bolívia, Chile, Peru, Equador e, posteriormente, Argentina e demais países latinos (COMBLIN, 1980). Assim como Oliveira havia feito, o autor vai descrever os fundamentos da doutrina: uma nova teoria dos conflitos que traz o conceito de guerra contemporânea aliada ao anticomunismo, ao conservadorismo católico, ao desenvolvimentismo capitalista com regulação do Estado e ao sistema político do liberalismo institucional. Em outros termos, a ideologia poderia ser sintetizada pelo binômio segurança e desenvolvimento (MIGUEL, 2012; STAROBIN, 1947).

Entretanto, diferentemente do que argumentam Comblin (1980) e Oliveira (1987), Leonardo Trevisan (1985) vai apresentar uma outra versão quanto as origens da doutrina de segurança nacional no Brasil. Segundo Trevisan, a primeira fase de formação preliminar da doutrina política está ligada a doutrina filosófica do positivismo, assim como um nacionalismo embrionário com a

(6)

queda do Império. Na segunda fase, o positivismo perseverou, especialmente carregando a ordem como método e o progresso como fim. Porém, o perfil bacharelesco dos oficiais deparou-se com a ascensão dos “jovens turcos” e seu ideal de profissionalismo militar e engajamento na transformação da realidade, influenciados pelo pensamento militar francês e alemão (TREVISAN, 1985). Na terceira fase, na década de 1930, a centralização modernizadora em um Estado forte como proposta e o autoritarismo como método são agregados na receita doutrinária com experimentação direta no comando do governo. É com a Doutrina Góes Monteiro que, em 1930, surge pela primeira vez o termo “segurança nacional” como missão do Exército através da organização militar da sociedade, com ampla vigilância, em todos os setores da vida nacional, para garantir a ordem e promover o desenvolvimento em busca dos “objetivos nacionais” (TREVISAN, 1985). Na quarta fase, pós Estado Novo, foi promovida a reforma da doutrina de segurança nacional de Góes Monteiro para adaptá-la à nova ordem mundial pós-Segunda Guerra Mundial e à guerra fria, por meio dos intelectuais da ESG. Eis o que chamamos de doutrina de segurança nacional nos termos conhecidos e descritos por Oliveira (1987) e Comblin (1980).

Portanto, já existia uma doutrina de segurança nacional e ela foi fundada durante o Estado Novo. Por essa razão, a obra de Trevisan (1985) – apesar de optar por conceitos obsoletos para o regime autoritário de 1964 – é importante porque demonstra que os fundamentos da ideologia de segurança nacional e seu campo de atuação (segurança/desenvolvimento) foram maturados antes da Segunda Guerra Mundial, da criação da ESG, da Guerra Fria e da inegável influência dos Estados Unidos no Brasil (TREVISAN, 1985). Em outros termos, há uma tradição doutrinária de uma instituição tradicional que precisa ser melhor estudada. Etapa fundamental para compreender o pensamento político dos militares brasileiros.

3 A DOUTRINA DE AÇÃO POLÍTICA DA ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA (ESG) NOS GOVERNOS GEISEL E FIGUEIREDO

Nesse sentido, historicamente o cerne ideológico desse pensamento político foi construído a partir das doutrinas do positivismo, do nacionalismo e, a partir de 1906, dos postulados segurança e desenvolvimento aliados ao anticomunismo. O desenvolvimento desse pensamento foi amadurecido na ideologia de segurança nacional do Estado Novo e, posteriormente, modernizado e adaptado ao período da Guerra Fria pela Escola Superior de Guerra (ESG) até assumir o poder político em 1964.

(7)

Quadro 1 – categorias

ÁREA TEMÁTICA N CATEGORIA História e estrutura (núcleo duro) - concepções fundamentais sobre poder e política na organização social

1 NATUREZA HUMANA: Essência humana (espírito, consciência). Ética, moral e valores. Racionalismo (bem comum, aspirações, desejos, objetivos). 2 ORGANIZAÇÃO SOCIAL: Filosofia da história. Teoria do desenvolvimento. Evolucionismo social. Teoria dos sistemas. Estado nacional e teoria de governo.

3

PODER POLÍTICO: Teoria do poder e teoria da estratégia. Filosofia política. Elites políticas e classes sociais. Formas de dominação (legitimidade, autoridade, consenso, obediência, hegemonia). Cultura política (psicologia e sociologia política). Doutrina e Ideologias: nacionalismo, liberalismo, capitalismo, socialismo, comunismo, positivismo, cristianismo, nacionalismo. Manuais de ciência política.

Estado e Sociedade (núcleo político) a transformação das concepções fundamentais em conceitos chaves entre política e poder 4

IDEOLOGIA NACIONAL: Pensamento político militar. ESG: história da escola e da doutrina. História, Caráter e organização nacional. Objetivos, política e estratégia nacionais. Poderes nacionais: político, militar, psicossocial, econômico, ciência e tecnologia. Segurança nacional e Desenvolvimento nacional.

5 REGIME POLÍTICO: Relações civis militares. Teoria democrática. Estado de Direito. Sistemas político, partidário e eleitoral. Instituições sociais. Direitos Humanos. 6 ECONOMIA POLÍTICA: História econômica. Teoria econômica. Desenvolvimento econômico. Sistema econômico: propriedade privada e papel do estado.

Desigualdade, desenvolvimento e subdesenvolvimento econômico. 7

CONFLITO E ORDEM POLÍTICA: Teoria do conflito: antagonismo, adversidades e anticomunismo. Teoria da Guerra. Teoria da segurança (ordem): individual, comunitária, nacional, coletiva, interna, pública, externa. Oposição e participação política. Opinião pública e imprensa. Teoria de geopolítica e as relações internacionais. Ordem política e globalização.

método para a ação política (aspectos

instrumentais) 8 O MÉTODO DA ESG: Planejamento estratégico. Teoria da informação. Teoria da decisão. Método de análise de conjuntura. (des)mobilização e logística.

Fonte: O AUTOR, 2018.

É a partir dessa visão histórica que proponho uma categorização da doutrina com base no método para o sistema de crenças das elites políticas (quadro 01). Em resumo, em três estruturas de crenças: núcleo normativo, núcleo político e núcleo instrumental. Cada núcleo é divido por categorias que traduzem o pensamento em determinados temas.

Nesse sentido, cada núcleo do sistema de crença recebeu categorização buscando abarcar diferentes classificações que tenham certa homogeneidade de acordo com a descrição proposta. Isso nos ajuda a visualizar a estrutura da doutrina, por meio de seus subsistemas de crenças, conceitos, organização e estratégia de ação.

