PUC-SP
WLADIMIR ALBERTI PASCOAL DE LIMA DAMASCENO
Quando a Posição Fluente se Perde: Desarmonia Entre Fala e Língua
Mestrado em Fonoaudiologia
PUC-SP
Wladimir Alberti Pascoal de Lima Damasceno
Quando a posição fluente se perde: desarmonia entre fala e língua
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção
do título de MESTRE em
Fonoaudiologia, sob a orientação da Profa. Dra. Silvia Friedman.
Programa de Estudos Pós-Graduados em Fonoaudiologia
Coordenadora do Curso de Pós-Graduação Profª. Drª. Léslie Piccolotto Ferreira
Quando a Posição Fluente se Perde: Desarmonia entre fala e língua
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção
do título de MESTRE em
Fonoaudiologia, sob a orientação da Profa. Dra. Silvia Friedman.
Aprovada em: ______ / _______ / _________
Banca Examinadora
_______________________________ Profª Drª Silvia Friedman – PUC-SP
_______________________________ Profª Drª. Maria Inês Tassinari – PUC-SP
À Profª Drª Silvia Friedman, pessoa de luz e sabedoria, pelos ensinamentos, compreensão e empenho direcionados à realização deste trabalho, bem como pelo carinho demonstrado a mim, à minha esposa e ao meu filho.
À minha esposa, Mônica, pelo amor, apoio, incentivo e compreensão doados durante essa jornada que modificou para sempre nossas vidas e nos resultou na chegada de Nícolas Lionel, nosso melhor ato.
Ao meu pai e minha mãe, João e Lêda, por terem me apoiado quando decidi vir fazer o mestrado em São Paulo e pela recepção calorosa nas idas à Natal.
Aos amigos Meline e Gerlando por terem me acolhido com muito carinho no início da minha mudança para São Paulo.
A Ossian, Edilza, Valentina, Bolívar, Liliane, Ubiratan, Yuri, Felipe e Marizete pelas visitas realizadas que tornaram melhores os dias em São Paulo.
À Profª Maria Inês Tassinari pelas contribuições pertinentes dadas a esse trabalho.
À Profª Regina Yu pelas sugestões que enriqueceram essa pesquisa.
À Virgínia, excelente secretária do PEPG em Fonoaudiologia, pela prontidão de suas respostas e pelas boas conversas.
Ao CNPq pelo apoio à pesquisa e à bolsa concedida.
Às boas amizades construídas ao longo deste curso: Denise, Lhaís, Tatiana Núbia, Tuísa, Andréa, Paloma, André, Treyce, Gisele, Cínthia, Verinha e Thaís.
Damasceno WAPL. Quando a posição fluente se perde: desarmonia entre fala e língua [dissertação]. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos Pós-Graduados em Fonoaudiologia; 2012. 94 f.
Introdução: Este trabalho parte da hipótese de que no funcionamento discursivo gaguejante há uma desarmonia entre fala (sentido do dizer) e língua (forma do dizer). Com base na linguística discursiva temos que, na posição fluente, o falante desliza pelo sentido do dizer esquecido da forma; na posição gaguejante, ocupado em evitar essa forma de falar, permanece submetido à forma e perde a posição discursiva que lhe garantiria a fluência. Objetivo:
Desenvolver a compreensão sobre a desarmonia entre fala e língua a partir do discurso de pessoas adultas com gagueira. Método: Pesquisa qualitativa prospectiva realizadas por meio de entrevistas semi-estruturadas com 6 adultos, a partir das perguntas-chave: ‘o que vem à sua cabeça quando eu digo’ - ‘falar’; ‘falar com fluência’; ‘falar em público’; ‘falar sozinho’; ‘o que o ajuda a fluir’; ‘o que faz para não gaguejar ou o que o ajuda a não gaguejar’; ‘se sabe que vai gaguejar’; e ‘o que o faz saber que vai gaguejar’. Após a
transcrição do discurso a noção de práticas discursivas e produção de sentidos (Spink e Medrado, 2004) permitiu que se definissem três categorias analíticas que organizaram os resultados e guiaram a discussão: Sentido da Fala
os tipos de interlocutores e de contextos discursivos que lhes favorecem a fluência ou a gagueira. Revelam marcas negativas na subjetividade, porque ao ocuparem a posição de falantes gagos imaginam o outro na posição daquele que fiscalizará seu dizer e poderá rejeitá-los ou reprová-los. Em Contexto de Fala – Efeito Sozinho relataram que na condição sozinhos podem fluir livremente, o que reitera a gagueira como uma manifestação fortemente atrelada à presença do outro. Em Antecipação da Gagueira os entrevistados revelam os modos como a gagueira é prevista subjetivamente antes de materializar-se na fala: pensamentos ou visualizações; emoções ou sentimentos; ações do corpo ou estratégias linguísticas. Conclusão: Os relatos dos entrevistados indicam que a desarmonia entre fala e língua, no discurso gaguejante, relaciona-se a um falante que, na subjetividade, se sente estigmatizado diante de certas condições de produção discursiva; indicam ainda os diferentes modos pelos quais essa desarmonia se materializa com a finalidade de evitar a gagueira prevista. Tais características assinalam alguns elementos que parecem importantes ao direcionamento de uma abordagem terapêutica fonoaudiológica da gagueira que pretenda superar o modo de funcionamento subjetivo/discursivo que a sustenta.
Damasceno WAPL. When Fluent Position is Lost: disharmony between speech and language. [dissertation]. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos Pós-Graduados em Fonoaudiologia; 2012. 94 f.
Introduction: This paper starts from the assumption that there is a disharmony between speech (meaning) and language (form) in the stuttered discursive functioning. Based on discursive linguistics we understand that in a fluent in position, the speaker slides along the meaning of speech without any attention to the form of language; yet in a stuttered position he reminds occupied in trying to avoid stuttering and by acting like that he remains subdued to the form of language and looses the discursive position that would guarantee his fluency.
Objective: To develop the understanding about disharmony between speech and language via the speech of adult stutterers. Method: Prospective qualitative research conducted through semi-structured interviews with six adults, following the key questions: what comes to mind when I say - ‘speech’; ‘to speak with fluency’; ‘public speaking’; ‘talking to myself’; ‘what helps fluency’; ‘what do you makes to not stutter or what helps you not to stutter’; ‘do you know
if you will stutter?, and ‘what makes you know that you will stutter’. After the
speech transcription, the notion of discursive practices and production of meaning (Spink and Medrado, 2004) allowed us to define three categories that organized the results and guided the discussion: Sense Speech composed by the sub-categories: Positive and Negative; Context of Speech, composed by the sub-categories The Effect of Others and The Effect of Being Alone; and
Anticipation of Stuttering. Results and Discussion: In Sense Speech-Positive
subjective position of a stigmatized speaker, to build up therapeutic approaches to overcome this position. In Context of Speech-The Effect of Others, respondents discriminated types of speakers and of discursive contexts that favored fluency or stuttering. They showed negative marks on subjectivity, because when they feel like stutterers they imagine the others monitoring their speech and able to reject or disapprove them. In Context of Speech-The Effect Alone respondents reported that when they are alone they can flow freely, which reiterates the stuttering as a manifestation strongly linked to the presence of others. In Anticipation of Stuttering respondents reveal the ways in which stuttering is expected subjectively before it is materialized in their speech: thoughts or views; emotions or feelings; actions of the body or linguistic strategies. Conclusion: The reports of the respondents indicates that the disharmony between speech and language, in stuttered speech, is related to a speaker who feels stigmatized in his subjectivity in face of certain conditions of discursive production; also indicates the different ways in which this disharmony is materialized in order to avoid the provided stuttering. These characteristics indicate some elements that seem important to the targeting of a therapeutic approach of stutter speech wishing to overcome the subjective/discursive functioning that sustains it.
