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2. Um conceito de mil faces

2.2. A constituição colonial do direito de propriedade e a violência no campo

2.2.8. Filosofia da história para uma crítica ao materialismo dialético

Benjamin era um judeu alemão de família burguesa. A despeito da condição econômica abastada que experimentou durante sua infância, pela maior parte de sua vida existiu como um imigrante apátrida, oscilando entre a pobreza e a miséria, experiência compartilhada com milhões de judeus que viveram nas décadas de 20, 30 e 40 na Europa. Nos seus escritos Benjamin expressa a identificação com os grupos marginalizados e oprimidos pelo capitalismo, do qual o fascismo seria apenas a face

mais radical. Esteve próximo da Liga Spartakista18 de Rosa de Luxemburgo e mantinha

contatos dentro do Partido Comunista Alemão (GAGNEBIN, 1999).

Apesar da identificação com o ideal socialista, Benjamin nunca se filiou ao Partido Comunista, permanecendo às margens da atividade política de seu tempo. Sua relutância em envolver-se diretamente com a militância política deriva de uma descrença com o cenário partidário alemão em seus anos de maturidade, pois durante boa parte da juventude esteve ligado ao movimento estudantil. A distância em relação ao PC Alemão era decorrente da profunda divergência teórica que Benjamin nutria principalmente contra o Diamat (Materialismo dialético) soviético, doutrina oficial do Partido Comunista Soviético e que era seguido também pela agremiação alemã. Benjamin rejeitava o autoritarismo do regime soviético e criticava duramente um traço comum entre os comunistas e social-democratas da política partidária alemã: a postura evolucionista diante da história e o consequente otimismo de seus adeptos (LÖWY, 2005).

A concepção de Benjamin sobre filosofia da história e, portanto, sua crítica à postura otimista da esquerda alemã, é resultado do singular casamento que realiza entre o materialismo marxista, o messianismo judaico e o Romantismo alemão. Entretanto suas reflexões não são uma síntese dessas três tradições intelectuais, mas uma contribuição original que descende diretamente sem confundir-se com nenhuma delas. O pensamento benjaminiano sofre modificações conforme ele vai tomando contato com diferentes ideias e pensadores, e é perceptível como a análise de certos temas centrais é resultado de um acúmulo que as torna próprias de Benjamin. Por isso seu pensamento não pode ser entendido como uma continuidade homogênea nem como a conjunção de dois momentos distintos (juventude idealista/teológica em oposição à maturidade materialista/revolucionária) (LÖWY, 2005).

O Romantismo alemão está na base da formação intelectual de Benjamin e foi objeto de dois de seus grandes trabalhos de juventude, o conceito de crítica da arte no romantismo alemão, apresentado em 1919 como tese de doutoramento e A origem do

18 A Liga Espartakista era um grupo formado por dissidentes do Partido Social-Democrata Alemão, sob a

liderança de Rosa de Luxemburgo e Karl Liebknecht. Em 1918, o grupo iniciou com o levante dos marinheiros do porto de Kiel uma revolta de trabalhadores que duraria até 1919, quando, após tomarem as sedes dos principais jornais de Berlim, o grupo foi violentamente reprimido. Com a derrota dos spartakistas tem início o processo de modernização conservadora da Alemanha, que desagua na ascensão do nazifascismo (COSTA, 2005).

drama barroco alemão, escrito em 1925 para ser apresentado como tese de livre docência na Universidade de Frankfurt, onde foi rejeitado (GAGNEBIN, 1999). Não é apenas uma escola artística e literária, mas uma visão de mundo que critica à modernidade capitalista com base em valores pré-modernos. Ela toma forma na expressão estética e intelectual como um protesto contra “a mecanização da vida, a reificação das relações sociais, a dissolução da comunidade e o desencantamento do mundo” (LÖWY, 2005).

