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A Liberdade no Segundo tratado sobre o governo de John Locke

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

Rodrigo Ribeiro de Sousa

A Liberdade no “Segundo tratado sobre o governo” de John Locke

(2)

Rodrigo Ribeiro de Sousa

A Liberdade no “Segundo tratado sobre o governo” de John Locke

Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em Filosofia, sob a orientação do Prof. Dr. Alberto Ribeiro Gonçalves de Barros.

(3)

“Quanto a isso, Hidarnes, não poderias dar-nos bom conselho, disseram os Lacedemônios, pois tentaste o bem que nos prometes; mas aquele que gozamos, não sabes o que é; conheceste o favor do rei; mas da liberdade nada sabes – que gosto tem, como é doce”. Etienne de La Boétie, “Discurso da Servidão Voluntária” 1

.

“Passante, aos espartanos dizei, que aqui jazemos, em obediência à lei”.

Simónides de Céos, Epitáfio de Leônidas, em Termófila.

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Agradecimentos institucionais

Ao Departamento Jurídico do Centro Acadêmico “XI de Agosto”, na figura de seus combativos estagiários, que me inspiram a defesa concreta do ideal de liberdade.

Ao Centro Acadêmico “XI de Agosto”, pelo auxílio com a impressão das versões preliminares desta dissertação.

Agradecimentos acadêmicos

Ao professor Alberto R. G. de Barros, pela criteriosa orientação.

Aos examinadores da banca de qualificação, professores Maria das Graças de Souza e Milton Meira do Nascimento, pelas pertinentes críticas e sugestões.

Aos amigos e pesquisadores Emerson Ribeiro Fabiani, Frederico Lopes de Oliveira Diehl e Lauro Joppert Swensson Jr., pela leitura crítica e pela análise sistemática desta dissertação.

Ao amigo e professor Adjair de Andrade Cintra, pelas vezes em que me substituiu na atividade docente, permitindo-me uma maior dedicação na etapa de finalização desta dissertação.

À Manuela Schreiber Silva e Sousa, pela judiciosa e atenta revisão.

Agradecimentos pessoais

Ao amigo Tiago Rossi, pela fraternal compreensão nos momentos de abstração indispensáveis ao desenvolvimento deste trabalho.

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RESUMO

SOUSA, Rodrigo Ribeiro de. “A liberdade no „Segundo Tratado sobre o governo‟ de John Locke”. 134 p. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.

Na galeria de retratos da história, John Locke é apresentado com inúmeras facetas, que vão desde os rótulos de “pai do iluminismo” e “expoente do constitucionalismo liberal” a insígnias como a de “ideólogo da nascente burguesia” ou de “populista majoritário”. De forma subjacente a cada um dos contraditórios rótulos atribuídos a Locke, repousa, invariavelmente, uma diferente interpretação do conceito de liberdade enunciado no “Segundo tratado sobre o governo”. Diante de tão variadas interpretações da noção de liberdade para Locke, o propósito deste trabalho é analisar o conceito de liberdade enunciado no “Segundo Tratado”, a fim de destacar os argumentos que permitem e sustentam cada uma dessas visões. Para atingir esse objetivo, a dissertação é composta de dois capítulos. No primeiro, é analisada a liberdade exercida pelos indivíduos no estado de natureza. No segundo, analisa-se a enunciação da noção de liberdade política para Locke. Na conclusão, as noções de liberdade natural e liberdade política são relacionadas, com a apreciação do conceito geral de liberdade descrito por Locke no “Segundo tratado sobre o governo”.

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ABSTRACT

SOUSA, Rodrigo Ribeiro de. “The freedom in „Second treatise of government‟ of John Locke”. 134 p. Thesis (Master Degree) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.

In the portrait gallery of history, John Locke is presented with many masks, ranging from the labels of "begetter of the Enlightenment" and "exponent of liberal constitutionalism" to "ideologist of the rising bourgeoisie" or "majoritarian populist". Labels as varied result, invariably, from different interpretations of the concept of freedom enunciated in the "Second Treatise of Government". Given such different interpretations of the concept of freedom for Locke, the purpose of this study is to analyze the concept of freedom enunciated in the "Second Treatise" in order to highlight the arguments that allow and support each of these visions. To achieve this objective, the dissertation consists in two chapters. At the first chapter, freedom is analyzed from the perspective it is exercised by individuals in the state of nature. In the second, the articulation of the concept of political freedom for Locke is discussed. In the conclusion, the notions of natural freedom and political freedom are related, with the approach to the general concept of freedom described by Locke in the "Second Treatise of Government".

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 9

CAPÍTULO I - A LIBERDADE NATURAL ... 21

1.1.-ESTADO DE NATUREZA. ... 22

1.2.-LEI NATURAL: DO “SEGUNDO TRATADO” AOS “ENSAIOS SOBRE A LEI DE NATUREZA”. ... 39

1.3.-PROPRIEDADE ... 56

1.4.-LIBERDADE NATURAL. ... 61

CAPÍTULO II - A LIBERDADE POLÍTICA ... 64

2.1-SOCIEDADE POLÍTICA. ... 66

2.2-CONSENTIMENTO E PODER FIDUCIÁRIO. ... 78

2.2.1. - Soberania Popular ... 89

2.3.-PODER POLÍTICO. ... 98

2.3.1. - Rebelião e direito de resistência. ... 104

2.4.-LIBERDADE POLÍTICA. ... 116

CONCLUSÃO ... 123

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Lista de abreviações

“Segundo tratado sobre o governo”: abreviado por “Segundo Tratado”

“Ensaios sobre a lei de natureza”: abreviado por “Ensaios”

(9)

9 INTRODUÇÃO

Na galeria de retratos da história, John Locke é apresentado, conforme alerta John Dunn2, com inúmeras facetas, que vão desde os rótulos de “pai do iluminismo” e “expoente do constitucionalismo liberal” a insígnias como a de “ideólogo da nascente burguesia” ou de “populista majoritário”.

Richard Ashcraft3, por exemplo, acredita que o pensamento de Locke é o de um revolucionário radical de esquerda, ao passo que C. B. Macpherson4 sustenta que o “Segundo Tratado” forneceu uma justificativa conservadora para a dominação de classe da burguesia ascendente5. J. W. Gough, por sua vez, considera que Locke está no meio do caminho entre as duas posições extremas na política, inclinando-se ligeiramente para a esquerda6.

A inclusão do pensamento de Locke em tão variado espectro de orientações ideológicas não deve ser explicada apenas pela inquestionável riqueza de seus textos políticos, devendo ser atribuída principalmente às ambiguidades de seus argumentos.

Tais ambiguidades – que tantas disputas permitem no âmbito dos mais variados conceitos da teoria política de Locke – não devem ser

2 John DUNN, The political thought of John Locke – An historical account of the argument of the “Two

Treatises of Government”. Cambridge: Cambridge University Press, 2000, p. 5.

3 Cf. Richard ASHCRAFT, Revolutionary Politics and Locke's Two Treatises. Princeton: Princeton

University Press, 1986.

4 Cf. C. B. MACPHERSON. A teoria política do individualismo possessivo, de Hobbes a Locke. Rio de

Janeiro: Paz e Terra, 1979.

