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ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP

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Academic year: 2021

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COORDENAÇÃO GERAL

Celso Fernandes Campilongo Alvaro de Azevedo Gonzaga

André Luiz Freire

ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP

TOMO 1

TEORIA GERAL E FILOSOFIA DO DIREITO

COORDENAÇÃO DO TOMO 1 Celso Fernandes Campilongo

Alvaro de Azevedo Gonzaga André Luiz Freire

(2)

1 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA

DE SÃO PAULO

FACULDADE DE DIREITO

DIRETOR

Pedro Paulo Teixeira Manus DIRETOR ADJUNTO Vidal Serrano Nunes Júnior

ENCICLOPÉDIAJURÍDICADAPUCSP | ISBN978-85-60453-35-1

<https://enciclopediajuridica.pucsp.br>

CONSELHO EDITORIAL

Celso Antônio Bandeira de Mello Elizabeth Nazar Carrazza

Fábio Ulhoa Coelho Fernando Menezes de Almeida

Guilherme Nucci José Manoel de Arruda Alvim

Luiz Alberto David Araújo Luiz Edson Fachin Marco Antonio Marques da Silva

Maria Helena Diniz

Nelson Nery Júnior Oswaldo Duek Marques Paulo de Barros Carvalho Ronaldo Porto Macedo Júnior

Roque Antonio Carrazza Rosa Maria de Andrade Nery

Rui da Cunha Martins Tercio Sampaio Ferraz Junior Teresa Celina de Arruda Alvim

Wagner Balera

TOMO DE TEORIA GERAL E FILOSOFIA DO DIREITO | ISBN978-85-60453-36-8

Enciclopédia Jurídica da PUCSP, tomo I (recurso eletrônico)

: teoria geral e filosofia do direito / coords. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro Gonzaga, André Luiz Freire - São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017

Recurso eletrônico World Wide Web Bibliografia.

O Projeto Enciclopédia Jurídica da PUCSP propõe a elaboração de dez tomos.

1.Direito - Enciclopédia. I. Capilongo, Celso Fernandes. II. Gonzaga, Álvaro. III. Freire, André Luiz. IV. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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2 RATIO DECIDENDI: UM GUIA PARA PENSAR PRECEDENTES JUDICIAIS

NO BRASIL Rubens Glezer

INTRODUÇÃO

A implementação e operação de uma lógica de precedentes depende crucialmente da compreensão adequada de ratio decidendi e de uma reflexão sobre sua aplicabilidade no contexto brasileiro. Este texto se dedica justamente à elucidação desses dois pontos.

SUMÁRIO

Introdução ... 2

1. A lógica de precedentes no Brasil ... 3

2. Aprofundando a noção de ratio decidendi ... 4

2.1. Concepções de ratio decidendi e um exemplo ... 7

3. Operacionalização do sistema de precedentes ... 10

3.1. Distinguir ... 11

3.2. Superar ... 12

4. Reflexão final e perspectivas ... 13

Referências ... 15

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3 1. A LÓGICA DE PRECEDENTES NO BRASIL

O Código de Processo Civil de 2015 estabelece que decisões judiciais são nulas, por ausência de fundamentação, caso se limitem “a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos” ou se deixarem de “seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento”.1 Essa disposição legal já teria por si só o potencial de consolidar uma tendência que foi reforçada ao longo do “novo” Código2 e que também já estava presente em outros institutos jurídicos do nosso ordenamento jurídico:3 a incorporação da lógica dos precedentes judiciais para o sistema brasileiro de litígio.

De certo modo, a lógica de precedentes sempre esteve presente no sistema jurídico brasileiro, assim como em qualquer outro sistema jurídico que valorize a isonomia. A lógica de precedentes é antes de mais nada decidir em termos analógicos, ou seja, é tratar igualmente casos que sejam semelhantes de maneira relevante.4

Há quem considere que precedentes judiciais somente tem espaço nos sistemas de common law mas nunca nos de civil law, mas creio que essa é uma postura equivocada.

