RODRIGO APARECIDO DE SOUZA
O PAPEL DO DESIGN NA CONSTRUÇÃO DO ETHOS DO PROTAGONISTA NA
ANIMAÇÃO UP ALTAS AVENTURAS
FRANCA
2019
Catalogação na fonte – Biblioteca Central da Universidade de Franca
Souza, Rodrigo Aparecido de S718p
O papel do design na construção do ethos do protagonista na animação Up ‐ altas aventuras /
Rodrigo Aparecido de Souza; orientador: Fernando Aparecido Ferreira. – 2019
157 f. : 30 cm.
Dissertação de Mestrado – Universidade de Franca
Curso de Pós‐Graduação Stricto Sensu – Mestre em Lingüística
1. Linguística – Design. 2. Retórica. 3. Ethos. 4. Character design. 5. Animação – Filme. I. Universidade de Franca. II. Título.
CDU – 801:74:82.085
RODRIGO APARECIDO DE SOUZA
O PAPEL DO DESIGN NA CONSTRUÇÃO DO ETHOS DO PROTAGONISTA NA ANIMAÇÃO UP ALTAS AVENTURASFRANCA
2019
Dissertação apresentada à Universidade de Franca, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Linguística.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus e a espiritualidade superior, pelas chances e provações nessa existência.
Agradeço o apoio de minha família. Aos meus queridos pais, que me incentivaram desde cedo a seguir os estudos.
À minha querida mãe, guerreira e carinhosa. Ao meu irmão, Jefferson, forte e encorajador. Aos meus amigos, que sempre foram próximos e demonstraram apoio em vários momentos, Jânio Sarmento, Ana Márcia Zago, Giovanni Brito e Fernanda Fontanetti. Ao meu orientador, Fernando, que, desde a graduação, tem sido exemplo a ser seguido. Agradeço à Profa. Maria Flávia, pelas palavras e pelo jeito afável. A todos os professores do programa de mestrado em Linguística da Unifran. Aos colegas de trabalho da Universidade de Franca, por me ensinarem a sorrir, mesmo quando a situação não se mostrava favorável.
E a todos os que torceram e de forma indireta contribuíram para a conclusão desta etapa.
Um grande e sincero: obrigado!
Por mais longa que seja a noite, o amanhecer vai chegar.
Provérbio Africano
RESUMO
SOUZA, Rodrigo Aparecido de. O papel do design na construção do ethos do protagonista
na animação UP ‐ altas aventuras. 2019. 157f. Dissertação (Mestrado em Linguística) –
Universidade de Franca, Franca.
A empatia do público pelo filme de animação (longa‐metragem)UP‐Altas aventuras (UP, 2009) é comprovada pelo sucesso comercial e crítico que obteve e pelos dois prêmios Oscar que conquistou. Como qualquer filme de animação, detalhes, como os designs dos personagens, composição dos cenários e as cores da animação, foram antecipadamente elaborados para funcionar como intensificadores dos sentidos pretendidos pela narrativa, agindo, assim, retoricamente. Fundamentada na retórica aristotélica e utilizando o filme UP como corpus, esta pesquisa tem por objetivo principal investigar a cooperação entre design e retórica nas etapas do processo argumentativo de um filme de animação. Para averiguar essa cooperação, será analisado o desenvolvimento visual do protagonista do filme, etapa conhecida como a do character design, que, em termos retóricos, pode ser entendida como o momento da construção do ethos do personagem. Além do próprio filme, o corpus será também composto pelo livro The art of Up (2009), escrito por Tim Hauser. Nessa obra, as “artes conceituais” (concept arts) desenvolvidas para a animação pelo orador‐diretor e sua equipe são apresentadas e descritas detalhadamente. Como recorte, utilizaremos o prólogo da narrativa para a análise da construção ética do protagonista. Comporão o arcabouço teórico as obras de autores da retórica como Aristóteles (2013), Perelman e Olbrechts‐Tyteca (2005), Ferreira (2015), Fiorin (2016), Reboul (2004) e Meyer (2007), associadas às obras de autores do campo da linguagem visual, como Arnheim (2011) e Dondis (1997). No que se refere ao character design, evocaremos autores como Bancroft (2006) e Nakata & Silva (2013). Por meio das análises, foi possível verificar a cooperação entre design e retórica nas etapas da inventio e da elocutio. Na análise do prólogo, verificou‐se que o emprego de formas, cores, proporções, entre outros recursos visuais, colaborou efetivamente para a construção da personalidade do protagonista Carl, um idoso pacato, ranzinza e amargurado.
ABSTRACT
SOUZA, Rodrigo Aparecido de. O papel do design na construção do ethos do protagonista
na animação UP ‐ altas aventuras. 2019. 157f. Dissertação (Mestrado em Linguística) –
Universidade de Franca, Franca.
The audience empathy by the animated film (feature‐length) UP (UP, 2009) is verified by its commercial and critical success and by the two Oscar awards conquered. As well as any animated film, details such as the characters' drawings, the scenes composition, and the colors were previously elaborated in order to act as intensifiers of the narrative intended meanings, thus acting in a rhetorical way. Based on the Aristotelian rhetoric and using the animated film UP as a research corpus, the current work aims to investigate the cooperation between design and rhetoric in the argumentative process steps of an animated film. To investigate this cooperation, it was analyzed the protagonist’s visual development ‐ a step known as character design, which, in a rhetorical terms, can be understood as the character’s ethos moment construction. Besides the animated film, the corpus was also be composed by The Art of Up (2009), written by Tim Hauser. In this book, the "concept arts" developed for the animated film by the orator‐director and his team are presented and described in detail. As a research cut, the prologue of the narrative was used for the analysis of the protagonist’s ethical construction. The theoretical framework was composed by rhetoric authors such as Aristotle (2013), Perelman and Olbrechts‐Tyteca (2005), Ferreira (2015), Fiorin (2016), Reboul (2004), and Meyer (2007) associated with visual language fields authors such as Arnheim (2011) and Dondis (1997). Regarding to the character design, it was evoked authors such as Bancroft (2006) and Nakata & Silva (2013). It was able to verify, through the analysis, the cooperation between design and rhetoric in the stages of inventio and elocutio. In the prologue analysis it was verified that the use of forms, colors, proportions, among other visual resources, effectively collaborated to the construction of Carl’s personality ‐ the protagonist ‐ a calm, grouchy and sad old man.
Keywords: Rhetoric; Design ; Ethos; Character design; Animation films.
LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Pôster do filme Homem Formiga (Antman, 2015) 69 Figura 2 – Pôster do filme Os Incríveis 2 (The Incredibles 2, 2018) 69 Figura 3 – Fluxograma do processo digital de animação 72 Figura 4 – Retirantes, Cândido Portinari (1944) 80 Figura 5 – Prática inicial de character design. Formas geométricas iniciais 85 Figura 6 – Continuação do processo de character design, definição da forma 86 Figura 7 – Baymax, robô protagonista da animação Operação Big Hero (Big Hero 6, 2014) 87 Figura 8 – Forma circular como forma estável e equilibrada 88 Figura 9 – Ralph, protagonista do filme de animação Detona Ralph (2012) 89 Figura 10 – Hades, vilão do filme de animação Hércules (1997) da Disney 90 Figura 11 – Estruturação de um boneco de neve através de círculos e a relação de escala entre as formas empregadas 91 Figura 12 – Relação entre escalas das formas e o teor comparativo 92 Figura 13 – As hienas Shenzi, Banzai e Ed do filme O Rei Leão (The Lion King, 1994) 93 Figura 14 – Personagens do filme Hotel Transilvânia (Hotel Transylvania, 2012) 94 Figura 15 – Exemplo de silhueta de um personagem 95 Figura 16 – Exemplo de uma silhueta com uma configuração bem característica. Remete a um personagem famoso da Disney 96 Figura 17 – Os três estilos citados no trecho anterior que mostra em (A) o estilo realista trompe‐l’oeil, em (B) e (C) os estilos, respectivamente de Mondrian e Kandinsky 98 Figura 18 – O mesmo personagem executado em 10 estilos diferentes 100 Figura 19 – Pato Donald, executado em vários estilos diferentes 100 Figura 20 – Esquematização da classificação das cores pela temperatura 102 Figura 21 – Personagens do filme de animação DivertidaMente (Insideout, 2015) 104 Figura 22 – Carl Fredericksen 116 Figura 23 – Momentos da vida de Carl Fredricksen no exórdio do filme 117 Figura 24 – Carl criança 118 Figura 25 – Forma circular básica 118 Figura 26 – Escala comparativa com o cenário 119 Figura 27 – Variação e esqueleto estrutural, Carl criança 119 Figura 28 – Variação e esqueleto estrutural, formas circulares, Carl criança 120 Figura 29 – Silhueta evidenciada, Carl criança 121 Figura 30 – Cena em que Ellie evidencia o comportamento tímido do protagonista 122 Figura 31 – Cenas que comprovam o comportamento tímido de Carl quando criança 122 Figura 32 – Paleta de cores empregada na infância de Carl 125 Figura 33 – Carl Fredricksen jovem 127 Figura 34 – Carl jovem, forma quadrada de cantos bem arredondados 127 Figura 35 – Escala comparativa com o cenário, Carl criança e Carl jovem 128 Figura 36 – Variação e esqueleto estrutural, Carl jovem 129 Figura 37 – Variação e esqueleto estrutural, formas quadradas de cantos arredondados, Carl jovem 129
Figura 38 – Silhueta do protagonista jovem, recém‐casado 130 Figura 39 – Poses e posturas de Carl jovem, recém‐casado, com sua esposa Ellie 130 Figura 40 – Paleta de cores empregada na mocidade de Carl 132 Figura 41 – Carl Fredricksen maduro 133 Figura 42 – Carl maduro, formas quadradas de cantos bem arredondados 134 Figura 43 – Escala comparativa Carl jovem e Carl maduro 134 Figura 44 – Variação e esqueleto estrutural, formas quadrangulares de cantos arredondados, Carl maduro 135 Figura 45 – Silhueta do protagonista maduro 135 Figura 46 – Repetição de rotina usada como recurso para conotar a passagem do tempo. Ellie cuida de seu marido durante os anos 136 Figura 47 – Paleta de cores empregada na mocidade de Carl 137 Figura 48 – Momentos da vida de Carl Fredricksen no exórdio do filme, último momento 138 Figura 49 – Carl Fredricksen, idoso 139 Figura 50 – Formas de Carl Fredricksen, idoso 140 Figura 51 – Variação e esqueleto estrutural de Carl Fredricksen, idoso 140 Figura 52 – Estudo da evolução das formas empregadas no protagonista 141 Figura 53 – Escala do personagem protagonista em relação ao cenário 142 Figura 54 – Silhueta do personagem protagonista em relação à Ellie 143 Figura 55 – Poses e posturas que o personagem adquire nos momentos finais do exórdio 144 Figura 56 – Paleta de cores empregada na velhice de Carl 145 Figura 57 – Paleta de cores empregada no vestuário de Carl, comparando fases da vida 146 Figura 58 – Persistência de formas circulares 147 Figura 59 – Sequência que demonstra a paixão da amizade 149 Figura 60 – Carl maravilhado com as exposições de Ellie 150 Figura 61 – Carl perde Ellie 151
LISTA DE QUADROS Quadro 1 – Os três gêneros do discurso e algumas particularidades 49 Quadro 2 – Relação de estilos que um orador pode adotar 63
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ... 14 1 RETÓRICA DESBRAVADA ... 19 1.1 O tripé retórico ... 24 1.1.1 O ethos ... 25 1.1.2 O pathos ... 28 1.1.2.1 Doxa e verossímil ... 41 1.1.3 O logos ... 46 1.2 Gêneros retóricos ... 47 1.3 Figuras retóricas ... 53 1.4 O sistema retórico ... 54 1.4.1 Invenção ... 54 1.4.2 Disposição ... 55 1.4.2.1 Partes do discurso ... 56 1.4.3 Elocução ... 61 1.4.4 Ação ... 64 2 DESIGN: AVENTURA PELO TEMPO ... 66 2.1 O design explicado ... 66 2.2 Design gráfico ... 68 2.3 Filmes de animação ... 70 2.4 Produção de animação digital ... 71 2.5 Concept art e design ... 74 2.5.1 Briefing ... 76 2.5.2 Design de personagens ou character design ... 78 2.5.3 Personagens ... 79 2.6 Character design e percepção visual ... 83 2.7 A conexão entre a retórica e o design ... 105 2.8 Character design e ethos ... 110 3 O RANZINZA: COOPERAÇÃO ENTRE RETÓRICA E DESIGN ... 113 3.1 Delimitação e descrição do corpus ... 113 3.2 Metodologia ... 114 3.3 A construção do ethos do protagonista ... 115 3.3.1 Início do prólogo, Carl criança ... 117 3.3.1.1 Forma ... 118 3.3.1.2 Escala ... 119 3.3.1.3 Variação e esqueleto estrutural ... 119 3.3.1.4 Silhueta ... 120 3.3.1.5 Pose e postura ... 121 3.3.1.6 Estilo ... 123 3.3.1.7 Paleta de cores ... 125 3.3.2 Início de uma vida a dois, Carl jovem ... 126 3.3.2.1 Forma ... 127 3.3.2.2 Escala ... 128
3.3.2.3 Variação e esqueleto estrutural ... 128 3.3.2.4 Silhueta ... 129 3.3.2.5 Pose e postura ... 130 3.3.2.6 Estilo ... 131 3.3.2.7 Paleta de cores ... 132 3.3.3 A alegria perdura, Carl maduro ... 133 3.3.3.1 Forma ... 134 3.3.3.2 Escala ... 134 3.3.3.3 Variação e esqueleto estrutural ... 135 3.3.3.4 Silhueta ... 135 3.3.3.5 Pose e postura ... 136 3.3.3.6 Estilo ... 137 3.3.3.7 Paleta de cores ... 137 3.3.4 Construção terminada, Carl ranzinza ... 138 3.3.4.1 Forma ... 139 3.3.4.2 Variação e esqueleto estrutural ... 140 3.3.4.3 Escala ... 142 3.3.4.4 Silhueta ... 142 3.3.4.5 Pose e postura ... 143 3.3.4.6 Estilo ... 145 3.3.4.7 Paleta de cores ... 145 3.3.5 Um balanço sobre as análises ... 147 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS: A AVENTURA ESTÁ LÁ FORA! ... 154 REFERÊNCIAS ... 156
INTRODUÇÃO
A retórica da imagem é uma área de pesquisa muito rica, principalmente se levarmos em conta os avanços tecnológicos na contemporaneidade. Esses avanços permitiram que outras linguagens fossem empregadas na rotina de comunicação entre as pessoas. Nas mais diversas áreas, o uso das linguagens visuais tem se tornado muito recorrente e não seria diferente na área do entretenimento. Filmes de animação não são nada mais que discursos. O diretor, que atua como orador, usa o filme como discurso e tenta angariar o interesse, a adesão de seus espectadores, seu auditório. Se nos atentarmos às teorias da retórica e da argumentação, perceberemos ser de suma importância que o orador se detenha em produzir um discurso eficiente. Desse modo, o orador precisa saber reunir os argumentos corretos, colocá‐los em ordem e proferir da maneira adequada para que as chances de conseguir a adesão do auditório sejam as maiores possíveis. Ainda, se aplicarmos a teoria da retórica aos filmes de animação, teremos um orador‐diretor, um auditório‐ espectador, e o filme de animação como discurso multimodal ‐ tipo de discurso composto por textos verbais e não verbais.