INTRODUÇÃO ... 10
CAPÍTULO 01 – FLUÊNCIA, DISFLUÊNCIA, GAGUEIRA E CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO DISCURSIVA ... 13
CAPÍTULO 02 – MÉTODO ... 26
Critérios de Inclusão dos Participantes ... 27
Caracterização dos Participantes ... 27
Análise dos Dados ... 28
Descrição das Categorias ... 31
CAPÍTULO 03 – RESULTADOS E DISCUSSÃO ... 34
CONCLUSÃO ... 51
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 53
ANEXOS ... 56
Anexo A – Aprovação do Comitê de Ética e Pesquisa ... 57
Anexo B – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ... 58
Anexo C – Mapa de Associação de Ideias – Entrevistado 1 ... 61
Anexo D – Mapa de Associação de Ideias – Entrevistado 2 ... 66
Anexo E – Mapa de Associação de Ideias – Entrevistado 3 ... 78
Anexo F – Mapa de Associação de Ideias – Entrevistado 4 ... 85
Anexo G – Mapa de Associação de Ideias – Entrevistado 5... 87
INTRODUÇÃO
Falar sobre gagueira é sempre algo delicado de se fazer. O tema é
abordado por diversas áreas nas ciências humanas, sob mais de um ponto de
vista, sendo alguns de seus aspectos controversos e polêmicos, como sua
gênese e abordagem terapêutica. Além desses, a própria definição de gagueira
no DSM-IV - Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais1
provoca discussões.
De acordo com esse manual, gagueira é: Distúrbio no padrão normal
de fluência e tempo de fala (inapropriado para a idade do indivíduo),
caracterizado pela ocorrência de um ou mais dos seguintes itens:
(1) repetição de sons ou sílabas (2) prolongamento de sons (3) interjeições
(4) pausas dentro das palavras (5) bloqueios silenciosos ou audíveis
(6) circunlóquios (substituições de palavras para evitar palavras problemáticas)
(7) palavras produzidas com excesso de tensão física (8) repetições de palavras monossílabas
A partir dessa definição algumas perguntas simples surgem: pode-se
falar em padrão normal de fluência? Quem definiu que em determinada idade
se deve fluir de determinado modo? A partir de que? Por que? A fluência de
fala é um aspecto complexo da linguagem humana, e a diversidade é a sua
regra.
O cotidiano nos mostra que as pessoas lidam de diferentes modos
com a linguagem oral. A capacidade de traduzir o pensamento em palavras, ou
seja, de fluir na fala não é homogênea entre os falantes. Alguns revelam ter
bastante facilidade em fazê-lo de modo claro e objetivo, outros nem tanto. No
caso de crianças, quando apresentam uma ou mais das características de fala
descritas no DSM-IV, observa-se que muito rapidamente são rotuladas como
gagas por familiares, professores e por profissionais da saúde, a partir de uma
visão de fala isolada de aspectos subjetivos e discursivos que possam
contextualizar esse modo produção discursiva.
Partindo da constatação de Saltuklaroglu e Kalinowski (2005), entre
outros autores, de que as taxas de recuperação espontânea da gagueira estão
em torno dos 60% a 80%, parece válido questionar se isso se refere
efetivamente a uma recuperação ou se, diante dessa alta porcentagem, não
seria mais razoável considerar que há uma tendência a ver a disfluência normal
de fala como gagueira, uma tendência que revela uma ideologia do bem falar
agindo não apenas no senso comum, mas também sobre os profissionais da
saúde e da educação.
Perseverar num modo de produção científico que, em nome de
preservar a objetividade, rejeita ou ignora a subjetividade, pode estar na raiz da
incapacidade de entender como normais a grande gama de padrões de fala
que se podem produzir dentro da polaridade entre fluir e disfluir, em função de
diferentes situações comunicativas. Pode também estar na raiz da
incapacidade de acolher como importantes para compreender a natureza da
gagueira e orientar seu tratamento, os relatos sobre o que pensam e sentem a
respeito da fala e da gagueira as pessoas que gaguejam. É na direção de
cooperar para superar tal condição na ciência que esta dissertação se
Sou fonoaudiólogo, atuo com a Dra. Silvia Friedman no Instituto
CEFAC - Ação Social em Saúde e Educação, onde atendo adultos,
adolescentes e crianças que gaguejam. Também gaguejo e, nesses
atendimentos, posso compartilhar minha experiência tanto como falante,
quanto como terapeuta. No trabalho são abordadas questões que visam ajudar
os falantes a saírem da posição subjetiva estigmatizada que ocupam e, como
decorrência, ajudá-los a mudar o seu modo de funcionamento discursivo. Tal
mudança aconteceu comigo após terapia fonoaudiológica e leituras sobre
gagueira e subjetividade e me inspirou nos caminhos que segui nesta
dissertação.
Nesse sentido, espero que este trabalho contribua com os estudos
sobre gagueira que levam em conta a perspectiva de quem gagueja, sob a luz
de conhecimentos linguísticos-discursivos.
No capítulo 01 apresentam-se as perspectivas positivista e
dialético-histórica sobre gagueira, bem como as características das abordagens
terapêuticas que delas emergem.
No capítulo 02 explicita-se o método usado para a realização do
trabalho, que é norteado pela noção de práticas discursivas e produção do
discurso de Spink (2004).
No capítulo 03, analisam-se e discutem-se os dados obtidos a luz de
uma literatura sobre gagueira, produzida por fonoaudiólogos, linguistas e
psicólogos.
Capítulo 01 – Fluência, Disfluência, Gagueira e Condições de Produção Discursiva
A literatura científica fonoaudiológica acerca de fluência, disfluência e
gagueira apresenta, em sua maioria, trabalhos com base no paradigma
positivista (Damasceno e Friedman, 2011). A visão que se delineia a partir
dessa vertente, caracteriza-se por uma abordagem centrada no organismo, na
anátomo-fisiologia e entende as questões da fala do ponto de vista quantitativo.
Neste entendimento, Jakubovicz (1997) considera que fluência é a
progressão silábica no tempo com correta sincronização respiratória, iniciação
suave e harmônica, sustentação da coluna de ar e vibração da glote.
Para a autora, a fluência caracteriza-se por quatro parâmetros: ritmo da
fala, duração da articulação dos fonemas, organização dos fonemas em uma
realidade linguística e velocidade de articulação dos fonemas.
Andrade (2000) propõe que a fluência de fala é resultado de um
funcionamento neurológico sincrônico entre os sistemas linguísticos e
cognitivos e os sistemas prosódicos da fala e paralinguísticos. Aspectos
neurais motores e os envolvidos na linguagem em equilíbrio produzem fluência.
Merlo (2007) refletiu sobre o conceito de fluência e citou sete
componentes que fazem parte dela: baixa frequência (quantidade e tipologia)
de hesitações; baixa frequência de reformulações; baixa frequência, curta
duração e uso nativo de pausas silenciosas fluentes; taxa de elocução
(velocidade de fala) confortável; facilidade de emissão; habilidade gramatical e
se relacionam entre si, “formando uma complexa rede de interação” (op cit, p.
70).
Quando à disfluência, Andrade (2000), a fim de diferenciar as normais
das patológicas, as classifica em comuns e gagas, respectivamente. As
“comuns”, entendidas como presentes no discurso de todos os falantes, são as
interjeições, repetições de palavras, hesitações, palavras incompletas, revisões
e segmentos de palavras ou frases. As “gagas”, entendidas como
conseqüência de um comprometimento neurológico do ato motor fluente de
fala, são: 03 ou mais repetições de sons e/ou sílabas e/ou palavras,
prolongamentos, bloqueios e pausas longas e intrusões de sons.
