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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais

Deserto verde, imprensa marrom

O protagonismo político das mulheres nas páginas dos jornais

Maíra Kubík Taveira Mano

Mestrado em Ciências Sociais

São Paulo 2010

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Deserto verde, imprensa marrom

O protagonismo político das mulheres nas páginas dos jornais

Maíra Kubík Taveira Mano

Dissertação apresentada ao Programa Pós-Graduado em

Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de

São Paulo para obtenção do título de Mestre em

Ciências Sociais.

Orientador: Prof. Dr. Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida

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Banca Examinadora

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Dedicatória

Para quem transforma a realidade diariamente. Para quem não acredita que seja possível

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Agradecimentos

Ao Lúcio e à Renata, que pacientemente orientaram essa (des)orientanda sem qualquer

familiaridade com o mundo acadêmico.

Aos amigos e amigas Ana Maria, Arbex, Arturo, Bia Pasqualino, Brunão, Dri, Dani, Gabi

Moncau, Igor, João Carlos, Luiza Mano, Maíra, Mari Pires, Michelle Prazeres e Pedrão

Nogueira, fundamentais em diferentes partes desse processo.

À Dora, pelos horizontes abertos.

Aos compas da APS e do movimento “Sindicato é pra lutar!”, que quase compreenderam

minha ausência necessária.

Ao Miguel, camarada de primeira hora, que contribuiu decisivamente para essa dissertação.

Ao MST, escola de vida e de luta.

Vinicius e Maruska, papi e mami, não sei nem por onde começar. Só sei que eu comecei de

vocês e nada seria possível sem seu apoio, ombro, colo, abraço, amizade, parceria,

companheirismo e amor.

Ao Léo, querido, que de bronca em bronca, dia a dia, me estimulou em cada linha, em cada

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Resumo

Essa dissertação defende a hipótese que a grande imprensa cobre de maneira

preconceituosa as ações políticas diretas protagonizadas por mulheres integrantes das

classes dominadas. O preconceito é duplo: de gênero e de classe social. Para corroborar

com essa hipótese, analisamos as notícias publicadas nos jornais Folha de S.Paulo e O

Estado de S. Paulo por ocasião dos protestos do Dia Internacional das Mulheres entre 1985

e 2006, com atenção especial para este último, em que 2 mil mulheres da Via Campesina

ocuparam uma área da empresa Aracruz Celulose em Barra do Ribeiro (RS). As

publicações foram consideradas aparelhos privados de hegemonia nos marcos da teoria de

Antonio Gramsci.

(7)

Abstract

This dissertation supports the hypothesis that the mainstream media covers with prejudice

direct political actions led by women member of the dominated classes. There is a double

prejudice: of gender and social class. To corroborate this hypothesis, we analyzed the

reports in the newspapers Folha de S. Paulo and O Estado de S. Paulo during the protests

of the International Women's Day between 1985 and 2006, with special attention the last

one, where 2.000 women from Via Campesina occupied an area of Aracruz Celulose in

Barra do Ribeiro (RS, Brazil). The publications were considered private apparatus of

hegemony within the boundaries of Antonio Gramsci’s theory.

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Índice

Apresentação...9

Capítulo 1 Discurso das mulheres e confronto midiático...12

1.1 - Uma narrativa dos acontecimentos...12

1.2 - Deserto verde...15

1.3 - Papel capital...17

1.4 - Mulheres sem-terra...22

1.5 - Da visão das mulheres envolvidas na ação à grande imprensa...27

Tabelas 1...34

Capítulo 2 Gênero feminino e espelho midiático...36

2.1 - A mídia em seu lugar...36

2.2 - Agendamento...41

2.3 - O papel dos meios de comunicação...44

2.4 - Jornalistas e intelectuais...46

2.5 - Mulheres na mídia...51

2.6 - Linguagem, imagem e hierarquia...53

2.7 - Dia Internacional das Mulheres...58

2.8 - Análise das notícias...62

(9)

Tabelas 2...75

Capítulo 3 Vozes sem-terra e discurso hegemônico...94

3.1 - Sobre a ação...95

3.2 - Sobre a imprensa...96

3.3 - Repercussões...100

3.4 - Sobre a Aracruz...101

Capítulo 4 Mulheres em movimento...104

4.1 - Mudança de paradigma...104

4.2 - Perspectivas...106

4.3 - Jornalismo com perspectiva de gênero...109

4.4 – Mídia radical...112

Considerações finais ...115

Apêndice A Roteiro de perguntas para entrevista com as mulheres da Via Campesina...117

Apêndice B Documentação reunida pela Aracruz Celulose...120

(10)

9

Apresentação

Esta dissertação de mestrado começou muito antes do ingresso da pesquisadora na pós-graduação. Ela teve início na ação que as mulheres da Via Campesina realizaram na área da empresa Aracruz Celulose em 08 de março de 2006. Na ocasião, eu integrava o setor de comunicação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e acompanhei no Rio Grande do Sul este acontecimento e seus desdobramentos, em especial a cobertura da mídia, que despertou inquietações, dúvidas e, principalmente, hipóteses.

Objetivo

Essa pesquisa tem como objetivo analisar criticamente a cobertura da imprensa em relação ao protagonismo das mulheres em ações políticas diretas(MELO, 2003).

Duas interrogações centrais guiaram o trabalho:

- As mulheres que protagonizam mobilizações tais como aquelas realizadas anualmente no Dia Internacional da Mulher recebem destaque da grande imprensa?

- Os textos jornalísticos da grande imprensa lidam de forma pejorativa, depreciativa ou sexista com essas ações por elas serem realizadas por mulheres?

A primeira hipótese que norteou a pesquisa é que, ao tratar do protagonismo de mulheres em ações políticas, a grande imprensa utiliza uma linguagem sexista (GAMBA, 2007, p. 292) e preconceituosa.

(11)

10 mulheres que realizam ações contra-hegemônicas. Considerando a mídia como aparelho privado de hegemonia, a suposição feita é que na cobertura das ações de mulheres ocorre uma dupla opressão: de gênero e de classe.

Metodologia

A pesquisa foi dividida em quatro partes: estudo teórico, obtenção e seleção dos arquivos de jornais, análise das notícias selecionadas e entrevistas com mulheres que participaram da ação da Via Campesina.

O primeiro capítulo, “Discurso das mulheres e confronto midiático”, apresenta a dita mobilização de 2006, procurando dar um contorno aos envolvidos (Via Campesina e Aracruz) e contextualizar o protesto e sua repercussão nos meios de comunicação, em especial na

Folha de S.Paulo e no O Estado de S.Paulo. A escolha se deu pela importância de ambos, que detêm as duas maiores tiragem de jornais em São Paulo, local onde a pesquisa foi desenvolvida, e estão entre os quatro grandes jornais do país em termos de circulação1..

No capítulo 2, “Gênero feminino e espelho midiático”, detalhamos os marcos teóricos da dissertação traçando um panorama da mídia no Brasil e da cobertura feita em relação às mulheres nas manifestações do Dia Internacional das Mulheres de 1985 a 2005. A data foi escolhida por a compreendermos como um marco de mobilizações no Brasil desde o início de século XX (MANO, 2007). Já a delimitação temporal se deu pela necessidade de fazermos uma análise atual, do ponto de vista histórico, mas também de fôlego, capaz de embasar as considerações finais. Começamos em 1985 por ser o fim formal da ditadura militar (1964-1985), o que significa que a cobertura não sofreria mais restrições, objeções ou censuras

(12)

11 explícitas do Estado. Encerramos em 2005, um ano antes da ação das mulheres da Via Campesina detalhadas nos capítulos 1 e 3, e data em que a mobilização do 8 de março reuniu 15 mil mulheres nas ruas de São Paulo.

No capítulo 3, “Vozes sem-terra e discurso hegemônico”, entrevistamos integrantes da Via Campesina que participaram da mobilização em Barra do Ribeiro (RS) com o intuito de observar como o sujeito descreve as ações e como percebe a cobertura da imprensa. As entrevistas foram realizadas em caráter fechado.