Nesse sentido, entendamos que textos não verbais são quaisquer tipos de textos provindos de natureza diferente da verbal; por exemplo: se um personagem profere uma fala, esta se caracteriza como texto verbal. Por outro lado, sua voz, suas expressões faciais, sua linguagem corporal, a iluminação, o cenário, suas vestimentas, o requadro da câmera e a trilha sonora compõem os textos não verbais. Sendo assim, pensemos em relação aos filmes de animação, em que todos esses textos não verbais podem ser produzidos a contento e vontade do orador‐diretor. É nesse âmbito que nossa pesquisa se situa: investigar a ação do
design gráfico – área de conhecimento que, por excelência, trabalha com textos visuais –
com caráter retórico. O design gráfico vai atuar na produção dos textos visuais dentro do filme de animação; e, para averiguar a relação dessa produção e ação retórica, foi escolhida uma atividade específica do design nas animações: a character design. A fim de verificar sua ação retórica, analisamos a construção do ethos de um protagonista de uma animação. Também analisamos como essas construções visuais no design do personagem potencializam os significados objetivados pelo diretor‐orador no discurso, agindo como argumentos. Portanto, na teoria retórica, o design atuaria nas etapas da produção do discurso, que são: invenção, disposição, elocução e ação.
A proposta desta dissertação surgiu para este pesquisador como uma grande oportunidade de referendar a produção dos textos visuais por conta de sua formação na área do Design gráfico, área que, por excelência, engloba a produção imagética por meio de conceitos e teorias provindas dos campos da percepção visual e das artes plásticas. Apareceu também como uma chance de apresentar mais estudos nas áreas da retórica da imagem, da construção do texto não verbal e da relação entre o verbal e o visual. A intencionalidade de conseguir atingir um objetivo específico e apresentar uma solução que resolva um problema de configuração e de comunicação é a alma do design gráfico, o qual propõe essas soluções por meio de linguagens visuais. Além disso, essa área atua na composição de imagens para comunicar e representar conceitos, na programação visual de peças para que uma mensagem atinja um determinado “público‐alvo”, garantindo que a mensagem seja entendida por este público de maneira eficiente. Esse comportamento é muito próximo ao comportamento de um rétor: propor solução a uma problemática, apresentar argumentos que vão persuadir e garantir adesão. A retórica envolve garantir que o discurso seja bem estruturado para que o auditório seja movido a aderir à tese apresentada pelo orador.
Tais intenções de associar o design e a retórica no processo persuasivo surge, também, por conta do projeto de pesquisa do orientador deste trabalho, professor Dr. Fernando Aparecido Ferreira: Produção de sentido e retórica no texto verbo‐visual. Esse projeto, em uma abordagem analítica interdisciplinar, investiga a produção de sentido e a persuasão em textos sincréticos. Portanto, peças publicitárias, artefatos de design, obras de arte e peças audiovisuais compõem os corpora nesse projeto de pesquisa.
Feito esse paralelo entre a prática do designer e da retórica, e a relação deste trabalho com o projeto de pesquisa no qual está inserido, chega‐se aos objetivos desta dissertação, que são dois:
‐ Percorrer o processo argumentativo, especialmente as etapas da invenção e da elocução, procurando investigar a contribuição do design nesses dois momentos do sistema argumentativo. Investigaremos isso perscrutando a rotina da elaboração do character design (design de personagem) para um filme de animação. Veremos como a reunião de informações, imagens, formas, bem como sua percepção, entram na etapa da invenção (inventio). Em seguida, verificaremos como essas formas serão usadas em termos de estilo, o que nos leva à etapa da elocução (elocutio). O emprego do design como ação retórica
associada a essas etapas, por sua vez, será averiguado na construção dos ethe de personagens.
‐ Contribuir para a produção de material teórico para os estudos da retórica da imagem e também para a fundamentação das áreas do design gráfico, uma vez que se trata de um campo de conhecimento carente de teorias próprias, principalmente nas práticas e rotinas do character design.
Para analisar essa ação do design, foi escolhido um corpus que mostrasse seu caráter intencional, seu caráter estratégico e retórico. O corpus selecionado é composto por dois objetos: o filme de longa‐metragem de animação, UP ‐ Altas aventuras (UP, 2009) ‐ produção dos Estúdios Disney Pixar –; e o livro The art of Up (2009), que trata do processo da elaboração artística do mesmo filme.
Abordaremos um filme de animação por alguns motivos: primeiramente, por sua relação com os textos visuais; e, em segundo lugar, por poder ser comparado e estudado como um discurso. Os textos visuais que compõem o filme de animação são passíveis de serem analisados com as teorias da retórica, da percepção visual e do design.
