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2. Um conceito de mil faces

2.2. A constituição colonial do direito de propriedade e a violência no campo

2.2.4. Constituição negativa e positiva dos sujeitos

As proposições de Fanon sobre identidade, reconhecimento e subjetividade partem de uma matriz hegeliana para pensar a racialização e inferiorização das populações negras no mundo francófono. A concepção dialética da construção da subjetividade assume o sujeito como um devir dinâmico de autodesenvolvimento, um projeto que se desdobra infinitamente em direção ao Absoluto. Essa tese implica na rejeição da ideia de que haja uma essência imóvel do eu, fechada e completa (MORAIS, 2012). Por consequência, a redução da existência do sujeito à sua vida natural, à unidade biológica, é a negação do status de sujeito.

A influência vitalista de raiz nitzscheana sobre o pensamento de Fanon14 o leva

a identificar na gênese do processo de formação da subjetividade a luta do ser humano contra o desejo objetificante do Outro. Dessa forma a constituição do sujeito depende de uma dimensão positiva que é o reconhecimento de sua condição de humanidade, que não pode ser um movimento unilateral, sendo sempre uma interpelação (FANON, 2008). Ou seja, a construção da subjetividade não é um processo externo de emancipação, mas um movimento interno de autodesenvolvimento impulsionado pelo ato de lutar pelo reconhecimento alheio. Sobre o papel da luta no processo de

autodesenvolvimento da subjetividade, Fanon afirma:

Assim a realidade humana em-si-para-si só consegue se realizar na luta e pelo risco que envolve. Este risco significa que ultrapasso a vida em direção a um bem supremo que é a transformação da certeza subjetiva, que tenho do meu próprio valor, em verdade objetiva universalmente válida (FANON, 2008).

Uma das consequências desse raciocínio pode ser supor que os escravos precisam se sublevar a fim de reclamar sua humanidade lutando pelo reconhecimento. Fanon inclusive chega a lamentar a situação dos negros no mundo francófono, pois sugere que, libertados por seus senhores sem luta, eles nunca foram capazes de enfrentar a subjetividade imposta a eles no sistema escravocrata e, nesse sentido, eles ainda seriam escravos que por vezes agem como mestres. Paralelamente, os brancos são mestres que toleram a presença dos escravos. Enquanto afirma a passividade dos negros das colônias francesas, libertos em nome de valores que não foram construídos por seu próprio protagonismo, o martinicano celebra o que acredita ser uma esperança vinda dos enfrentamentos promovidos pelo povo negro nos Estados Unidos da América (FANON, 2008).

O estranho lamento de Fanon em Peles Negras, Máscaras Brancas parece evocar um traço importante da historiografia tradicional que é o apagamento dos movimentos de resistência contra-hegemônicos. A afirmação da indolência dos povos negros sobre domínio francês e sua incorporação passiva de valores europeus ignora, por exemplo, a revolução dos escravos haitianos contra seus senhores15. Foi o primeiro

e maior movimento revolucionário popular e negro nas Américas, influenciando todas as outras colônias e denunciando pela primeira vez a pretensa universalidade dos valores iluministas europeus. A importância da retomada histórica e da rememoração dos vencidos é um ponto importante no pensamento de Walter Benjamin, ao qual voltarei em breve.

15 Destacando a importância da revolução empreendida pela população negra do Haiti, Duarte sugere que

“Foi a Revolução de 1791, na parte francesa da ilha de São Domingos, no curso dos acontecimentos da Revolução Francesa que deu novo sentido a idéia de uma história universal, pois colocou em cheque a estrutura do pacto colonial e a identidade entre princípios e realidade. O Haiti não foi, como se verá, a única revolta de escravos, mas deu densidade política ao medo contido na relação de violência entre senhores e escravos e, mais precisamente, aos escravos modernos identificados como a diferença coletiva irredutível, a origem negra e indígena. Mais ainda, questionou o silêncio iluminista sobre a escravidão real, o escravismo nas Américas e na África, e fez do uso da liberdade contra essa opressão o nascimento da igualdade racial.” (DUARTE, 2011)