Para Bohnen (2005), a disfluência com mais de um segundo de
duração é indicativa de gagueira. Além disso, diz a autora, a disfluência
manifesta-se geralmente entre dois e seis anos de idade, e deve durar entre 6
e 10 semanas.
Nesta fase, para Pereira (2002) é difícil saber se a criança que disflui
ficará gaga. Considera que fatores emocionais, sociais e predisposição
genética contribuem para isso, sendo que o meio ambiente “dispara o gatilho”
(op.cit. 43) e a criança vivencia emoções negativas em relação à sua fala. Por
isso, defende que para evitar a instalação da gagueira o diagnóstico deve ser
minucioso.
Dentro do paradigma positivista, portanto, a disfluência comum é
demarcada por limites quantitativos e cronológicos, que, quando extrapolados,
indicam “disfluência gaga”, marcada por contornos patológicos.
A gagueira, por sua vez, aparece descrita em oposição aos aspectos
transtorno que se manifesta por rupturas involuntárias no fluxo do discurso, que
afeta a fala nos subsistemas respiração, fonação e articulação.
Segundo Andrade (1999, 2000) e Arcuri et al. (2009), decorre de bases
orgânicas que envolvem hereditariedade, genética e alterações neurológicas. É
definida pelas autoras como uma dificuldade ou incapacidade na recuperação
do equilíbrio dos sistemas neurais responsáveis pela fala fluente.
Para Schiefer (2009) as rupturas da fala do indivíduo gago são
afetadas por fatores como a extensão vocabular. Cita como exemplo palavras
polissílabas começadas por consoante, além de construções mais complexas.
Para a autora, essa relação com aspectos linguísticos parece indicar que a
gagueira resulta de falhas “tanto no processo de planejamento quanto no de
execução motora da fala” (op.cit.:450).
Juste e Andrade (2011), por outro lado, a partir dos resultados
encontrados em um conjunto de sujeitos por elas estudado, encontraram que a
extensão vocabular não influenciou a ocorrência de rupturas. Com base nos
resultados que indicaram rupturas de fala em início de palavras e sílabas,
consideraram que a gagueira decorre de “uma dificuldade na temporalização
entre as velocidades de seleção e ativação fonológica” (p.23).
Para Andrade (2000), a gagueira materializa-se em sílabas e palavras
passíveis de serem gravadas e transcritas, para se transformarem em amostra
a ser analisada pelo fonoaudiólogo. A análise é feita em relação à tipologia das
disfluências, à velocidade de fala, à frequência de rupturas, e a outros traços
associados à fala como movimentos corporais e vocais, além da formulação
para ser comparada percentualmente a padrões previamente definidos,
indicativos de normalidade ou patogenia.
Nesse tipo de visão, percebe-se que a etiologia, a semiologia e a
diagnóstica ligadas à gagueira têm por base um corpo deficiente (Oliveira e
Friedman, 2006). É um entendimento em que se isola a gagueira tanto dos
aspectos pessoais que marcam o falante; sua história de vida, como das
condições de produção do discurso, ou seja, não se leva em conta questões de
ordem psicológica, cultural e social. Isso, do ponto de vista terapêutico,
sustenta um manejo da gagueira direcionado à modelagem da forma da falar.
Em outras palavras, como na abordagem terapêutica fonoaudiológica não é
possível intervir nos supostos fatores etiológicos, a abordagem volta-se à
treinar o paciente, por meio de técnicas e instrumentos, a monitorar sua fala, a
fim de modelá-la a um padrão considerado normal (Oliveira e Friedman, 2006).
Freire (2011), ao analisar a clinica fonoaudológica que se estrutura em
torno de uma etiologia, semiologia e diagnóstica coerentes com o discurso
médico, defende que a terapêutica reduz-se a técnicas prescritivas. Este modo
de se organizar, com elementos clínicos emprestados de outras ciências, diz a
autora, provocou incômodos e levou uma parte da Fonoaudiologia a se
distanciar deste entendimento, o que trouxe “um grande avanço no
conhecimento de seu objeto, a linguagem” (op.cit.:90). Esse distanciamento,
argumenta ainda a autora, permite pensar em uma clínica fonoaudológica
centrada no sujeito, que mantenha a esperada coesão e covariância entre seus
4 elementos2.
2
Na esteira da crítica ao positivismo como modo de construção do saber
nas ciências humanas, Morin (2010), em suas reflexões sobre as limitações do
modo convencional de fazer ciência, aponta para a necessidade de enfrentar o
desafio de construir novo paradigma. Segundo o autor, torna-se imperativo,
para o desenvolvimento humanizado da ciência, a construção da aptidão para
contextualizar e globalizar os saberes, de modo a situar todo o acontecimento
científico em relação de inseparabilidade com o meio ambiente – cultural,
social, econômico, político e natural.
Uma tendência a olhar a fluência de fala e os seus problemas por essa
ótica está presente na literatura fonoaudiológica e afins. São os trabalhos
apoiados no paradigma dialético-histórico (Damasceno e Friedman, 2011), com
base no qual se constrói uma a clínica da gagueira caracterizada por uma
abordagem centrada no sujeito falante e, mais especificamente, na
compreensão dos efeitos que as relações entre as pessoas, em contextos
sócio-culturais específicos, produzem na capacidade de falar, os quais
concorrem para moldar a subjetividade do falante.
Nessa direção, Friedman (2010:443) propõe encarar a fluência de fala
como um acontecimento complexo, cuja compreensão depende de
considerá-la, no mínimo, a partir de três dimensões: a orgânica (condições biológicas do
indivíduo), a psíquica (condições subjetivas) e a social (condições culturais,
costumes, mitos e ideologias).
Pensá-la nessa perspectiva implica, para a autora (op.cit.:445), levar
em conta a dialética entre o interno (condições biológicas e subjetivas) e o
externo (condições sócio culturais) da pessoa que fala. Isso, concordamos com
e abre espaço para pensar os lapsos, os esquecimentos, as hesitações, as
quebras e as descontinuidades como parte integrante e ativa da fluência de
fala.
Scarpa (2006) em seu estudo sobre a fluência de crianças entre 22
meses e 3 anos de idade, identificou que os trechos fluentes da fala infantil são
os já conhecidos e vêm em bloco, enquanto os trechos em construção são
instáveis e disfluentes, entendidos como momentos de descoberta da língua e
suas regras. As disfluências, segundo a autora, “ao invés de serem problemas
de formulação, são, na verdade, constitutivas da fala. São estratégias de que o
falante lança mão para a construção do texto oral” (op.cit.:176). Compreender a
fluência como absoluta e como uma produção circunscrita apenas ao falante,
faz parte de uma ideologia de senso comum, é uma abstração inexistente, diz a
autora.
Nessa direção, Azevedo e Freire (2001), apoiadas nas ideias de De
Lemos (1999), destacam que quando a criança é capaz de interpretar seu
próprio discurso e o do outro, está em posição de reconhecer seus erros e,
então, surgem pausas, reformulações, hesitações e auto-correções.
Também Orlandi (2001) colabora para uma compreensão de que a
fluência não pode ser tomada como homogênea e previsível. Ao analisar o
modo como o momento de produção de fala é afetado pelas relações entre o
sujeito, o outro e a língua, refere três condições de produção do discurso,
presentes para todo falante: a) a relação de forças - em uma sociedade
hierarquizada, o dizer, dependendo da posição social do falante, pode ter mais
ou menos valor e implicar no modo como ele fala; b) a relação de sentido - tudo
um dizer único e inédito, o sentido do dizer é sempre aberto e não é evidente,
já que está sujeito à interpretação do ouvinte; e c) a antecipação - de seu lugar,
o falante experimenta o lugar de seu interlocutor e imagina o que este vai
pensar a seu respeito e a respeito do que está dizendo.