3.1 Núcleo normativo: estrutura e história

O núcleo normativo se propõe a reunir as concepções fundamentais sobre as relações de poder. No processo de categorização, boa parte dessas concepções se encontravam em capítulos dos manuais denominados “Fundamentos axiológicos” (BRASIL, 1983) e “Teoria política” (BRASIL, 1975), assim como povoando os

(8)

demais capítulos. Segundo a doutrina, a caracterização desse sistema de crenças é “democrática em sua essência”, sendo interpretada conforme um fato concreto: a cultura brasileira, que existe “independentemente de opiniões individuais” (BRASIL 1983, p. 25).

Portanto, o que se passa a descrever é um conjunto de crenças essenciais sobre o ser humano (ou “homem”, termo usado), as estruturas sociais e as relações políticas que derivam de “criações do livre espírito, algo obviamente não elaborado para oprimi-lo, mas sim para servir aos ideais consentâneos com seu destino” (BRASIL, 1983, p. 25). Passemos a conferir o pensamento que essa premissa formula sobre a essência humana e a da estrutura social.

Categoria 1 - Natureza Humana: indivíduo, pessoa e bem comum. Aspirações, desejos, objetivos

O ser humano é naturalmente interessado, conforme suas necessidades.

Estas, por sua vez, podem ser materiais ou imateriais, conscientes ou não. Dessas

necessidades emergiriam aspirações, que são expectativas que se transformam

em valores. Por isso, a motivação vital da ação humana seria o interesse. E quais

seriam esses interesses? São elegidos quatro, como inerentes à natureza humana:

vida e segurança (existência e sobrevivência); participação e criação (engendrar ou

mudar valores); integração social (adaptação ao meio ambiente); e espiritualidade (Deus cristão). (grifos nossos).

Assim, “o homem e os povos buscam o seu aprimoramento, na base dos valores culturais acumulados e que constituem legítimo patrimônio a ser preservado” (BRASIL, 1975, p. 32-33). Dessa natureza humana deriva a compreensão de que o homem é um “animal social“, “gregário”, que vive necessariamente inserido em grupos sociais. Isso reforça um sentido natural de vínculos comuns, unidade de ação, conservação, coesão e a consequente criação de convenções, normas, práticas e atitudes sociais. Portanto, para o pensamento militar o ser humano transcende o individualismo, sendo a sociabilidade o auge de seu “egoísmo” (BRASIL, 1975).

Com isso, as noções de interesse e sociabilidade (no espaço e no tempo) manifestam-se nas dimensões racional e a transcendental; corporal, mental e espiritual; racional e emocional simbólica. A natureza humana está no mundo dos

valores, esse que transforma o indivíduo em pessoa humana, sujeita ao viés de

valores externos que “se impõem a nós, não dependem de nossas tendências, preferências e ainda seu reconhecimento por nós não lhes dá consistência (...) e, portanto, constituem fontes de deveres”. É, assim reconhecendo esses valores, que se forma a “consciência moral”, uma ética do dever ser. (BRASIL, 1983, p.29).

Uma vez agindo de forma interessada, racional ou inconsciente, o ser humano necessariamente buscaria um objetivo, especificamente alcançar aquelas “necessidades vitais”. O objetivo principal é sintetizado nas ideias abstratas de “bem

(9)

comum” e “bem-estar”, que atenderiam tanto às necessidades materiais quanto transcendentais do ser humano. A definição desses conceitos universalizantes reclama a heterogeneidade de uma noção de liberdade que “em seu agir, não possa ela inviabilizar outros projetos pessoais e a vida comunitária como um todo” (BRASIL, 1983, p.31-32). Em resumo: é da natureza humana buscar o bem comum.

Embora tenda, a ser racional, interessado e social, o ser humano constitui uma pessoa humana. Isso decorre da natural espiritualidade e da “existência de uma lei natural e eterna, cuja fonte é Deus, fim para qual tendem os homens” (BRASIL, 1983, p. 34).

Categoria 2 - Organização Social: homem, terra e instituições. Nação, Estado e Sociedade. Sistêmica, orgânica e evolutiva

Como foi mencionado acima, há uma firme compreensão da natureza social

do ser humano. E, sendo assim, a sociedade “é todo o grupo humano que convive

sob certa estrutura de fenômenos sociais, ligado por interesses comuns, sob o influxo de determinado processo histórico-cultural” (BRASIL, 1975, p.18-19). Essa concepção da sociedade está ancorada na interpretação da história pela doutrina, especialmente nas origens do Patriarcado (pai chefe religioso e da família), sem prejuízo de outras configurações originais, como a Horda (indivíduos nômades e promíscuos) e o Matriarcado (mãe como referência, mas não “chefe”). Dessas formas originárias a sociedade teria “evoluído”: família-clã-tribo-nação-Estado. É o

que o pensamento chama de sociedade política (BRASIL, 1975, p.18-19). Trata-se

de um “processo evolutivo da sociedade humana” que, uma vez completado, chega

nos seus três elementos fundamentais (BRASIL, 1975) (grifos nossos):

Homem - racional, livre, sociável, ordeiro e orientado pelo bem comum;

Terra - onde se fixa em determina extensão de terra, a explora e conserva

sob seu domínio.

Instituições – compreendem padrões sociais, econômicos e políticos

advindos da terra e do homem que ordenam e disciplinam a convivência humana.

Na organização social, as instituições cumprem um papel indispensável para a doutrina, porque “nenhuma civilização se implantou sem o respaldo de instituições”. São elas que “radicam na natureza do homem” e se configuram em organismos “que têm meios de vida de ação superiores em potência e duração aos dos indivíduos que a compõem”. (BRASIL, 1983, p. 33)

A primeira dessas instituições permanentes seria a nação (grifos nossos).

Para caracterizá-la, a doutrina faz uso de uma recorrente divagação conceitual e significados vazios substancialmente sobre um “espírito comum” e uma “consciência moral”: “ama-se em proporção dos sacrifícios consentidos, dos males sofridos”. De

(10)

igual sorte, “um patriotismo decorrente da solidariedade dos semelhantes”. De todo modo, a nação seria:

A sociedade já sedimentada pelo longo cultivo de tradições, costumes, língua, ideias, vocações, vinculada a determinado espaço de terra e unida pela solidariedade criada pelas lutas e vicissitudes comuns, que se traduz na vontade de continuar vivendo em conjunto e projetar-se no futuro, preservando os valores alcançados e buscando a realização dos objetivos colimados. (BRASIL, 1975, p. 18-21).