Em suma, Fanon afirma que o ser humano se constitui a partir de uma dimensão positiva de afirmação da vida para si mesmo. Somos um “Sim à vida. Sim ao amor. Sim à generosidade” (FANON, 2008). Mas há também uma dimensão inescapável de negatividade. A completude da formação humana passa pela exigência de ser reconhecido por mais que sua existência natural, por meio da rejeição do olhar objetificante do Outro. A recusa a ver-se reduzido à condição de vida nua é o motor da insurgência contra o domínio e a opressão (FANON, 1968). Isso não significa que a condição humana só se realize para aqueles que rejeitem com tal vigor a imposição do lugar de escravo que prefiram a morte a uma vida sem liberdade. Essa fórmula é rejeitada explicitamente por Fanon, que em uma nota nos lembra que o suicídio é um problema também entre as populações negras, especialmente para as mulheres16.

Tenhamos em mente que a preocupação de Fanon ao tratar da questão da subjetividade no Peles Negras, Máscaras Brancas, era investigar as origens sociais das patologias da psique negra. Ao referir-se à necessidade da prova de si perante o outro, não pretende implicar na desumanização daquele que não põe a própria vida em risco pela liberdade. Ao contrário, ele aponta os efeitos deletérios de um reconhecimento incompleto sobre a subjetividade:

O homem só é humano na medida em que ele quer se impor a um outro homem, a fim de ser reconhecido. Enquanto ele não é efetivamente reconhecido pelo outro, é este outro que permanece o tema de sua ação. É deste outro, do reconhecimento por este outro que dependem seu valor e sua realidade humana. É neste outro que se condensa o sentido de sua vida.

O lamento pela passividade do negro francês no processo de libertação não mira a indolência individual em relação ao racismo. Contrariamente, aponta a

16 “Quando começamos este trabalho queríamos dedicar um estudo ao ser do preto para-a- morte. Nós o

julgávamos necessário, pois afirma-se incessantemente que o negro não se suicida. Em uma conferência, Achille não hesitou em afirmá-lo, e Richard Wright, em uma das suas novelas, faz um branco dizer: “Se eu fosse preto, me suicidaria”, assim entendendo que somente um preto poderia tolerar tal tratamento sem sentir o clamor do suicídio. Depois, Deshaies consagrou sua tese ao problema do suicídio. Ele mostrou que os trabalhos de Jaensch, que opõem o tipo desintegrado (olhos azuis, pele branca) ao tipo integrado (pele e olhos castanhos), são pelo menos tendenciosos.

Para Durkheim os judeus não se suicidavam. Hoje são os pretos. Ora, ‘o hospital de Detroit recebeu, entre os suicidas, 16,6 % de pretos, enquanto que a proporção deles na população é apenas de 7,6 %. Em Cincinnati, os pretos suicidam-se duas vezes mais do que os brancos, acréscimo devido à espantosa proporção de pretas: 358 contra 76 pretos’ (Gabriel Deshaies, Psychologie du suicide, nº 23).” (FANON, 2008)

persistência de um incômodo incerto que se manifesta no desejo de afirmar-se violentamente como ser humano. Libertado e integrado à sociedade por um movimento que, aos olhos de Fanon, foi unilateral, o negro francês tem a certeza subjetiva do próprio valor mantida em um estado constante de suspensão (FANON, 2008). Seu desejo de enfrentamento é sempre reprimido pela condescendência e hipocrisia de uma sociedade que se apresenta como benfeitora e, assim, retira suas armas. Impossibilitado de sentir-se plenamente reconhecido, ao negro não resta outra saída além de ficar preso na comparação entre ele mesmo e o branco, pois a interpelação capaz de permitir que afirme definitivamente seu caráter como sujeito é condenada pela sociedade como raiva cega, enquanto sob um manto de paz social e tolerância são mantidas as hierarquias violentas da sociedade pós-colonial.