(13)

12

Capítulo 1

Discurso das mulheres e confronto midiático

1.1 - Uma narrativa dos acontecimentos

Quarta-feira, 8 de março de 2006. São quatro horas da manhã. Sem que a Polícia Rodoviária Federal saiba, 40 ônibus se deslocam em direção a Barra do Ribeiro, município com pouco mais de 12 mil habitantes no sudeste do Rio Grande do Sul. O destino final do comboio é uma área da empresa Aracruz Celulose que abriga um centro de pesquisa sobre o manejo do eucalipto.

No interior dos veículos estão 2 mil mulheres da Via Campesina, organização internacional de camponeses2 presente em 56 países e cujos representantes no Brasil são o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Comissão Pastoral da Terra (CPT), a Federação Brasileira dos Estudantes de Agronomia (Feab), o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e o Movimento de Mulheres Camponesas (MMC).

2 São considerados membros da Via Campesina pequenos e médio produtores, sem-terra, trabalhadores e

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13 Atrás dos ônibus, uma van leva cerca de dez jornalistas3, todos convidados pela Via Campesina para acompanhar e registrar o que ocorreria em Barra do Ribeiro. Os demais veículos de comunicação seriam avisados no decorrer da manhã por integrantes do setor de comunicação do MST que haviam permanecido em Porto Alegre (RS).

Naquela ocasião, a capital gaúcha abrigava dois eventos paralelos: a II Conferência Internacional sobre Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural da FAO (Órgão das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) e o Fórum Terra, Território e Dignidade. Ambos realizados na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) entre os dias 07 e 11 de março de 2006, com públicos distintos. Enquanto o primeiro reunia 1500 delegados de parte dos 191 países membros da FAO4, além de 50 ministros de Estado e demais representantes governamentais5, o segundo contava com a participação de quilombolas, pescadores, trabalhadores rurais, indígenas e mulheres camponesas6.

Às 5h00, os ônibus finalmente chegam ao Horto Florestal da Fazenda Barba Negra. Protegidas por um lenço lilás7 com os dizeres “Não ao Deserto Verde”, numa alusão às áreas

3 Os critérios para escolha dos jornalistas foram elaborados pela assessoria de imprensa do MST e envolveram

visibilidade dos veículos e respeitabilidade na cobertura de temas relacionados à reforma agrária. Dentro disso, a Rede Globo, na figura de sua afiliada RBS, e o jornal Zero Hora, foram os únicos vetados por terem

um histórico “notório”, sob o ponto de vista do movimento, de deturpar suas ações e deliberadamente prejudicar os sem-terra.

4 Informação disponível em: <http://www.fao.org/unfao/govbodies/membernations_reg_en.asp>. Acesso em

15/06/2009.

5 HANSEN, Mariana. Porto Alegre recebe conferência internacional sobre Reforma Agrária e

Desenvolvimento Rural. Revista do Terceiro Setor – RETS. Disponível em: <http://www.rits.org.br>. Acesso

em 13/06/2009.

6 Em Porto Alegre, atividades discutem Reforma Agrária e soberania alimentar.

Jornal Sem Terra. Abril de

2006.

7 Segundo narra Vito Giannotti, “a cor lilás na luta das mulheres tem uma origem engraçada. A feminista

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14 com monocultivo de árvores para produção de celulose, as mulheres da Via Campesina destroem um milhão de mudas de eucalipto prontas para o plantio, depositadas em pequenos tubos de ensaio sobre armações de metal. Tudo é filmado e fotografado. O laboratório de manipulação genética que continha material de pesquisas sobre hibridismo também vai ao chão. A ação leva cerca de uma hora.

De volta à estrada, elas partem em direção à Porto Alegre. Lá, uma passeata do Dia Internacional da Mulher está prevista para começar às 8h00. Cerca de 1500 pessoas, entre homens e mulheres que participam do Fórum Terra, Território e Dignidade, aguardam-nas para dar início à marcha na Avenida Ipiranga8. Já despidas do lenço, as 2 mil mulheres da Via Campesina se juntam então ao protesto. Elas formam as primeiras fileiras da passeata, que percorre cinco quilômetros até a PUC-RS.

Ao chegar à universidade, os manifestantes são impedidos de entrar pela polícia militar e algumas pessoas ficam feridas no empurra-empurra que começa. A pressão aumenta e, finalmente, as mulheres rompem a barreira de segurança e alcançam a porta do prédio onde a conferência da FAO é realizada. Mais uma vez sem poder seguir adiante, as integrantes da Via Campesina negociam ingressar de forma pacífica no edifício. Querem distribuir aos participantes do encontro seu manifesto contra o “Deserto Verde”.

Aceita a reivindicação, algumas representantes entraram no auditório principal, ainda pela manhã. Até então, apenas rumores sobre a ação na Aracruz Celulose haviam circulado. Ivanete Tonin, integrante do MST, e Luci Piovesan, do MMC, leem o Manifesto das Mulheres Camponesas para os representantes de 81 delegações estrangeiras e para o então ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto. São aplaudidas de pé.

principal a que aponta o lilás como a cor do pano que as mulheres estariam tecendo quando foram queimadas em um incêndio em Nova York, que teria dado origem ao 8 de março, como veremos no capítulo 2.

(16)

15

1.2 - Deserto verde

No manifesto lido na II Conferência Internacional sobre Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural da FAO, as mulheres da Via Campesina afirmaram9:

Somos contra os desertos verdes, as enormes plantações de eucalipto, acácia e pinus para celulose, que cobrem milhares de hectares no Brasil e na América Latina. Onde o deserto verde avança, a biodiversidade é destruída, os solos deterioram, os rios secam, sem contar a enorme poluição gerada pelas fábricas de celulose que contaminam o ar, as águas e ameaçam a saúde humana

A pauta explicitada no documento era a crítica à monocultura, ressaltada na expressão “Deserto Verde”. O termo designa áreas extensas com cultura exclusiva de um produto agrícola, neste caso o eucalipto.

Segundo a geógrafa Simone Batista Ferreira10, que à época da ação afirmou compartilhar a mesma visão das mulheres da Via Campesina,

Embora “verde”, esta paisagem não traz mais a diversidade biológica e humana que antes existia na floresta. Na paisagem das monoculturas, não se encontra mais os habitantes da floresta; constitui um espaço “deserto”, “sem vizinhos e sem fartura”, na linguagem dos moradores que ali ainda resistem. Daí, a expressão “deserto verde”, relevando que, segundo o biólogo e pesquisador Augusto Ruschi, o deserto possui uma maior diversidade animal que a monocultura do eucalipto.

Dessa forma, ainda que o ato tenha sido direcionado à empresa Aracruz Celulose, a utilização da expressão “deserto verde” demonstra uma preocupação com a cultura extensiva

9 Campanha “Não ao Deserto Verde”. Página do MST. Disponível em:

<http://www.mst.org.br/mst/especiais.php?ed=7>. Acesso em 15/02/2009.

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16 de produtos agrícolas de maneira generalizada, como explica uma integrante do MST11, daqui para frente denominada “Maria”:

Dentro do MST e da Via Campesina vínhamos estudando os impactos das monoculturas na vida das pessoas do campo e da cidade, então já havia um entendimento da necessidade urgente de se chamar a atenção da sociedade em geral para este problema de todos e todas nós.

O problema ao qual a sem-terra se refere não se resume ao impacto ambiental, mas também à matriz produtiva: “Nós estamos denunciando o agronegócio há tempos”, afirma. Para Maria, que esteve diretamente envolvida com a ação da Aracruz, o que se revela por trás dessa questão é que a expansão da monocultura em grandes áreas ocorre em detrimento dos pequenos produtores.

Assim, de acordo com Lourdes Vicente, integrante do setor de gênero do MST, a entrada na área da empresa decorreu de um acúmulo de discussões das mulheres do movimento sobre o 8 de março ser também um dia de debate do modelo agrícola12:

Nos últimos tempos temos feito uma discussão que o 8 de março também é um dia de debate do modelo agrícola. As mulheres sofrem todo o impacto de um modelo de agricultura perverso e tomam consciência que precisam ir para o enfrentamento desse modelo e mostrar para a sociedade que há um projeto alternativo de agricultura camponesa. (...) Nós temos que mostrar para a sociedade que as mulheres estão em luta, tanto para denunciar quanto para serem solidárias.