Como recorte do corpus será analisado o prólogo do filme de animação, que retoricamente funciona como exórdio do discurso. É uma das sequências da animação com maior carga emocional, sendo que nela se encontra o melhor caso a ser analisado e que irá auxiliar na investigação da proposta dessa pesquisa: o ethos do protagonista do filme, Carl Fredricksen. Up é um filme de animação norte‐americano que conseguiu sucesso de crítica e público, fato que se comprova pelos prêmios conquistados logo após seu lançamento e pela eficiência no despertar das paixões de seu auditório. Por apresentar todo o processo de produção, bem como as intenções dos diretores e produtores, o livro The art of Up entra como um documento de comprovação. Tal publicação trata das etapas do processo de criação da animação, descrevendo processos por meio de testemunhos dos diretores e componentes das equipes de criação. Sendo assim, temos um texto multimodal1 (o filme),
narrativo, com o propósito do entretenimento e o material que comprova a intencionalidade da produção dos designs utilizados no filme. O conteúdo no livro que documenta o design
1 De acordo com Cavalcante (2012, p. 20), “[...] é um evento comunicativo em que estão presentes os elementos linguísticos, visuais e sonoros, os fatores cognitivos e vários aspectos. É também um evento de interação entre o locutor e o interlocutor, os quais se encontram em um diálogo constante”.
dos personagens será de grande importância para a análise e se relaciona diretamente com a construção do ethos dos personagens. Construção que vai ser analisada no prólogo do filme, recorte do corpus na pesquisa, por se tratar de uma sequência que apresenta o protagonista. A construção imagética dos personagens pode corroborar os objetivos do orador‐diretor, atuando como um argumento. Para orientar nossas análises, teóricos da retórica serão evocados, tais como: Aristóteles (2013), Ferreira (2015), Meyer (2007), Perelman e Olbrechts‐Tyteca (2005) e Reboul (2004).
No processo de investigação da ação retórica do design em Up, a fim de melhor esclarecimento da produção dos textos visuais, será necessário que se organize um arcabouço teórico para analisar os designs empregados na animação. Para isso, serão utilizados autores cujos trabalhos versem sobre design e percepção visual, teóricos que tenham estudado as rotinas e as definições do design, as práticas do character design e como formas e cores produzem sentidos. Autores como Arnheim (2011), Bancroft (2006), Bueno (2012), Bürdek (2010), Cardoso (2016), Dondis (1997), Almeida Junior e Nojima (2010), Williams (2009) compõem o corpo bibliográfico que complementará os estudos dentro das áreas normalmente estranhas à linguística e à retórica dos textos verbais. Visando a atingir os objetivos propostos, esta dissertação está organizada em três capítulos. O primeiro versa sobre a retórica, sua contextualização histórica e também sobre a estrutura aristotélica e suas expansões teóricas provindas de outros autores. Esse capítulo apresenta e explica os conceitos do tripé retórico e suas dimensões no ethos, no pathos e no logos; os gêneros do discurso; etapas do processo discursivo; partes do discurso e o sistema
retórico. O capítulo dissertará sobre cada item mencionado, definindo‐os para, mais tarde, relacioná‐los com as rotinas do character design.
O segundo capítulo é constituído pelas teorias e definições relativas ao design (character design), seus meandros e suas rotinas: sua história e contextualização, design gráfico, filmes de animação e as etapas da produção de animações, que compreendem o nosso corpus.
Ainda no segundo capítulo, uma etapa muito importante no processo criativo do
design gráfico será tratada: o briefing. Junto a essa etapa e para ilustrá‐la, será relacionada
uma fase do processo de animação em que o design atua: a do concept art. Portanto, esse capítulo será determinante para que se descubra o caráter proposital das elaborações e
construções dos textos visuais do design. Em seguida, será explicado o que compreende o
character design ou design de personagens. Serão elencados aspectos que possam servir de
parâmetros para a análise dos personagens do filme que compõe o corpus. Ainda nesse capítulo, serão abordadas as teorias e noções da percepção visual. Uma vez estabelecida uma estrutura teórica de análise para os textos visuais, é importante que se tenha esclarecimento sobre como estes textos significam ou produzem sentido para o auditório. Nesse capítulo, ainda, teremos a conexão entre design e retórica. Serão abordados os conceitos de construção do ethos e do character design, além da maneira com que o emprego dos textos visuais influencia na construção ética no filme de animação, e como se dá a relação da produção de textos visuais com a retórica e com as etapas do processo argumentativo. Nessa fase, se versará sobre como o design atua nas etapas da invenção e da elocução, adquirindo o caráter retórico dentro da produção do filme de animação.
O terceiro e último capítulo será composto da análise do corpus e seu recorte. Analisaremos o prólogo do filme de animação UP (2009), tido retoricamente como o exórdio. As construções visuais dentro do character design serão justificadas com depoimentos e imagens dos estudos realizados pelo diretor e sua equipe documentados no livro The art of
UP (2009). Serão relacionadas às teorias da retórica, do design e da percepção visual.
Esta dissertação propõe uma expansão na abordagem dos estudos retóricos, ampliando‐os para os textos não verbais ou multimodais; bem como apresenta um caminho para a reafirmação da transdisciplinaridade tanto da linguística como do design; e, ainda, reforça a relação entre os dois campos de conhecimento, a fim de tentar criar uma trilha, com potencial de se tornar uma estrada a se percorrer dentro do entendimento de como a linguagem não verbal pode ser pesquisada, de como as soluções visuais empregadas agem como argumentos que, organizados da melhor maneira, poderão despertar paixões e promover o convencimento, a adesão à tese do orador.
1 RETÓRICA DESBRAVADA
Com o objetivo de se compreender melhor as teorias da retórica, este capítulo se desenvolve com referências à história da teoria e com os fundamentos básicos que compõem o essencial para elaborar a análise que pretendemos.
Quando se busca compreender a retórica, a primeira adversidade que se encontra é a definição de qual retórica se está investigando. Na contemporaneidade, existem vários significados para esta palavra. Porém, o que se busca neste capítulo é a definição e o estabelecimento da teoria da Retórica, a ciência, a estrutura teórica que fundamenta o estudo da arte de argumentar visando à persuasão, e não o sinônimo de discurso vazio, sem coerência de fundamento ornamental e falacioso. A princípio, algumas definições de Retórica que podem ser apresentadas são: (1) a retórica é uma manipulação do auditório (Platão); (2) a retórica é a exposição de argumentos ou de discursos que devem ou visam a persuadir (Aristóteles); e (3) a retórica é a arte de bem falar (ars bene dicendi, de Quintiliano).
Nota‐se que não foi apresentada somente uma definição de Retórica e muito menos foi afirmado que alguma delas é mais importante, por enquanto. Isso se deve ao fato de que a Retórica começou a ser delimitada por vários pensadores, e, de acordo com o que se foi passando na história, ela foi se estabelecendo como ciência.
Porém, antes de tudo, é imperativo que se estabeleça que a Retórica é algo inerente à capacidade humana da comunicação. Somos seres retóricos, como disse Ferreira (2015):
Por termos crenças, valores e opiniões, valemo‐nos da palavra como um instrumento revelador de nossas impressões sobre o mundo, de nossos sentimentos, convicções, dúvidas, paixões e aspirações. Pela palavra, tentamos influenciar as pessoas, orientar‐lhes o pensamento, excitar ou acalmar as emoções para, enfim, guiar suas ações, casar interesses e estabelecer acordos que nos permitam viver em harmonia. (FERREIRA, 2015, p. 12)
Portanto, o ato retórico existe desde sempre. Assim que a humanidade aflorou sua capacidade inata de desenvolver linguagens e a comunicação, passou a existir o ato retórico.
A Retórica, no entanto, começou a ser estruturada inicialmente como técnica e só depois, em outro momento na história, como ciência. Tanto que a primeira e a terceira asserções sobre a definição de Retórica apresentadas se posicionam muito mais como uma habilidade a ser praticada que um saber estruturado a ser aplicado.
