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Moço, me desculpe, eu não sei ler!

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Academic year: 2021

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Moço, me desculpe, eu não sei ler!

Paulo Sergio Rodrigues de Paula Baiana de Caculé, minha avó paterna, querida e conhecida por todos como Vó Aurélia, foi uma das pessoas mais fantásticas que conheci na vida. Na década de 1950, ela fugiu do marido violento com seus quatro filhos menores e os criou sozinha. Fico imaginando a força dessa mulher sem marido e com filhos, numa sociedade como a nossa, há 70 anos atrás. Independente sem saber, ela era uma feminista, pois sempre dizia que não precisava de macho algum para viver e se sustentar. Gostava era de saracotear nos bailes. Foi uma mulher livre!

Cozinheira de mão cheia, ela não conseguia pronunciar maionese, mas marianéva. Minhas memórias afetivas da cozinha estão atravessadas por nossa convivência: maxixe, jiló, salada de almeirão, feijão guandu, cambuquira, carne de panela com coentro, arroz com urucum. Aliás, ela adorava urucum, porque dava uma cor alegre à comida. Foi ela, também, que me apresentou os chás de ervas e plantas para curar pequenos incômodos da vida cotidiana: folha de goiabeira para caganeira, mastruz para bicha, funcho para queimação de estombo, boldo para fratulêça, capim cidreira para carmá, alecrim para disinchá, confrei para cicatrizar pereba e arruda, não só para tirar mau olhado, mas também para as informações. Mas adivinhem onde? Nos olhos! Vó Aurélia era uma sábia mulher analfabeta!

***

Era final do mês de novembro, um dia muito quente em Assis, município do faroeste paulista, onde fiz minha graduação em Psicologia. Aguardava o ônibus num ponto em frente à Catedral do Sagrado Coração de Jesus, cartão postal da cidade e uma belíssima construção arquitetônica em estilo italiano. Eu estava muito nervoso pois teria uma reunião com uma professora para tratarmos da devolutiva do meu projeto de iniciação cientifica sobre representações da homossexualidade na mídia impressa brasileira.

No ponto de ônibus, também estava um vendedor de redes. Quando surgiu o primeiro lotação desde que ali eu estava, o rapaz me pergunta: Moço, esse ônibus que tá vindo, vai para a rodoviária? Apesar da distância, consegui ler o letreiro, e respondi

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que não. Mais um ônibus e ele pergunta novamente: será que esse vai?. E eu respondo: não, este também não vai. Passa mais outro e ele repete a questão. Irritado, respondo, soletrando-lhe, que o ônibus que vai para a rodoviária está escrito no letreiro RODOVIÁRIA. Então o rapaz envergonhado me responde:

_ Moço, me desculpe, eu não sei ler.

Eu não sabia onde enfiar a minha cara por tanta vergonha. Pedi desculpas por minha indelicadeza, ele prontamente aceitou e respondeu que já estava acostumado com esse tipo de resposta. O ônibus que se dirigia a rodoviária surgiu, sinalizai para ele, que agradeceu e seguiu caminho.

E eu, naquele momento, percebi que não sabia ler – nas entrelinhas. ***

O encontro com minha professora não foi nada positivo. Foi um feedback horrível, cheio de prepotência , soberba e arrogância, típico de algumas pessoas que frequentam o círculo da fogueira das vaidade dos espaços acadêmicos, onde muitos se iludem, se colocando no lugar do sujeito suposto saber e adoram arrotar um godiva quando no máximo saborearam um sonho de valsa! Entre tantas coisas, ouvi que o meu projeto era péssimo, não tinha relevância social e pasmem, que eu não sabia escrever. Agradeci pela leitura educadamente, mas por dentro eu estava arrasado. Pensei no vendedor de redes. Ele não desistiu de seguir a vida mesmo sem saber ler. Eu não iria desistir do meu projeto, porque, segundo a referida professora, eu não sabia escrever.

Procurei outro professor, apresentei o mesmo projeto. Ele gostou muito, achou pertinente. Sugeriu algumas alterações na parte metodológica. Em menos de dois meses de submissão para a agência de financiamento, recebi a aprovação com bolsa para um ano, que foi renovada por mais outro. Essa bolsa foi fundamental, não apenas para auxiliar na minha subsistência na universidade, mas também para o início de minha trajetória como pesquisador.