João Pedro Stedile, da direção nacional do MST, esmiúça a expansão desse modelo no campo brasileiro13:

11 A entrevistada solicitou permanecer anônima porque o processo judicial contra os participantes da ação de 8

de março de 2006 ainda está em aberto. A entrevista, de caráter fechado, foi realizada em 11/06/2009, ainda sem o roteiro de perguntas utilizado no capítulo 3.

12 VICENTE, Lourdes. “Mulher sem terra na luta por reforma agrária”. Entrevista feita pela pesquisadora em

25/08/2006. Disponível em <http://www.mst.org.br/mst/pagina.php?cd=1875>. Acesso em 15/03/2009

(18)

17

Hoje, a maior parte de nossas riquezas, produção e distribuição de mercadorias agrícolas está sob controle das empresas transnacionais, que se aliaram aos fazendeiros capitalistas e produziram o modelo de exploração do agronegócio, buscando consolidar uma matriz produtiva na agricultura baseada no uso intensivo de insumos industriais, como máquinas, fertilizantes químicos e agrotóxicos, tanto no Brasil como mundialmente. De fato, uma das promessas se concretizou: a produtividade por hectare se multiplicou, aumentando quatro vezes no mundo. (...) Na verdade, esse modelo serviu apenas para concentrar o controle da produção e do comércio agrícola mundial em torno de não mais de 30 grandes empresas transnacionais, como a Bunge, Cargill, ADM, Dreyfuss, Monsanto, Syngenta, Bayer, Basf, Nestlé etc.

Segundo Stedile, essa expansão está diretamente relacionada com os chamados agro combustíveis, numa conjuntura de declínio dos combustíveis fósseis14:

Nos últimos cinco anos, milhões de hectares antes cultivados para alimentos ou controlados por camponeses passaram para as mãos de grandes fazendeiros e empresas para implantar a monocultura de cana, soja, milho, palma africana, girassol... Tudo para produzir etanol ou óleo vegetal. É a repetição da manipulação da Revolução Verde. As melhores terras, mais próximas das grandes cidades e dos portos, deixaram de dar alimentos para produzir energia para os automóveis da classe média dos Estados Unidos, da China e do Japão.

Diante desse cenário, os sem-terra acreditam ser preciso15:

Combater as empresas transnacionais que querem controlar as sementes, a produção e o comércio agrícola brasileiro, como a Monsanto, Syngenta, Cargill, Bunge, ADM, Nestlé, Basf, Bayer, Aracruz, Stora Enso, entre outras. Impedir que continuem explorando nossa natureza, nossa força de trabalho e nosso país.

O posicionamento acima é uma das diretrizes aprovadas no último Congresso Nacional do MST, realizado em 2008.

1.3 – Papel capital

14 STEDILE, João Pedro. MST: 25 anos de teimosia. Revista Caros Amigos. Janeiro de 2009. 15 CARTA DO V CONGRESSO NACIONAL DO MST. Disponível em:

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18 Entre as companhias citadas pelo MST na resolução está a Aracruz Celulose. Trata-se de uma empresa de capital multinacional sendo sua maior acionista a companhia norueguesa Lorenz, que detém 28% das ações16. O Banco Safra, a Votorantim e a Souza Cruz também têm participação nela, além do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) 17. No primeiro trimestre de 2006, período da ação das mulheres da Via Campesina, a empresa havia registrado um lucro líquido de R$ 347 milhões18.

Em seus materiais de divulgação, a Aracruz se define da seguinte maneira19:

A Aracruz Celulose é uma empresa brasileira, líder mundial na produção de celulose branqueada de eucalipto. Responde por cerca de 30% da oferta global do produto, destinado à fabricação de papéis de imprimir e escrever, papéis sanitários e papéis especiais de alto valor agregado. Suas operações florestais alcançam aproximadamente 261 mil hectares de plantios renováveis de eucalipto, intercalados com cerca de 139 mil hectares de reservas nativas, que são fundamentais para assegurar o equilíbrio do ecossistema. Responsável por aproximadamente 10 mil empregos diretos, entre empregados próprios e de prestadoras de serviços em caráter permanente, a empresa é uma das maiores exportadoras do país, gerando divisas da ordem de 1 bilhão de dólares anuais.

No Rio Grande do Sul, à época da ocupação, a Aracruz tinha 50 mil hectares de eucaliptos plantados20. Itelvina Massioli, integrante do setor de gênero do MST21, explicita o motivo pelo qual a empresa foi escolhida para a ação:

O viveiro que foi alvo da manifestação da Via Campesina é o maior da América Latina com uma produção de 10 milhões de mudas por ano. Também é uma empresa que se destaca pelo volume de recursos públicos recebidos. Só do Banco do Brasil foram quase 2 bilhões de reais nos últimos

16 ARBEX JR., José. “Haja cruz”. Núcleo Piratininga de Comunicação, abril de 2006. Disponível em:

<http://www.piratininga.org.br/2006/86-arbex-cruz.html>. Acesso em 10/01/2009.

17 ARBEX JR., ibidem. 18 ARBEX JR., ibidem.

19 Página da Aracruz Celulose. Disponível em:

<http://www.aracruz.com.br/show_press.do?act=news&id=1000123&lang=1>. Acesso em 05/02/2009.

20 Site oficial da Aracruz Celulose. Disponível em: <http://www.aracruz.com.br>. Acesso em 05/01/2009. 21 MASSIOLI, Itelvina. Por que a Ação da Via Campesina na Aracruz incomodou tanta gente?. Jornal Sem

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3 anos. Portanto, trata-se de uma potência do agronegócio que, com apoio governamental, está em franca expansão tanto em termos de área plantada quanto industrial. Além de ser uma empresa que promove um marketing no Brasil e no exterior de que gera muitos empregos e é ecologicamente correta. Nesse sentido, a ação das mulheres atingiu o poder econômico e simbólico dessa empresa.

Além do estado gaúcho, a companhia também atua na Bahia, em Minas Gerais e no Espírito Santo. Neste último, em 20 de janeiro de 2006, pouco antes da ação da Via Campesina, a Aracruz Celulose esteve envolvida em um conflito com indígenas que reivindicavam a demarcação de uma área ocupada pela empresa. Na ocasião, tratores da companhia foram acusados de destruir duas aldeias Tupiniquim e Guarani com o apoio do Comando de Operações Táticas22 do Estado. De acordo com Lourdes Vicente, o ato no Dia Internacional da Mulher foi também em solidariedade aos indígenas23.

Ademais o alvo específico (“as empresas transnacionais”, como explicita a resolução do MST), a ação da Aracruz igualmente é simbólica para identificar uma mudança de instrumento de luta do movimento camponês: de ocupação de terras improdutivas em prol da realização da reforma agrária, os sem-terra passaram também a agir sobre áreas de grandes empresas, contra o que designam “o capital internacional e financeiro” 24. Stedile resume dessa forma a questão25:

A luta pela reforma agrária, que antes se baseava apenas na ocupação de terras do latifúndio, agora ficou mais complexa. Temos que lutar contra o capital, contra a dominação das empresas transnacionais. A reforma agrária deixou de ser aquela medida clássica: desapropriar grandes latifúndios e distribuir lotes para os pobres camponeses.

22 Conselho Indigenista Missionário, “Tropa de choque e Polícia Federal invadem de surpresa aldeias indígenas

de Aracruz”, 20/01/2006. Disponível em:

<http://www.cimi.org.br/?system=news&action=read&id=1658&eid=343> . Acesso em 21/03/2009.

Para seus desdobramentos, ver a matéria “Povos indígenas obtêm vitória contra a Aracruz”. Marco Aurélio Weissheimer. Agência Carta Maior. 28/08/2007. Disponível em:

<http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=14604&editoria_id=2>.

23 VICENTE, ibidem.

24 STEDILE, “MST: 25 anos de teimosia”, 08/01/2009. Disponível em:

<http://www.mst.org.br/mst/pagina.php?cd=6182>. Acesso em 20/01/2009.