Certamente há diferenças relevantes nos sistemas de common law e de civil law, mas isso não reflete necessariamente sobre a lógica de precedentes. Um estudo empírico comparativo encabeçado por Neil Maccormick e Robert Summers no final da década de 90 indicou de maneira bastante abrangente que precedentes são profundamente relevantes em sistemas de civil law.5

A ideia de que há um abismo entre os modelos de orientação jurídica calcada em regras e em precedentes já havia sido atacada conceitualmente décadas antes por H. L. A.

Hart, no clássico O Conceito de Direito. Hart contrariou o senso comum prevalente no mundo anglo-saxão da época ao indicar que há uma porção bastante razoável de objetividade na orientação por precedentes e que há um amplo espaço de indeterminação

1 Art. 489, §1º, V e VI, do NCPC, respectivamente.

2 Mais notoriamente, é o caso da instituição do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas.

3 É o caso, por exemplo, do instituto da Súmula Vinculante ou da Repercussão Geral

4 BIX, Brian. Jurisprudence: theory and context. p.156.

5 MACCORMICK, Neil; SUMMERS, Robert S. Interpreting precedents.

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4 nas regras jurídicas6 e, com isso, estabelecer que os dois modelos de orientação jurídica se equivalem em termos de potencial para a objetividade e incerteza.

Contudo, há sim diferenças relevantes no processo interpretativo de precedentes e de regras. Se essas diferenças não forem respeitadas, o tratamento de decisões judiciais se reduz a uma forma extremamente empobrecida de precedentes judiciais: uma coleção de posicionamentos. Os problemas dessa versão empobrecida da lógica de precedentes ficarão evidentes ao longo deste artigo, mas eu gostaria de indicar desde já que o sistema de precedentes vai muito além do acompanhamento e compilação da parte dispositiva das decisões judiciais. Em outros termos, há muito mais do que saber se determinada conduta foi considerada legal ou ilegal por um tribunal, nem tampouco se determinada norma foi considerada constitucional ou inconstitucional. É claro que isso é relevante para diversas outras tarefas do jurista, mas para operar na lógica de precedentes isso não basta.

A operacionalização plena de um sistema e de uma lógica de precedentes depende crucialmente da noção de ratio decidendi. Nas palavras de MacCormick:

“Sem um entendimento teórico dos precedentes e de conceitos-chave como o de ratio decidendi, não podemos de fato implementar nenhuma doutrina jurídica do precedente. Como sempre, a questão não é se devemos ter ou não uma teoria; a questão é apenas se devemos ter uma teoria articulada, bem pensada e, de preferência, correta, ou se podemos ficar contentes com uma teoria implícita, inarticulada e provavelmente incorreta. ”7

A exploração e aprofundamento da noção ratio decidendi será justamente o objeto da próxima seção.

2. APROFUNDANDO A NOÇÃO DE RATIO DECIDENDI

A noção de ratio decidendi tem a ver com a identificação dos fundamentos centrais de certa decisão judicial. Literalmente são as razões para decidir presentes em sentenças e acórdãos. Nesse sentido, a ratio de uma decisão está ligada à noção de fundamentação da decisão judicial. Porém, esse é apenas o início da compreensão dessa noção central para discutir o sistema de vinculação nos precedentes.

Quem tem contato com o material judicial sabe que as decisões possuem

6 HART, H. L. A. The concept of law. Chapter VII. Segundo Hart, a maior parte ad literatura sobre o tema tendia a exagerar a indeterminação da orientação por precedentes e a previsibilidade e objetividade da orientação por meio de regras.

7 MACCORMICK, Neil. Retórica e estado de direito. p. 194.

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5 estruturas de fundamentação muito diversas e, por vezes, problemáticas. Por um lado, certas sentenças possuem fundamentações gerais e abstratas, remetendo a algum princípio ou regra, para então determinar o resultado daquela demanda. Por outro lado, alguns acórdãos possuem dezenas de páginas, com menções a questões históricas, de direito comparado, filosóficas, políticas, dentre outras. Nesse cenário é comum que existam decisões com fundamentações de menos ou demais.

Isso, contudo, não é um problema para a aplicação da noção de ratio decidendi.