É a existência desses elementos centrais de qualquer nação que dará nascimento ao Estado (grifos nossos). Em outros termos, a nação “antecede e transcende o Estado”,

mas dependente dele para a sua sobrevivência. O Estado seria a própria nação “em termos orgânicos”, “a nação juridicamente organizada”. Ainda, para a doutrina, o Estado seria “o sistema nervoso do conjunto de instituições nacionais, com função de regê-las. Cabe-lhe dirigir a vida da comunidade, à luz dos princípios, métodos, normas e ações, segundo uma ordem de natureza jurídica e uma missão de unidade política”. Em suma, o Estado “é a entidade política, instituída em uma nação, sobre o qual exerce controle jurisdicional, e cujos recursos ordena, para promover a conquista e a manutenção dos objetivos nacionais”. (BRASIL, 1975, p. 22-26)

Importante salientar que “ordem e progresso” seriam uma exigência para a existência do Estado, intrínseca à nação: “a partir do instante que a nação, por exigência de ordem e progresso, se organiza através de normas disciplinares da vida coletiva e institucionaliza seus objetivos, surge o Estado” (BRASIL, 1975, p. 124). Além disso, a doutrina argumenta que o Estado decorre da natureza gregária do ser humano, do “poder grupal”, de um poder difuso que se condensa na noção de

autoridade enquanto um princípio de ordem. Aqui é mencionado, sem nenhuma

digressão, o problema clássico entre legalidade e legitimidade, sendo a última

fonte de consentimento e de aceitação, indispensável à primeira e o que moveria

a sociedade. Com isso, o chamado ordenamento jurídico seria o aspecto legal

da ordem estabelecida, exercendo grande influência porque disciplina todas as dimensões políticas e requer, segundo a escola, uma congruência com a cultura política. Dessa forma, o próprio Estado seria uma expressão do direito. (BRASIL, 1975, grifos nossos).

Nesse sentido, a fixação de objetivos nacionais é um dos componentes

centrais do Estado nação. Seguindo a noção de racionalidade humana que exige um objetivo claro para ação racional, esses objetivos se organizam de forma hierárquica na escala individual, grupal, nacional e decorrem dos valores da sobrevivência, da integração, da expansão, da conservação, da convenção moral, da unidade, da coesão e da integração. São desses valores, uma vez transformados em aspirações, que “emergem” os objetivos nacionais (BRASIL, 1983, p. 39-42, grifos nossos).

(11)

Na escala do tempo, os objetivos nacionais permanentes seriam aqueles “que

representam interesses e aspirações vitais que, por isto mesmo, subsistem durante longo período do tempo”. Tais objetivos dependem da formação individual e cultural da nação (fundamento humano), de peculiaridades do meio físico (fundamento terra) e da qualidade e permanência das instituições (fundamento instituições).

Em síntese, a doutrina traduz “interesses e aspirações vitais” no conceito de

bem-comum, isto é, segurança (manutenção de valores tradicionais, ordem, equilíbrio),

desenvolvimento (inovar, renovar, atualizar, aprimorar progredir) e a permanência pela cristalização dos interesses nacionais na consciência, transformando-se em aspirações (BRASIL, 1975, p. 35-42, grifos nossos).

De outra ponta, estão as instituições sociais, “um complexo integrado

de ideias, sentimentos, aspirações, padrões de comportamento, relações interpessoais” que incorporam “equipamento material, leis e regulamentos” na busca por “solidariedade, partição e coesão sociais, indispensáveis à existência e sobrevivência do grupo” (BRASIL, 1983, p.156). Sendo assim, a doutrina destaca o seguinte conjunto de instituições socialmente estruturantes:

Instituições familiares (lar) – primeira e mais importante instituição

social, com funções procriativa (biológica e perpetuação), educativa (sociabilidade), econômica (apoio), emotiva (amor, sensibilidade) e transmissora de valores morais (BRASIL, 1983);

Instituições educacionais e culturais – responsáveis pelo “acervo material

e espiritual na nação” decorrentes da necessidade humana de transmissão transgeracional de sistema de valores, significados de comunicação, recursos de pensamento, instrumentos de ação, bagagem comum de sentimentos, crenças e conhecimentos, orientação de tendências e expectativa de comportamentos (BRASIL, 1975, p. 170);

Instituições religiosas – decorrem da “imanência do ser humano em

sociedade”, capaz de inspirar os comportamentos privados e públicos e reúnem a) conceito de natureza e divino; b) doutrina com deveres e obrigação entre terra e céu; c) normas de conduta, com sistema de recompensas e punições, conformativas com essa a natureza e o divino; d) rituais; e) estilo de vida (BRASIL, 1975, p. 172-173);

Instituições de comunicação social – trata-se de um processo recíproco, em

que quem comunica busca transmitir algo com a finalidade de influenciar ou afetar outro no qual “existem e se desenvolvem as relações humanas”.

Por meio dela são levadas a cabo ações como controle, conhecimento,

informação, compreensão, persuasão, conversão e diversão (BRASIL,

1975, 180-181);

Instituições econômicas – enquanto um conjunto coerente de instituições

as quais determinam as demais, possuem “mecanismos definidores e orientadores das atividades econômicas que se traduzem em atos da vida

(12)

social, apoiados em uma hierarquia própria de valores, e que permitem configurar um estilo de vida”. Esse sistema comporta três elementos: espírito (móveis predominantes da atividade econômica), forma (regime de propriedade, estatuto do trabalho, função do Estado) e substância (técnica) (BRASIL, 1975, p.147-150).

Sejam estatais ou da sociedade, para a doutrina toda instituição traz consigo um sentido conservador, pois quanto mais sólidos forem os valores que as caracterizam, mais fortes serão as instituições. Sem que isso, em tese, signifique ser conservadora nesses valores, inadmitindo mudanças (BRASIL, 1983). Tal concepção deriva da relevância vertebral de um processo de evolução social e, consequentemente, da interdependência das instituições humanas. Nesse sentido, a doutrina sustenta que

as sociedades mudam conforme padrões evolucionistas: a) as funções mudam

mais do que as instituições; b) as instituições centrais absorvem mais funções, por isso duram mais; c) há funções que são eliminadas; d) desenvolvimento através do revezamento de funções conforme a conjuntura (BRASIL, 1983, grifos nossos).

A evolução das sociedades, enquanto marcha inevitável da história, sofre

limitações devido as contradições ou desajustamentos que obstruem “o natural desenvolvimento” das características dessas sociedades. Essa “natural evolução” pode também encontrar óbices nas virtuais tendências dessa sociedade (BRASIL, 1975, grifos nossos). Portanto, o nível de integração da sociedade será determinante para seu estágio evolutivo, conforme quatro leis evolucionistas: a) correspondência (congruência de princípios entre as instituições); b) coincidências (instituições com princípios diversos, mas que geram combinações favoráveis); c) coordenação (preponderância de uma instituição sobre a outra, que se torna a dirigente); d)

convergência (quando duas ou mais instituições se identificam e se fundem)

(BRASIL, 1975, grifos nossos).