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20 A ocupação Nova Canudos, realizada em Porto Feliz, interior de São Paulo, em 1999, foi um marco nesse sentido, como explicita o militante do MST, Marcelo Buzetto26:

Outra diferença na ocupação de Porto Feliz foi que o movimento e os acampados entraram numa rea de cana-de-aç car, considerada pelo Incra como produtiva, pois o tinha muitos hectares ociosos. Desde o primeiro dia da ocupaç o, a imprensa e o governo se utilizavam desse argumento para tentar jogar a sociedade contra o movimento. O MST vem discutindo esse conceito de terra produtiva algum tempo, e importante convencer a sociedade de que terra produtiva aquela que cumpre uma funç o social e produz alimentos para o povo. Monocultura de cana-de-aç car com 11 mil hectares, concentrada nas os de poucas lias, que fazem de sua propriedade um instrumento de acumulaç o pessoal de riqueza e de exploraç o dos trabalhadores, o pode ser considerada produtiva.

Essa nova compreensão de luta do MST ganha corpo em um momento de alteração política nacional, com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva em 2002. À época, as expectativas do movimento para a realização da reforma agrária cresceram. Afinal, tratava-se de um presidente com ampla trajetória de apoio às lutas sociais, inclusive ao MST. Além disso, os sem-terra haviam lidado com 8 anos de presidência de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), cuja política de reforma agrária foi classificada como insuficiente e até mesmo quase inoperante27. Segundo Renata Gonçalves28,

Alegando defender uma política de crédito, Fernando Henrique Cardoso dizia durante as campanhas eleitorais que não haveria necessidade de desapropriações de terra para tornar viável a reforma agrária. Assim, como para os demais governos, o projeto não tocou na estrutura de concentração fundiária e se restringiu a uma política compensatória.

Para os movimentos camponeses, a postura do então presidente também corroborava a

26 BUZETTO, Marcelo. Nova Canudos e a luta do MST no Estado de o Paulo. Lutas Sociais, volume 6.

Disponível em: <http://www.pucsp.br/neils/revista/vol6.html>.

27 DOMINGOS, Manuel. “A ‘Reforma Agrária’ de FHC”. Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, 2002.

Disponível em: <http://www.social.org.br/relatorio2002/relatorio007.htm>. Acesso em 20/01/2009.

28 GONÇALVES, Renata. Vamos acampar? A luta pela terra e a busca pelo assentamento de novas

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21 “criminalização dos movimentos sociais” 29: se contabilizarmos somente seu primeiro mandato, houve 150 assassinatos de sem-terra e aproximadamente 180 prisões políticas30. Entre estes, o Massacre de Eldorado dos Carajás: em 17 de abril de 1996, 19 trabalhadores rurais sem-terra foram assassinados por 155 policiais e dezenas de pessoas ficaram feridas31 em um conflito no interior do Pará. Os trabalhadores rurais protestavam pela desapropriação de uma área quando foram abordados com extrema violência pelas tropas da polícia militar.

A mudança de governo “opositor” a governo “amigo” foi registrada pela imprensa, que adaptou sua cobertura conforme os interesses em voga. Assim, o MST ganhou ainda mais destaque após a eleição de 2002, apesar de ter diminuído as ocupações de terra, seu principal instrumento de pressão política na reivindicação da reforma agrária.

De acordo com o jornalista Antônio Luiz M. C. Costa, da revista Carta Capital, em 1999, primeiro ano do segundo mandato de FHC, ocorreram 581 ocupações de terra, enquanto em 2003, primeiro ano do mandato do governo Lula, foram 101 ocupações até julho. Mas O

Estado de S.Paulo (OESP) e a Folha de S.Paulo (Folha) parecem ter feito uma cobertura “inversa” 32, “em julho de 1999, o OESP deu 24 notícias sobre o MST e um editorial crítico. No mesmo mês de 2003, foram 228 notícias e cinco editoriais”. Já na Folha, em julho de 1999 foram publicadas 76 matérias sobre o MST e, em 2003, 166 matérias.

Para Gonçalves33, contudo,

O governo Lula não fez grandes alterações no que diz respeito à perspectiva de reforma agrária. (...) Para o ano de 2003, o governo havia assumido o compromisso de assentar 60.000 famílias e o saldo final mostrou que somente 10.000 famílias foram beneficiadas com esta política. Ao contrário

29 Abra (Associação Brasileira de Reforma Agrária). Disponível em:

<http://www.reformaagraria.org/node/98>. Acesso em 15/03/2009.

30 MORISSAWA, Mitsue. A história da luta pela terra e o MST. São Paulo: Expressão Popular, 2001, p. 162.

31

“Eldorado dos Carajás, até quando?”. Site do MST. Disponível em: <http://www.mst.org.br/mst/pagina.php?cd=599>. Acesso em 20/03/2009.

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22

dos engajamentos de mudança feitos em seu programa, o governo Lula deixou intacto o modelo neoliberal herdado dos anos 90.

O MST voltou então a utilizar as ocupações como instrumento de pressão política34 em 2004. Em entrevista publicada pelo OESP em 29 de fevereiro de 2004, Stedile dava seu recado para Lula35:

O governo tem um compromisso histórico, não só com o MST, mas com a sociedade brasileira, de que precisa fazer a reforma agrária. Se o governo Lula não tiver capacidade para fazer essa reforma, que é a mais simples das reformas capitalistas, para distribuir renda, cairá numa desmoralização total. Acreditamos que ele mantém esse compromisso e é nosso aliado, ao lado de toda a sociedade, para derrotar o latifúndio.

Ainda em 2004, Stedile afirmaria que era preciso alterar a correlação de forças dentro do governo, que precisava se convencer da necessidade de fazer mudanças na política econômica e de colocar em prática a reforma agrária36. Dois anos depois, reforçando uma postura política do Movimento, veio a ação das mulheres na Aracruz Celulose. A mobilização foi amplamente criticada pelo governo37 e por parlamentares do Partido dos Trabalhadores (PT) nos principais veículos de comunicação, como veremos mais adiante38.

34 Idem, ibidem.

35 STEDILE, João Pedro. “Se Lula não fizer a reforma agrária ficará desmoralizado”. Disponível em:

<http://resistir.info/brasil/stedile_29fev04.html>. Acesso em 05/01/2009.

36 GONÇALVES, ibidem, p. 188.

37 Em nota divulgada à imprensa, o então ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto, afirmou:

"Condeno e lamento os fatos ocorridos na madrugada da última quarta-feira na empresa Aracruz. As imagens que o país assistiu mostram cenas de inaceitável violência e ferem a consciência democrática de todos os brasileiros (...) episódios deste tipo em nada contribuem para um debate sério e conseqüente a respeito do modelo de desenvolvimento rural que queremos para o nosso país. Atos como este devem ter suas conseqüências tratadas com rigor no âmbito do Poder Judiciário; (...) é inaceitável substituir o argumento pela destruição violenta e a troca de idéias pela intolerância. A luta pela Reforma Agrária no Brasil não tem a ver com ações desta natureza e não deve ser confundida com atos isolados". Radiobras, 09/03/2006.

38 Para exemplificar, o senador Eduardo Suplicy (PT-SP) publicou na

Folha de S,Paulo um texto intitulado

(24)

23 1.4. Mulheres sem-terra

Os dois movimentos responsáveis pela organização da ação foram o MST e o MMC, ambos integrantes da Via Campesina. O primeiro é, em termos numéricos, o mais amplo e representativo movimento camponês do país39, com cerca de 350 mil famílias assentadas40 e 150 mil acampadas41. Fundado há 25 anos42, no bojo da ascensão das mobilizações de massa no final da década de 1970 e início da de 1980, o MST definiu em seu I Congresso Nacional, realizado em 1985, suas linhas gerais de atuação e seus objetivos imediatos e estratégicos. Entre estes estavam43:

• Lutar pela reforma agrária radical;

• Lutar por uma sociedade justa e igualitária e acabar com o capitalismo;

• Reforçar a luta pela terra, com a participação de todos os trabalhadores;

• Exigir que a terra esteja nas mãos dos que trabalham nela para sua subsistência e de suas famílias;

• Manter sempre a autonomia do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

A participação protagonista das mulheres sem-terra se deu desde o início do MST44, como explica Lourdes Vicente:

O debate sobre a participação das mulheres veio desde a criação do

39 MARTIN, Jean-Yves. Les Sans-Terre du Brésil: Géographie d’un mouvement socio-territorial. Paris:

L’Harmattan, 2001.