As condições de produção do discurso, assim, são formações
imaginárias, que estão implicadas na forma como o sujeito falará, corroborando
com o entendimento da disfluência como algo natural da/na fala humana.
A disfluência, para Azevedo e Freire (2001)
“é o lugar de subjetivação, o lugar onde a língua, enquanto outro faz efeito no sujeito e ele joga com ela, descobre regras e é levado a assemelhar-se à fala do adulto. Essa disfluência é constituinte do sujeito e permanece até a idade adulta, uma vez que o conceito de fluência é ideal. Poderia, entretanto, deslocar-se para gagueira? Os discursos dos sujeitos gagos e de seus pais a que temos acesso na clínica fonoaudiológica nos diz que sim” (2001: 151)
O deslocamento de disfluência para gagueira, segundo as autoras,
está relacionado à posição discursiva em que a criança, capaz de reconhecer
seus erros, produz pausas, reformulações, hesitações e autocorreções. Essa
posição, para as autoras, parece ser um lugar interessante para pensar a
origem da gagueira, porque nela a criança, submetida às condições de
produção do discurso, está sujeita a disfluir e, face a ideologia de senso
comum, a ter seu discurso interpretado como gaguejante pelo outro,
geralmente um adulto. Nessa condição, explicam ainda as autoras, pode haver,
por parte do adulto, uma tentativa de ajudar a criança a fluir. Nessa tentativa,
entretanto muitas vezes “prevalece um discurso autoritário, que coloca a
criança em uma relação de ordem de cima para baixo: Fale direito! Respire
Esse tipo de discurso é dominado pela ausência de reversibilidade, a
criança se distancia do reconhecimento e identificação do erro. Nessa posição,
a criança não se desloca na língua, já que seu discurso não é reconhecido nem
interpretado como linguagem. Tal interpretação do adulto recusa sentido à fala
disfluente da criança e ressalta a forma. A partir dessa interpretação, “a criança
depara-se com a diferença, a recusa de assemelhamento, sendo silenciada por
este outro e deslocada para a posição de sujeito gago” (op.cit.:152).
O discurso do outro, afirmam as autoras, leva a criança a deslocar o
erro para fora da fala. O efeito da interpretação pode levar ao silenciamento da
criança ou a movimentos corporais associados, como de pés, mãos, de
cabeça, contrair ou tensionar os órgãos fonoarticulatórios ou à substituição de
palavras por outras tidas como mais fáceis, por exemplo.
Nessa direção, Lier-De Vitto, Fonseca e Landi (2007) afirmam que na
fala vista como sintomática “um efeito ‘social’ de
marginalização/estigmatização/isolamento se produz na escuta do outro e um
efeito de ‘destituição subjetiva’ na escuta do próprio falante” (op. cit.: 20). Neste
sentido, as autoras propõem que a diferença subjetiva entre uma fala normal e
uma fala sintomática, é que na primeira, a manifestação de “tropeços e
embaraços” não retira do falante “a ilusão de controle e autonomia em relação
à linguagem” (op. cit.: 20). Já na fala sintomática o falante perde essa ilusão.
Na mesma direção, também Friedman (2004) explicou a constituição
da gagueira a partir de uma ideologia de bem falar que rejeita e estigmatiza a
fala disfluente da criança. Nessa condição, explica, a fala fica numa situação
paradoxal, na qual a criança nem pode falar como falava, nem sabe como falar
encontro da visão de uma relação autoritária que não permite reversibilidade no
discurso. Segundo a autora ainda, isso leva à constituição, na subjetividade, de
uma imagem estigmatizada de falante, o que, por sua vez, é coerente com
noção de recusa de assemelhamento. O efeito disso na subjetividade, segundo
Friedman (2004), é a antecipação, na fala, dos lugares em que a gagueira
ocorrerá, na tentativa de contê-la. Desse modo, a autora indica que na
gagueira, o falante prioriza a forma de sua fala em detrimento do sentido.
Ainda sobre o surgimento da gagueira, Gomes (2011), apoiada em
textos psicanalíticos, fundamentou a hipótese de que a gagueira pode surgir
quando a criança, após vivenciar alguma experiência relacionada à morte,
fantasia que as palavras podem provocar o seu desaparecimento e o
desaparecimento da mãe e do pai. Assim, a criança passa a reter a palavra,
como forma de impedir tais desaparecimentos. Observa a autora, que “é
possível pensar que a gagueira dá corpo à retenção da palavra mágica
destrutiva, ao mesmo tempo em que permite que a criança fale” (op.cit.:66).
Observa-se que também nessa visão, a língua, ou seja, a forma é priorizada no
discurso.
A esse respeito, Azevedo e Freire (2001:154) explicam que “na ordem
discursiva há uma tensão natural entre língua (forma) e fala (sentido). Essa
tensão é estruturante e determina todo o dizer, de tal modo que a linguagem é
a articulação de língua e fala”. Na posição fluente, dizem as autoras, há um
privilégio do sentido (da fala) em detrimento da forma (da língua), já na posição
gaguejante a tensão natural dá lugar a uma desarmonia, porque o privilégio
passa a estar na forma, o que se expressa pela certeza que o falante gago
com certas pessoas, etc. O privilégio da forma em detrimento do sentido,
completam as autoras, leva o falante à perda da posição fluente. O privilégio da
forma em detrimento do sentido, ainda, é coerente com a noção de antecipar,
na fala, os lugares em que a gagueira ocorrerá, proposta por Friedman (2004).
Nesse tipo de visão em que a gagueira é entendida como problema de
linguagem, percebe-se que a semiologia, a etiologia, e a diagnóstica,
referem-se a um sujeito da/na linguagem, socialmente implicado. Assim, para o
diagnóstico, a semiologia mostra um falante que, na subjetividade, ocupa uma
posição estigmatizada devido à sua forma de falar e, no funcionamento
discursivo, perde a espontaneidade e mostra tensões. A etiologia refere-se a
uma subjetividade marcada pelo desejo de controlar a fluência para ocultar a
gagueira e um funcionamento discursivo marcado pelo privilégio da forma em
detrimento do sentido.
Em tal contexto, como afirmam Oliveira e Friedman (2006), o sintoma
gagueira não se mostra de modo linear e transparente. Mostra-se a partir de
uma série de sobredeterminações; de uma série de significados e sentidos que
aderem a ele, ou seja, mostra-se como “um acontecimento complexo, cuja
origem não é determinada isoladamente pelo orgânico, pelo psíquico, ou pelo
sócio cultural” (op.cit.:226). Sua origem é, antes, interpretada a partir das
tramas narrativas, que revelam componentes sociais, psíquicos e orgânicos.
Essas tramas, além de relacionar a materialidade do sintoma (hesitações,
bloqueios, prolongamentos, repetições...) aos aspectos subjetivos do falante,
também possibilitam ao terapeuta avaliar “as condições de produção discursiva
condições socioculturais, pelas relações familiares e pela inscrição do sintoma
na linguagem e no corpo.” (op. cit.:226).
Nesse tipo de proposta terapêutica, em que para tratar a gagueira se
lida com a subjetividade, Oliveira e Friedman (2006) tomam apoio nas ideias de
Mezan (1997). Este propõe que a subjetividade pode ser compreendida em
dois sentidos. Um, considerado como seu aspecto mais imediato, é
compreendê-la como experiência de si, que diz respeito ao fato de que cada
indivíduo tem de si uma experiência singular para a qual cabe “a descrição
fenomenológica das variedades e dimensões dessa experiência tomando como
alvo o sujeito enquanto foco e origem dela” (op.cit.:13). Sobre isso Mezan
(1997) esclarece que nem a origem, nem o foco são absolutos, pois o sujeito
tem também “uma dimensão inconsciente que inevitavelmente virá co
-determinar a natureza, a qualidade e a amplitude da experiência que ele tem
de si” (op.cit.:13).