Pelo contrário, ela é uma ferramenta teórica voltada justamente a lidar com essas dificuldades práticas. Conforme relata Medina, a Corte Constitucional Colombiana8 passa a empregar de maneira razoavelmente sistemática as noções de ratio e obiter a partir de 1999 justamente para tentar extrair com clareza as teses que são estabelecidas durante o julgamento de casos, para servir de precedente e orientação de litígios futuros.9

Portanto, a ratio é necessariamente uma parte da fundamentação de um precedente e não o resumo de toda a fundamentação utilizada por um magistrado (ou conjunto de magistrado). Na formulação britânica do início do século XVII, a ratio é apenas o seu fundamento absolutamente essencial e relevante de um certo precedente;

aquela parte da decisão sem a qual o posicionamento final permanece injustificado.10 Para entender esse ponto será útil contrastar a noção de ratio decidendi com a de obiter dicta (no plural, respectivamente, rationes decidendi e obiter dictum). Em casos relevantes é corriqueiro que um magistrado utilize uma fundamentação ampla e variada em seu voto ou sentença. Contudo, por mais que tudo aquilo trazido na decisão seja interessante e relevante,11 nem todo o material é diretamente relevante para a decisão daquele caso. Em uma lógica de precedentes esse é o “joio” que precisa ser separado do

“trigo” da decisão judicial, que recebe o nome de obiter dicta: toda aquela fundamentação que seria dispensável ou meramente incidental para a resolução daquela demanda.

São casos comuns de obiter dicta as considerações históricas ou de experiência jurídica comparada que são utilizadas mais como um instrumento de erudição do que

8 Vale a pena pontuar que a Colômbia que possui uma cultura jurídica muito semelhante à brasileira e por isso serve como uma excelente base de comparação.

9 MEDINA, Diego Eduardo López. El derecho de los jueces. pp. 216-218.

10 Cf. DUXBURY, Neil. The nature and authority of precedent. p. 67.

11 São aqueles casos nos quais determinadas sentenças, votos ou acórdãos são considerados como verdadeiras aulas.

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6 como critério de decisão. Essa noção geral pode dar ensejo a um tipo de equívoco que precisa ser atacado desde logo. Não há uma correlação direta entre ratio decidendi e argumentos jurídicos, bem como entre obiter dicta e argumentos “extra-jurídicos”. A ratio de um precedente pode estar em considerações políticas, econômicas ou morais conectadas a argumentos jurídicos. No mesmo sentido, há uma série de argumentos jurídicos que podem ter apenas o papel de obiter dicta.12 Com isso, quero pontuar que não há um tipo de argumento que será naturalmente (ipso facto) ratio ou obiter. A identificação depende não da natureza ou tipo de argumento, mas do seu uso. Por exemplo, se o argumento histórico der o fundamento crucial para a decisão, deverá ser reconhecida como ratio.

Com essa distinção entre fundamentos essenciais (ratio decidendi) e considerações incidentais (obter dicta) é possível compreender uma característica central da lógica de precedentes: há vinculação apenas à ratio decidendi de um precedente, mas nunca ao obiter dicta.13

Com isso, é possível alcançar um certo tipo de clareza relevante. Em uma lógica de precedentes, há uma vinculação que vai além da parte dispositiva das decisões judiciais e alcance parte da fundamentação. Entretanto, essa clareza se restringe ao âmbito teórico, pois há pelos menos duas grandes dificuldades em aplicá-la na prática.

A primeira dificuldade diz respeito às decisões que possuem fundamentações aparentemente insuficientes. Quando uma decisão apenas coleta uma série de argumentos com menções genéricas a fatos ou à existência de um princípio, regra ou precedente sem articular esses elementos perante o caso concreto. Nesse tipo de decisão, aparentemente só há obiter dicta no texto e nenhuma ratio aparente. A segunda dificuldade surge de decisões que utilizam uma ampla gama de argumentos, nos quais não há uma clareza tão grande no que seja essencial ou não para a decisão.

Essas dificuldades despertaram um certo ceticismo em parte da doutrina, com a suspeita de que a própria noção de ratio seria uma perda de tempo.14 Como bem sintetiza

12 Cf. DUXBURY, Neil. Op.cit.

13 BANKOWSKI, Zenon; MACCORMICK, Neil; MARSHALL, GEOFFREY. Precedent in the United Kingdom. Neil MacCormick; Robert S. Summers (Eds.). Interpreting precedents. pp.336-337.