5 Cf. Ron BECKER. The ideological commitment of Locke: freemen and servants in the “Two Treatises of

Government”. In: History of political thought. Vol. XIII, n 4, 1992, p. 631.

(10)

10 interpretadas, por sua vez, como salienta D. A. Lloyd Thomas7, como frutos de uma mente obscura ou como resultado de contradições internas, devendo ser consideradas, antes, como indispensáveis aos propósitos para os quais o “Segundo Tratado” foi escrito.

De fato, o “Segundo Tratado” foi escrito como um trabalho de persuasão política e não simplesmente como um texto acadêmico, o que fez com que Locke deixasse em aberto, em diversas passagens, sua posição em relação a questões controversas, de modo a permitir diferentes interpretações e evitar, assim, o afastamento de possíveis aliados.

Dessa forma, ainda que as convicções políticas que deram origem ao “Segundo Tratado” tenham sido estruturadas por Locke antes da Revolução de 1688, e que, conforme salienta Gough8, tal obra não deva ser lida como mera justificativa teórica do movimento que levou à coroação de Guilherme de Orange, é inegável que muitos dos elementos da teoria política de Locke vieram a coincidir com os princípios apregoados na Revolução Gloriosa, o que lhe valeu o rótulo de “peça de ocasião”9

.

A vinculação direta da teoria política desenvolvida por Locke nos “Tratados” com os acontecimentos de 1688, que rendeu à obra o status de defesa teórica da Revolução Gloriosa, foi, em grande parte, reforçada pelo próprio Locke, que ainda no prefácio expressou o desejo de que sua obra pudesse servir

7 D. A. L. THOMAS, Locke on government. Londres: Routledge, 2006, p. 10.

8 J.W. GOUGH. Introdução. In: John LOCKE, Segundo tratado sobre o governo civil e outros escritos,

Petrópolis, Vozes, 1994, p. 9.

9 Para M. CRASTON, a desvinculação dos “Tratados” do rótulo segundo o qual teriam sido concebidos como

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11 para “instaurar o trono de nosso grande restaurador, nosso atual rei Guilherme”10

, objetivo que coincide com os propósitos defendidos pelos partidários da supremacia do parlamento em relação ao rei11 e que se tornaram dominantes na política inglesa após o sucesso da Revolução.

O propósito declarado por Locke não deve ser confundido, contudo, com a motivação do autor para o desenvolvimento de sua teoria política, cujos aspectos essenciais já haviam sido elaborados muito antes do sucesso da Revolução.

Assim, ainda que as conclusões políticas decorrentes do “Segundo Tratado” tenham inegavelmente servido aos objetivos revolucionários, tal qual pretendido por Locke, o rigor metodológico do autor e a forma de desenvolvimento de seus argumentos12 desvinculam a obra do estrito contexto da Revolução Gloriosa, erigindo a teoria política de Locke a uma definitiva – e destacada – posição na história da filosofia política moderna.

10 Apud GOUGH, op.cit., p. 9.

11 Grupo político que se tornou dominante na política inglesa a partir da Revolução Gloriosa e que foi

designado posteriormente como “whig”. Formado por defensores da subordinação do Poder Executivo (o rei) ao Legislativo (o Parlamento), bem como de uma maior defesa da liberdade religiosa, era liderado por uma poderosa oligarquia de grandes proprietários e apoiado em amplas camadas da burguesia. Opunha-se aos defensores da monarquia absoluta e da primazia da Igreja Anglicana, que foram designados posteriormente por “tories”. Em que pese muitos autores façam referência aos defensores dessas correntes pela designação que vieram a adquirir posteriormente (“whigs” e “tories”), tal denominação não será utilizada nessa dissertação, a fim de impedir a associação de tais grupos com a ideia de partidos políticos, incabível no período em que a teoria política de Locke foi concebida, evitando, assim, eventuais anacronismos.

12 Victor GOLDSCHMIDT sustenta, no clássico Tempo histórico e tempo lógico na interpretação dos

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12 De fato, conforme sustenta Peter Laslett, os “Tratados” foram provavelmente escritos dez anos antes de sua publicação, isto é, em 1680, oito anos antes do desembarque de Guilherme de Orange em Torbay13.

A identificação do período em que os “Tratados” foram escritos e a desvinculação da teoria de governo de Locke do rótulo de “peça de ocasião”, desenvolvida para justificar a Revolução Gloriosa, não importa, porém, na negação do propósito de Locke de interferir na política inglesa de seu tempo14, o que explica, nesse sentido, a ocorrência da maior parte das contradições e das ambiguidades presentes no texto que, conforme preceitua Thomas15, são uma forma de permitir a adesão à sua teoria de possíveis aliados políticos.

Por esse motivo, embora a tentativa de superação dessas ambiguidades deva ser feita, inicialmente, por meio da interpretação cuidadosa do texto, em um esforço analítico voltado a reconstruir a coerência do argumento, diante da peculiar característica do “Segundo Tratado”, tal coerência apenas pode

13 Por meio da análise dos argumentos sustentados por Locke nos dois “Tratados”, LASLETT afirma que os

tratados devem ter sido escritos simultaneamente, tendo ambos como alvo – e não apenas o primeiro – as teses sustentadas por Robert Filmer no Patriarca. Assim, LASLETT identifica, em várias passagens do “Segundo Tratado”, argumentos que seriam desenvolvidos por Locke como tentativa de contraposição aos argumentos de Filmer em defesa da teoria paternalista e despótica do governo. Além disso, LASLETT destaca uma série de passagens dos “Tratados” em que seria possível identificar-se indiretamente o momento em que as obras foram escritas. Entre essas passagens, destacam-se as referências de Locke ao “rei Jaime” (§§ 133 e 200 do “Segundo tratado”), que só podem ser corretamente compreendidas se forem tomadas como alusões a Jaime I e não a Jaime II, o que indicaria que teriam sido escritas antes de 1685, ano da coroação de Jaime II. Cf. Peter LASLETT, John Locke – Two treatises of government: a critical edition with an introdution and aparatus criticus. Cambridge: Cambridge University Press, 1960.

14 Profundamente atrelado ao conde de Shaftesbury, de quem era conselheiro pessoal, Locke comungava da

maior parte das ideias propugnadas por ele e seus seguidores, muitas das quais representam a base dos argumentos desenvolvidos nos dois “Tratados”.

(13)

13 ser obtida, em algumas hipóteses, por meio do recurso ao contexto histórico, conforme sugere Dunn16.

Embora outras formas de abordagem desses problemas possam ser admitidas17, a tentativa de elucidar as ambiguidades contidas no “Segundo Tratado” será empreendida neste trabalho por meio da combinação dos dois elementos acima descritos, isto é, pela harmonização entre o texto e o contexto em que este foi elaborado, de modo a evitar dois dos equívocos mais frequentes no estudo das ideias políticas, tal qual descritos por Jean-Fabien Spitz: a dificuldade de “entrar no texto”, e a incapacidade de “sair do texto”18

.

Nesse sentido, o esforço analítico que se procurará desenvolver se inicia com o reconhecimento de que, de forma subjacente a cada um dos contraditórios rótulos atribuídos a Locke, repousa, invariavelmente, uma diferente interpretação do conceito de liberdade enunciado no “Segundo Tratado”.