O outro refere-se a compreender a subjetividade como condensação
de uma série de determinações, como condensação de fatores que,
combinados, engendram modalidades especificas de organização subjetiva,
fatores que servem de moldes para as experiências individuais. Isso, diz o
autor, quer dizer que “a subjetividade é o resultado de processos que começam
antes dela e vão além dela, processos que podem ser biológicos, psíquicos,
sociais, culturais, etc.” (op.cit.:13).
Nessas condições, Mezan distingue na subjetividade três planos: o
singular, o universal e o particular. O singular refere-se à história de vida, às
vivências, às escolhas de cada um que se somam e fazem com que cada um
compartilhamos com todos os humanos: a linguagem, as necessidades
básicas, o fato de sermos sexuados, enfim aquilo que é próprio da espécie”
(op.cit.:14). Entre os dois está o particular, aquilo que é próprio a alguns mas
não a todos, “supondo que os elementos universais se materializam de modos
diversos em virtude de aspectos ou condições distintos” (op.cit.:14). São
modalidades de subjetivação que comportam elementos comuns como, por
exemplo, a subjugação num sistema de escravidão. Assim os valores, as
crenças e os costumes sócio-culturais não somente de uma época, mas
também de um grupo, moldam as subjetividades de modos particulares, de tal
forma que o lugar social que o indivíduo ocupa é preponderante na moldagem
de sua subjetividade.
Dentro dessa perspectiva, Oliveira e Friedman (2006) argumentam que
é na dimensão do particular, a partir de uma ideologia do bem falar agindo
sobre as vivências do falante com certos grupos, que se constitui uma imagem
estigmatizada de falante, à medida que o falante é colocado pelo outro no lugar
de gago. Essa modalidade de subjetivação é entendida pelas autoras como
característica das pessoas com gagueira, em decorrência da qual, como já foi
dito, engendra-se um funcionamento discursivo problemático, porque a forma é
priorizada em detrimento do sentido, de tal modo que o falante perde a posição
fluente. Nessa visão, para as autoras, a relação terapêutica constitui-se como
um espaço para a ressignificação da experiência de fala da pessoa com
gagueira, no sentido de construir novos moldes para a subjetividade que
permitam ao falante sentir-se competente para falar e deslizar pelo eixo do
Esse tipo de visão permite uma abordagem terapêutica que mantém
homogeneidade e covariância com os outros elementos da clínica, visto que, a
partir das histórias e relatos do paciente, é possível conhecer os significados
cristalizados sobre si, sobre a própria fala e sobre o outro e, a partir de diálogos
e vivências de sensibilização da fala (Friedman, 2010, 1994), Oliveira e
Friedman, 2006), promover a desestabilização de tais significados, bem como a
abertura a de novos sentidos, de modo a proporcionar ao paciente a vivência
de experiências novas e singulares que lhe permitam sair da posição de falante
estigmatizado, para ocupar uma posição em que confia em sua capacidade de
falar.
Por considerar a desarmonia entre língua e fala aqui delineada como
uma proposição fértil para compreender e tratar de gagueira, interessa-nos
aprofundá-la na presente pesquisa a partir do discurso de pessoas com
CAPÍTULO 02 – MÉTODO
Trata-se de uma pesquisa qualitativa prospectiva que visa desenvolver
a compreensão sobre a desarmonia entre língua e fala no funcionamento
discursivo gaguejante, por intermédio de entrevistas com 6 pessoas adultas
que se consideram gagas.
O projeto foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, sob o número 333/2010 (Anexo A). Os
participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (Anexo
B) antes da coleta de dados, após terem sido informados sobre os objetivos da
pesquisa.
As entrevistas, entendidas como práticas discursivas de acordo com
Spink (2004), foram semi-estruturadas e se organizaram em torno daquilo que
veio à mente do entrevistado quando o entrevistador/pesquisador disse: falar;
falar com fluência; falar em público; falar sozinho; o que o ajuda a fluir; o que
faz para não gaguejar ou o que o ajuda a não gaguejar; se sabe que vai
gaguejar; e o que o faz saber que vai gaguejar. Esses aspectos auxiliaram a
pensar na relação entre fala e língua.
Para exemplificar o modo de desenvolvimento da entrevista, temos que
o entrevistador/pesquisador perguntava ao entrevistado: “O que vem à tua
mente quando eu digo ‘falar’”? a seguir aguardava até que o entrevistado
dissesse tudo o que desejava. Na sequencia dizia: “O que vem à tua mente
quando eu digo ‘falar com fluência’ ”? e novamente aguardava o tempo
necessário para o participante se expressar e assim por diante. Durante o
tempo em que o entrevistado discorria sobre o que lhe vinha à mente, o
mais?”, “Explique melhor”, “Dê-me um exemplo disso”. Os fundamentos
teóricos do método proposto por Spink estão descritos no item Análise dos
Dados (p.28).
CRITÉRIOS DE INCLUSÃO DOS PARTICIPANTES
Participaram da pesquisa adultos que se consideravam gagos. A partir
das relações do pesquisador, bem como de sua orientadora de pesquisa,
pessoas nessa condição foram contatadas por e-mail ou por telefone. Nesse
primeiro contato expôs brevemente o projeto de pesquisa e fez-se o convite
para participar de uma entrevista individual. A participação foi voluntária e
todas as entrevista ocorreram em data, lugar e horário previamente definido
pelo entrevistado. Estas duraram em média 45 minutos e foram áudio
gravadas. Definiu-se que o número de participantes seria 6, após verificar que
os conteúdos das entrevistas começavam a se repetir.
CARACTERIZAÇÃO DOS PARTICIPANTES
O Entrevistado 1 tem 31 anos, é do sexo masculino, pós-graduado em
Gestão Universitária e trabalha como assistente administrativo. Considera-se
gago desde os oito anos de idade. Frequentou terapia fonoaudiológica durante
04 meses quando adulto. No período da entrevista não frequentava terapia.
O Entrevistado 2 tem 30 anos, é do sexo masculino, estuda de Direito e
é Técnico de Manutenção Elétrica. Considera-se gago desde os seis anos de
idade e já frequentou na vida adulta, durante dois anos, terapia
O Entrevistado 3 tem 34 anos, é do sexo masculino, estudante de
Farmácia, trabalha como policial militar. Considera-se gago desde criança e
frequentou na idade adulta seis sessões de terapia fonoaudiológica. No período
da entrevista não estava em terapia.
O Entrevistado 4 tem 34 anos, é do sexo feminino e é Assistente
Social. Considera-se gaga a partir dos 20 anos. Frequentou, na idade adulta
terapia com psicólogo, neurologista e 03 fonoaudiólogos. No período da
entrevista não estava em terapia.
O Entrevistado 5 tem 36 anos, é do sexo masculino e é Engenheiro
Consultor. Considera-se gago desde sempre. Frequentou duas fonoaudiólogas
na idade adulta. No dia da entrevista estava há 10 meses em terapia
fonoaudiológica.
O Entrevistado 6 tem 33 anos, é do sexo feminino e é formada em
Direito. Ainda não fez o exame da ordem por medo de falar. Considera-se gaga
desde os sete anos. No dia da entrevista estava há dois meses em tratamento
fonoaudiológico, seu primeiro na vida.
Para os efeitos da apresentação dos resultados, os entrevistados serão
tratados como E1, E2, E3, E4, E5 e E6.