Nesse processo de evolução social, o desejo por segurança acompanha a natureza humana, é inerente ao homem, é uma necessidade, um direito inalienável. Nesse sentido, a ideia de segurança traduz “uma noção de garantia, proteção ou tranquilidade em face de ameaças ou ações adversas à própria pessoa humana, às instituições ou a bens essenciais, existentes ou pretendidos” (BRASIL, 1983, p. 199). A segurança, portanto, se realiza no universo antagônico, mas também fora dele. É ampla, global e abrangente, envolvendo as dimensões internas e externas, assim como não se restringe ao campo militar. Pelo contrário, se estende às demais instituições do Estado e da sociedade, perfazendo uma noção de direito, mas também de dever dos indivíduos (BRASIL, 1983). Em ato contínuo, é requisito para

segurança o desenvolvimento. Assim como a primeira, não se restringe ao campo

econômico, mas é global. Se movendo da “tecnologia rotineira” para a “tecnologia progressiva”, que consiste “um conjunto de métodos de ação que se aperfeiçoa à medida que cresce o conhecimento das leis naturais” (BRASIL, 1983, p. 251-255,

(13)

grifos nossos). Por resultado, o desenvolvimento gera mudanças nas estruturas sociais das nações.

Uma questão importante é a relação de mútua causalidade entre segurança e desenvolvimento, especialmente pela doutrina Truman. Revisando o posicionamento de 1975, a doutrina relativiza essa relação apontando a existência de efeito perverso, especial em casos em que o desenvolvimento pode gerar

razões de insegurança. Da mesma forma, a segurança pode gerar entraves para o desenvolvimento (BRASIL, 1983, grifos nossos). Por essa razão, a relação de mútua causalidade deve ser substituída por uma relação de interdependência, interligadas. A preponderância de uma sobre a outra dependerá da conjuntura adversa: em caso de pressões e antagonismos, mais segurança; em caso de fatores adversos, mais desenvolvimento. Seja como for, seguindo um sentido antropocêntrico, sendo o homem “a origem e o fim” da segurança e do desenvolvimento (BRASIL, 1983, p. 212-213; 254-255, grifos nossos).

Sendo assim, a organização social é vista pela doutrina de forma orgânica, sistêmica, com um destino histórico linear no plano ideal, devendo organizar-se em torno de instituições permanentes que condicionam, por meio do processo histórico, os indivíduos e conformam uma sociedade conforme os valores naturais e sociais do ser humano. A existência do conflito decorreria da pluralidade da natureza humana e dos percalços inerentes ao processo evolutivo que tendem a gerar disputas na sociedade, quer dizer, conflitos nas relações de poder.

Categoria 3 - Poder Político: concepção, ideologia, doutrina, cultura e estratégia

A noção de poder da doutrina está diretamente ligada à intenção humana,

pois “sem vontade, não há poder”. Entretanto, não basta vontade, é preciso que ela se some à capacidade de concretizá-la. É dessa forma que “o homem age conscientemente em busca de determinados resultados”. Em termos mais precisos, “eis a gênese do poder: para satisfazer seus interesses, deve o homem agir impondo sua vontade de forma a assegurar-lhe o predomínio sobre quaisquer outras forças ou óbices que lhe oponham” (BRASIL, 1983, p. 64, grifos nossos). Sendo assim, o poder é o instrumento pelo qual se assegura a “sobrevivência, ordem, equilíbrio, coerência e desenvolvimento” e, talvez o mais importante, “é um dado de fato, um instrumento de trabalho que deve ser compreendido para ser bem utilizado” (BRASIL, 1983, p. 65).

Por sua vez, a política seria inerente ao homem que vive em sociedade e

significa “um modo de agir, uma linha de conduta em busca de determinado objetivo”. Por isso, voltada para ação, em que “as preocupações são mais de ordem conjuntural”, a política entra no “domínio da especulação, seleciona alternativas, fixa objetivos, reparte meios e condiciona seu emprego, formulando diretrizes para orientar a ação política” (BRASIL, 1983, p.87-91, grifos nossos).

(14)

O foco dado à ação política explica a alta relevância da estratégia para a

doutrina. Enquanto a política visa ao fim (ao que fazer), a estratégia está centrada no meio (como fazer). Neste ponto, uma vez definida a política, “cabe à estratégia criar a forma de impor essa vontade (política), pela escolha da linha de ação mais favorável entre as várias opções, particularmente no que se refere à repartição de recursos, à concentração de esforços, à prioridade a estabelecer, à correta aplicação dos meios” (BRASIL, 1975, p. 98, grifos nossos). A estratégia está ligada à política, pois esta também atua normalmente usando “a persuasão, a negociação, a conciliação e, se possível, o consenso” (BRASIL, 1983, p. 107). No entanto, enquanto os fins ou objetivos mudam lentamente, “a estratégia idealizada para alcançá-los varia sempre”. Eis porque a conjuntura é a principal lei da estratégia e da ação política (BRASIL, 1975, p. 98).

Nessas relações de poder interessadas, o principal papel de agência seria

exercido pelas elites políticas, cabendo-as “desenvolver a sensibilidade para

captar, estimar e interpretar os autênticos interesses e aspirações nacionais”. Conforme a “ordem naturalmente estabelecida”, em determinados momentos “as elites se apercebem da necessidade de incutir na população interesses, aspirações, valores e objetivos novos, com o fim de impregná-los favoravelmente às mudanças imprescindíveis em prol de um aperfeiçoamento material e espiritual” (BRASIL, 1983, p. 118). Seria a elite política o agente histórico-cultural mais legítimo das aspirações, interesses e objetivos nacionais. Em termos mais diretos, “embora o governo, teoricamente, deva ser um delegado da população como um todo, na realidade a opinião pública estabelece apenas uma faixa ampla na qual o governo pode atuar com seu beneplácito. Em verdade, são as elites que buscam condicionar os caminhos a seguir dentro dessa faixa” (BRASIL, 1975, p. 39-40, grifos nossos).

Para que essas elites imponham aos demais a sua “vontade natural”, isto é,

transforme seu interesse em ação política, se torne um dado de fato, é necessária

uma doutrina política (BRASIL, 1975, p. 63, grifos nossos). Dessa maneira, a

doutrina seria “um conjunto de preceitos (regras, princípios, processos e métodos) que servem de fundamento a um sistema destinado a orientar a ação” (BRASIL, 1975, p. 84). Um ponto central para o sucesso da doutrina, frisa a Escola, é que ela se desenvolve no plano real, está condicionada pelas circunstâncias, sendo a “arte do possível” e, necessariamente, nacional. O próprio dinamismo do meio social exigiria uma definição de objetivos, de planejamento flexível e de relativo emprego do poder, com previsões e ações (BRASIL, 1975, p. 81-82).