40 MORISSAWA, ibidem, p167.

41 Dados da assessoria de imprensa do MST referentes a 2007.

42 Há extensa bibliografia sobre a história do MST. Recomendamos em particular: CARVALHO, Horácio

Martins. Reforma agrária e o bloco no poder. Lutas Sociais 9/10; MORISSAWA, ibidem; e a coleção “A

questão agrária no Brasil”, da Editora Expressão Popular.

(25)

24

movimento. No I Congresso, a direção nacional resolveu que 30% dos participantes deveriam ser mulheres. A discussão foi feita nos assentamentos, com a influência da Igreja, dos grupos de mulheres da Teologia da Libertação e dos sindicatos. As mulheres começaram a vir para as instâncias nacionais e fazer reuniões específicas das mulheres para discutir suas condições como militantes, como motivar para que mais companheiras da base a participar.

De acordo com Mitsue Morissawa, a preocupação com a questão de gênero se explicitou numa das deliberações do IV Encontro Nacional do MST, no início de 1988: “priorizar a organização dos jovens e mulheres em todos os níveis dos assentamentos” 45. Já no documento “A reforma agrária necessária”, o MST coloca como princípio fundamental “contribuir para criar condições objetivas de participação igualitária da mulher na sociedade, garantindo-lhes direitos iguais” 46.

Em 1995, foi criada a Articulação Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais, reunindo as mulheres dos seguintes movimentos47: CPT, MST, Pastoral da Juventude Rural (PJR), MAB e alguns sindicatos de trabalhadores rurais, além dos auto-definidos movimentos autônomos de mulheres. Juntas, elas se comprometeram a organizar e realizar48:

- Mobilizações: acampamentos estaduais e nacional;

- Celebração de datas históricas e significativas como o dia 08 de março, Dia Internacional da Mulher; 28 de maio, Dia Internacional de luta pela saúde da mulher; 12 de agosto, dia nacional de luta das mulheres trabalhadoras rurais contra a violência no campo e por Reforma Agrária; 7 de setembro, Grito dos Excluídos etc.;

- Lutas: a continuidade e ampliação dos direitos previdenciários, a saúde pública, novo projeto popular de agricultura, reforma agrária, campanha de documentação;

45 MORISSAWA, ibidem, p. 211. 46 Idem, ibidem.

47 “A afirmação de muitas histórias”. Movimento de Mulheres Camponesas. Disponível em:

<http://www.mmcbrasil.com.br/menu/historia_por.html>. Acesso em 20/06/2009

(26)

25 - Formação: política-ideológica, direcionada aos diferentes níveis da militância e da base;

- Materiais: elaboração e produção de cartilhas, vídeos, panfletos, folhetos e cartazes como instrumentos de trabalho para a base e para as lutas.

No ano seguinte, Vicente recorda que49

Em 1996 fizemos o I Encontro Nacional de Mulheres Militantes do MST. O debate era como íamos avançar para nos fortalecer como mulheres Sem Terra, tendo muito claro de que deveríamos nos organizar para enfrentar o capital. Em 1998, aconteceu o II Encontro Nacional, e ali começamos a colocar que nós tínhamos que convocar os homens para o debate, porque senão nós avançávamos e os nossos companheiros não. Começamos a discutir gênero e poder. Ao longo do processo, fomos nos dando conta de que teríamos que entrar na estrutura orgânica do Movimento e colocamos a necessidade de termos pessoas responsáveis para fazer o debate. Em 2000, no encontro nacional do MST, foi aprovado o setor de gênero.

Hoje as mulheres estão presentes em todos os setores e instâncias do MST, mas o setor de gênero é seu espaço de debate permanente sobre as ações específicas na luta pela terra, as relações sociais que as envolvem e seu papel no movimento50.

Vicente narra o início dessa mobilização:

Quando começamos a discutir a questão, nos centrávamos na participação das mulheres. Depois começamos a falar sobre gênero. Nós temos presente duas questões fundamentais: a motivação de que as mulheres se tornarem sujeitos e criar condições para elas participem.

No esforço de manter a questão de gênero em pauta de maneira permanente, dentro e fora do MST, o Dia Internacional das Mulheres é considerado uma data central51, conforme já havia definido a Articulação Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais:

49 VICENTE, ibidem.

(27)

26

A data é uma motivação para as mulheres da base. Elas se preparam bem antes porque já sabem que esse é o dia que nós assumimos o comando. As mulheres são desafiadas a pensar diferentes ações no campo da formação, da organização, da segurança, da negociação com o governo do estado. (...) Criou-se uma mística em torno da data, que trata da luta do conjunto do movimento assumida pelas mulheres. (grifo meu)

Foi assim que, em 8 de março de 2006, com a participação do MMC, as mulheres do MST decidiram e organizaram a ação na Aracruz Celulose de maneira autônoma do conjunto movimento52. “Nós já tínhamos experiência de organizar atividades, pois no MST as mulheres têm sido muito ativas. Nós sempre fizemos isto, não só as mulheres do MST, mas todas as mulheres em geral”, afirma Maria.

Já o MMC, o outro protagonista da ação, tem uma história mais recente: foi fundado em 2003 e reúne53

Pequenas agricultoras, a pescadora artesanal, a quebradeira de coco, as extrativistas, arrendatárias, meeiras, ribeirinhas, posseiras, bóias-frias, diaristas, parceiras, sem terra, acampadas e assentadas, assalariadas rurais e indígenas

Sua trajetória, porém, está diretamente relacionada à das mulheres do MST e demais movimentos camponeses. O MMC se reivindica originário dos movimentos autônomos que participaram da fundação da Articulação Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais e narra da seguinte maneira seu desenvolvimento54:

Toda esta bagagem trazida pelos movimentos autônomos de mulheres, associada aos demais movimentos, reafirmou a luta das mulheres em dois eixos: gênero e classe. Aos poucos, os movimentos de mulheres foram se fortalecendo nos estados, avançando nas lutas específicas e gerais, na organização da base, na formação de lideranças e na compreensão do momento histórico em que vivemos. A partir desta leitura e movidas pelo

52 Neste caso, a palavra “autônoma” significa que as mulheres tiveram liberdade de pensar e colocar em prática

a ação, que, contudo, teve o conhecimento e o consentimento do MST.

(28)

27

sentimento de fortalecer a luta em defesa da vida, começamos a potencializar e unificar o movimento autônomo para ter expressão e caráter nacional.

Depois de várias atividades nos grupos de base, municípios e estados e com a realização do Curso Nacional (de 21 a 24 de setembro de 2003), que contou com a presença de 50 mulheres, vindas de 14 estados, representando os Movimentos Autônomos, apontamos os rumos concretos do movimento como também decidimos que terá o nome de: Movimento de Mulheres Camponesas.

1.5 – Da visão das mulheres envolvidas na ação à grande imprensa

Quando questionada se a ação teve o impacto planejado, Maria confirma que sim: “Não esperávamos que as pessoas se colocassem a nosso favor ou não, o que esperávamos era que a sociedade começasse a se preocupar com o avanço desordenado das monoculturas de eucalipto, que vem destruindo a biodiversidade brasileira e sul-americana, e isto aconteceu”.

Para Maria, “a diferença deste episódio foi a visibilidade que a imprensa deu”. Segundo a sem-terra:

Pela cultura machista, as mulheres são incapazes de fazer, de planejar, de raciocinar, de estudar. Ao verem uma ação bem preparada, com objetivos claros e que foram atingidos, causa espanto para as classes dominantes, ainda mais por se tratar de camponesas.