14 Essa crítica foi principalmente encampada por autores céticos do século XX que endossavam alguma forma de realismo jurídico, como Oliver Wendell Holmes e Alf Ross. Para uma sistematização dessa crítica vide DUXBURY, Neil. The nature and authority of precedent. pp. 76-90.

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7 MacCormick, “podemos dizer que as teorias do precedente tendem do extremo mais ou menos estrito e formalista para o extremo mais ou menos cético do espectro”.15

Nesse debate, apresento na próxima seção uma síntese das diferentes formas de se conceber a noção de ratio decidendi, para avalia-las e indicar minha preferência por uma delas para superação das dificuldades indicadas logo acima e para a viabilidade da operacionalização da lógica de precedentes no Brasil.

2.1. Concepções de ratio decidendi e um exemplo

Na seção acima enumerei duas grandes dificuldades para a operacionalização prática da distinção entre ratio decidendi e obiter dicta ou mesmo de identificação da ratio em uma decisão judicial. Ambas tinham relação com a prática de juízes não explicitarem de maneira clara a articulações razões e fatos que conduziram à parte dispositiva da decisão.

Contudo, isso é um problema apenas para quem espera que a ratio decidendi tenha que necessariamente ser uma porção explícita da fundamentação. O teórico Geoffrey Marshall foi quem conseguiu, ao meu ver, explicitar da melhor maneira possível esse ponto. Marshall distinguiu três possíveis concepções de ratio, que vou adaptar com uma certa liberdade.16

A primeira concepção seria de uma razão explícita, que consiste naquilo que uma decisão judicial trata como um argumento baseado nos elementos de fato e de direito que fundamentam a decisão do caso sob exame. A segunda concepção seria a de uma razão endossada, na qual a ratio somente pode ser identificada como tal quando uma decisão judicial endossa e declara que certa fundamentação de um precedente anterior possui essa qualidade. A terceira, por sua vez, seria a de uma razão implícita, que consiste na regra que deveria estar sendo explicitada na decisão, se os seus elementos jurídicos e fáticos fossem devidamente articulados.17

A diferença entre as três concepções é brutal. Enquanto naquilo que chamo de

15 MACCORMICK, Neil. Retórica e estado de direito. p. 194.

16 MARSHALL, Geoffrey. What is binding in a precedent? Neil MacCormick; Robert S. Summers (Eds.).

Interpreting precedents. pp.503-517.

17 Idem. p.506. Friso que o texto original não possui essa nomenclatura e nem essa formulação.

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8 razão explícita e razão endossada o jurista depende da habilidade e interpretação dos próprios juízes para identificar a fundamentação central dos precedentes examinados, na razão implícita ele pode exercer com liberdade a sua tarefa interpretativa. 18

Um exemplo pode tornar a distinção mais clara. Na ADI 4.277, o Supremo Tribunal Federal declarou, na parte dispositiva do acórdão, que casais formados por pessoas com a mesma identidade de gênero poderiam constituir regularmente a relação jurídica de união estável. Sem dúvida esse é um precedente importante para um futuro questionamento ao Tribunal sobre a possibilidade de casais com a mesma identidade de gênero constituírem regularmente a relação jurídica de casamento. O STF está argumentativamente vinculado às rationes decidendi do precedente, mas não aos seus obiter dicta.19 Nesse sentido, é de crucial importância o debate sobre qual é a ratio do caso.

A solução mais simples de se visualizar seria a fornecida pela concepção de razão endossada. De acordo com essa concepção, a ratio do precedente seria aquela reconhecida pelo próprio STF durante o eventual julgamento de ação sobre casamento homoafetivo, ou de ação que avalie a constitucionalidade de lei que vise proibir esse tipo de união estável, caso haja referência à ADI 4.277.