É dado como marco inicial do nascimento da retórica o século V a.C., em Siracusa, na Magna Grécia, atual Itália (FERREIRA, 2015, p. 40). O contexto histórico da época foi marcado por litígios, júris populares para restituição de terras a seus legítimos proprietários. Após um período de tirania do general ateniense Trasíbulo (455 a.C. ‐ 388 a.C.), que premiava seus soldados com propriedades tomadas do povo, foi necessário que houvesse embates para a devolução dessas terras. Dessa maneira, é perceptível que a Retórica está associada ao Direito e aos aspectos judiciários do discurso argumentativo.
Ainda na mesma época, se desenvolvia na Grécia, em Atenas, o regime democrático. Esse regime, que tem a premissa de permitir a participação do povo no governo por intermédio de representantes, marca o uso da Retórica como uma técnica. No areópago se podia verificar esse ato. O areópago era uma espécie de auditório ao ar livre onde conselhos se reuniam, inclusive assembleias que funcionavam como tribunais. Ali vários discursos eram pronunciados de modo a conseguir a adesão dos presentes.
Górgias, filósofo grego itinerante, que difundiu por toda a Grécia a Retórica como uma arte, foi famoso por proferir discursos apurados e elegantes, aproximando o discurso retórico da literatura poética, tomando um caráter mais estético. Como indicado por Alexandre Júnior na introdução à obra Retórica de Aristóteles, “Górgias reconhecia a força da emoção e a magia da palavra expressiva e bem cuidada”. (ALEXANDR JÚNIOR, M. Introdução. In: ARISTÓTELES Retórica. Tradução de Manuel Alexandre Júnior; Paulo Farmhouse Alberto e Abel do Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2005, p. 20). Ao difundir suas ideias, conquistou vários discípulos, os sofistas, os quais, assim como seu mestre, eram itinerantes e levavam o conhecimento sobre o discurso pelas cidades e, quando não se dispunham a ensinar, agiam em favor de quem necessitasse/interessasse. Foram as primeiras ações representativas do que seria um advogado.
Fundamentada no óculo sofista de mundo, a Retórica foi tomando um rumo que pode ter lhe garantido alguns predicados. Sofistas pregavam a Retórica como uma prosa ornada e erudita. Reboul (2009) explica que, nesse período, a retórica começa a adquirir um caráter de ornamentação, uma conotação de engano e falsidade:
Certamente porque o mundo do sofista é um mundo sem verdade, um mundo sem realidade objetiva capaz de criar o consenso de todos os espíritos, para dizerem que dois e dois são quatro e que Tóquio existe[…], o discurso humano fica sem referente e não tem outro critério senão o próprio sucesso: sua aptidão para convencer pela aparência de lógica e pelo encanto do estilo. (REBOUL, 2004, p. 09)
Os sofistas tentavam convencer pela elaboração estética do discurso. Buscavam o sucesso da persuasão com oportunismos, ilusões e inverdades, impondo referenciais no discurso, sem deixar espaço para a argumentação pura e dialógica. Irrompiam com uma premissa básica da Retórica, a existência da objeção. Nesse sentido, Reboul (2004) bem aponta a falta de estrutura do discurso sofista:
Concretamente o que muda? Muda que o discurso não pode mais pretender ser verdadeiro, nem mesmo verossímil, só poderá ser eficaz; em outras palavras, próprio para convencer, que no caso equivale a vencer, a deixar o interlocutor sem réplica. A finalidade dessa retórica não é encontrar o verdadeiro, mas dominar através da palavra; ela já não é devotada ao saber, mas sim ao poder. (REBOUL, 2004, p. 10)
Ao que cabe dizer que as práticas dos sofistas conferiram à Retórica uma má reputação, tida como duvidosa e conflitante. Assim escreveu Meyer (2007) em seu livro A
retórica:
Rapidamente, eles [os sofistas] venderam seus préstimos a todas as causas, o que Platão lhes reprovou. Ele foi sempre infatigável em opor a retórica – falso saber, ou sofística – à filosofia, que se recusa a sujeitar‐se às aparências de verdade para dizer tudo e também seu contrário, o que é condenável, mesmo que rentável. Disso nasceu a ideia de que o sofisma é um raciocínio falacioso e enganador, mas que não aparece como tal. Tem todos indícios de verdade, salvo um, o que conta: ele é um erro. (MEYER, 2007, p. 19)
Apesar dos sofistas serem tomados na época como “pervertedores de jovens”, palavras de Platão em Reboul (1998, p. 8), existiu uma fundamentação sofística para a Retórica, algo positivo. A Retórica foi tida como algo a ser ensinado de maneira deveras organizada e baseada em função de alguma convicção ou posicionamento. Reboul (2004, p. 9) afirma que “de qualquer forma, pode‐se dizer que os sofistas criaram a retórica como arte do discurso persuasivo, objeto de um ensino sistemático e global que se fundava numa visão de mundo” e que “foram, com certeza, os primeiros pedagogos, e o objetivo de sua educação não deixa de ser nobre: capacitar os homens”. E continua no raciocínio: “o negativo de toda essa comoção sofista foi objetivar seus ensinos no ‘saber fazer’ em prol do poder, excluindo todo o conteúdo do ‘saber’. (REBOUL, 2004, p. 10)
A senda da Retórica continua com um declínio. Declínio provocado pelas ideologias positivistas, com a criação do método científico, ao menos em sua primeira versão, base para os métodos atuais. Esse pensamento pregava que, em um discurso, não se trata de convencer alguém, mas apenas demonstrar os fatos provocando a verdade única e irrefutável. Deve‐se valer de experimentos e ter os resultados como verdades absolutas. Verdade única, verdade absoluta, premissas que não existem na Retórica. Enquanto a Retórica tentava se estruturar como ciência, as ideologias positivistas rejeitavam completamente seu cerne, o embate.
A retórica ressurge sempre em tempos de crise. A derrocada do mito, entre os gregos, coincide com o grande período sofista. A impossibilidade de fundar a ciência moderna e sua apoditicidade matemática, mediante a escolástica e a teologia, herdadas de Aristóteles, conduz à retórica o Renascimento. Hoje, o fim das grandes explicações monolíticas, das ideologias e, mais profundamente, da racionalidade cartesiana estribada num tema livre, absoluto e instaurador da realidade, e mesmo de todo o real, assinala o fim de uma certa concepção do logos. Este já não tem fundamento indiscutível, o que deixou o pensamento entregue a um cepticismo moderno, conhecido pelo nome de niilismo, e a uma redução da razão, tranquilizadora porém limitada, o positivismo. (MEYER, M. In. Prefácio. Tratado da argumentação. PERELMAN; OLBRECHTS‐TYTECA, 2005, p. XX)
Como visto no trecho acima, escrito por Meyer em seu prefácio à obra de Perelman e Olbrechts‐Tyteca, Tratado da Argumentação: A nova retórica, do início até a metade do século XX, as ideologias positivistas foram desestruturadas, ficando comprovadas que essas tidas verdades absolutas não passavam de verdades que funcionavam dentro de
um paradigma, ou seja, dependiam de um ponto de vista. Assim sendo, a Retórica tem chance de ser estudada e reestruturada novamente como ciência. Isso aconteceu de fato assim que a comunicação na época começou a contar com os discursos políticos e a publicidade, ficando o ato de convencer e persuadir ainda mais claro e enraizado na cultura.