16 Reconhecendo ser impossível “impor uma ilícita coerência expositiva ao processo histórico como um

todo”, DUNN se propõe a estudar a obra política de Locke por meio de uma abordagem que, embora “analítica em sua ambição”, procura elucidar as incoerências de seu pensamento pelo recurso ao

“macrocosmo do processo histórico” e à “explanação biográfica”, dirigindo-se aos motivos que levaram Locke a escrever, dizer e publicar o que conhecemos dele. Cf. DUNN, op. cit., p. 5-6.

17 Lena HALDENNIUS indica três formas de resolução das ambiguidades presentes no “Segundo Tratado”. A

primeira delas consiste em simplesmente constatar, diante das incoerências e inconsistências do texto, que o projeto político de Locke é fracassado, por ser incapaz de construir coerentemente a argumentação. A segunda reconhece a impossibilidade de resolução dessas inconsistências por meio da simples análise do texto, o que impõe ao intérprete a necessidade de recorrer à história ou à biografia para explicá-las. A última delas funda-se no esforço de reconstrução parcial do texto, de modo a “analisar funda-se a coerência é possível”. Cf. Locke and the non-arbitrary. In: European Journal of Political Theory. London: Sage publications, 2003, p.261.

18 Para SPITZ, a filosofia política é uma disciplina essencialmente histórica, mas não pode ter um interesse

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14 Assim, se para Macpherson a teoria política de Locke “fornece uma base moral à apropriação burguesa”, pois “apagou a incapacidade jurídica pela qual a apropriação capitalista havia sido, até então, entravada”, tal conclusão se deve à peculiar compreensão conferida pelo autor à ideia de liberdade para Locke, como sendo resultado da “supremacia moral do indivíduo”, que faz com que a liberdade seja erigida ao status de direito individual inalienável, o que impõe à autoridade política o dever de não interferência e possibilita ao indivíduo o exercício de um “direito individual de apropriação”, que “subrepuja quaisquer reivindicações morais da sociedade” 19

.

Por outro lado, na recusa de Locke em aceitar que a esfera política “apareça como a fonte única de todas as normas comuns”, tal qual enunciado por Spitz, reside a ideia de que a liberdade enunciada por Locke institui um “individualismo de responsabilidade ética”, fundado em uma moralidade comum delineada pela lei da natureza, que se apresenta como “instrumento de proteção” contra o arbítrio do poder político20

.

As inúmeras interpretações da noção de liberdade de Locke explicam a estéril tentativa de inseri-lo em categorias ideológicas predeterminadas. Assim, por exemplo, os liberais reclamam sua formulação do conceito de liberdade como uma máxima dessa tradição, por suas implicações

19 MACPHERSON, C. B. A teoria política do individualismo possessivo, de Hobbes a Locke. Rio de Janeiro:

Paz e Terra, 1979, p 233.

(15)

15 para o conceito de liberdade negativa, no sentido de não-interferência, tal qual enunciado por Isaiah Berlin21.

Com efeito, para Berlin, embora o termo liberdade seja de grande “porosidade”, o que permite a coexistência de um grande número de acepções, dois sentidos centrais podem ser identificados para a sua conceituação: o sentido negativo e o sentido positivo22. No primeiro sentido, a liberdade política é definida negativamente e está associada ao espaço em que o indivíduo pode agir sem a obstrução ou a interferência de outros indivíduos ou grupo de indivíduos. Ainda que esse espaço de ausência de interferências possa ser delimitado por uma fronteira de maior ou menor extensão, a liberdade decorrente dessa ausência é sempre uma liberdade “de” alguma obstrução e que concede ao indivíduo uma determinada esfera de ação individual23.

No sentido positivo, a liberdade é concebida, segundo Berlin, como derivada do desejo do indivíduo de ser senhor de sua própria vida e instrumento de seus próprios atos de vontade. Trata-se da liberdade “para” viver uma determinada forma de vida, independentemente da vontade de outrem24. Para além da identificação com a ideia de liberdade negativa, nos moldes enunciados por Berlin, mais recentemente, contudo, a teoria política de Locke tem sido associada a uma noção positiva de liberdade, no sentido de

21

Cf. Isaiah BERLIN, Two concepts of liberty. In: Four essays on liberty. Oxford: Oxford University Press, 1969, p. 3.

22 Para BERLIN, a liberdade negativa está relacionada com a resposta à pergunta “Qual é a área em que o

sujeito – uma pessoa ou um grupo de pessoas – está ou deve ser deixado para fazer ou ser aquilo que é capaz de fazer ou ser, sem a interferência de outras pessoas?” A liberdade positiva, por sua vez, está relacionada com a resposta à pergunta “O que ou quem é a fonte de controle ou interferência que pode determinar a alguém que faça ou seja uma coisa em vez de outra coisa?” Segundo o autor, as duas questões são claramente diferentes, muito embora as respostas a cada uma delas possam ser sobrepostas.

23

Cf. BERLIN, op. cit., p. 3.

(16)

16 autorrealização moral ou racional, da qual é testemunho a interpretação proposta por Mark Goldie25.

Destacando o conteúdo moral imposto pela lei da natureza, Goldie, por exemplo, afirma que para Locke, "a verdadeira liberdade consiste em uma vida regida pelo intelecto racional, e não pela escravidão das paixões”26

, o que aproxima o conceito de liberdade de Locke da noção de liberdade para agir e se autodeterminar, própria à liberdade positiva.

A oposição entre liberdade negativa e liberdade positiva pode ser vislumbrada na separação, enunciada por Benjamim Constant, entre a liberdade dos antigos e a liberdade dos modernos27.

Para Constant, nesse sentido, a liberdade dos antigos consistia no exercício da soberania, que fazia com que a liberdade do corpo social fosse concebida como compatível com a completa submissão do indivíduo à autoridade do todo. A liberdade dos modernos, por outro lado, consiste no “exercício pacífico da independência privada”, isto é, nas “garantias concedidas pelas instituições a esses privilégios”28. Trata-se, assim, de uma liberdade “de”,

em que lei deve ter uma atuação mínima, restrita a garantir a independência individual, e não de uma liberdade “para”, que é típica dos antigos.

25 Mark GOLDIE, Introduction. In: Two Treatises of Government. Londres: Everyman, 1993, apud Lena

HALDENNIUS, Locke and the non-arbitrary. In: European Journal of Political Theory. London: Sage publications, 2003, p. 265

26 Cf. GOLDIE, op.cit., p. 25.

27 Cf. Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos. In: Revista Filosofia Política 2, Porto Alegre:

L&PM, 1985, p. 9-25.

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17 Analisando as origens29 e as consequências30 da distinção entre essas duas espécies de liberdade, Constant conclui não ser mais possível desfrutarmos da liberdade dos antigos, pois as relações entre os indivíduos se transformaram de tal maneira que o que se reconhece na sociedade antiga não deve ser imitado pela sociedade moderna, que possui instituições e relações sociais completamente distintas da sociedade antiga.