ANÁLISE DOS DADOS
As entrevistas foram transcritas em ortografia regular e analisadas na
íntegra, após leitura e releitura atenta e sistemática. Isso permitiu chegar a
categorias que, coerentes com o objetivo da pesquisa, abarcaram o conjunto
Os conceitos relativos à noção de práticas discursivas e produção de
sentidos, referencial proposto por Spink e Medrado (2004), foram utilizados
para analisar o sentido do discurso dos entrevistados distribuído dentro das
categorias.
Segundo os autores, “o conceito de prática discursiva remete aos
momentos de ressignificações, de rupturas, de produção de sentidos, ou seja,
corresponde aos momentos ativos do uso da linguagem”, é a maneira a partir
da qual as pessoas se posicionam em relações sociais cotidianas (op cit:45).
As práticas discursivas, segundo os autores, são constituídas por: dinâmica
(enunciados e vozes), formas (gêneros de fala) e conteúdos (repertórios
interpretativos).
Os enunciados (palavras e sentenças) são expressões articuladas em
determinadas situações, que associados às vozes adquirem caráter social. As
vozes, como as do pai, da mãe, da professora, por exemplo, antecedem os
enunciados e fazem-se presentes neles no momento de sua produção. As
vozes permeiam a prática discursiva e estão presentes nela, com maior ou
menor ênfase, dependendo do assunto, do local, de quem pergunta, ou seja,
do contexto em que são produzidas. A compreensão dos sentidos dos
enunciados é sempre marcada por inúmeras vozes.
Os gêneros de fala são formas mais ou menos estáveis de enunciados
típicos a determinados contextos, como desejar pêsames em um enterro e a
determinados grupos, como a linguagem dos feirantes.
Os repertórios interpretativos “são, em linhas gerais, as unidades de
lugares-comuns e figuras de linguagem – que demarcam o rol de
possibilidades de construções discursivas” (op. cit.:47).
De acordo com os referidos autores, ainda, trabalhar com produção de
sentidos implica retomar a linha da história, para entender a construção social
dos conceitos que no cotidiano dão sentido ao mundo. Sentidos sempre
passíveis de renovação.
Para compreender o modo como os sentidos circulam na sociedade,
explicam os autores, é necessário considerar as interfaces de três tempos:
longo, vivido e curto.
O tempo longo refere-se aos conhecimentos que fazem parte da
sociedade e da cultura, antecedem a vivência da pessoa e produzem marcas
nela por meio de normas e convenções de reprodução social.
O tempo vivido comporta as experiências da pessoa ao longo de sua
história, nele ocorre a aprendizagem das linguagens sociais e, também nele se
pode ressignificar os conteúdos históricos do tempo longo.
O tempo curto “se refere às interações sociais face-a-face em que os
interlocutores se comunicam diretamente” (op. cit.:53), é, portanto, aquele que
possibilita entender a dinâmica da produção de sentidos. É nele que os
interlocutores revelam seus repertórios que dão sentido às experiências. É nele
também que as vozes do tempo longo e vivido se fazem presentes.
A entrevista é um instrumento que nos coloca numa relação
face-a-face com o entrevistado e, portanto, se refere ao tempo curto. Por intermédio
dos repertórios que dão sentido às experiências relatadas, podem-se encontrar
Como propõem Spink e Lima (1999:107), para favorecer a visibilidade
da análise e da interpretação que será feita dos discursos obtidos e garantir,
desse modo, seu rigor, as entrevistas transcritas foram organizadas em “Mapas
de Associação de Ideias” (Anexos C, D, E, F, G e H). Esses mapas são
quadros que na linha horizontal apresentam as categorias temáticas definidas
de acordo com o objetivo da pesquisa, e na linha vertical, apresentam os
discursos dos entrevistados que corresponderam a cada categoria. Os
discursos foram transpostos, em sua totalidade, para as colunas formadas
pelas categorias que a eles consideramos correspondentes, resguardando a
ordem original em que foram ditos, por meio do uso de números. Desse modo,
a leitura vertical permite a apreensão dos repertórios e a leitura horizontal
(seguindo a ordem numérica) a dos processos de produção de sentidos
criando, assim, as condições para que se pudesse alcançar o objetivo da
pesquisa.
Os mapas visam, portanto, “sistematizar o processo de análise das
práticas discursivas em busca dos aspectos formais da construção linguística,
dos repertórios utilizados nessa construção e da dialogia implícita na produção
de sentidos” (op. cit.:107). Além de darem subsídio ao processo de
interpretação, os mapas facilitam a comunicação dos passos subjacentes ao
processo interpretativo.
DESCRIÇÃO DAS CATEGORIAS
Após a transcrição das entrevistas de cada um dos participantes foi
sub-categorias. Todos os participantes produziram discursos correspondentes
às três categorias.
As categorias que emergiram foram: Sentido da Fala com as sub-categorias Positivo e Negativo. Contexto de Fala com as sub-categorias:
Efeito Outro e Efeito Sozinho e Antecipação da Gagueira.
A categoria Sentido da Fala reúne discursos sobre os modos como o entrevistado se sente em relação a si, a sua fala e/ou à gagueira.
A categoria Contexto de Fala reúne discursos sobre as vivências de fala dos entrevistados nas situações sociais do cotidiano, com foco tanto nas
experiências de falar para um ou mais ouvinte, como na de falar sozinho.
A categoria Antecipação da Gagueira reúne discursos que indicam que o entrevistado previu a gagueira na fala que ainda não havia sido
pronunciada e mostra as estratégias discursivas usadas na tentativa de não
gaguejar.
Após a definição das categorias analíticas foram elaborados Mapas de
Associação de Ideias (p.31) conforme exemplo abaixo.
Sentido da Fala Contexto de Fala Antecipação da
Gagueira Positivo Negativo Efeito Outro Efeito Sozinho
1 - Eu acho que falar é uma coisa bem natural.
2 - As pessoas que não gaguejam têm como uma coisa bem natural. Para os gagos é algo bem difícil.
3 - Assim, o falar eu posso dividir em dois segmentos: o falar com pessoas íntimas, com amigos e o falar com pessoas com quem não tenho um certo contato. Falar com pessoas íntimas é mais fácil, transcorre mais naturalmente. Já falar com pessoas que você não tem intimidade ou até mesmo no trabalho, com o chefe é mais difícil para o sujeito gago.
14 - Poucas vezes eu tentei falar sozinho, mas eu percebo que a gagueira some.
aquela palavra não tem o mesmo significado. Aí fica algo sem sentido. Tem hora que até pode dar certo, porque tem o mesmo significado, mas tem horas que não.
Figura 1 – Mapa de Associação de Ideias
Os resultados serão apresentados e discutidos a seguir, a partir de
CAPÍTULO 03 – RESULTADOS E DISCUSSÃO
Os repertórios dos seis participantes, dentro de cada uma das
categorias delineadas, são a seguir apresentados e discutidos.
Na categoria Sentido da Fala – Positivo observa-se que a noção
sobre “falar com fluência” dos entrevistados 01 e 04 (E1 e E4) é aque circula
no senso comum e que corresponde a uma visão que idealiza a fluência como
absoluta: é você falar em um certo e determinado tempo o que você quer falar,
o que você tem que falar sem ser interrompido (E1); É não repetir palavras, sílabas. É você não prolongar. É quando seu pensamento está igual ao que
você quer falar. Quando o pensamento está equilibrado com o físico (E4).
No sentido positivo da fala, também, os entrevistados associam a
fluência a certos estados emocionais como: de aceitação de si no qual, não se
intimida com a gagueira e enfrenta as situações (E1); estar mais tranquilo, estar relaxado (E3); Penso que seja a tranquilidade, a paz de espírito. É não ter
muita cobrança (E4).