Concluindo, pode‐se ver que, no quesito estruturação, Aristóteles foi bem mais incisivo em relação à estrutura esboçada pelos sofistas, uma vez que o filósofo não considerava a Retórica como simples persuasão, mas como distinção e escolha de meios adequados para convencer. Repensou a Retórica de maneira total, norteando a rumos bem diferentes aos de Górgias e tentando integrar tudo montando um sistema.
De acordo com Meyer (2007, p. 21), Aristóteles define a Retórica como sendo a exposição de argumentos ou de discursos que devem ou visam a persuadir. Define‐a também como uma arte, uma técnica – techné –, uma prática que produz resultados de maneira inconsciente, através de talento natural, ou consciente, por meio de estratégia e prática. Essa associação infunde à Retórica o caráter sistemático que garante seu estudo estrutural como ciência.
E, como apontado por Ferreira (2015):
A nova retórica de Perelman e Olbrechts‐Tyteca, por exemplo, a partir da filosofia do Direito, observa que alguns domínios do discurso não se submetem ao arbítrio estrito racional, mas sim, a uma lógica do razoável, muito útil em retórica para associar convencimento e persuasão. (FERREIRA, 2015, p.47)
Perelman e Olbrechts‐Tyteca trazem, no Tratado da argumentação, a Retórica como o “discurso do método” de uma racionalidade que já não pode evitar debates e deve, portanto, analisar os argumentos que governam as decisões.
A retomada da Retórica a sua origem se dá pela alteração das linhas de pensamento científico que permite o embate e não mais considera apenas o raciocínio cartesiano e lógico como prova analítica. A nova Retórica renascida considera também a interpretação dos discursos, e não somente a produção de textos. Desse modo, a discussão e o embate que a nova Retórica sugere enriquece o mundo e gera novos pontos de vista. Ela se expande para os mais diversos tipos de linguagem.
1.1 O tripé retórico
O sistema retórico, descrito por Aristóteles em sua obra Retórica, pressupunha a argumentação. O processo argumentativo, para o mestre estagirita, compreende três componentes fundamentais: o orador, o auditório e o discurso. Não para menos, são objetos tratados nos três capítulos de sua obra ora citada: o primeiro capítulo disserta sobre o orador, como ele concebe seus argumentos, como constrói seu ethos; já o segundo discorre sobre o auditório, como ele recebe os argumentos e o que estes argumentos provocam, o
pathos; e o terceiro capítulo, por sua vez, estuda sobre o discurso, o logos, como se
expressam os argumentos.
Cada um desses elementos desempenha um papel muito importante no processo persuasivo, pois deles se traz em conceitos o que são os alicerces da Retórica, como apontado por Ferreira (2015, p. 17):
a) Ethos: refere‐se ao orador. Para Aristóteles, credibilidade assentada em seu caráter, virtude, honra e confiança que lhe outorgam.
b) Pathos: refere‐se ao auditório. Para movê‐lo, é necessário comovê‐lo, seduzi‐ lo, convencê‐lo a partir de um acordo, de um casamento de interesses centrado nas crenças e paixões do auditório.
c) Logos: refere‐se ao discurso. Pode revestir‐se de diversas tipologias, numa dependência direta da questão subjacente ou expressamente colocada.
Os conceitos de ethos, pathos e logos, quando expostos, já demonstram sua comunhão. São conceitos interdependentes que não podem ser explicados sozinhos sem citar ou relacionar os outros dois. Por exemplo, ao se explicar o ethos, se direciona seu conceito ao orador. Quando Ferreira (2007, p. 17) diz “credibilidade em seu caráter, virtude, honra e confiança que lhe outorgam”, quer dizer que tais adjetivos são concedidos pelo
auditório (relacionado à instância pathos). E só os concedem ao ver conhecimento e
desenvoltura ao proferir o discurso (relacionado à instância logos). O orador só adquire esses predicados de confiança e virtude ao discursar para o auditório. Reafirmando, os conceitos de ethos, pathos e logos possuem uma comunhão tão forte, que, para se explicá‐ los separadamente, é sempre necessário que se cite ou se volte aos outros dois. Orador, auditório e discurso existem por si só. Porém, suas instâncias – ethos, pathos e logos –
dentro da argumentação, nunca existirão sozinhas, elas existem somente convergindo umas às outras.
É importante que se faça explanação mais aprofundada sobre cada elemento do tripé retórico. Entendamos o que as instâncias ethos, pathos e logos significam e sua imbricação. Iniciemos com os ethos, importante teoria para esta pesquisa. 1.1.1 O ethos Considerando a sua relevância para este trabalho, é de grande importância que seja dedicado um tópico para tratar apenas desta instância do processo discursivo: o ethos.
Sendo um dos componentes dos pilares retóricos e também do processo discursivo, o ethos seria, de acordo com os gregos, uma imagem de si, o caráter, traços de comportamento ou a personalidade de alguém. Porém, para se definir ethos com mais clareza, é necessário que se defina primeiramente o orador. Como explanado no item anterior, o ethos é simbolizado na figura do orador dentro do processo discursivo e somente assim pode‐se defini‐lo.
Orador, dentro do dispositivo retórico aristotélico, é o agente do discurso. É ele quem pensa, organiza e pronuncia o discurso para um determinado auditório. Como mostrado em A retórica de Meyer (2007, p. 34), o orador “é alguém que deve ser capaz de responder às perguntas que suscitam debate e que são aquilo sobre o que negociamos”.
Ethos é uma imagem ou uma ideia que se faz do orador pelo discurso. Ethos é
uma instância abstrata, um conjunto de adjetivos, positivos ou negativos, que se liga ao orador dentro de um processo discursivo. Contudo, buscando a eficiência da persuasão do seu discurso, o orador necessita inspirar confiança no auditório. Precisa fazer com que seja uma fonte confiável de argumentos para que a adesão ocorra. “As virtudes morais, a boa conduta, a confiança que tanto umas quanto outras suscitam conferem ao orador uma
autoridade. O ethos é o orador como princípio (e também como argumento) de autoridade.”
(MEYER, 2007, p. 34‐35, grifos do autor)
Fiorin (2016, p. 71) afirma: “Um orador inspira confiança se seus argumentos são razoáveis, ponderados; se ele argumenta com honestidade e sinceridade; se ele é solidário e amável com o auditório”. Ou seja, durante o processo discursivo, o orador se constrói perante o auditório de acordo com suas atitudes e conteúdo do discurso elaborados por ele.