Já a concepção de razão explícita sofreria com as dificuldades de tentar identificar rationes em acórdão com diferentes votos com diversos argumentos. Porém, pode-se supor uma interpretação razoável que dê ao voto do relator, Ministro Carlos Ayres Britto a autoridade para identificar o seu fundamento. Suponha ainda que o trecho do voto no qual se identificou a ratio seja o seguinte:

“Creio que se está, repito, diante de outra entidade familiar, distinta daquela que caracteriza as uniões estáveis heterossexuais.

A diferença, embora sutil, reside no fato de que, apesar de semelhante em muitos aspectos à união estável entre pessoas de sexo distinto, especialmente no que tange ao vínculo afetivo, à publicidade e à duração no tempo, a união homossexual não se confunde com aquela, eis que, por definição legal, abarca, exclusivamente, casais de gênero diverso.

Para conceituar-se, juridicamente, a relação duradoura e ostensiva entre pessoas do mesmo sexo, já que não há previsão normativa expressa a ampará-

18 Em outros termos, me parece que a razão endossada estaria mais alinhada com um tipo de sociologismo jurídico, a razão explícita com algumas formas de positivismo jurídico e a razão implícita com o pós- positivismo de alguém como Ronald Dworkin.

19 Na próxima seção explorarei um pouco do significado dessa “vinculação argumentativa” que o precedente traz, para indicar que isso não implica, necessariamente, impedimentos a processos de ruptura ou mudança jurisprudencial.

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9 la, seja na Constituição, seja na legislação ordinária, cumpre que se lance mão da integração analógica. ”20

Nesse caso, a ratio seria a da possibilidade da união estável homoafetiva porque apesar de se tratarem de relações suficientemente distintas para fins de regime jurídico, não há previsão expressa para regulá-la, sendo permitida a analogia com o regime heterossexual, enquanto não surgir regulação específica. Com tal cenário, a identificação desse trecho com ratio decidendi do caso daria abertura para, como precedente, inclusive chancelar a constitucionalidade de lei expressamente proibisse no futuro o casamento ou até mesmo a união homoafetiva.

Com isso, ficará muito claro o contraste com a possibilidade de extração da ratio decidendi como razão implícita. Ao ler a íntegra do voto do relator, é possível identificar trecho mais adiante no qual se afirma que tal união estável “(...) embora não esteja expressamente prevista no art. 226, precisa ter a sua existência reconhecida pelo Direito, tendo em conta a ocorrência de uma lacuna legal que impede que o Estado, exercendo o indeclinável papel de protetor dos grupos minoritários (...)”.21 Com a leitura sobre esse e demais trechos indicados acima, apesar do que afirma explicitamente o Ministro, há uma tensão em seu voto. Isso porque indica que o Estado tem um dever “indeclinável” de proteção de grupos minoritários e, além disso, não fornece nenhuma razão para distinguir a união estável heterossexual da homoafetiva. Pelo contrário, indica que as mesmas partilham de identidade em termos de vínculo, publicidade e duração. Esses são justamente os elementos constitutivos do regime jurídico da união estável.

Sob a concepção de razão implícita o jurista pode identificar que a ratio da ADI 4.277, a despeito do que dizem os ministros, é que inexistindo diferença nos elementos constitutivos de uma dada relação jurídica, o Estado não pode legitimamente excluir grupos minoritários de seu exercício e que, no caso, a identidade de gênero não traz diferença relevante para a situação de união estável.

Sob essa hipótese, o precedente estabelecido na ADI 4.277 vincula os ministros a discutirem com base nesses pressupostos, ou seja, identificando se há diferença nos elementos constitutivos do casamento por pessoas com a mesma identidade de gênero.

Isso vincula os ministros a discutir se proliferação ou aceitação social são elementos

20 ADI 4.277, Min. Rel. Carlos Ayres Britto, D.J. 05.05.2011, p. 714.

21 Idem. p. 719.

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10 constitutivos desse regime jurídico, por exemplo. Além disso, daria uma resposta de inconstitucionalidade a leis que visem proibir a união estável homoafetiva.

A despeito de qual seja a sua leitura a respeito da ADI 4.277, este exercício apresenta a inegável liberdade do intérprete na identificação da ratio decidendi de uma decisão judicial. No caso de razões explícitas a liberdade reside na identificação de trecho relevante, enquanto nas razões implícitas o jurista possui a liberdade de articular os elementos de fundo da decisão, ainda que em tensão com seu conteúdo explícito.