Se a doutrina cuida da forma da ação, será a ideologia política que se

aterá ao seu conteúdo, buscando unir ideias e ação pelas formas manipulativa/ instrumental (mobilizar as energias dos homens) e/ou expressiva (influenciar comportamentos de acordo com objetivos e aspirações). Nesse sentido, a ideologia seria “um sistema de ideias, que consubstancia um programa de pensamento

(15)

e de ação, com a finalidade de impor normas políticas de caráter conservador ou revolucionário, lastreadas em valores sociais ou políticos ou concepções

religiosas”. Neste caso, assume importância a “ideologia dominante”, ou seja,

aquela que se assenta na “tradição histórico-cultural” de determinada sociedade. Esta “cultura comum” seria universal, “supraclasse”, sem eliminar aquelas divergentes que também buscam se impor como regime político. A necessidade de se incorporar o fenômeno ideológico na concepção de política como ação se deu devido ao papel transformador atribuído ao conhecimento pelo marxismo, pois “o conhecimento não seria neutro e sim marcado pelo interesse de classe” (BRASIL, 1983, p. 30; p.118, grifos nossos).

Essa noção de ideologia dominante decorre da relevância estrutural que a

doutrina confere aos elementos históricos e sociais. Nesse passo, a cultura política

tem um lugar central, sendo a tradução do “modo pelo qual o povo reage diante do fato político e se exprime através de canais de participação política, e pelo qual conhece, avalia e opta em face de alternativas, e dá, quando possível, soluções a problemas comuns e estabelece critérios para a escolha de dirigentes”. E, conforme a doutrina, “a manifestação essencial da cultura política é a ordem”, quer dizer, o respeito e à obediência aos costumes e aos valores “naturalmente” estabelecidos

que constituem a ordem vigente. Haveria uma tensão natural entre a “ordem do

ser”, correspondente ao comportamento prático, e a “ordem do dever ser” ligada ao comportamento ideal, gerando “inconformismo entre as duas ordens”. É por isso que “uma sociedade será tanto mais estável quanto maior for a adequação desses dois aspectos da ordem”. (BRASIL, 1983, p.117-118, grifos nossos).

Conforme a metodologia proposta, essas três categorias – natureza humana, organização social, poder político – exprimem o núcleo duro do pensamento político dos militares brasileiros, a partir da doutrina da ESG. É partindo dessas premissas sobre o ser humano e as instituições que são formulados o núcleo político desse pensamento: uma ideologia nacional para o Brasil.

3.2. Núcleo político: Estado e Sociedade

O objetivo das categorias do núcleo político é condensar o núcleo de crenças em políticas voltadas para ação, ou seja, é o encontro dos fins com os meios de forma substancial. As concepções ontológicas sobre a natureza humana, as organizações sociais e as relações de poder ganham contornos mais concretos nos fundamentos da organização humana para a doutrina: homem, terra e instituições.

Nesse sentido, as instituições de Estado e da sociedade se destacam por seu papel instrumental na consecução de uma ideologia nacional da doutrina. Da mesma forma, a dinâmica entre o ideal de liberdade e os conflitos políticos estão configurados conforme o pressuposto do antagonismo político e dos postulados de segurança e desenvolvimento. Passemos a conferir como se caracterizam.

(16)

Categoria 4 - Ideologia Nacional: caráter, objetivos e política nacional. Segurança e desenvolvimento. Poderes nacionais

Conforme a própria definição de ideologia da doutrina, é possível identificar um conjunto de ideias destinadas à ação política, que cuidam tanto dos fins quanto dos meios, conformada para o Brasil. Nela a história nacional e internacional é interpretada com as lentes ideológicas do núcleo duro, objetivos, políticas e estratégias são definidas. Também são delimitados os campos de atuação e a caracterização do poder nacional.

Nesse passo, a identidade nacional é marcada historicamente pela “frouxidão

dos laços sociais” que se opuseram ao modelo anglo-saxão desde a invasão colonial, destacando que “entre os latinos as explosões de entusiasmo propiciam solidariedade voluntária, cooperação espontânea e livre, mas prontamente abandonadas” (BRASIL, 1975, p. 39-47). A esse quadro histórico-cultural, se anexariam elementos da vida contemporânea que vêm trazendo características novas como a solidariedade, tolerância e fraternidade. Esse complexo, para a doutrina, reúne os seguintes atributos (BRASIL, 1975, grifos nossos):

Individualismo – decorrente da diversidade de tipos étnicos, do tipo de

colonização e da herança patriarcal, sendo o patriarca “o primeiro dirigente e o poder privado, o primeiro poder efetivo” (BRASIL, 1975, p. 44);

Adaptabilidade – facilidade em assimilar outras culturas, especialmente

pela “interação” cultural “facilitada pelo fato de virem os colonizadores desacompanhados de suas mulheres, pela relativa passividade do negro e por ultrapassar a concepção tribal o espírito de unidade do índio” (BRASIL, 1975, p. 45);

Improvisação – capacidade de imediatismo e aversão a elaborações

lentas;

Pacifismo – tendência histórica pela conciliação e pelo compromisso ante

a momentos antagônicos;

Cordialidade – facilidade em perdoar e esquecer, indulgente com a

repressão e eliminação de distinções de classe e raça;

Emotividade – sensível, generoso, capaz de emoções repentinas e

contagiantes.

Ao interpretar a história política do país, a doutrina aponta a elite política brasileira como a grande protagonista, pois “os grandes momentos da história do país” foram engendrados pelas elites, em movimentos de cúpula, sem engajamento popular: abolicionismo, independência e república. Curiosamente, a doutrina argumenta que em todos esses processos, não teriam existido “opressão, violência e exploração indiscriminada” como em outros povos (ex colonização espanhola). No interior dessa elite, os grupos políticos, religiosos, culturais e militares teriam

(17)

sido responsáveis pelas maiores mudanças estruturais e ideológicas da história nacional. Inclusive, em certos momentos, contrariando a opinião pública (embora as comunicações e a participação política venham aumentando em influência). De fato, segundo a doutrina, são as elites políticas que possuem “uma visão mais elaborada dos autênticos interesses nacionais” (BRASIL, 1983, p. 118-119).

A partir dessa leitura histórica cultural, os objetivos nacionais permanentes

da nação brasileira são definidos sob clara influência do pensamento dos autores

Alberto Torres, Oliveira Vianna, Paulo Prado e Fernando Azevedo (BRASIL, 1983, grifos nossos).

Democracia - esta seria uma “vocação histórica” pelo “espírito democrático”

demonstrada desde a independência do Brasil, seguida pela monarquia constitucional “sem derramamento de sangue” e consagrada pelo período republicano, somente ameaçado pelo “totalitarismo alienígena” em 1964 enfrentado “pelo Brasil inteiro em nome da fé democrática”. Em todos esses períodos, a bússola foi sempre a preservação ou a “salvação das liberdades”, coerente com a realidade brasileira (BRASIL, 1983, p. 53-54);

Integridade do patrimônio nacional – além de preservar território,

mantendo suas atuais fronteiras, assim como os recursos naturais, a versão de 1983 inclui o espaço cultural como patrimônio nacional, preocupado também com a “invasão indireta”;

Integração nacional - preservar a tradição da cultura cristã e da

comunidade nacional (língua, ascensão moral, miscigenação, supressão de desníveis sociais e regionais) com solidariedade interna;

Progresso – em todos os níveis, os melhores padrões do mundo;

Paz social - harmonia, a solidariedade e solução dos conflitos pelo direito,

justiça social e valores morais e espirituais;

Soberania - autodeterminação e convivência com igualdade de direitos e

oportunidades com outras nações.