O olhar para o passado não significa, no entanto, uma tendência reacionária. Pelo contrário, o ataque à ideia de progresso e à dessensibilização que a modernidade causou sobre o ser humano tem inspiração revolucionária e não conservadora. No cerne da concepção de tempo e história do romantismo Benjamin localiza o messianismo, que se opõe a ideia de que há um caminho necessário de desenvolvimento técnico que fatalmente leva a humanidade a um destino de bem-aventurança. A concepção messiânica sugere que as imagens utópicas do futuro encontram-se espalhadas pelo tempo presente na forma de um potencial, sempre em risco, que só se realizará mediante a ação consciente humana. Essas imagens utópicas, afirma Benjamin, são o reino messiânico ou a Revolução. Engajado politicamente no campo popular e fortemente ligado ao pensamento teológico judaico, Benjamin tenta estabelecer uma ligação entre as lutas libertadoras dos movimentos políticos seculares e a promessa messiânica (LÖWY, 2005).

A partir de 1924 o pensamento de Benjamin recebe a influência direta da tradição marxista. Nesse ano ele lê o História e Consciência de Classe, de György Lukács e se aproxima de membros do Partido Comunista Alemão. É o conceito da luta de classes, com o qual ele entra em contato no texto de Lúkacs, que atrai a atenção de Benjamin. Sua visão de processo histórico é profundamente afetada pelo encontro com o marxismo, entretanto o materialismo histórico hegemônico entre os intelectuais do PC Alemão não vai substituir as intuições românticas e messiânicas de Benjamin sobre tempo e história.

Benjamin rejeita a ideia de que a evolução corrente das forças produtivas e sua tensão com as relações de produção impulsiona de forma inevitável à revolução proletária. O progresso econômico e técnico, ele insiste, tem sido acompanhado pela vitória das elites através do tempo. Por isso, a

revolução não é a continuidade dessa história, onde as classes oprimidas são continuamente massacradas, mas a interrupção da catástrofe que se anuncia e se repete. Em oposição ao otimismo da esquerda alemã, Benjamin defende, assim, um pessimismo ativo, que reúne forças para impedir de qualquer modo possível a ruína (LÖWY, 2005).

O olhar histórico tem, portanto, um interesse especial para Benjamin. Ele sustenta que a história tem sido contada sempre a partir da visão dos vitoriosos para celebrar seus feitos como realizações de um destino inescapável. Uma verdadeira revolução, capaz de destruir a continuidade histórica da opressão contra os excluídos, precisa denunciar o caráter contingente dessa narrativa e gerar a consciência de que o destino está à disposição da intervenção humana. A força messiânica das classes oprimidas aparece como um eco e um alerta daqueles que no passado lutaram e foram derrotados (BENJAMIN, 2010a).

São eles, os mortos do passado, que lembram aos lutadores contemporâneos que sua condição atual é resultado da ação dominadora das elites, e não das determinações mecânicas da História. São também eles que lembram aos oprimidos que a derrota é uma possibilidade sempre presente e que por isso a urgência na organização das forças populares é ainda maior. Por a mensagem dos vencidos em evidência, defende Benjamin, é o papel do historiador que toma partido dos excluídos. Para mostrar a ligação através dos tempos entre a revolta dos escravos de Spartacus e a tentativa de revolução popular do movimento Spartakista se exige do historiador engajado que escove a história a contrapelo (KONDER, 2003).

O apelo de Benjamin para a construção de uma narrativa que ponha em evidência a continuidade histórica pretende canalizar as energias libertárias e recuperar os desejos utópicos dos vencidos, despertando o senso de urgência e perigo diante das ruínas que se acumulam na história da luta de classes do ponto de vista dos oprimidos. Em sua concepção, a compreensão da continuidade do conflito entre classes deixa evidente a necessidade de uma intervenção que rompa com o contínuo de opressão. Para isso, é fundamental a emergência de uma força capaz de destruir a ordem pela qual a história continua se repetindo e de abrir a possibilidade da constituição dessa imagem

utópica que é o reino messiânico. O reencontro com as próprias raízes, a formação de laços que deem força aos excluídos a partir de uma atualização do passado, é uma formulação que também está presente na obra de Fanon.

O lugar da violência na Revolução é uma preocupação para Benjamin tanto quanto é para Fanon. Ambos pensam a violência como algo além da simples disposição de força contra o outro. Ela tem lugar como objeto teórico na medida de seus efeitos sobre uma ordem que vai além do real do senso-comum e atinja o Real lacaniano do qual fala Žižek. Passo, portanto, a uma leitura das reflexões sobre a violência feita por cada autor com o objetivo e colher ferramentas para uma análise da questão da ocupação de terras e seu tratamento jurídico e político.