Com isso, há uma clara tensão de valores a respeito de qual concepção seguir. A concepção de razões explícitas parece endossar a previsibilidade própria dos métodos de interpretação literal e histórica, enquanto a concepção de razões implícitas parece favorecer o valor de justiça e equidade, próprios dos métodos de interpretação sistemática e teleológica.

Na próxima sessão exploro porque, ao contrário do que pode dizer o senso comum, a lógica de precedentes privilegia mais os valores de justiça e a equidade do que o valor de previsibilidade, endossando a lógica de razões implícitas.

3. OPERACIONALIZAÇÃO DO SISTEMA DE PRECEDENTES

A ratio decidendi de uma decisão judicial é a porção vinculante de um precedente. Contudo, não se trata de uma vinculação em termos de efeitos processuais, como a coisa julgada. Trata-se de uma vinculação argumentativa, do reconhecimento de que um juiz ou tribunal devem prestar contas ao fundamento de um precedente relevante quando for decidir sobre assunto correlato. A força do precedente é a exigência de que os tribunais pratiquem um tipo de coerência (como diz MacCormick)22 ou de integridade (como diz Dworkin).23

Em outras palavras, o precedente traz um constrangimento argumentativo adicional à obrigação de que casos semelhantes sejam decididos de forma semelhante.

Robert Alexy sintetiza essa ideia sob a seguinte regra: “quem deseja se afastar de um

22 MACCORMICK, Neil. Retórica e estado de direito.

23 DWORKIN, Ronald. Law’s empire.

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11 precedente assume o [respectivo] ônus argumentativo”.24

Quem não compreende a natureza argumentativa dos limites estabelecidos pela noção de ratio decidendi tende a conceber a lógica de precedentes como uma deferência cega e rígida ao passado. Esse, porém, é um grande equívoco. Precedentes podem ser (i) aplicados, (ii) superados ou (iii) distinguidos.

Aplicar precedentes é uma das três possibilidades que os atores judiciais possuem em face de um precedente. Pedir que se decida ou decidir conforme a ratio de um precedente estabelecido é certamente o corriqueiro desse sistema. Mas mesmo nessa forma de ação há bastante liberdade interpretativa e espaço para sofisticação. O processo e o debate em torno da identificação da ratio de determinado precedente tem abertura o suficiente para gerar novas interpretações a respeito do que significa aplicar corretamente um determinado precedente e, assim, de eventual mudança em entendimento jurisprudencial. Assim, mesmo nesse âmbito há espaço para a inovação.

Contudo, as operações mais difíceis e sofisticadas residem na possibilidade de distinguir e de superar precedentes estabelecidos. Essas duas operações serão objeto das seções a seguir.

3.1. Distinguir

Distinguir é o que permite que um precedente continue sendo respeitado mas deixe de ser aplicado em certo caso. “Distinguir entre casos é primordialmente uma questão de demonstrar as diferenças factuais entre eles – de demonstrar que a ratio de um precedente não se aplica ao caso em apreço. ”25 Nesse sentido, distinguir é argumentar que o caso atual não partilha de uma identidade relevante com o precedente.

Na distinção (distinguishing) se reconhece plenamente a autoridade (da ratio) de determinado precedente, mas se argumenta que não se trata de um precedente aplicável.

Se trata, por excelência, de um argumento de isonomia. “Ao contrário do que ocorreu na superação [...], o ato de distinguir dois casos não interfere com a ratio do caso anterior, que é considerada apenas “irrelevante” para o novo caso, em razão de alguma diferença

24 ALEXY, Robert; DREIER, Ralf. Precedent in the Federal Republic of Germany. Neil MacCormick;

Robert S. Summers (Eds.). Interpreting precedents, p. 30.

