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2. Um conceito de mil faces

2.2. A constituição colonial do direito de propriedade e a violência no campo

2.2.2. A violência do colonizador e a violência do colonizado

Frantz Fanon pertence a uma geração de estudiosos pós-coloniais anterior às cisões que definiram campos distintos como os Estudos Subalternos na Índia e a Teoria Decolonial na América Latina. Sua trajetória passa pela formação no socialismo francês e pela proximidade com o movimento de valorização da cultura negra e crítica do racismo europeu encabeçado pelo poeta Aimé Cesaire. Seu pensamento sofreu forte influência da tradição hegeliana com a qual teve contato durante sua educação formal. No entanto a originalidade de suas reflexões se deve ao caráter indissociável entre teoria e prática na sua trajetória profissional e política, como psiquiatra e militante. Como síntese de toda sua experiência, Fanon oferece uma grande contribuição à reflexão sobre os conflitos que opõe colonizadores e colonizados. Assim, sua trajetória nos auxilia a compreender o peso de suas análises.

Vindo de uma família martinicana de condições econômicas confortáveis, Fanon foi educado seguindo os padrões franceses. Seus pais buscavam cultivar hábitos europeus e até a idade madura ele se identificava como um cidadão francês, mais próximo dos brancos europeus, em função de sua civilidade, do que dos negros de origem africana (MEMMI, 2011). Essa identificação com o colonizador só foi posta em cheque durante o período de administração militar da Martinica, por ocasião da 2ª Guerra Mundial e mais tarde, de forma mais intensa, quando Fanon partiu para a França para estudar medicina (BULHAN, 1985).

Como estudante no ambiente politicamente agitado de Lyon, Fanon teve contato com o pensamento da esquerda francesa, mantendo contato próximo com Jean- Paul Sartre e Simone Beauvoir, além de outros. Nesse período Fanon também foi confrontado de forma dura com a realidade do racismo na França. Aos olhos dos habitantes da metrópole, as hierarquias que distinguiam mestiços, árabes, antilhanos e senegaleses tinham pouca importância; todos eram iguais na sua inferioridade frente ao

europeu branco. A descoberta do racismo aproximou Fanon do movimento de negritude, que principalmente por meio da produção artística buscava a valorização da cultura negra (BULHAN, 1985).

Apesar da admiração que nutria por Cesaire, a participação ativa de Fanon no movimento de negritude foi breve. Para ele havia uma incômoda essencialização na tentativa de afirmar a negritude como um valor. Do seu ponto de vista, afirmar a superioridade negra teria poucos efeitos concretos na realidade social e implicaria em manter operativas as cisões promovidas pelo racismo. Fanon era um estudante de medicina e sua principal preocupação era tratar o que considerava ser uma condição patológica. Ele propunha que além de fatores genéticos e ambientais, as determinações sociais também estavam na origem de diversas patologias que atingiam os negros. Por isso o racismo seria a causa de uma sociedade doentia, que precisava de um tratamento na sua integralidade (BULHAN, 1985).

Partindo dessa premissa, depois de formado Fanon direcionou seu trabalho como psiquiatra ao cuidado das sociopatologias decorrente da afirmação social da superioridade da civilização branca europeia sobre todas as outras. Logo no início de sua carreira foi apontado como diretor do Hospital Psiquiátrico de Blida-Joinville, na Argélia. Lá seu pensamento sobre a violência adquiriu os contornos do que seria sua maior obra, o livro “Os Condenados da Terra”, graças à experiência com a luta armada do povo argelino. A guerra de independência foi um conflito sangrento, no qual morreram mais de um milhão de argelinos e aproximadamente 20 mil europeus. Em seu trabalho clínico durante o conflito, Fanon teve contato com os efeitos devastadores da tortura física sobre a mente de combatentes argelinos capturados, além das psicopatologias causadas pelas pressões da guerra em colonos e colonizados (MEMMI, 2011).

No entanto, é a crueldade dos colonos franceses e sua recusa a reconhecer os árabes argelinos como seres humanos que chamava a atenção dos olhos clínicos de Fanon. Pouco mais de duas décadas após a Resistência Francesa ter lutado contra o domínio Alemão sobre a França, o governo francês de Charles De Gaulle, herói da resistência, rotulava como terroristas os insurgentes árabes e promovia um massacre sem precedentes na história colonial para defender seus domínios. Assim, a empresa militar francesa dava início a um ciclo de violência que o psiquiatra entendia como

constitutivo da própria racionalidade colonial, mas também das possibilidades de superá-la (Bulhan, 1985); para Fanon, a resistência anti-colonial colocava em movimento forças sociais capazes de empreender mudanças profundas na sociedade. Por isso, a violência armada dos guerrilheiros argelinos era muito mais do que simples terror niilista como defendia a administração colonial francesa. Era uma possibilidade aberta para o fim da sociedade marcada pela hierarquização étnico-racial e início de um mundo novo.

O tema da violência como um rompimento brusco do passado e abertura para o futuro é um ponto de encontro entre os pensamentos de Fanon e Walter Benjamin. Ambos apontam para a necessidade de pensar teoricamente a violência para além de seus efeitos imediatos e se dedicam a questionar uma violência que acreditam ser constitutiva das sociedades e que se atualiza constantemente na afirmação violenta da autoridade dominante. Para os dois a resistência violenta é um momento que abre a possibilidade de superação dessa violência precedente. Desse ponto de vista o mais importante não é a expressão sangrenta da ira, mas sua transformação em força motriz para mudanças verdadeiras.

Apesar do tom pessimista, há neles uma grande esperança: a de que é possível enfrentar a história e promover uma revolução em seu sentido mais radical, promovendo uma destruição tão profunda que leve consigo inclusive as cisões sociais que permitiram o conflito em primeiro lugar. Para Fanon, apenas uma radical aniquilação das relações sociais construídas em torno da hierarquização étnico-racial do colonialismo pode abrir caminho para a formação de novas subjetividades livres das sociopatologias causadas pelo racismo (FANON, 1968). Para Benjamin, é preciso pensar em uma dimensão de violência que esteja além do direito e, por isso, seja capaz de romper com a história pretérita, uma história de vitórias das classes dominantes, e possibilitar uma nova sociedade, construída de baixo, pelos grupos excluídos, que supere as determinações passadas (LÖWY, 2002).