Segundo Constant, os antigos fazem com que os indivíduos sejam escravos da sociedade, ao passo que a liberdade dos modernos assenta-se na fruição de sua independência privada. Nesse sentido, os modernos têm maior apego à sua liberdade e não desejam sacrificá-la. Já os antigos, ao sacrificarem a sua liberdade aos direitos políticos “sacrificavam menos para obter mais”, enquanto, “fazendo o mesmo sacrifício, nós daríamos mais para obter menos”31

. Da concepção de Constant sobre a liberdade dos modernos deriva, assim, a mais completa enunciação do conceito liberal de liberdade política, que tem na identificação do indivíduo como o construtor do todo – e não do todo como o suporte do indivíduo, tal qual decorre da concepção organicista vigente na antiguidade – e, consequentemente, no respeito à liberdade individual,

29

As origens dessa distinção podem ser atribuídas a quatro motivos: a) a maior extensão geográfica dos territórios das sociedades políticas modernas em comparação com os das pólis gregas; b) a alteração da concepção da guerra, que de principal ocupação para os antigos passou a ser excepcional para os modernos, que cultuam a paz como essencial às exigências do comércio; c) a existência da escravatura entre os antigos, que não mais é aceita entre os modernos; d) o surgimento do comércio como a principal atividade dos modernos, que torna os indivíduos mais desejosos de uma liberdade individual e aproxima as nações.

30 A distinção entre a liberdade dos antigos e a liberdade dos modernos tem por consequências a diminuição

da importância da cidadania, em razão da grande extensão territorial dos Estados modernos, bem como a diminuição do tempo dedicado ao ócio e o aumento do tempo dedicado ao comércio (o nec otio), o que dificulta a participação política.

(18)

18 que deve ser garantida por uma atuação mínima da lei, os seus dois principais pilares.

Para além da contraposição entre as noções de liberdade positiva e negativa, que decorre da oposição entre as ideias de liberdade dos antigos e liberdade dos modernos, o conceito de liberdade enunciado por Locke pode ser situado, também, no âmbito do debate sobre a dupla filiação do conceito de liberdade política que, de acordo com a enunciação de Spitz32, possui uma dupla origem. A primeira, de configuração jurídico-liberal, decorre de uma concepção do indivíduo como portador de direitos que a política tem a função de garantir e assegurar. A segunda, que advém de uma reflexão sobre o estatuto de cidadania que devem possuir os indivíduos em uma sociedade política, concebe a política como um instrumento de proteção e engajamento, em que os indivíduos são tanto mais livres quanto mais aptos estão a controlar o meio social, material e humano em que vivem.

Segundo Spitz, até recentemente33, o conceito de liberdade moderna esteve órfão de um de seus pais, pois as ideias inspiradas pelo republicanismo e pelo humanismo cívico – que deram origem à filiação republicana do conceito de liberdade – foram obscurecidas em uma espécie de “face escondida” da história da filosofia política moderna.

Essa “face escondida”, contudo, começou a emergir vigorosamente no âmbito da filosofia política graças principalmente aos trabalhos

32 Jean-Fabien SPITZ, La liberté politique Presses Universitaires de France.

33 O obscurecimento da matriz republicana do conceito de liberdade perdurou até o colapso do “socialismo

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19 de John Pocock34 e Quentin Skinner35 que, em seu esforço de obter as fundações históricas do pensamento político moderno, acabam por recuperar a concepção republicana da liberdade.

Para Spitz, diversos elementos da concepção republicana de liberdade podem ser identificados na teoria política de Locke, o que o desvincularia de rótulos tais como os de “arquiliberal” ou “pai do liberalismo”36

. Diante de tão variadas – e contraditórias – interpretações da noção de liberdade para Locke, o propósito deste trabalho será analisar o conceito de liberdade enunciado no “Segundo Tratado”, a fim de destacar os argumentos que permitem e sustentam cada uma dessas visões.

Para atingir esse objetivo, a dissertação é composta de dois capítulos. O primeiro consiste em um esforço de compreender a maneira pela qual Locke concebe, no “Segundo Tratado”, a liberdade exercida pelos indivíduos no estado de natureza. Para tanto, serão abordadas as noções de estado de natureza, propriedade e lei natural, que dão o contorno da concepção de liberdade natural para Locke, sintetizada ao final do capítulo. No segundo capítulo, será analisada a enunciação da noção de liberdade política empreendida por Locke nessa mesma obra, o que será realizado por meio do exame das noções de sociedade política, consentimento e poder fiduciário, e poder político, o que conduzirá, ao final do capítulo, à delimitação do conceito de liberdade política. Na

34 Cf. John POCOCK, The machiavellian moment: florentine political thought and the Antlantic Republican

traditition. Princeton: Princeton University Press, 1975.

35

Quentin SKINNER, As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Saraiva, 2006.

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(21)

21 CAPÍTULO I

A liberdade natural

A liberdade natural é enunciada por Locke no capítulo II do “Segundo Tratado” como a liberdade exercida pelos homens no estado de natureza, ou seja, em um estado pré-político em que os homens possuem “perfeita liberdade para regular as suas ações e dispor de suas posses e pessoas do modo como julgarem acertado, dentro dos limites da lei da natureza, sem pedir licença ou depender da vontade de qualquer outro homem”37

.

Mais adiante, no capítulo IV, em que Locke aborda a questão da escravidão, a liberdade natural é definida da seguinte forma:

“A liberdade natural do homem consiste em estar livre de

qualquer poder superior sobre a Terra e em não estar submetido à vontade ou à autoridade legislativa do homem, mas ter por regra apenas a lei da natureza. (...) A liberdade, portanto, não

corresponde ao que nos diz sir R. F., ou seja, uma liberdade para cada um fazer o que lhe aprouver, viver como lhe agradar e não estar submetido a lei alguma. (...) [A] liberdade da natureza

consiste em não estar sujeito a restrição alguma senão à da lei da natureza” 38 (os destaques em negrito e sublinhados não constam do original).

Para Locke, portanto, trata-se da liberdade exercida pelo homem no estado de natureza, em que os homens não possuem qualquer

37

Cf. John LOCKE, Dois tratados sobre o governo. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 381-382.

(22)

22 restrição ou interferência, exceto a da lei da natureza, que ordena a paz e o convívio da humanidade.

A precisa compreensão da noção de liberdade natural depende, assim, da análise da noção de lei natural, bem como da “condição natural dos homens”39

, isto é, do estado em que os homens “são absolutamente livres para decidir suas ações”.

Nas seções subsequentes serão analisadas, portanto, as noções de estado de natureza, de propriedade e de lei natural, indispensáveis à delimitação do conceito de liberdade natural para Locke.

1.1. Estado de natureza

Locke define o estado de natureza como o estado em que vigora a lei natural e no qual os homens vivem “juntos segundo a razão, sem um superior comum na terra com autoridade para julgar entre eles”40

.

Inicialmente, deve-se destacar que o relato do estado de natureza e a conceituação da lei natural, com os quais Locke inicia a argumentação do “Segundo Tratado”, não se tratam de construções originais do pensamento político de Locke, mas de expedientes comuns aos tratados políticos escritos no mesmo período. A despeito disso, conforme sustenta Gough41, a sistematização e a consolidação desses conceitos, até então abordados de forma esparsa e por vezes imprecisa pelos autores de sua geração, constitui-se na

39 Op. cit., p. 83. 40

Op. cit., p. 92.

(23)

23 principal contribuição da teoria política de Locke, que tem na noção de lei natural uma vigorosa reformulação de argumentos que perpassam toda a história das ideias políticas.