E, baseando‐se nessa informação, também pode‐se identificar a importância do auditório no processo discursivo, para quem todo o esforço do orador é direcionado de modo direto ou indireto, ou seja, com base no que o auditório associa à imagem do orador. Sendo assim, com o foco no que o orador desperta ou apresenta a seu auditório, classifica‐se os ethe em três espécies: a phrónesis, a areté e a eúnoia. Como explica Fiorin (2016):
a) phrónesis, que significa bom senso, a prudência, a ponderação, ou seja, que indica se o orador exprime opiniões competentes e razoáveis; b) a areté, que denota a virtude, mas virtude tomada no seu sentido primeiro de “qualidades distintivas do homem” (latim uir, uiri), portanto, a coragem, a justiça, a sinceridade; nesse caso o orador apresenta‐se como alguém simples e sincero, franco ao expor seus pontos de vista; c) a eúnoia, que significa a benevolência e a solidariedade; nesse caso, o orador dá uma imagem agradável de si, porque mostra simpatia pelo auditório. (FIORIN 2016, p. 71)
Nesse sentido, o orador que utiliza a phrónesis associa sensatez e ponderação ao seu ethos. Quando usa a areté, o orador agrega ao seu ethos adjetivos de franqueza e impudência. E, se valendo da eúnoia, aglutina ao seu ethos solidariedade, benquerença e empatia. Nesse esquema ‐ orador, auditório e discurso ‐ apesar das classificações dos ethe serem baseadas no que o auditório admite, existem canais ou caminhos nos quais esses três tipos de ethos usam para se estabelecerem.
Esses três caminhos seriam as próprias três instâncias do processo discursivo: o próprio ethos, o pathos e o logos. Isto é, a phrónesis usa como recurso principal o logos para associar a sensatez e a ponderação ao ethos do orador. A areté agrega franqueza e impudência ao ethos do orador usando como recurso o próprio ethos. E a eúnoia tem como canal ou recurso o pathos para aglutinar solidariedade, benquerença e empatia ao ethos do orador. Elaborando mais sobre a questão, pode‐se notar que, no processo discursivo composto pelos 3 pilares da retórica orador/ethos, auditório/pathos e discurso/logos, cujo objetivo maior é a persuasão, o orador constrói seu ethos junto a um auditório usando como canal ou recurso um desses mesmos três pilares, de tal maneira a conseguir adesão do auditório estabelecendo uma conexão positiva ou negativa.
Cabe lembrar que o ethos é uma dimensão no discurso retórico, sendo por meio do discurso que se faz e existe; portanto sem discurso não existe ethos. E, como na própria Retórica não existe verdade absoluta, um ethos não necessariamente é a representação fiel
ou pessoal do orador. Essa dimensão pode ser persistente junto ao auditório, porém nunca representará o orador em sua totalidade, é apenas uma representação momentânea do posicionamento pessoal do orador durante o ato retórico. Como bem explicado por Ferreira (2015):
O ethos retórico, então, pode ser entendido como um conjunto de traços de caráter que o orador mostra ao auditório para dar uma boa impressão. Incluem‐se nesses traços as atitudes, os costumes, a moralidade, elementos que aparecem na disposição do orador.
Não importa, pois, se o orador é ou não sincero: a eficácia do ethos é distinta dos atributos reais de quem assume o discurso. Como se infiltra na enunciação sem ser enunciado, são atributos do exterior que caracterizam o orador, mas há, no reconhecimento do ethos por um auditório, uma dinamicidade natural de confiança e desconfiança que ganha corpo à medida que se desenvolve o movimento discursivo. (FERREIRA, 2015, p. 21, grifos do autor)
Assumindo as colocações feitas até agora sobre componentes e estruturas, percebe‐se que o ethos é algo que se constrói e se modifica, não sendo algo estanque no processo discursivo, principalmente se forem levadas em conta as atualizações e a multiplicidade de gêneros discursivos da atualidade. Considerando essa premissa, Meyer (2007) consegue desdobrar o conceito de ethos em dois: ethos imanente e ethos efetivo.
Ethos imanente seria a imagem a ser passada ao público, o ethos moldado à base
das esperanças e quereres do auditório, um ethos construído pelo auditório; e o ethos efetivo, por sua vez, seria a imagem projetada para si próprio, a imagem almejada pelo orador. Essas duas imagens, porém, não necessariamente são coincidentes, dependem apenas do nível de sucesso do orador na estruturação do seu discurso.
Considerando a persuasão como objetivo principal do ato retórico, nada mais justo que confirmar a eficiência do orador quando este consegue fazer com que coincida o
ethos imanente com o ethos efetivo. O ethos é uma instância, um domínio com o qual o
auditório se identifica. Uma personalização do sujeito que profere o discurso. A partir dessa lógica se complementa a definição que Meyer (2007, p. 35) dá para o ethos imanente, “é a projeção da imagem que deve ter o ethos aos olhos do páthos […]. Seguramente, o orador se mascara ou se revela, se dissimula ou se exibe com toda transparência, em função da problemática que ele precisa enfrentar”.
Nesse sentido, os discursos narrativos são bons exemplos em que o orador pode construir a imagem de um personagem que se comunica valendo‐se de seu próprio ethos. Aos olhos do auditório‐espectador, o personagem se torna o orador já havendo um acordo básico para a persuasão. Ainda temos o caso dos filmes de animação, em que se sabe que o “orador”, na verdade, é um grupo de profissionais comandado por uma única pessoa, o diretor.
Como afirmado por Ferreira (2015, p. 90), “Modernamente, o conceito sofreu ampliação de sua significação e hoje se aceita como ethos a imagem que o orador constrói
de si e dos outros no interior do discurso”.
Portanto, conforme descrito no início deste tópico, a instância do ethos é de extrema importância para esta pesquisa. Aqui foram abordados conceitos que se fundamentaram a partir das estruturas aristotélicas e foram se ampliando. Mais à frente, essas noções serão retomadas, porém com os acréscimos de Meyer (2007) e Reboul (2004), para a averiguação de como a noção de ethos pode ter relação com a elaboração do design dos personagens. Esse conceito será tratado assim que a atividade do design e a percepção visual forem explicadas. A segunda instância a ser conceituada é o pathos, instância reflexo do auditório. 1.1.2 O pathos
É importante ressaltar que, essencialmente, não existe ato retórico sem algum dos seus três pilares: orador/ethos, auditório/pathos e discurso/logos. Porém, quando se trata de pathos, existe sua respectiva imbricação, que seria o auditório, cujo ponto de convergência é o sistema retórico, no qual estão concentrados os esforços e no qual também se dão os resultados e objetivos almejados, como elucidado por Ferreira (2015, p. 21): “É o auditório que, como leitor ou ouvinte de um ato retórico, concentra toda a atividade do orador”. Para tanto, não existe processo argumentativo ou ato retórico sem levar em conta o auditório: “Sempre se argumenta diante de alguém. Esse alguém, que pode ser um indivíduo ou um grupo ou uma multidão, chama‐se auditório, termo que se aplica até aos leitores”. (REBOUL, 1998, p. 92‐93)
Aristóteles dedicou uma obra inteira ao pathos, às paixões, qual seja: o livro II de
Retórica. Para o mestre estagirita, paixão seria o que move, o que impulsiona o homem a
agir. Paixão é o que é despertado no auditório, e que, sem o auditório, não existiria. É o que modifica o auditório e o move a aderir à causa do orador, o qual, ao tentar despertar o
pathos no auditório, o faz sempre com, ao menos, algum dos três objetivos:
Docere: ensinar, transmitir noções intelectuais, convencer. É o lado
argumentativo do discurso.