A curto e médio prazo, estariam os objetivos nacionais atuais (ONA),

suscetíveis a conjuntura do momento, que “expressam etapas intermediárias com vistas a alcançar ou manter os Objetivos Nacionais Permanentes” (BRASIL, 1975, p. 37). Da leitura desses objetivos, percebe-se uma verdadeira carta de princípios políticos, uma espécie de “constituição nacional” do ponto de vista militar (BRASIL, 1983, p. 43-44, grifos nossos). Não por acaso, diversos desses princípios constam expressamente na Constituição de 1988. E, na doutrina, esses objetivos têm um papel semelhante à constituição em um regime político: orientar a ação política no governo da nação.

É o que definem de Política Nacional, que programa um conjunto

“axiologicamente orientado” do poder nacional em busca dos objetivos nacionais permanentes. A variação mais importante desse conceito guarda-chuva é a

(18)

política governamental, orientada pelos objetivos nacionais atuais, condicionada

a conjuntura do momento e atendendo a carências no geral ou a carências de poder em específico. As demais ramificações da política nacional transcendem as questões de governo, mais conjunturais, e prescrevem conceituações circulares.

Nesse sentido, a política nacional de desenvolvimento seria “a arte de orientar

o poder nacional no sentido de seu fortalecimento global, visando à conquista e

manutenção dos Objetivos Nacionais”; a política nacional de segurança seria “a

arte de orientar o poder nacional, visando garantir a conquista ou manutenção dos

Objetivos Nacionais”, sempre nas dimensões interna e externa (BRASIL, 1983, p.

93-97, grifos nossos).

É de se notar que a “descoberta” da substância desses objetivos está condicionada aos pressupostos ideológicos da doutrina, que delimitam a margem de subjetividades de interpretação sobre as “aspirações” e os “interesses nacionais”. Nesse ponto, chama atenção a ressalva que “este tipo de definição não surge, necessariamente, pela voz de seus eventuais governantes, podendo mesmo, em alguns casos, contrariar posições dos detentores do poder” (BRASIL, 1983, p.93).

Assim, a Política Nacional seria, em síntese, segurança e desenvolvimento, na

busca dos objetivos nacionais permanentes. (grifos nossos).

Esses conceitos são fundamentais, pois representam as duas vigas substantivas de toda a doutrina e irão balizar o conceito das expressões, fundamentos, fatores,

componentes, órgãos e avaliações do chamado poder nacional. A política nacional e

os objetivos nacionais permanentes são diretamente condicionados e dependentes dos meios para se concretizarem, que variam conforme a conjuntura política do momento histórico. Para a doutrina é o poder nacional que cria o Estado, pois “lhe plasma a estrutura, cria o Direito, estabelece a separação entre público e privado, confere personalidade, estabelece competências e, destarte, define seu bojo, o conteúdo e os limites do Poder Estatal” (BRASIL, 1983, p. 65-70, grifos nossos) Portanto, cuida-se da base real de poder de uma nação.

Sendo assim, o Estado é o principal poder nacional, pois concentra os meios coercitivos para se impor a ordem instituída. Entretanto, não é o único poder da nação. Outros campos da sociedade exercem poder, conforme suas capacidades, recursos e interesses. Por isso, a teoria de poder da doutrina estrutura o poder

nacional em expressões, conforme sua capacidade de produzir determinados efeitos:

política, econômica, psicossocial e militar. Basicamente, a doutrina considera

quatro elementos que compõem cada expressão conforme suas peculiaridades:

fundamentos (homem, terra e instituições); fatores (dinâmicos, determinados

pela conjuntura que influenciam os fundamentos); componentes (os elementos

estruturais da nação capazes de expressão de poder); e órgãos e funções (instituições que desenvolvem atividades para determinados fins) (BRASIL, 1983, p. 70-74). No quadro 2, é apresentado um esquema de como esses elementos se configuram em cada expressão do poder nacional (BRASIL, 1983, p. 115-195, grifos nossos):

(19)

Quadro 2 - Expressões do poder nacional Variáveis/

poderes

nacionais Expressão Política Expressão Psicossocial Expressão Econômico Expressão Militar Fundamentos PovoTerritório

Instituições políticas

População Meio ambiente Instituições sociais

Recursos humanos Recursos naturais Instituições econômicas

Recursos humanos, Território Instituições militares

Fatores

Cultura política Atuação das elites Meios de comunicação Ideologia política Situação geopolítica Ordenamento jurídico Regime político Educação e cultura Saúde e saneamento Trabalho e previdência social Religião e ética Ideologia Habitação Integração social Comunicação social Caráter Nacional Urbanização Ecologia Capacidade de acumulação e absorção de capital Força de trabalho Ciência e tecnologia Capacidade empresarial Modelo econômico Doutrina militar Estrutura militar Alto comando Integração das forças Instrução, adestramento, aprestamento Moral militar Inovação técnica Mobilização Serviço militar Não específicos Componentes Legislativo Judiciário Executivo Partidos

moral nacional, comunicação social, opinião pública

setor primários setor secundário setor terciário infraestrutura naval terrestre aeroespacial Órgãos/funções Legislativo Judiciário Executivo Partidos Polícia Formular e implementar a “política nacional” Família Imprensa Escola Sindicato Igreja Empresa Setor público Administrativa, normativa, excepcionalmente produtiva -Setor privado/empresa produtiva e distribuitiva

Presidente – comandante supremo Estado-Maior FA - assessoramento Alto Comando das FA - assessoramento

Ministério da Marinha - direção, comando e administração Ministério da Aeronáutica - direção, comando e administração Ministério do Exército - direção, comando e administração Possibilidades - - - -Vulnerabilidades - - - - Juízo de valor sobre suas capacidades - - - - indicadores: potencial, conjuntural, tendencial e segurança; Sensibilidade política (maturidade política) Inconformismo (oposição e contestação) Coesão e Harmonia no ambiente social Harmonia no relacionamento entre componentes da expressão política Harmonia no relacionamento entre diferentes unidades territoriais Eficiência e eficácia dos órgãos de expressão política do Poder Nacional Influência ideológica Estabilidade política Opinião pública Mobilidade social Grau de participação Índices demográficos Índice de escolaridade Índices sanitários Influência ideológica Organização social Ajustamento das instituições sociais Situação do trabalho Ajustamento do homem ao meio Recursos humanos Recursos naturais Contas nacionais Valor da produção federativa Renda “per capita” Produtividade da força de trabalho Distribuição da renda Crescimento demográfico Crescimento da produção Crescimento da oferta e demanda por empregos Investimento Crescimento de energia Estabilidade da moeda Níveis de emprego Capacidade de endividamento externo

Grau de suficiência de recursos estratégicos

Efetivo

Percentagem da população e prazos para mobilização de pessoal

Duração do serviço militar Tipo de recrutamento Material bélico e equipamento adequados

Estrutura militar adequada Moral militar

Grau de instrução, adestramento e aprestamento

Capacidade do alto comando Doutrina efetiva e adequada Grau de integração entre as forças e apoio da opinião pública Ssituação geoestratégica Capacidade de mobilização Recursos econômicos Desenvolvimento tecnológico Preparação e aplicação do PN: atual, potencial e futuro; - - - - Fonte: AUTOR, 2018.