Essa formulação, conforme salienta Dunn42, decorre de um pressuposto rigidamente convencional, dotado de um nível de generalidade que o tornava inquestionável a quaisquer que fossem os interlocutores que Locke pretendesse alcançar. Trata-se de uma ideia de inspiração estoica e tomista, segundo a qual todo o cosmos é fruto da criação de Deus, que criou cada parte do universo com propósitos especificamente determinados para a finalidade do todo43.

Na concepção de estado de natureza, Locke pressupõe, assim, a noção de “grande cadeia do ser”44

, em que cada espécie tem sua posição e sua graduação, e em que cada um dos elementos foi construído de forma a integrar-se à grande pintura formada pelo todo. Dotado de uma posição particularmente nobre, apenas abaixo dos anjos, o homem, nesse projeto divino, tem a necessidade de cooperar com seu semelhante de forma voluntária e autoconsciente45.

Ainda que possa parecer a mais pura banalidade, tal pressuposto é, segundo Dunn, de grande relevância para o projeto de demonstração da “verdadeira origem, extensão e finalidade do governo civil” que

42 Cf. DUNN, op. cit., p. 87-88. 43

Tal noção, que era, segundo Arthur LOVEJOY, muito provavelmente “a concepção difundida sobre a organização geral das coisas” trazia implícita uma visão da natureza segundo a qual a organização do cosmos é um reflexo da razão divina, que governa o universo. Cf. Arthur LOVEJOY, A grande cadeia do ser. São Paulo: Palíndromo, 2005, p. 7.

44

Cf. Arthur LOVEJOY, op. cit, passim.

(24)

24 Locke lança em resposta ao “Patriarca”, de Robert Filmer46

, pois os discursos de Locke e de Filmer são frequentemente incompreensíveis sem essa suposição, embora nenhum dos dois tenha se preocupado em descrevê-la, sequer superficialmente, exatamente por se tratar de uma noção amplamente aceita, a ponto de se tornar inquestionável47.

Tomando como pressuposto para a concepção de estado de natureza a ideia de “grande cadeia do ser”, Locke define, no capítulo II do “Segundo Tratado”, a lei natural como a lei “que a todos obriga”, identificando-a com a própria razão, que é, ela mesma, esta lei48.

Trata-se da lei que rege o estado de natureza, em que os homens são absolutamente livres para decidir suas ações, dispor de seus bens e de suas pessoas sem pedir a autorização de outro homem, nem depender de sua vontade, dentro dos limites estabelecidos por essa mesma lei.

Como um estado de liberdade e igualdade absolutas, em que ninguém possui mais que os outros, vigoram, no estado de natureza, as normas provenientes da razão, que se destinam à ordenação da paz e à conservação da humanidade, impedindo que os homens violem os direitos do outro, prejudicando-se entre si.

46

Robert FILMER, Patriarcha and other writings. (Cambridge texts in the history of political thought). New York: Cambridge University Press, 1991.

47 FILMER desenvolve, em seu “Patriarca”, um amplo esforço de fundamentação do direito divino dos reis a partir da descendência hereditária de Adão e dos patriarcas. O propósito de Locke, que é explicitado já na epígrafe do “Primeiro Tratado” é o de que sua obra sirva para que sejam “desmascarados e derrubados os falsos princípios de onde partem Sir Robert Filmer e seus adeptos”. Locke revela, assim, o empenho de refutar a principal doutrina propalada pelos defensores da monarquia absoluta, que derivavam o poder do rei da transmissão hereditária do poder paterno conferido diretamente por Deus a Adão. Cf. Segundo tratado sobre o governo civil e outros escritos, op. cit., p. 51.

(25)

25 São a observância e o respeito à razão, portanto, que conferem aos homens a perspectiva de sua independência e igualdade em relação aos demais seres humanos, impondo a norma segundo a qual nenhum homem pode lesar outro homem em sua vida, sua saúde, sua liberdade ou seus bens.

Nesse sentido, é da relação de igualdade que há entre “nós mesmos e aqueles que são como nós”49

que a razão natural extrai os preceitos e cânones para a direção da vida, em especial – conforme argumento desenvolvido por Hooker50 e incorporado por Locke – o dever que têm os homens de se amarem mutuamente, pois o desejo do homem de ser amado impõe-lhe a obrigação de amar da mesma forma a seu igual, uma vez que deve ser aplicada uma medida comum para coisas iguais.

A igualdade e a liberdade são, assim, a base da reciprocidade que no estado de natureza determina todo poder e toda a competência que um homem possa vir a exercer sobre outro homem.

O respeito à razão obriga os homens, segundo Locke, à sua autoconservação e, na medida do possível e desde que a sua própria autoconservação não esteja ameaçada, a zelar pela conservação do restante da humanidade, impedindo a destruição da vida, da liberdade ou dos bens de outra pessoa51.

49 Op. cit., p. 384.

50 Richard HOOKER, Of the laws of ecclesiastical polity. Cambridge: Cambridge University Press, 1997. 51

(26)

26 A lei natural, que tem por objetivo a manutenção da paz e a conservação da humanidade, confere a todos os homens, assim, o poder de executá-la, punindo os transgressores da razão natural com pena suficiente para reprimir as violações, preservando o inocente e refreando o transgressor.

Esse poder de um homem sobre o outro, existente no estado de natureza, não é, porém, um poder arbitrário ou absoluto, limitando-se tão somente ao poder de infligir ao infrator, “na medida em que a tranquilidade e a consciência o exigem”52

, uma pena proporcional à sua transgressão, de forma suficiente a assegurar a reparação e a prevenção.

E esse poder de punir pertence a todos os homens na medida em que a transgressão da lei da natureza é uma violação dos direitos de toda a espécie, representando uma ameaça à preservação de toda a humanidade e uma declaração de desobediência à reta razão, o que deve ser reprimido por todos os indivíduos.

A violação da lei da natureza representa, portanto, uma declaração de rompimento com os princípios da natureza humana, à qual está vinculado, em geral, um dano causado a outra pessoa.

Por essa razão, a cada transgressão da lei natural surgem dois direitos distintos: o direito de punição, a título de prevenção, que pertence a todos; e o direito de reparação, que pertence à vítima, pelo princípio da autopreservação.

Assim, por exemplo, Locke afirma que todo homem no estado de natureza tem o poder de matar um assassino, tanto para dar a outros o

(27)

27 exemplo das consequências da violação da lei natural, como para impedir outros ataques do mesmo assassino que, por ter renunciado à razão, declarou guerra a todo o gênero humano e por isso pode ser destruído assim como pode ser destruída uma besta selvagem com a qual a humanidade não pode viver em segurança53.

Para explicitar esse direito de destruir aquele que comete assassinato, que é conferido pela lei natural a qualquer pessoa, Locke lança mão da passagem do velho testamento54 em que Caim55, após assassinar o seu irmão Abel, declara seu temor de ser morto caso seja encontrado56. Para Locke, a declaração de Caim decorre da constatação de ter ele violado o princípio no qual está fundamentada a grande lei da natureza: “Quem derramar o sangue humano, pelas mãos humanas perderá o seu”.