Movere: comover, atingir os sentimentos. É o lado emotivo do discurso,
aquele que movimenta as paixões humanas.
Delectare: agradar, manter viva a atenção do auditório. É o lado estimulante
do discurso, aquele que movimenta o gosto. (FERREIRA, 2015, p. 16)
Como já notado, falar de pathos é falar de paixão e sua relação com o auditório. Na Retórica, paixão não seria apenas uma abstração relacionando sensações e emoções, e sim uma relação entre emoção e produção de sentido. Razão, por definição, adentra na parte estrutural e argumentativa do discurso (logos) como ferramenta de produção de sentido e persuasão. Já a emoção tange os valores, sentimentos e impulsos.
Aristóteles (2013) define paixões e ainda propõe um método para analisá‐las:
As paixões (emoções) são a causa da mudança dos nossos julgamentos e são acompanhadas por dor ou prazer. São elas: a cólera, a compaixão, o medo e outras paixões semelhantes, bem como os seus contrários. No que tange a cada paixão, convém distinguir três coisas. Se tomarmos como exemplo a cólera, começaremos por investigar qual é a disposição da pessoa que se encoleriza, com que pessoas ela geralmente se encoleriza e quais os motivos que a induzem à cólera. Não basta conhecer um ou dois desses aspectos, pois se não conhecermos os três seremos incapazes de suscitar a cólera no auditório. O mesmo é válido no que respeita às demais paixões ou emoções. (ARISTÓTELES, 2013, p. 122‐123)
Nessa citação, Aristóteles diz que as paixões são acompanhadas sempre pela dor ou pelo prazer. Quando se versa sobre paixões em Retórica, dor e prazer são empregados como expressão subjetiva da relação individual do auditório com a emoção. Dor ou prazer dependeria exclusivamente da intenção por trás do ato que produziu a emoção.
Não se deve esquecer, portanto, que esses conceitos precisam se aplicar em um ato retórico; assim sendo, uma paixão agiria no auditório de forma que o persuadisse a uma resposta. Dentro do jogo da argumentação, uma resposta para a tese do orador só poderá
ser escolhida pelo auditório se alguma paixão for despertada e o leve a escolher. Meyer (2007) assim asserta sobre essa questão:
A paixão, como resposta, também é um julgamento sobre aquilo que está em questão: o prazer e a dor remetem à alternativa da pergunta, ao passo que o desejo, a aspiração, o amor supõem um julgamento positivo sobre aquilo que é questionável, assim como o ódio, o desgosto etc. Exprimem a recusa do termo oposto da alternativa. É assim que, pela paixão, a pergunta se torna resposta. (MEYER, 2007, p. 37‐38, grifos do autor)
Spinoza (apud MEYER, 2007, p. 38) ainda aponta que a paixão por si só é retórica. Ela enterra as questões nas respostas que fazem crer que elas estão resolvidas. É por isso que lidar com paixões é sempre útil, retoricamente falando, ao passo que a argumentação, que põe explicitamente as questões sobre a mesa, faz mais apelo à razão do que à emoção. A paixão é, portanto, um poderoso reservatório para mobilizar o auditório a favor de uma tese. Por sua vez, um filme, se for comparado com um discurso, não é diferente, pois, ao apresentá‐lo, o diretor almeja a imersão do público na diegese, deseja sua adesão na participação das emoções apresentadas, quer que o auditório acredite que o filme, sendo verossímil, seja crível. Como citado por Figueiredo (2018, p. 142), “as paixões, em um processo argumentativo, são pontes que permitem a conexão e a proximidade dos homens por meio da identificação de traços deflagrados em comum”. O diretor, no papel de orador, procura despertar no público paixões para que se mova a acreditar, tantas paixões quanto forem necessárias.
A contento, Aristóteles listou, inicialmente, as paixões como sendo quatorze: cólera, calma, amor, ódio, temor, confiança, vergonha, impudência, favor, compaixão, indignação, inveja, emulação e desprezo. Depois, em sua obra Ética a Nicômaco, descreveu mais duas além das já apresentadas: desejo e felicidade. Para descrevê‐las, partiremos das definições de Aristóteles, a fim de beber na fonte de suas elucubrações e entender como ele as analisava. Em alguns casos, as paixões são alocadas e explicadas em pares de oposição, uma após a outra, aproveitando a ancoragem e um antagonismo entre elas. Em outros casos, são alocadas por similaridade.
a) Cólera
Aristóteles define essa paixão a partir de uma situação de atribuição errada de juízo de valor. Uma situação em que você mesmo ou outrem se sente violado pelo juízo de valor de terceiro(s). “É possível definir a cólera como uma inclinação penosa para uma manifesta vingança de um desdém manifesto e injustificável de que nós mesmos ou nossos amigos fomos vítimas.” (ARISTÓTELES, 2013, p. 123) Como descreve também Figueiredo (2018, p. 145‐146): “é um impulso da vingança, causado por injustificada negligência em relação ao outro ou aos que são seus queridos”.
A vingança citada por Aristóteles – também explicada por Figueiredo – seria a reação em igual intensidade, senão maior, da ofensa proferida, a qual pode ser proferida de forma direta ou indireta pelo orador. A ofensa pode partir do próprio orador, que se caracteriza como autor das ofensas; ou pode também, de forma indireta, ser contada pelo orador, que se configura como porta‐voz narrador da situação de ofensa.
É válido lembrar que ofensa, aqui, tem um significado mais amplo e não é somente um xingamento, mas sim ofensa no sentido de ataque percebido por um juízo de valor feito por outrem. Então, em uma situação em que se é liberado um juízo de valor considerado errado, existe o pathos despertado pela injustiça percebida, a paixão da cólera. Importante salientar que, para Aristóteles, a paixão do ódio é diferente da paixão da cólera. “A cólera visa a causar sofrimento, ao passo que o ódio visa a causar o dano, causar o mal. O indivíduo colérico deseja que a pessoa e objeto de sua cólera sinta a opressão de seu sentimento hostil e que saiba quem é que experimenta a cólera.” (ARISTÓTELES, 2013, p. 137)
A paixão do ódio será tratada em um item posterior. A paixão da cólera pode desencadear a paixão do ódio, sendo, porém, distintas nos escritos de Aristóteles.
b) Calma ou tranquilidade
Esta paixão remete à situação de tranquilidade, sendo antagônica à cólera. Inclusive, Aristóteles aproveita o estado de furor da cólera para alocar a calma e a tranquilidade, uma vez que, em uma ocasião na qual se tem um juízo de valor errôneo, provindo de outrem, é produzida a cólera. Mas e, se no decorrer da situação, ao perceber o erro, o autor do juízo se desculpasse e demonstrasse real arrependimento? Essa situação