(20)

Para toda a doutrina, é de suma relevância a leitura de conjuntura para a compreensão real do poder nacional. Isso condicionará toda a ação política, por

isso seu papel instrumental vital. Nesse sentido, a avaliação do poder nacional deve

caracterizar os antagonismos (voluntários) e as pressões (dotadas de poder) em três

aspectos: possibilidades, vulnerabilidades e juízo de valor sobre suas capacidades. Daí

a imprescindibilidade das informações estratégicas que compõem um levantamento

estratégico: organização de dados e informações, devidamente atualizadas de forma

periódica e arquivadas. É com isso que será possível formular indicadores do poder

nacional: elementos que permitem estimar (qualitativos) e/ou medir (quantitativos)

o valor do poder nacional, quanto às variáveis potencial, conjuntural, tendencial e segurança (BRASIL, 1983, p. 77-79, grifos nossos).

Uma vez conhecido, mensurado e estimado, o poder nacional seria preparado e aplicado. Segundo a doutrina, buscando ser o mais realista possível, nem superestimado e tampouco subestimado, o objetivo aqui é verificar o estado do

poder nacional. Nesse sentido, consistem no Poder Nacional atual (considerado de

aplicação imediata ou de curto prazo), no Poder Nacional Futuro (soma do poder

atual com o poder que pode ser transformado no prazo considerado) e, por fim, no

Potencial Nacional (planejamento estratégico) (BRASIL, 1983, p.79-81, grifos nossos).

Conforme a doutrina, o poder nacional “possui um sentido harmônico de ação conjunto”. Por isso, o desenham como instrumental (pois o poder “não é um fim em si mesmo”), integrado (todas as expressões se condicionam, se interligam e se complementam), relativo (subjetivo, impreciso e suscetível a conjunturas de curto, médio e longo prazo). Apesar de cada poder possuir seu âmbito de atuação, conforme os efeitos desejados para conquista e manutenção do núcleo normativo, a harmonia desejada entre as expressões pode, por questões conjunturais, ser relativizada, podendo uma expressão prevalecer sobre a outra de forma temporária (BRASIL, 1975, p. 69-75, grifos nossos).

Categoria 5 - Regime Político. Democracia e autocracia. Estado de direito e estado democrático. Sistema político, partidário, eleitoral. Opinião pública e imprensa

Passemos para um conjunto de distinções ideológicas transformadas em

normas nas relações de poder na sociedade. Nesse sentido, o regime político seria

“um conjunto de regras e princípios de natureza histórico-cultural que presidem ao exercício do poder” (BRASIL, 1975, p. 125). O conteúdo do regime será determinado pela doutrina que o fundamenta. É nesse passo que a Escola adota o modelo de doutrinas ideológicas antagônicas, optando pela dicotomia conhecida entre democracia e autoritarismo. (BRASIL, 1975, grifos nossos).

De um lado, a autocracia seria o regime em que “a vontade de um é a lei”,

ainda que existam instituições que resguardem o poder de fato para o autocrata, à exemplo de César em Roma. Pontue-se que o termo é tratado como sinônimo de

(21)

Como já assinalado, o marxismo-leninismo seria a solução autoritária do

tempo histórico em questão, segundo suas noções de materialismo histórico, conflito de forças econômicas, meios de produção e capital, Estado e poder político como instrumento de dominação e opressão, conflito de classes antagônicas e a visão negativa sobre a propriedade e a religião. Em termos conceitos, o marxismo-leninismo seria uma ideologia que se caracteriza por ter “uma cosmovisão, que pretende ser a solução para todos os problemas socioeconômicos e políticos, e que procura impor-se como um programa mundial de ação revolucionária, de engajamento e de luta” (BRASIL, 1975, p. 353-360, grifos nossos). As outras versões autocráticas seriam o fascismo (personalista) e o nazismo (personalista, supremacista racial, revanchista histórico, antissemita).

Na outra ponta dicotômica, estaria a democracia. Originária dos modelos

ateniense, inglês (parlamentarista) e estadunidense (presidencialista), a democracia se caracterizaria pelos seguintes fundamentos (BRASIL, 1979, grifos nossos):

Representação política e opinião pública – é o que confere legitimidade

ao poder, que exige “consenso popular”. Todo poder emana do povo, que delega aos governantes. A democracia direta é uma ”impossibilidade óbvia” (BRASIL, 1979, p. 361);

Sistema eleitoral partidário - pluralidade partidária, com lealdade “ao princípio democrático”. Sistema eleitoral pode variar – eleições diretas ou

indiretas, sufrágio universal ou limitado, obrigatório ou facultativo. O que não se admite é o partido único;

Estado de direito – a nação juridicamente organizada. Garantias

jurídico-legais a pessoa humana contra abusos do Poder do Estado. Controle, limitação e fiscalização da administração pública;

Liberalismo político – separação dos poderes oficiais, sistema de freios

e contrapesos (executivo proeminente, judiciário imparcial, legislativo dinâmico), sistema de direitos e garantias da pessoa humana, direitos fundamentais do Homem;

Liberdade – o “ângulo máximo de iniciativa” (BRASIL, 1979, p. 362);

Igualdade de oportunidades – a “supressão definitiva de qualquer

privilégio de nascimento, religião ou sexo, ou seja, a garantia pelo Estado das mesmas oportunidades de ascensão social”. (BRASIL, 1979, p. 363).

Direitos e deveres – a liberdade deve ser exercida “de acordo com o

interesse social”, tanto para indivíduos como para grupos e instituições nacionais; especialmente os meios de comunicação, de uso voluntário em favor “dos valores fundamentais do grupo social, e não para assegurar, apenas, a percepção de vantagens pessoais”;

Governo da maioria – seria a expressão da pluralidade partidária e garantia

da oposição política com respeito às minorias, desde de que observados os “valores democráticos”, sendo vedada a defesa de um “igualitarismo compulsório”, que “suprima o direito à livre iniciativa” (BRASIL, 1979, p. 364, grifos nossos).