O Sentido da Fala - Positivo ainda, aparece em relação à gagueira nas falas de E2 e E6. E2 afirma que de uns tempos para cá percebo melhoras
e não deixo de fazer algo relacionado à fala por causa da dificuldade; hoje encaro isso [a gagueira] com muita tranquilidade. (...), até por entender (...) que as pessoas ao meu redor não estão muito preocupadas com isso. (...) Então,
hoje eu tenho maior tranquilidade para falar, para ser fluente, para não ser. Não é o foco da minha vida, não é (...) falar bem, falar fluente, no sentido de ter
para si mesma: para de tentar esconder uma coisa que não dá para esconder,
que todo mundo já sabe’, (...) isso me ajudou a melhorar.
Os repertórios: entender (...) que as pessoas ao meu redor não
estão muito preocupadas com isso e parar de tentar esconder uma coisa que todo mundo já sabe, trazidos no contexto de melhoras na fala, mostram,
conforme defendido por Friedman (1994, 2004, 2007, 2010); Azevedo e Freire
(2001); Rodríguez (2005), que a gagueira é uma manifestação fortemente
implicada com a presença do outro, visto que, como referem os entrevistados,
mudanças no modo de encarar esse outro, levaram a mudanças na
manifestação da gagueira. Além disso, estes e os outros repertórios
apresentados como condições que promovem bem-estar e aumento de fluência
tais como: aceitação de si no qual, não se intimida com a gagueira e enfrenta
as situações; ter maior tranquilidade para falar, para ser fluente, para não ser;
não ter a gagueira como foco da vida; não ter muita cobrança ou ter tirado a cobrança; encarar com tranquilidade; vão ao encontro da proposta terapêutica
desenvolvida por Friedman (1994, 2004, 2007, 2010) a respeito do modo de
superar a gagueira.
E1 diz ainda que no estado mental tranquilo: você se aceita, você começa a ter uma melhor ideia de como ter controle da sua gagueira e mesmo que você gagueje naquele momento, (...) você vai saber: Não! Estou
gaguejando agora, mas eu posso melhorar em outra oportunidade.
Os repertórios: você se aceita; ter uma melhor ideia de como ter
situações sociais pode conviver com o desejo de controlar a fala, o que indica
uma posição de falante estigmatizado e, portanto, de sofrimento ao falar
(Friedman 1994, 2004, 2007). Isso sugere que a capacidade de enfrentar a
gagueira em público não é o ingrediente decisivo para a superação da gagueira
como um sofrimento, o que pode ser uma questão relevante para o tratamento
da gagueira.
Tentar controlar a gagueira, ainda, de acordo com Azevedo e Freire
(2001) está relacionado a uma busca saudável de assemelhar-se aos demais
falantes. Para fazê-lo, entretanto, conforme argumentam as autoras, e também
o demonstram nossos sujeitos nos repertórios contidos na categoria
Antecipação, o falante dirige sua atenção à materialidade da língua; à forma da fala, a fim de localizar e substituir a palavra na qual acredita gaguejará. Isso,
como vimos no capítulo 01, constitui-se em um funcionamento discursivo que
tira o falante da posição fluente, perpetuando a produção de uma fala com
gagueira.
A esse respeito, na esteira das reflexões sobre tratamento, é
interessante considerar que o trabalho terapêutico direcionado à modelagem
da fala com gagueira proposto na clínica positivista, caracteriza-se por manter
um funcionamento discursivo voltado para a forma, uma vez que se direciona a
treinar a pessoa gaga para o uso de técnicas como relaxar a musculatura,
lentificar a fala e manter a coordenação pneumofonoarticulatória, a fim de
controlar a gagueira. Tratamentos dessa natureza, como comentam os 28
participantes que vivenciaram experiências terapêuticas para tratar da gagueira
conselhos de familiares e amigos (fale devagar, pense no que você está
querendo dizer) para se alcançar a fluência.
Plexico et al. (2010) concluem que métodos de tratamento que
priorizam o uso de técnicas e protocolos, em detrimento do envolvimento com
as necessidades dos pacientes e com o impacto da gagueira em suas vidas,
são ineficientes para promover mudanças na fala da pessoa que gagueja.
Rodríguez C. (2001:116) argumenta que a terapêutica que tem como
objetivo eliminar os sintomas visíveis da gagueira restringe a noção da
gagueira à falta de fluência. Assim, o gago é considerado como um doente da
fala e visto separado dos fatores psicossociais que influem na sua forma de
falar.
Rodríguez C. (2005), ainda, para avançar com a construção de
conhecimento sobre gagueira, fundou um grupo de discussão virtual
direcionado para pessoas que gaguejam. Após 2 anos de existência do grupo
colheu, analisou e sistematizou os depoimentos dos participantes, por acreditar
que conhecer o que os gagos têm a dizer sobre sua fala torna possível pensar
que mudanças de crenças e atitudes são necessárias frente à gagueira, o que
favorece alcançar melhores resultados terapêuticos.
Tassinari (2001) destaca que as técnicas que visam melhorar o
padrão articulatório, respiratório e postural do falante com gagueira “serão
potencialmente favorecedoras do estabelecimento de mudanças na relação
estabelecida pelo sujeito entre seu corpo e sua linguagem”, e poderão
recurso terapêutico que se articula a uma compreensão do sofrimento do
falante (op.cit.:84).
Friedman (1994, 2004, 2007, 2010) destaca que técnicas de trabalho
que envolvem a respiração, a voz e os gestos articulatórios, mostram-se
eficazes quando utilizadas para levar o falante a sentir e reconhecer sua efetiva
capacidade de falar e sua semelhança com os demais falantes, de tal forma
que gaguejar deixa de ser um sofrimento, deixa de ser um alvo a ser
controlado.
Em Sentido de Fala – Negativo, cinco dos seis entrevistados mostram que se sentem dessemelhantes e marginalizados em relação aos
outros por seu modo de falar. E1 afirma: você quer falar como todo mundo; quer sempre estar no padrão de normalidade; de uma certa forma a gagueira
deixa (...) um pouco à margem da sociedade. E2 diz: É o que eu sempre quis [falar com fluência]; Caso tivesse a fluência que a maioria tem, isso (...) teria me poupado de alguns constrangimentos. E3 diz: É uma coisa que eu odeio,
me faz muito mal. (...) Eu tento conviver com ela, mas é difícil. É difícil você ser um sujeito gago no meio de pessoas que são fluentes. E5 acredita que se
gaguejar, pode quebrar a imagem de uma pessoa bem sucedida, bem resolvida, equilibrada. Para E6 é uma angústia porque eu tento sempre
esconder a minha fala.
Estes repertórios, ao indicarem que os entrevistados consideram a
gagueira um atributo que os desqualifica perante os outros; que denota uma
gagueira e a posição subjetiva de falante estigmatizado, para construir os
caminhos terapêuticos de sua superação (Friedman 1994, 2004, 2007, 2010).
Nessa direção, na condição de se sentirem diferentes, E1, E2, E3,
E5 e E6 falam sobre emoções e sentimentos3, que, em determinadas situações
comunicativas, podem tensionar a forma de suas falas ou levá-los ao
silenciamento. Para E1: A ansiedade acaba provocando interrupções em tua fala e você acaba (...) não conseguindo passar o que (...) pretendia; Provoca
uma certa tensão nos músculos do (...) corpo, que acaba provocando (...) essa interrupções na fala: bloqueios, repetição de sons. Para E2: É também a questão emocional que a gente fica, dependendo de como está em casa, (...)
com a esposa, com os pais, (...) nesse sentido isso finda abalando. Para E3:
Você é capaz daquilo, mas você, por ter que usar a fala para transformar suas
ideias em projetos concretos, aí você desiste. Para E5: quando há ausência de emoções, quando não existe cobrança (...) ... é como se o mecanismo da fala não fosse afetado por nenhuma neurose. Para E6: Falar é uma angústia muito
grande; Eu sempre me preocupo muito com aquilo que as pessoas pensam de mim. Isso sempre me afeta; Isso me causa nervosismo, mais angústia e aí eu
não consigo falar.