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Anos mais tarde, conclui meu mestrado em Psicologia Social na área de estudos de gênero e sexualidade, onde tive o privilégio de ter uma orientadora espetacular, que

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sempre fazia uma leitura cuidadosa dos nossos escritos e nos dava feedbacks que só os verdadeiros mestres sabem dar. Atenta aos detalhes, para ela não importava apenas a escrita, mas também a história de quem escrevia e para quem se escrevia. Com ela, aprendi que não adianta escrever para si mesmo e que a boa escrita, principalmente a acadêmica, é aquela que as pessoas compreendem. A boa escrita é generosa e dá acesso a novas possibilidades de se pensar sobre a vida, sem desmerecer trajetória do leitor.

***

Após a defesa, minha dissertação foi indicada para publicação de artigos e livros. A ideia de publicar um livro me animou. Enviei a obra para mais de 150 editoras. Recebi respostas de umas 30, sendo 27 negativas. Fechei contrato com uma delas, já que eu não tinha muitas escolhas. O meu livro foi um dos primeiros na área de sexualidade que a editado por eles. Sugeri a criação de um selo que abarcassem outros trabalhos de sexualidade, diversidade e afins. Seis meses depois, eu estava atuando como editor, coordenando uma coleção de livros sobre gênero e diversidade. Atualmente coordeno a Coleção Diversa, da Caravana Grupo Editorial.

Como bom capricorniano, sou uma pessoa viciada em trabalho, tenho dificuldades para relaxar, sou fechado, realista e até pessimista. Mas a gente vai envelhecendo e tentado a cada dia aprender coisas novas, tentando ser uma pessoa melhor. Nos últimos anos estou reaprendendo a praticar e apreciar coisas simples e lindas de se viver: andar no mato, abraçar árvores, meditar, olhar para o céu a noite!

***

Para a politóloga e filósofa apátrida Hannah Arendt (2010, p. 179), é “[...] no agir e no falar, que as pessoas mostram quem são, revelam ativamente suas identidades pessoais únicas e, portanto, fazem sua entrada em cena no mundo humano”. Diferentemente da obra, a ação expõe quem uma pessoa é, ou seja, o começo de alguém e não de algo, pois o que é revelado através da ação não é essencialmente pré-determinado por uma pessoa como um objeto, mas sim, quem se é em vez de o que alguém é. Agindo em contextos sociais e políticos as pessoas revelam quem são. E por não poderem controlar qual será o resultado desta ação, esta é imprevisível e

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irreversível, pois ninguém pode saber o quanto ela será significante e qual o seu tempo de repercussão na comunidade e na vida dos outros.

Nesse sentido, sempre penso com muito carinho nos ensinamentos da minha avó, analfabeta e sábia, no encontro com o rapaz vendedor de redes, nos diferentes modos de dar retorno das minhas professoras. Pessoas diferentes, com histórias de vida completamente diferentes que nunca se encontraram, mas cujas ações me atravessaram e ajudam a compor a pessoa que estou me tornando. Percebo que é necessário ter muita paciência para viver, como um surfista aprendendo a pegar cada onda e nela se intrometer com arte, sem pressa. Penso que seria bem mais fácil viver, se soubéssemos comtemplar a vida com a intuição de quem sente o momento de intervir e o momento de se calar. Apesar da receita, às vezes sinto que sou mais um afobado que prefere queimar a língua a esperar alguns instantes para que a sopa esfrie...

***

O poeta chileno Pablo Neruda, no seu Ode a Cebola, diz: “Luminosa redoma, pétala a pétala cresceu, a tua formosura, escamas de cristal te acrescentaram e no segredo da terra escura se foi arredondando o teu ventre de orvalho”. O que isso significa? Para mim, significa que precisamos ser solidários, realizar ações que beneficiam os outros, pressupondo o reconhecimento desses como sujeitos autônomos, capazes de fazer escolhas, afirmando em nós a compreensão e o respeito acima de qualquer sentimento mesquinho. Significa que precisamos buscar a essência das coisas e das pessoas, significa que precisamos urgentemente ver e enxergar, ouvir e escutar, falar e dizer. E mais importante, saber ler para além das palavras escritas!

Referências

ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. NERUDA, Pablo. Nuevas Odas elementares. Barcelona: De Bolsillo, 2003.

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Referências

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