25 DUXBURY, Neil. The nature and authority of precedent. p. 113. Tradução livre.

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12 factual. Nesse sentido, em um sentido estrito do termo, a distinção não é uma forma de desrespeito (departure) ao precedente.26

Por exemplo, em 2016 o Supremo Tribunal Federal inovou ao criar a possibilidade de suspenção de mandato parlamentar.27 Na ocasião, o tribunal declarou que o então-Presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha foi afastado do cargo de maneira inusitada. Ao fazer isso, apesar da particularidade do caso, o tribunal criou uma ratio, ainda que implícita, de que em casos como o de Cunha é autorizada a suspensão do mandato.28 Mas afinal, o que é um caso como o de Cunha? Bem, é justamente esse o trabalho do jurista, a quem cabe encontrar a ratio. Por exemplo, basta ser réu? É preciso ser investigado na Comissão de Ética parlamentar? Deve existir risco à investigação penal em razão de como a pessoa se comporta no exercício da função pública? Ao reconstruir a ratio (muito provavelmente implícita) é que se terá a base para se afirmar quais casos devem ser tratados da mesma maneira ou distinguir os que não atendem aos requisitos para o afastamento.

O exercício da distinção é sofisticado porque exige uma reconstrução narrativa tanto do precedente quanto do caso concreto sobre o qual se discute. Deve haver um amplo esforço de reconstrução dos fatos relevantes para então designar o regime jurídico e os precedentes aplicáveis.

Como já enfatizou, se argumenta pela não aplicação de um precedente a um caso concreto, mas respeitando plenamente a sua autoridade. O enfrentramento contra o precedente ocorre na situação de superação, que exploro a seguir.

3.2. Superar

Como desobedecer legitimamente um precedente? A superação (overruling) consiste no enfrentamento de um precedente bem estabelecido sob o argumento de que ele perdeu seu fundamento normativo. Nessa operação é preciso justificar porque determinado precedente perdeu a sua normatividade, ou seja, a sua capacidade de gerar

26 SILTAIA, Raimo. A theory of precedent. p. 74

27 AC 4070, Min. Rel. Teori Zavascki, D.J. 05.05.2016.

28 No Estado Democrático de Direito o Judiciário não pode tomar decisões ad hoc, de modo que casos novos ou excepcionais criam sempre novas regras.

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13 obrigações. 29

Há uma diversidade de argumentos para que permitem esse enfrentamento. Para Summers e Eng, o precedente pode ser superado se for considerado uma forma claramenente equivocada de interpretar uma determinada norma, ter se tornado incompatível com uma nova legislação, se há claras evidências de que o Legislativo desaprova o precedente ou se a autoridade do precedente vem sido minada ao longo do tempo em decisões judiciais esparsas.30

Contudo, o processo de superar não pode ser uma simples discordância. A superação exige um ônus argumentativo robusto para fundamentar que o valor da mudança é maior do que o de manutenção da estabilidade da compreensão antiga. É preciso que considerações sobre as expectativas legítimas da sociedade também sejam enfrentadas.31 É por isso que a superação depende de algum argumento robusto sobre vontade democrática, adequação do direito ou simplesmente de justiça. Nesse sentido, as propostas de superação tendem a ter menos êxito em questões cujo valor está centrado na previsibilidade, coordenação coletiva ou segurança jurídica.

Sendo assim, em uma lógica de precedentes o sistema judicial não fica aprisionado pelo passado. Na verdade, ele permite que precedentes sejam enfrentados até com mais clareza do que ocorre na tradição que visa modificar entendimentos simplesmente ignorando-os ou colocando-os sob a pecha de minoritários ou obsoletos, sem maiores justificações.

Com isso, o movimento de superação é o de mais fácil compreensão, mas possivelmente o mais difícil de colocar em prática porque depende da construção de argumentos que promovam a ruptura com a tradição, mas sem incorrer em voluntarismo ou decisionismo; um risco que abordo na seção final deste artigo.

4. REFLEXÃO FINAL E PERSPECTIVAS

A implementação de um sistema de precedentes é menos uma questão de

29 SILTAIA, Raimo. Op. cit., p. 73.

30 SUMMERS, Robert; ENG, Svein. Departures from Precedente. Neil MacCormick; Robert S. Summers (Eds.). Interpreting precedents. p. 525.