Também os participantes do grupo de discussão virtual de
Rodrigues C. (2005) expressaram suas emoções e sentimentos negativos em
relação à gagueira: - Nunca disse a ninguém que era gago (Por Deus, que vergonha!); -Então aprendi a ter outros medos, outros sentimentos, então com
3
o tempo, creio que eu mesmo, por me esconder, pensava que não poderia estudar certas profissões, que não poderia ascender a certos postos de
trabalho, que não... que não... que não...e no fim acreditei; - Quero que me aconselhe sobre o que eu posso fazer, pois me é muito preocupante essa situação que não aguento mais. 4
Coerentemente com esse modo de sentir-se, Zamora (2007), ao
analisar a gagueira sob uma perspectiva antropológica, afirma que “o padrão
de fala gaguejante é uma conduta socialmente desviada porque rompe a
norma social e, de modo concreto, as regras sociais da comunicação”5. Dessa
forma, as relações interpessoais são marcadas por uma interpretação do
ouvinte que marginaliza e estigmatiza o falante gago. São reações de
incompreensão e rejeição à fala disfluente, de imitações caricaturadas, de
escárnio, entre outras que provocam sofrimento ao falante (p.90).
A respeito desse modo de se sentir, destacam-se os trabalhos de
Friedman (1994, 2004, 2007, 2010) nos quais se considera uma imagem
estigmatizada de falante como núcleo estruturante da gagueira; como marca
subjetiva que particulariza os falantes gagos.
Na categoria Contexto de Fala – Efeito Outro E1 afirma que o
medo é que (...) você busca a aceitação do outro; Você não sabe se eles vão perceber que você é gago; Você, geralmente, quer esconder essa situação;
4 Tradução livre de: - Nunca comenté a nadie que era tartamudo (Por Dios, que verguenza!); -
Así aprendí a tener otros miedos, otros sentimentos, así con el tiempo, creo que yo mismo por el hecho de esconderme pensaba que no podia estudiar ciertas carreras, que no podia acceder a ciertos puestos de trabajo, que no...que no...que no...y al final me lo creí; - Quiero que me aconseje qué puedo hacer ya que me es muy preocupante esta situación que no aguanto más.
5 Tradução livre de:
Isso não acontece quando fala com criança, já que ela não vai ter uma reação como uma pessoa mais adulta teria, de reprovação, de você se achar diferente
do outro.
Também os participantes do grupo virtual de Rodríguez C. (2005)
referiram que a presença do outro gera medo: - Me dá pânico atender ao
telefone quando falo com uma pessoa desconhecida; - É um medo do ridículo, um temor de que os outros falem do nosso defeito; - Adoraria ser sociável, não
sei como vencer todos esses medos.6
A esse respeito, Cavalcanti, Azevedo e Silva (2011) afirmam que o
medo existente na situação de fala com gagueira representa a antecipação da
reação do ouvinte e a previsão do próprio erro. Ou seja, em determinadas
situações comunicativas, ao antever que gaguejará, o sujeito também antecipa
que o interlocutor o interpretará como gago, atributo que considera negativo,
que deseja esconder. Quando a antecipação e a previsão do erro não
acontecem, dizem as autoras, nota-se mais fluência na fala de quem gagueja.
É possível observar essa relação entre características da situação
comunicativa ou características atribuídas ao interlocutor e grau de temor da
gagueira no discurso dos entrevistados. Para E1: Falar em público é difícil. Você tá buscando a aceitação e você tá se preocupando em não gaguejar para várias pessoas. Para ele, públicos diferentes produzem efeitos diferentes:
grupo de amigos, (...) um grupo menor, que, mesmo que você gagueje você, não se preocupa tanto quanto se fosse para um grupo de pessoas maior, que
6 Tradução livre de: - Me da pánico tomar el teléfono cuando yo le hablo a outra persona
você não conhece todo mundo. Você não sabe se elas vão perceber que você é gago. Você geralmente quer esconder essa situação. E ainda, conversar com pessoas desconhecidas e com alto grau de escolaridade, pode deixá-lo sem
jeito na hora de falar. Para E2: quanto maior o [grau de censura que imagina vir do ouvinte] maior a quantidade de disfluência; Eu sou membro da igreja
evangélica e às vezes faço até pregações. (...) tem dias que dão mais e tem dias que dão menos [pessoas], mesmo assim eu faço; Se alguém me colocar
para ler um texto (...) é mais difícil, mas se for para expor um ponto de vista é bem mais fácil; Consigo falar em público, defendo minhas ideias, mas (...) para pedir um negócio a um frentista, em uma padaria não flui como deveria, como
flui nas outras situações. Para E3: Falar com pessoas íntimas é mais fácil. (...) Já falar com pessoas que você não tem intimidade ou até no trabalho, com o
chefe é mais difícil. De modo semelhante E4 diz: eu tenho medo que elas me reprovem. (...) aí penso que elas vão rir. Com as pessoas que eu tenho mais intimidade, eu até gaguejo... não tenho muito medo porque elas sabem do meu
problema. Para E5: quando eu incorporo o professor... o professor tem mais flexibilidade no tempo que ele vai utilizar para cada frase, para cada caminho,
(...) para transmitir o conteúdo. Quando você tá em algumas situações mais rígidas, mais estreitas [é mais difícil], um exemplo muito claro é: diga seu nome, sua profissão. Já para E6 não há distinção entre conhecidos e
desconhecidos: Seminário, trabalhos, eu pedia para outra pessoa falar por mim. Eu não falava. Eu sentia vergonha de ficar em público, para uma pessoa
(...) [numa condição] que eu não consiga falar; Às vezes eu vou falar com uma amiga (...) ou contar alguma coisa para meu pai, para minha mãe... e aí...eu
Os repertórios acima confirmam Azevedo e Freire (2001), pois, como
se vê, os entrevistados, ao ocuparem a posição de falantes gagos, imaginam o
seu ouvinte na posição daquele que não dará sentido à sua fala, mas
fiscalizará o dizer, daquele que poderá rejeitá-los ou reprová-los. Esta é uma
posição antecipada ao outro “enquanto formação ideológica, mas que pode ou
não estar no outro enquanto formação discursiva” (op.cit.153).
Isso também nos remete a Friedman (2001), quando comenta que a
ilusão de ser interpretado de modo desfavorável nas relações face a face,
revela marcas negativas na subjetividade construídas a partir de uma ideologia
de bem falar e constitutivas de um falante que se sente estigmatizado.
Consequentemente, determinadas situações comunicativas tornaram-se
lugares de preocupação com o interlocutor e geram previsão de gagueira,
sofrimento com o modo de produção de fala e tensões musculares.
A respeito disso vale comentar que embora E1, E2, E3, E4 e E5
tenham sido consensuais quanto a sentirem maior dificuldade para falar com
estranhos do que com pessoas íntimas, E6 revelou sentir dificuldade em
ambas as situações. Isto remete às considerações de Friedman (1994) sobre
as singularidades do funcionamento subjetivo da imagem estigmatizada de
falante. A autora explica que há pessoas com gagueira que se sentem melhor
ao falar com conhecidos, por já compartilhar com eles sua gagueira e assim
não sentir necessidade de escondê-la, e outras que se sentem melhor ao falar
com estranhos, por saber que estes não sabem de sua gagueira. Sob essa
perspectiva pode-se considerar que para E6 o sofrimento com a gagueira é