O impacto dos elementos “classe” e “gênero”55 somados também são percebidos por

55 Consideramos o estudo de gênero como relativo às experiências masculinas e femininas e às relações de

(29)

28 Itelvina:

O alvo: uma propriedade privada de uma grande empresa multinacional do agronegócio. A forma como foi feita: uma ação coletiva, que foi literalmente à raiz da questão. Responsáveis pela execução: mulheres camponesas. A combinação desses três fatores é que explica porque a ação da Via Campesina na Aracruz no Rio Grande do Sul, em 8 de março, provocou tanta polêmica e se constitui como um marco na história das lutas populares no Brasil e talvez no mundo.

Convidados pelas integrantes da Via Campesina, os meios de comunicação puderam acompanhar toda a ação na área da Aracruz, tendo acesso exclusivo à mobilização. Entre os veículos presentes, estavam a Folha56 e o OESP57, analisados nessa dissertação. Os jornais escolhidos são dois dos maiores periódicos de circulação diária do país58.

Em ambas as publicações, a ação teve chamada na capa e as respectivas reportagens estavam no primeiro caderno de cada publicação, um indício da importância da mobilização.

Na Folha, o título da notícia de 09/03/2006 (ver tabela 1) foi “Mulheres depredam fábrica de celulose”. O jornal divulga, em quatro parágrafos, trechos do manifesto das mulheres camponesas, logo abaixo de aspas do gerente da Aracruz em Guaíba, Renato

marxismo, implicam uma idéia de causalidade econômica e numa visão do caminho pelo qual a história avançou dialeticamente. Não existe esse tipo de clareza ou coerência nem para a categoria de ‘raça’ nem para a de ‘gênero’. No caso de ‘gênero’, o seu uso comporta um elenco tanto de posições teóricas, quanto de simples referências descritivas às relações entre os sexos”.

56 Sobre a trajetória da Folha de S. Paulo, recomendamos, entre outros: PIRES, Elaine Muniz. Imprensa,

ditadura e democracia: A construção da auto-imagem os jornais do Grupo Folha. 2008. Dissertação (Mestrado em História). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo; LOPES, Dirceu Fernandes; SOBRINHO, José Coelho; PROENÇA, José Luiz (orgs.) A evolução do jornalismo em São Paulo. São Paulo: Edicom/ECA-USP; LOBATO, Elvira. “Mídia Nacional acumula dívidas de R$ 10 bi”. Folha de S. Paulo, 15/02/2004; BORGES, Altamiro. “Frias, da tortura ao golpe midiático”. Brasil de Fato,

26/09/2006; CARTA, Mino. In: Prefácio de ABRAMO, Claudio. A regra do jogo. São Paulo: Companhia das

Letras, 1999; CONTI, Mário Sérgio. Notícias do Planalto. São Paulo: Companhia das Letras, 1999; e

FONSECA, Francisco. O consenso forjado. São Paulo: Editora Hucitec, 2005. 57 Sobre a trajetória de

O Estado de S.Paulo, recomendamos, além dos citados acima: FABBRI, Cleber

Sebastião. “O Estado de São Paulo”. In: QUEIROZ, Adopho; OLIVEIRA, Dennis (org). Jornais centenários de São Paulo. Degaspari: Piracicaba, 2002; ECHEVERRIA, Regina. “‘O AI-5 matou meu pai’, desabafa Ruy

Mesquita”. A Revista, Ed. 7, 2002; CAPELATO, Maria H.; PRADO, Maria L. O bravo matutino. São Paulo:

Alfa-Ômega, 1980.

58 De acordo com a Associação Brasileira de Jornais (ABJ), entre 2002 e 2007, a Folha de S.Paulo foi o maior

jornal de circulação do país. O Estado de S.Paulo ocupou por vezes a quarta e a terceira posição, intercalado

(30)

29 Rostirola. A matéria é encerrada com o então ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto, e alguns grupos empresariais gaúchos criticando a ação. O “chapéu” 59 utilizado é “Campo minado” e uma foto que ocupa meia página traz uma das manifestantes quebrando uma parte da área de mudas da Aracruz.

Apesar de ser uma ação realizada apenas por mulheres, o jornalista Léo Gershmann, autor do artigo, utiliza o termo “os manifestantes”, em detrimento de “as manifestantes”, utilizando linguagem sexista (ver definição na página 55).

No OESP (ver tabela 2), o título foi “Via Campesina destrói 1 milhão de mudas e depreda laboratório no Sul”. O jornalista Elder Ogliari, responsável pela matéria refere-se às mulheres no gênero feminino com os termos “as camponesas” e “as invasoras”. Diferentemente do concorrente, o OESP não divulgou o documento da Via Campesina, mas deu “o outro lado” da história em uma frase: “A porta-voz da Via Campesina, Luci Piovesan, disse que o ato representa ‘a indignação das mulheres do campo’ pelos incentivos que o governo dá ao agronegócio e à indústria da celulose”.

Em entrevista feita com Piovesan sobre essa cobertura em particular, ela negou ter falado ao OESP: “isso foi uma explicação que eles colocaram em cima de algo que falei” 60. Para Piovesan, “o OESP só destacou o lado da empresa, colocando a ação como negativa” 61, sem colocar posição da Via Campesina sobre a monocultura de eucaliptos e suas conseqüências, razão da realização do ato. “Eu não esperava outra coisa”, resumiu62.

No restante do texto, além de entrevistar Rostirola, o jornal apresenta Isabel

59 De acordo com o Manual Geral da Redação da Folha de S.Paulo: “Chapéu – É uma palavra, nome ou

expressão usada acima do título, em corpo pequeno, para caracterizar o assunto da notícia”.

60 PIOVESAN, Luci. Em entrevista realizada em 23/03/2009, ainda sem o roteiro de perguntas utilizado no

capítulo 3.

(31)

30 Gonçalves, pesquisadora, funcionária da Aracruz, que fez o contraponto à ação das mulheres camponesas: “A pesquisadora Isabel Gonçalves interrompeu férias para conferir o estrago e não conteve as lágrimas ao ver o esforço de vários anos destruído”.

Ao não divulgar as justificativas da mobilização ou ao fazê-lo de maneira bastante restrita, os jornais reforçaram a imagem de Isabel Gonçalves63: sem explicitar o motivo alegado pelas protagonistas, a ação torna-se vazia de significado ao longo dos textos, ao mesmo tempo em que as mulheres do MST são comparadas de forma implícita à pesquisadora, que representa o “bom senso” ao contrário da “fúria”.

É esta a construção feita pelo editorial – espaço oficial de divulgação da opinião do jornal – da Folha de 10/03/2006:

O alvo era a “sociedade capitalista e patriarcal”. O pretexto, o Dia Internacional da Mulher. E os instrumentos, taquaras e facas de mesa. Em pouco mais de meia hora, cerca de 2.000 delinqüentes atuando em nome de uma certa Via Campesina - congregação internacional da qual faz parte o MST - destruíram 5 milhões de mudas de eucaliptos das instalações do horto florestal da Aracruz Celulose.

Poucas vezes se viu manifestação tão obtusa. Segundo panfleto divulgado pela entidade, o objetivo era denunciar as 'conseqüências sociais e ambientais do avanço da invasão do deserto verde criado pelo monocultivo de eucaliptos'. (...) Esse delito coletivo traz consigo carradas de autoritarismo, atraso, sectarismo e intolerância dignos de uma ditadura albanesa. São exatamente esses os ideais "revolucionários" professados pelo movimento. Seus integrantes, como o folclórico José Bové, são fantoches a repetir os lugares-comuns da vulgata marxista. (...) O mesmo gênero de justiceiros indignados com eucaliptos costuma destruir lanchonetes de redes norte-americanas – que também são alvo de multidões simpáticas ao terrorismo islâmico no Paquistão, por exemplo.

63 Dois meses depois da ação, em 09/05/2006, a Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, por iniciativa do

deputado estadual Berfran Rosado (PPS), concedeu a Isabel Gonçalves a medalha da 51ª Legislatura “como forma de reconhecimento do Parlamento gaúcho à importância do conhecimento, da pesquisa e do estudo para o crescimento de nosso Estado e do nosso povo”. Segundo ele, “Em 8 de março, assistimos estarrecidos no Estado, no Brasil e no mundo, atitudes covardes, bárbaras, inconseqüentes e sobretudo bandidas, quando cerca de 2 mil representantes da Via Campesina e do MST invadiram o horto florestal Barba Negra, da Aracruz Celulose, em Barra do Ribeiro. (...) A atitude covarde que vimos atenta contra a Isabel, contra nossos filhos, contra o respeito, mas sobretudo contra uma terra livre e contra um povo honrado e trabalhador”. Disponível em:

(32)

31 O MST é vinculado a estereótipos de inimigos internacionais do capital, como “destruidores de lanchonetes norte-americanas” e, até, mesmo, a terroristas islâmicos64.