Neste ponto, conforme salienta Dunn57, Locke inverte um raciocínio convencional, pois o direito de execução de outro homem era tradicionalmente descrito como próprio da autoridade política, uma vez que a proibição de matar um semelhante constitui expressamente um mandamento divino, que impõe ao homem até mesmo a proibição de matar a si mesmo. Para autores como Filmer, nesse sentido, a única maneira de compatibilizar a proibição

53 Cf. op. cit., p. 87.

54 Cf. Gênesis, Cap. IV.

55De fato, um exemplo de indivíduos submetidos ao “estado de natureza” tal qual descrito por Locke é o dos

irmãos Caim e Abel, que não estão submetidos à autoridade de nenhum outro homem, mas apenas à razão natural, concedida por Deus a seus pais, Adão e Eva.

56

Caim afirma “quem me encontrar, me matará”.

(28)

28 constante do mandamento com o poder de matar concedido à autoridade política é considerar que ambos apenas podem ser derivados diretamente de Deus58. Para Locke, por outro lado, o direito de matar um criminoso decorre diretamente da lei da natureza, pois a violação da lei natural representa uma demonstração de renúncia à racionalidade inerente a essa lei, o que rebaixa o agressor a uma categoria inferior da ordem da criação, equiparando-o a uma “besta selvagem”, sobre a qual o homem exerce uma autoridade natural decorrente dos propósitos da criação.

Desse modo, o direito de execução de um criminoso é existente ainda no estado de natureza e deve ser deduzido da noção de grande cadeia do ser, em que as várias classes de criaturas foram dispostas por Deus de uma maneira tal em que as mais baixas devem servir aos propósitos das mais elevadas. Para tanto, Deus não apenas deu autoridade ao homem sobre toda a natureza animal, isto é, o direito de apropriar-se dela para sua própria subsistência, mas conferiu também ao homem um poder físico sobre essa natureza, a capacidade de implementar seus direitos. Na medida em que a violação da lei natural constitui uma renúncia à razão, rebaixando o agressor à condição animal, qualquer homem pode legitimamente executá-lo, como exercício de seu poder sobre as criaturas inferiores e em implementação da lei da natureza.

A fim de afastar os questionamentos acerca da existência de um estado de natureza e, consequentemente, da lei natural, Locke lança mão de dois exemplos. O primeiro refere-se ao estado em que se encontram os governantes das comunidades independentes, que não possuem nenhuma

(29)

29 convenção ou acordo a suprimir a liberdade e a igualdade mútuas. O segundo exemplo utilizado por Locke é a situação do estrangeiro. Para Locke, a punição de um estrangeiro só é admissível se for reconhecida a existência de um direito natural, pois a autoridade da lei nacional não tem qualquer efeito sobre o estrangeiro.

Dessa maneira, no capítulo II do “Segundo Tratado” Locke elabora a definição de lei natural e oferece também a concepção de estado de natureza, essenciais à compreensão da noção de liberdade natural.

Na sequência do “Segundo Tratado”, Locke identifica, no capítulo III, que embora o homem seja de tal forma livre e desfrute, no estado de natureza, do domínio absoluto de sua própria liberdade, sem suportar o ônus de submeter-se a quem quer que seja, o gozo de seus direitos naturais é, nesse estado, “bastante incerto e constantemente exposto às invasões de outros”59

. Dessa forma, embora no estado de natureza vigore a lei natural, que é passível de ser apreendida por todas as criaturas racionais, os homens são tendenciosos e “não são aptos a reconhecer o valor de uma lei que eles seriam obrigados a aplicar em seus casos particulares”60

, o que torna esse estado carente de uma lei geral aceita e reconhecida pelo consentimento de todos.

Nesse estado, todos são reis da mesma maneira, “mas a maior parte não respeita estritamente, nem a igualdade nem a justiça”, o que torna o gozo dos direitos “muito perigoso e muito inseguro”, fazendo com que os

59

Cf. LOCKE, op. cit., p. 495.

(30)

30 homens desejem “abandonar esta condição, que, embora livre, está repleta de medos e perigos contínuos”61

.

Além disso, falta no estado de natureza “um juiz conhecido e imparcial, com autoridade para dirimir todas as diferenças segundo a lei estabelecida”, pois como o julgamento das violações à lei natural compete, nesse estado, a todos os homens, a indiferença e a negligência podem diminuir a vigilância em relação às violações que afetem exclusivamente os outros homens, assim como a paixão e a vingança podem conduzir a excessos nos julgamentos em causa própria62.

O estado de natureza possui, nesse sentido, uma tendência a degenerar-se em estado de guerra em razão das injustiças decorrentes dos julgamentos em causa própria e da indiferença da maioria dos homens em relação à maior parte das violações da lei natural.

Uma aparente ambiguidade existente no conceito de estado de natureza é identificada por R. H. Cox63, que destaca que a concepção fornecida por Locke nos capítulos II e III do “Segundo Tratado” difere da fornecida no capítulo IX, em que a oposição existente entre o estado de natureza e o estado de guerra parece dissolver-se, aproximando-se muito da definição hobbesiana.

De fato, no capítulo IX, Locke indaga que “se o homem no estado de natureza é livre como se disse, se é senhor absoluto de sua própria

61 Cf. Idem, Segundo tratado sobre o governo civil e outros escritos, op. cit., passim. 62

Cf. Idem, ibidem, p. 157.

(31)

31 pessoa e suas próprias posses, igual ao mais eminente dos homens e a ninguém submetido, por que haveria ele de se desfazer dessa liberdade?”64

A elucidação é feita na sequência:

“A resposta evidente é a de que, embora tivesse tal direito no estado de natureza, o exercício do mesmo é bastante incerto e está constantemente exposto à violação por parte dos outros, pois que sendo todos reis na mesma proporção que ele, cada homem um igual seu, e por não serem eles, na sua maioria, estritos observadores da equidade e da justiça, o usufruto que lhe cabe da propriedade é bastante incerto e inseguro”65

.

Conforme bem propõe José Santillán, essa aparente ambiguidade presente na noção de estado de natureza pode ser afastada pelo desdobramento da pluralidade natural em duas partes: por um lado, ela é tomada como uma forma pura, pacífica; por outro, trata-se de uma forma degenerada, conflituosa. O estado de natureza como condição de paz original tende a degradar-se em estado de guerra. O estado de natureza pacífico supõe uma racionalidade humana que observa as leis naturais (condição ideal); o estado de guerra (ou, como propõe Santillán, o estado de natureza belicoso) implica no abandono da racionalidade e na violação da lei natural (condição real) 66.

A exposição do estado de natureza efetuada por Locke no capítulo IX do “Segundo Tratado” seria, de acordo com essa leitura, apenas uma descrição do segundo aspecto da pluralidade natural dos homens, a condição real, que tende a degenerar-se em estado de guerra em razão das injustiças

64 Cf. LOCKE, Dois tratados sobre o governo, op. cit., p. 494-495. 65

Cf. Idem, Ibidem, p. 495.

(32)

32 decorrentes dos julgamentos em causa própria e da indiferença da maioria dos homens em relação à maior parte das violações da lei natural.

As inconveniências a que estão expostos pelo “exercício irregular e incerto do poder” levam os homens, nesse sentido, à procura de abrigo sob as leis estabelecidas por um governo, a fim de que possam salvaguardar suas propriedades do arbítrio e da negligência alheios.

Para Locke, portanto, o objetivo principal da união dos homens em sociedades políticas e de sua submissão a governos é a preservação de suas vidas, liberdades e de seus bens, a que Locke designa genericamente por propriedade67, o que só pode ser realizado com o afastamento das carências e debilidades existentes no estado de natureza.