(22)

Apesar de conceituar a democracia da forma acima, a doutrina faz a opção por

uma variação específica que chama de democracia social. Cuida-se de uma junção da

democracia liberal com a democracia social: dignidade da pessoa humana com justiça

social. Há destaque para o enfrentamento da pobreza, o analfabetismo, o egoísmo e o

preconceito. Nessa democracia social, o Estado Democrático deixaria de ser expectador

da livre iniciativa e passa a ter “maior participação no processo econômico-social, a fim de regular, com a força jurídico-legal de sua autoridade, as relações entre os indivíduos e os grupos sociais, com a finalidade de propiciar maior bem-estar social, visando promover a justiça social” (BRASIL, 1975, p. 368, grifos nossos).

O modelo dicotômico traduz-se também nas instituições sociais, especialmente na família, na escola e na religião. No quadro 03, apresenta-se um quadro comparativo de atributos democráticos/autoritários em cada um desses campos sociais (BRASIL, 1975).

Quadro 3 - dicotomias sociais

Democrática (liberal) Autocrática (comunista)

Familia

direitos iguais entre os cônjuges Educação e afeto estatizadas evolução da mulher no campo das atividades

profissionais permanência da desigualdade entre os cônjuges evolução da divisão equitativa dos afazares

domésticos ausência de plena igualdade entre homens e mulheres relações afetivas impregnadas de afetividade

Escola

autorrealização dominada pela ideologia “bom cidadão” (obediência às leis, princípios

democráticos - história, civismo, literatura,

organização estudantil) destinada aos objetivos do partido dominante trabalhador produtivo cristalizar os valores culturais comunistas “bom membro” da família e comunitário perpetuação do poder do Estado Igreja separação do Estado função reacionária

pluralismo religioso propaganda antireligião e/ou aproximaçãõ doutrinária com o marxismo-leninismo

centro de atividades “profanas”

programa antireligioso (obstáculos legais e administrativos, nacionalização de escolas confeccionais, supressão da imprensa religiosa, dissolução de organizações seculares, extinção do ensino religioso, apoderamento da administração de igrejas)

função educadora

repressão à religiosos (prisões, julgamentos espetaculares, condenações, infiltrações de grupos dissidentes, agressividade à autoridades eclesiásticas)

(23)

Neste ponto, há uma mudança de ênfase da doutrina. No manual de 1975, o capítulo denominado “realidades contemporâneas” dedicou-se inteiramente a fazer distinções dicotômicas entre democracia e autocracia, assim como seus

desdobramentos nos sistemas político, econômico e social. (grifos nossos). Em

1983, como um sintoma do refluxo da guerra fria e da bipolarização mundial, tais distinções são diluídas ao longo da doutrina e a associação do “marxismo-leninismo-maoísta” e do comunismo aà regimes “autocráticos/totalitários” é muito mais moderada. Porém, perene. Vejamos como se caracteriza no campo econômico.

Categoria 6 - Economia Política: Teoria econômica. Sistemas econômicos: propriedade privada e papel do Estado. Desenvolvimento econômico.

Embora reconheça uma relação de certa autonomia, a doutrina é clara em realçar os efeitos do regime político no sistema social, visto que o mesmo seria parte de um sistema, mais amplo. Assim, o sistema econômico organiza-se conforme dois regimes: de bens (relação dos homens com as coisas) e de pessoas (relação dos homens entre si). A forma como essas relações são ordenadas (regime político) definem qual o tipo do sistema econômico. É aí que, seguindo a regra dicotômica, assentam dois sistemas: capitalismo e socialismo marxista-leninista (BRASIL, 1975).

Quanto ao capitalismo, é definido como uma das formas de administração do

capital (conjunto de bens capaz de produzir outros bens), regida pela propriedade privada que objetiva o lucro para quem o possui. Embora se possa vê-lo apenas na dimensão econômica, “seria irrealista pensar que ele pudesse ser substituído por outros sistemas econômicos, mantendo-se inalteradas as instituições não-econômicas da sociedade” (BRASIL, 1975, p. 376-378, grifos nossos). Por isso, o “capitalismo liberal” comunica-se muito com as demais instituições da sociedade e possui os seguintes os

fundamentos: comportamento racional (homem econômico que busca maximizar

ganhos e minimizar os custos), propriedade privada (decisão econômica é da empresa

e do indivíduo, sendo o capital acumulável), herança (continuidade da propriedade

privada e a não estatização do capital), liberdade de iniciativa (extensão da propriedade

privada e condição de “eficiência” frente aos “fatores produtivos”), concorrência

(condição de “eficiência” e limitadora de monopólios). (BRASIL, 1975, grifos nossos).

No lado oposto, estaria o sistema econômico do socialismo marxista,

baseado em três grandes fundamentos: teoria econômica de Marx (valor de

uso, valor de troca, salário, mais-valia), luta de classes (processo de autofagia

capitalista) e período de transição (eliminação da propriedade privada e monopólio

empresário do Estado). É frisado que este seria um período transitório, de

ditadura do proletariado, e assim como no capitalismo, exige comunicação com

as instituições não econômicas e desaguaria historicamente no fim do estado num regime comunista (BRASIL, 1975, grifos nossos).

A doutrina faz a opção por um sistema econômico que chama de

Referências

Documentos relacionados

José Odival Figueiredo Malheiros Oficiais Substitutos Romeu Alves da Silva. José Henrique de Oliveira

4.2.3.1.1 A mensagem RQP deverá ser transmitida quando o órgão ATS desejar obter dados do PLN de uma aeronave da qual não tenha recebido os dados básicos do PLN. 4.2.3.1.2 A RQP

Observa-se uma ocorrência estranha de uma UnplannedMove no início da trajetória (linha amarela no canto superior esquerdo). Verificamos que esta ocorrência ocorre em virtualmente

2.2.6.2.2Devem ser utilizados os Níveis de Cruzeiro (nível ou altitude do voo) da Tabela de Níveis de Cruzeiro constante da ICA 100-12, respeitando-se o rumo magnético da rota a ser

2.2.6.2.2 Devem ser utilizados os Níveis de Cruzeiro (nível ou altitude do voo) da Tabela de Níveis de Cruzeiro constante da ICA 100-12, respeitando-se o rumo magnético da rota a ser

75 Jorge Miguel Mendes Pinheiro 76 José Alberto Santos Roxo Martins 77 José António Martins de Oliveira 78 José Carlos Alves Teixeira de Freitas 79 José Carlos Bernardo Cardoso 80

Com o término do vídeo fiz alguns questionamentos, que serviram como ponto de partida para o desenvolvimento da aula, onde foi realizado um momento de

e cuidados paliativos pelo Medical Subject Headings (Mesh), com os termos: wounds and injuries, palliative care; bem como com as palavras-chave: feridas neoplásicas, feridas