Além disso, ao utilizar entre aspas o termo “sociedade capitalista e patriarcal”, o jornal ironiza não apenas o combate de classe travado pelas sem-terra como a luta das mulheres. E é dentro dessa perspectiva que a personagem de Isabel Gonçalves colabora com determinada abordagem: difundir a imagem e a voz de uma mulher que diz, aos prantos, ter lutado 20 anos para desenvolver sua pesquisa na área de eucaliptos e que viu seu esforço perdido em minutos por causa de manifestantes, também mulheres, que literalmente destruíram seu viveiro de mudas, é um argumento poderoso.

A crítica assemelha-se àquelas feitas aos luditas no século XIX. Segundo Jesús Martím-Barbero (1997, p. 149),

A destruição das máquinas pelos luditas [foi] um movimento que passou pela história com uma imagem caricatural elaborada pela direita, mas que os historiadores de esquerda engoliram também há até pouco tempo. A de que foi a ignorância misturada a preconceitos religiosos, que impôs aos trabalhadores destruir as máquinas de trabalho, os teares mecânicos.

Hoje sabemos, sem dúvida, que os organizadores do movimento ludita não foram os trabalhadores ‘mais primitivos’, mas os mais instruídos e qualificados, aqueles mesmos que continuaram seu movimento para travar depois a primeira batalha pela jornada de 10 horas. E não foram preconceitos religiosos, mas uma percepção aguda da relação entre as máquinas e as novas relações sociais, entre o formato do dispositivo mecânico e a organização do trabalho na fábrica o que motivou a destruição das máquinas.

64 Ainda que não seja analisada aqui a revista Veja, esta publicou um texto de tônica semelhante intitulado “O

terror contra o saber”, onde menciona que “As queimas de livros durante a Inquisição e no regime nazista de Adolf Hitler já mostraram ao mundo como o obscurantismo é incapaz de conviver com o conhecimento. Na semana passada, uma horda de 2.000 militantes de um chamado Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) reproduziu um pouco dessa bestialidade ao invadir e destruir um centro de pesquisas da companhia Aracruz no município de Barra do Ribeiro (RS), a pouco mais de 50 quilômetros de Porto Alegre. Foi a maneira que esse braço até então desconhecido do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) armou para celebrar o Dia Internacional da Mulher - e estrear na prática medieval das invasões bárbaras”.

(33)

32 Essa semelhança também foi identificada por Horácio Martins de Carvalho, que chamou atenção para a postura de alguns intelectuais que se posicionaram contrários à ação da Via Campesina. De acordo com ele65,

Alguns intelectuais, homens e mulheres da cultura, vêem nessa iniciativa de enfrentamento do arbítrio econômico, social e ambiental das empresas a serviços da produção de celulose uma postura política similar àquela dos ludistas, daqueles homens e mulheres, velhos e crianças, todos eles operários das indústrias inglesas que durante muitas décadas, a partir do meado do séc. XVIII, destruíam as máquinas que frações da burguesia instalavam nas suas indústrias para aumentar não somente a produtividade como a mais-valia que extraiam do proletariado. Essa similaridade de ações políticas não é de todo surpreendente, nem impertinente. O que se faz inusitado na postura política desses intelectuais é a omissão das razões históricas que conduziram o proletariado, em fase incipiente de organização política e de desenvolvimento da sua consciência de classe nos meados do séc. XVIII, a tripudiar sobre as novas máquinas, assim como aqueles motivos que determinaram política e socialmente as mulheres camponesas no limiar do séc. XXI a violarem negócios privados e a tentarem anular as novas formas de exploração do trabalho e de degradação da natureza.

Porém, ainda que existam semelhanças na forma como a ações das mulheres da Via Campesina e a dos luditas foram vistas, Carvalho ressalta as diferenças entre as situações66:

Ao compararem superficialmente a ação dos ludistas com a ação direta das mulheres camponesas de inutilização de mudas de eucalipto para a produção de celulose de empresa multinacional do agronegócio deixam de salientar um aspecto de fundamental relevância. Enquanto os ludistas se surpreendiam com a inovação tecnológica representada pela mecanização industrial movida, então, a vapor, as mulheres camponesas, diferentemente, estavam plenamente conscientes de que o deserto verde que vem sendo criado pelas multinacionais da celulose deve ser barrado e superado. Num caso uma ação de resistência contra o desemprego; noutro uma ação ofensiva de negação da degradação ambiental e social. Em ambos os casos, e com graus distintos entre os níveis de consciência política, estava explícita a luta de classes.

Assim, aliada à referência histórica (pejorativa) à predominância da “histeria” entre as mulheres67, funda-se uma imagem caricatural sobre a ação da Via Campesina. A referência à

65 CARVALHO, Horácio Martins de. A celulose da morte. Jornal Brasil de Fato. 18/05/2006 66 CARVALHO, idem.

67 GOLA, Natalia; MAZZARRELA, Tatiana Teixeira Inglez. “Histeria, pelas fendas do narcisismo”. Instituto

(34)

33 rusticidade e à “delinqüência” somada à “histeria” evidencia um duplo preconceito já identificado pelas mulheres do MST: de classe e de gênero. Para analisá-lo, trabalharemos daqui para frente à luz do conceito de sujeito múltiplo ilustrado por Saffioti e Lauretis, em que “o sujeito constituído em gênero também o é em classe social e em raça/etnia”68, ao mesmo tempo em que histórico69:

Conceber gênero como uma relação entre sujeitos historicamente situados é fundamental para demarcar o campo de batalha e identificar o adversário. Nestas circunstâncias, o inimigo da mulher não é o homem nem enquanto indivíduo, nem como categoria social, embora seja personificado por ele. O alvo a atacar passa a ser, numa concepção relacional, o padrão dominante de relação de gênero. Diferentemente do que se pensa com freqüência, o gênero não regula somente as relações entre homens e mulheres, mas normatiza também relações homem-homem e relações mulher-mulher. Deste modo, a violência cometida por uma mulher contra outra é tão produzida pelo gênero quanto a violência perpetrada por um homem contra uma mulher. A adequada compreensão deste fenômeno responderá pela formulação de estratégias de luta com maior potencial de êxito, enquanto a singularização do inimigo pode fazer perder de vista o nó constituído pelas três contradições sociais básicas: gênero, raça/etnia, classe social.

Dessa forma, apresentamos alguns questionamentos a serem explorados nos capítulos 2 e 3: é possível afirmar que a presença econômica da Aracruz tenha influenciado a cobertura dos grandes meios de comunicação? Quais são os vínculos entre as relações entre os poderes político e econômico e a mídia no Brasil? Considerando que o MST é, inegavelmente, um assunto constante nos principais meios de comunicação70, houve diferenciação em relação às mulheres? Se sim, isso decorre de fato de um preconceito de gênero e classe na cobertura de mobilizações sociais?

68 SAFFIOTI, Heleieth. “Conceituando o gênero”. Cartilha “Gênero e educação”. Coordenadoria Especial da

Mulher. Prefeitura de São Paulo, 2003, p. 40.

69 SAFFIOTI, idem.

70 “O MST oferece um manancial de exemplos da manipulação da informação. A mídia oculta aos olhos de

(35)

34 Tabela 1

Ano 2006 - Folha de S. Paulo

Data Título Tem chamada na

capa. Se sim, há imagem?

Ocupa posição de destaque no jornal?

É a principal chamada da página? Tem recurso visual (fotos, mapas e/ou infográficos)?