Desse modo, conforme será exposto no capítulo II desta dissertação, a constituição da sociedade política para Locke tem seu fundamento na necessidade de instituição das leis civis e de organização da justiça, que precisam ser empreendidas com o consentimento de todos e em conformidade com a lei da natureza, que continua a vigorar a despeito da criação da sociedade política.

Na teoria política de Locke, conforme analisa Rolf Kuntz68, a descoberta da condição natural dos homens dá-se pela redução da ideia de homem a um mínimo inteligível. Tal constatação surge como decorrência lógica do “bombardeio de limpeza” realizado com a contestação da obra de Filmer, que forneceu um importante ponto de referência: não há por que imaginar as relações

67 Idem, ibidem,. p. 156. 68

(33)

33 estáveis de comando como naturais, pois não são elas provenientes do poder divino e tampouco do poder paterno69.

Ao contrário de Thomas Hobbes, no entanto, Locke não concebe a condição natural como um estado de terror e medo constantes. Enquanto para Hobbes o estado de natureza é marcado pela ausência de lei e pela insegurança, em que os homens têm por únicos guias o seu próprio interesse e os seus apetites, para Locke o estado de natureza é caracterizado pelo império da lei da natureza, que deve ser compreendida como lei em sentido forte70.

Para Locke, nesse sentido, a lei natural não é uma norma de importância menor em comparação à lei positiva. Ao contrário: trata-se de uma norma plena de eficácia que se constitui no próprio fundamento de validade da lei positiva, e que deve ser instituída para o aperfeiçoamento dessa condição e para que possam ser afastadas tanto a indiferença da maioria dos homens no exercício da jurisdição recíproca quanto as injustiças provocadas pelos julgamentos em causa própria.

Locke descreve71, assim, a condição natural dos homens como um estado de liberdade e igualdade absolutas, em que ninguém possui mais que os outros e em que vigoram as normas provenientes da razão, que se destinam à ordenação da paz e à conservação da humanidade e impedem que os homens violem os direitos uns dos outros, prejudicando-se entre si.

69 Cf. KUNTZ, op. cit. p. 4.

70

Cf. KUNTZ, op. cit. p. 4.

(34)

34 A definição de Locke da lei natural como a lei “que a todos obriga”, e que se identifica com a própria razão, expressa, como salienta Kuntz72

, a sua convicção sobre a existência de um direito fundado na natureza, manifestação de uma razão divina que governa todo o universo. Tal concepção demonstra uma clara filiação de Locke à concepção tomista de lei natural e constitui, em última análise, uma recuperação do argumento estoico73.

Dunn aponta, por sua vez, que ao contrário de exposições tradicionais da lei da natureza, em especial a concepção de Hobbes, o conteúdo dessa lei para Locke não é nem um pouco reducionista. Alguns outros termos claramente invadiram o conceito e, segundo o autor, não é preciso muita investigação para se identificar que o termo invasor é “Deus”.

Para Dunn, nesse sentido, o estado de natureza, em que “todos os homens estão naturalmente inseridos” não é uma condição associal, mas uma condição a-histórica. É o estado em que os homens foram postos por Deus no mundo. O estado de natureza seria então um tema para reflexão teológica, e não para pesquisa antropológica.

Desse modo, a matriz teológica subjacente à noção de lei natural funciona antes como um axioma interpretativo e não se reduz simplesmente a um conjunto de alegações de fato.

Entretanto, para Dunn, Locke lança mão, a partir do conceito de lei natural, de “duvidosos recursos da inferência”, pois não é a teologia natural

72 Cf. Locke, liberdade, igualdade e propriedade, op. cit, passim.

73 Para os filósofos estoicos, o homem carrega uma “centelha” da razão divina no âmago de seu ser. Cf.

(35)

35 que explica, pura e simplesmente, as conclusões obtidas a partir do conteúdo da lei natural, mas a teologia natural combinada com uma mente saturada pela revelação do Cristianismo. Para esse comentador, embora Locke alegue estar estudando a condição humana como um todo, nos termos de sua racionalidade, as conclusões a serem obtidas pelo recurso à lei da natureza já são previamente conhecidas, pois são extraídas da revelação do Cristianismo.

Prosseguindo na análise da noção da lei natural como a razão inscrita por Deus nos homens, Dunn aponta dois tipos de fontes de informações que temos para conhecimento dos propósitos de Deus para o homem: aquilo que Ele falou diretamente aos homens e aquilo que pode ser inferido diretamente das características da ordem criada. Para tanto, recorre à clássica frase de Bacon para designar as fontes a partir das quais o homem pode extrair esses objetivos, isto é, do “livro da palavra de Deus” ou do “livro das obras de Deus”74

. A segunda possibilidade aproxima-se da hipótese de naturalismo antropológico, ainda que, de alguma forma, a teologia natural sempre acabe por superar a força dessa antropologia descritiva.

Por essa razão, embora reconheça que “após as brandas e convencionais formulações de seus escritos políticos de juventude, Locke nunca mais pretendeu extrapolar os preceitos políticos particulares diretamente da lei positiva de Deus, isto é, das revelações do Cristianismo”75

, Dunn postula que a estrutura do argumento como um todo está saturada de pressupostos do Cristianismo e, embora Jesus Cristo e São Paulo não apareçam em pessoa no

74 Em inglês, a oposição forma um interessante jogo de palavras: “book of God’s word” e “book of God’s

work”.

(36)

36 texto do “Segundo Tratado”, sua presença não passa despercebida, o que levaria até mesmo a um certo “paroquialismo ocidental” que passa ao largo para a maior parte das análises sobre a teoria de Locke.

Sobre essa particular conclusão, Jeremy Waldron76 comenta que Dunn procura com ela desqualificar um importante fundamento da teoria de Locke, sob a alegação de que os aspectos teológicos e principalmente os aspectos cristãos e bíblicos a tornariam irrelevante para nossas preocupações. De forma mais precisa, Waldron sustenta que dar destaque a essas provocações e trazê-las à tona é apenas uma forma de confinar Locke ao século XVII. Parafraseando o título famoso do próprio Dunn, ele seria parte “do que está morto” no pensamento político de Locke, e passaria a ser de interesse tão-somente arqueológico para a história das ideias.

Postas de lado essas provocações, um importante aspecto da abordagem de Dunn é, na verdade, a constatação de que o recurso de Locke ao estado de natureza se deve ao fato de que os valores morais são artefatos históricos, expressos linguisticamente e portanto preservados ao longo do tempo de uma geração a outra. Tal característica induz a forma pela qual o homem é educado moralmente, deixando-o até certo grau à mercê da linguagem e da história77.

Desse modo, se a consistência linguística torna disponíveis os recursos de uma moral existente e de um vocabulário moral, esse vocabulário, por outro lado – que é em si mesmo um produto histórico – é também profundamente

76 Cf. Jeremy WALDRON, God, Locke, and Equality – Christians Foundations in Locke’s Political Thought.

Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p. 13.

(37)

37 contaminado pela história. Essa infecção, porém, não atinge apenas a linguagem, mas o conjunto mesmo de conceitos morais. O recurso a uma lei da natureza surge, nesse sentido, da necessidade de se afastar dessa contaminação, em busca de um critério para a moralidade humana que esteja fora da história78.