31 DUXBURY, Neil. Op. cit., p. 119.

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14 transplantes e inovações institucionais e mais uma questão de cultura jurídica. Para que precedentes e suas rationes tenham algum tipo de autoridade normativa é preciso que a comunidade jurídica o trate dessa forma. A circularidade sobre esse ponto é apenas aparente.

Como bem apontou John Searle, quando tratamos de fatos do mundo que existem em uma dimensão muito mais social do que fática, como “dinheiro”, “excesso de velocidade”, “fronteiras” e o “sistema métrico”, seu fundamento está em convenções sociais.32 E não é diferente, pelo menos em certo nível, com o Direito. Sem que eu adentre no debate metodológico sobre a natureza do direito, basta para meu argumento apontar que só haverá a implementação de um sistema de precedentes no Brasil se os operadores do sistema jurídico passarem a tratar decisões judiciais como precedentes.

Esse tratamento tem uma série de implicações que demandariam todo um novo artigo,33 mas a principal delas e que fica clara ao longo dessa exposição sobre ratio decidendi consistem em levar a vinculação argumentativa a sério. Tanto advogados e juízes precisam reconhecer a dimensão obrigatória de precedentes mesmo que não exista sanção para o descumprimento.34

Nesse sentido, a cultura de precedentes e sua insistência na gravidade e seriedade dos limites argumentativos auxilia a promover limites reais à atividade jurisdicional para que ela não redunde em arbítrio. Se queremos um sistema jurídico que reconheça os limites da razão e que não seja mero exercício do poder, temos bons motivos para endossar o fortalecimento da lógica de precedentes no país; algo que depende em larga medida de um domínio dogmático da noção de ratio decidendi.

32 Cf. SEARLE, John R. The construction of social reality.

33 Muitas delas exploradas em VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. Rev. direito GV [online]. 2008, vol.4, n.2, pp.441-463.

34 A existência de obrigações jurídicas desvinculadas de sanções me parece um dos pontos da maior contribuição de Hart ao debate contemporâneo. Cf. HART, H. L. A. Op.cit., capítulo V.

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15 REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert; DREIER, Ralf. Precedent in the Federal Republic of Germany.

Neil MacCormick; Robert S. Summers (Eds.). Interpreting precedents. Brookfield, Vermont: Ashgate Publishing Company, 1997.

BANKOWSKI, Zenon; MACCORMICK, Neil; MARSHALL, GEOFFREY.

Precedent in the United Kingdom. Neil MacCormick; Robert S. Summers (Eds.).

Interpreting precedents. Brookfield, Vermont: Ashgate Publishing Company, 1997.

BIX, Brian. Jurisprudence: theory and context. Durham, North Carolina:

Carolina Academic Press, 5. ed., 2009.

DUXBURY, Neil. The nature and authority of precedent. Cambridge:

Cambridge University Press, 2008.

DWORKIN, Ronald. Law’s empire. Cambridge: Harvard University Press, 1981.

HART, H. L. A. The concept of law. Oxford: Oxford University Press, 2. ed., 1961.

MACCORMICK, Neil; SUMMERS, Robert S. Interpreting precedents.

Brookfield, Vermont: Ashgate Publishing Company, 1997.

MACCORMICK, Neil. Retórica e estado de direito. Tradução de Conrado Hübner Mendes e Marcos Paulo Veríssimo, com revisão técnica de Cláudio Michelon Jr.

Reio de Janeiro: Elsevier, 2008.

MARSHALL, Geoffrey. What is binding in a precedent? Neil MacCormick;

Robert S. Summers (Eds.). Interpreting precedents. Brookfield, Vermont: Ashgate Publishing Company, 1997.

MEDINA, Diego Eduardo López. El derecho de los jueces. Colombia:

Universidade de Los Andes, 2006 (2. Impressión).

SILTAIA, Raimo. A theory of precedent. Oxford: Hart Publishing, 2000.

SEARLE, John R. The construction of social reality. New York: Penguin, 1995.

SUMMERS, Robert; ENG, Svein. Departures from Precedente. Neil MacCormick; Robert S. Summers (Eds.). Interpreting precedents. Brookfield, Vermont:

Ashgate Publishing Company, 1997.

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16 VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. Rev. direito GV [online]. 2008, vol.4, n.2.

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