Número de fontes que representam a organização dos atos

08/03 “Muheres protestam hoje na Paulista”

Não Não

(Editoria

“Cotidiano”, p. C 5 – edição São Paulo)

Sim Não 2 fontes (Maria

Aparecida de Melo e Marta Baião)

08/03 “MST invade 5 fazendas no Pontal; ação policial reintegra área em PE”

Não Não

(Editoria

“Cotidiano”, p. C 4 – edição nacional)

Não Não 1 fonte (Maria

Aparecida de Melo)

09/03 “Muheres depredam fábrica de celulose no RS”

Sim

(com imagem) Sim (Editoria “Brasil”, p. A 10)

Sim Sim

(4 fotos e 1 box “Saiba mais”)

0 fontes

09/03 “MST invade 5 fazendas no Pontal; ação policial reintegra área em PE”

Não Sim

(Editoria “Brasil”, p. A 10)

Não Sim

(1 mapa)

2 fontes (Diolinda Alves de Souza e Jaime Amorim)

09/03 “Lavradores entram em choque com a polícia”

Não Sim

(Editoria “Brasil”, p. A 10)

Não Não 0 fontes

09/03 “3.000 marcham contra

violência doméstica” Não Não (Editoria

“Cotidiano”, p. C5)

Sim Sim

(36)

35 Tabela 2

Ano 2006 – O Estado de S. Paulo

Data Título Tem chamada na

capa. Se sim, há imagem?

Ocupa posição de destaque no jornal?

É a principal chamada da página? Tem recurso visual (fotos, mapas e/ou infográficos)?

Número de fontes que representam a organização dos atos

08/03 “Data será comemorada com atos públicos e passeatas pelo País”

Não Sim (Editoria

“Geral”, p. A17)

Não Não 1 fonte (Gilberta da

Silva)

09/03 “Via Campesina destrói um milhão de mudas e destrói laboratório no Sul”

Sim

(sem imagem) Sim (Editoria “Nacional”, p A 16)

Sim Sim

(1 foto) 1 fonte (Luci Piovesan)

09/03 “Sem-terra ampliam

ações no ano vermelho” Sim (com imagem) Sim (Editoria “Nacional”, p A 16)

Não Sim

(3 fotos e 1 mapa) 1 fonte (Jaime Amorim)

09/03 “Venezuela 2 – Mulheres marcham contra a guerra”

Não Sim

(Editoria “Internacional”, p A20)

Não Sim (1 foto) 0 fontes

09/03 “Manifestações pelo Dia Internacional da Mulher”

Não Não

(Editoria “Vida&”, p A 23)

(37)

36

Capítulo 2

Gênero feminino e espelho midiático

2.1- A mídia em seu lugar

No Brasil, os donos dos grandes meios de comunicação não são conhecidos apenas como proprietários. São também designados “coronéis”. O termo, utilizado com freqüência para traçar um diagnóstico da mídia nacional, não é mera associação conceitual ao coronelismo definido na Ciência Política por autores como Victor Nunes Leal e Raymundo Faoro. Os autores Venício A. de Lima e Paulino Motter apontam como a expressão foi cunhada:

O sistema brasileiro de comunicação desenvolveu-se apoiado num modelo misto, que combinou o monopólio estatal das comunicações e o controle privado-comercial hegemônico das mídias eletrônicas. Neste caso, a outorga das concessões de radiodifusão pautou-se, historicamente, por critérios políticos, privilegiando as relações clientelistas e reforçando o domínio de elites sobreviventes dos tempos da República Velha. O resultado é que essa prática consolidou uma aliança entre grupos políticos que controlam os mídia locais e regionais e os oligopólios dos concessionários das principais redes de radiodifusão no país. (LIMA; MOTTER, 1983, p. 12)

(38)

37 e os Pimentel no Paraná71.

Contudo, cabe assinalar que Lima e Motter, assim como os demais autores que optam por utilizar o termo “coronelismo eletrônico”, fazem uma análise, em nosso entendimento, demasiado datada, um problema que tem sua origem na compreensão de coronelismo. De acordo com Francisco P. Farias, “dado o contexto em que Victor Nunes Leal [referência para Lima e Motter] escreve seu trabalho (década de 1940), fica subentendido que ele se refere ao latifúndio pré-capitalista (‘fazenda’) e não ao latifúndio capitalista (‘empresa rural’).72” Farias aponta, em seu estudo, as mudanças sociais, econômicas e políticas do interior do Piauí que desencadeiam a transição de coronelismo (com o voto de cabresto com curral eleitoral) para clientelismo (com o voto de barganha com clientela eleitoral), seja este estatal ou privado. Dessa maneira, se considerarmos que a dimensão econômica dos meios de comunicação faz parte do sistema capitalista, e não pré-capitalista, o termo “coronelismo eletrônico” não se aplica à realidade. O mesmo ocorre com as práticas políticas dos proprietários da mídia citadas por Lima e Motter – alianças locais e regionais, privilégios e reforço do domínio das elites –, que segundo Farias (em referência a Marcel Bursztyn) podem e provavelmente irão permanecer com o clientelismo: de modo semelhante aos coronéis, os novos burocratas também se utilizariam da manipulação eleitoral, não havendo ruptura entre suas práticas (ambos são “autoritáritos e “paternalistas”). Mas alerta: “é preciso levar em conta que, para além de semelhanças superficiais, tanto o conteúdo como a forma da manipulação se alteram de um caso para o outro”73.

Cito aqui dois exemplos de orçamentos recentes para dimensionar atualmente o

71 “Os donos da mídia”. Relatório do Instituto Epcom. Porto Alegre: 2002.

72 FARIAS, Francisco Pereira de. Do coronelismo ao clientelismo – a transição política no noroeste do Piauí

(1982-1996). Dissertação (Mestrado em Ciência Política). 1999. Universidade Estadual de Campinas, p.13.

(39)

38 negócio das comunicações: de acordo com a edição 2008 da publicação “Valor 1000” 74, o Grupo Globo, líder do setor, é a 48ª maior empresa do país, com uma receita líquida de R$ 5,12 bilhões e lucro líquido de R$ 560 milhões; já a holding do Grupo SBT, a Silvio Santos Participações, obteve receita de R$ 1,185 bilhão e lucro líquido de R$ 480 milhões. Apesar das altas cifras, esses valores estão abaixo do limite atingido pelos concorrentes estrangeiros. Note-se que a concentração internacional nas mãos de poucos proprietários também se faz presente, mas o lucro dessas empresas é superior: como aponta Dênis de Moraes (2003, p. 198), “a mídia global está nas mãos de duas dezenas de conglomerados, com receitas entre US$ 5 bilhões e US$ 35 bilhões. Eles veiculam dois terços das informações e dos conteúdos culturais disponíveis no planeta”.

A mídia é apontada, portanto, como um negócio altamente rentável (que pode incluir, para alguns estudiosos, também as notícias veiculadas75), cujo dinheiro é um produto final76, fruto da acumulação do capital77.

Como coloca Pierre Bourdieu, analisando particularmente a televisão, existe uma pressão econômica que influencia no funcionamento dos meios de comunicação, gerando censuras78 (ainda que o autor dê ênfase a outras formas de censura não diretamente relacionadas a esse tipo de pressão):

Pode-se pensar também nas censuras econômicas. É verdade que, em última instância, pode-se dizer que o que se exerce sobre a televisão é a pressão econômica. Dito isto, não podemos nos contentar em dizer que o que passa na televisão é determinado pelas pessoas que a possuem, pelos anunciantes

74 Valor 1000. Valor Econômico, n°8, 2008.

75 Saindo do campo teórico demarcado aqui, segundo Habermas: “A circulação de notícias desenvolve-se não

somente em conexão com as necessidades da circulação de mercadorias, as próprias notícias tornam-se mercadoria”. HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro: 1984

76 MARX, 1984, livro 1, volume 1, p. 165: “Se pomos de lado o conteúdo material a circulação das mercadorias,

a troca dos diferentes valores de uso, para considerar apenas as formas econômicas engendradas por esse processo de circulação, encontraremos o dinheiro como produto final”.

77 MARX, 1984, livro 2, p. 658: “Quando ocorre de fato a acumulação é porque o capitalista conseguiu vender a

mercadoria produzida e reconverter o dinheiro recebido em capital”.

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