De acordo com Dunn, a a-historicidade do estado de natureza é importante, também, como proteção do argumento contra a acusação clássica, feita por Filmer e por outros teóricos, segundo a qual os homens não nasceram iguais e nunca viveram por qualquer período de tempo em um estado de liberdade associal, pois todo homem é nascido no seio de uma família, em uma condição de impotência biológica e psicológica79.

O fato de se tratar de um conceito a-histórico não significa, no entanto, que ele importe em uma negação total da realidade da história, pois em qualquer estágio do estado de natureza, em qualquer ponto da história, os indivíduos que se confrontem com outros indivíduos nessa condição de igualdade fazem isso não meramente com deveres hipotéticos, mas com deveres reais, a que se submeteram em função de suas vidas particulares, já que, de acordo com Locke, o estado de natureza não é um “estado de licenciosidade”.

Assim, segundo Dunn, para entender corretamente o estado de natureza é necessário afastar a história; mas para aplicá-lo na discussão de qualquer questão humana concreta, é necessário permitir o retorno da história exclusivamente no contorno da questão a ser discutida.

78

Idem, ibidem, p. 96-97.

(38)

38 É o que faz Locke para expor a forma de início das sociedades políticas, com a evocação dos exemplos históricos de Roma e Veneza, que foram fundadas “mediante a união de vários homens livres e independentes uns dos outros, entre os quais não havia nenhuma superioridade ou sujeição naturais”80

, ou com a descrição do estado em que se encontravam os nativos da Flórida, do Peru e do Brasil81.

Afirmar o contrário seria atribuir à teoria de Locke uma ingenuidade insustentável, pois ele era bem ciente quanto ao fato de que o homem vive na história. O relato do estado de natureza é construído fora da história justamente para a identificação de uma estrutura jurídica, e não para a proclamação de um inventário moral referente a uma situação histórica existente.

Essa estrutura, que já está presente, portanto, no estado de natureza, é identificada por Lena Haldennius82 como expressão do que ela denomina o mais poderoso argumento da teoria política de Locke: o argumento contra a arbitrariedade. Para essa autora, as ideias de liberdade política e poder político legítimo são costuradas no “Segundo Tratado” pela noção moral de não-arbitrariedade requerida por ambas. As concepções de Locke sobre a liberdade e sobre o governo legítimo devem ser entendidas, nesse sentido, primeiramente como expressões de uma demanda normativa por relações políticas não-arbitrárias, em que o critério para a não-arbitrariedade é a moralidade natural que regula o estado de natureza.

80 Cf. LOCKE, op. cit., p. 474. 81 Cf. Idem, ibidem, p. 474. 82

(39)

39 Assim, para Haldennius, se a imagem do estado de natureza é uma imagem de um estado regulado por uma lei moral objetiva – a lei da natureza – indispensável à sobrevivência e à prosperidade da espécie humana, a preocupação é com a preservação da humanidade – e não com a autopreservação de cada membro.

Por essa razão, o mandato político confiado ao governante é o de governar de modo a promover o bem do povo, tal como estabelecido pela lei da natureza ou pela moralidade natural. A liberdade é, portanto, parte essencial desse mandato83.

1.2. Lei natural: do “Segundo Tratado” aos “Ensaios sobre a lei de natureza”

De acordo com Thomas, embora Locke não tenha reservado, no “Segundo Tratado”, uma parte para a exposição sistemática da lei natural, não há dúvida de que ele possui uma concepção coerente desse termo, que pode ser reconstruída a partir de suas frequentes, embora dispersas, referências à lei natural no “Segundo Tratado”, bem como de seus escritos de juventude, especialmente os “Ensaios sobre a lei de natureza” 84

.

De fato, os “Ensaios”, que segundo Goldie podem ser lidos como um “palimpsesto do desenvolvimento intelectual de Locke”, são reflexões preparatórias ou paralelas que constituem, nas palavras de Goldie, a pré-história do “Segundo Tratado”. Tais textos, que fazem parte dos escritos não publicados

83

Cf. HALDENNIUS, op. cit., p. 262.

(40)

40 em vida por Locke e que ficaram conhecidos como a “Coleção Lovelace”, por receberem o nome de seu adquirente, permaneceram, juntamente com um grande volume de documentos, praticamente desconhecidos até serem transferidos do escritório de Locke para a biblioteca de Oxford em 194285.

Embora sejam considerados como parte dos escritos de juventude de Locke, os “Ensaios sobre a lei de natureza” são de fundamental importância para o entendimento de alguns dos conceitos desenvolvidos de forma sumária ou dispersa por Locke em seus escritos políticos de maturidade, em especial no “Segundo Tratado”.

É esse o caso da noção de lei de natureza, cujo conteúdo é sucintamente descrito no “Segundo Tratado” como um comando para a defesa da “paz e a conservação de toda a humanidade”86

. A precisa compreensão da concepção da lei de natureza deve ser obtida, assim, da análise da exposição empreendida por Locke nos “Ensaios”.

Previamente à análise da argumentação desenvolvida por Locke nos “Ensaios sobre a lei de natureza”, há que se salientar, conforme destacado por Goldie, que o termo “Ensaios” utilizado para designar a exposição sobre a lei da natureza é equivocado, pois os nove textos escritos por Locke são na verdade dissertações que seguem o tradicional formato escolástico, que expõe os argumentos favoráveis juntamente com as objeções contrárias a determinadas questões em debate87.

85 Cf. Mark GOLDIE, Introdução. In: John LOCKE, Ensaios políticos. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p.

XI-XIII.

86

Cf. LOCKE, Dois tratados sobre o governo, § 7, p. 385.

(41)

41 Na tentativa de investigar a existência da lei de natureza, Locke inicia por constatar que todo aquele que já tiver refletido sobre “Deus Todo-poderoso, ou o invariável consenso de toda a humanidade a todo tempo e em todos os lugares, ou mesmo sobre si mesmo ou sua consciência, não acreditará facilmente” que só homem tenha vindo ao mundo totalmente isento de qualquer lei aplicável a si, diferentemente de todo o restante da ordem criada, que possui “leis válidas e fixas de operação apropriadas à sua natureza”88

.

Segundo Locke, a lei natural é designada de diversas maneiras, podendo ser equiparada ao “bem ou virtude moral” perseguidos pelos “filósofos de outrora (e entre eles especialmente os estoicos)”, à “reta razão”, entendida como “certos princípios definidos de ação dos quais emergem todas as virtudes e tudo quanto é necessário para a moldagem apropriada da moralidade” e à noção mais ampla de “lei de natureza”, que inclui a ideia de uma “lei que cada um pode detectar meramente pela luz plantada em nós pela natureza”, aquela “regra de viver de acordo com a natureza que os estoicos tanto enfatizam”89

. Entre essas diferentes designações, Locke afirma que a menos apropriada é a de “reta razão” ou “ditado da razão”, já que não é a razão que estabelece a lei da natureza, mas antes “a busca e descobre como lei instituída como um poder superior e implantada em nossos corações”. Considerar os ditames da razão como a própria lei de natureza representaria uma violação da

88

Cf. LOCKE, Ensaios políticos, op cit., p.101.

(42)

42 “dignidade do legislador supremo”, pois a razão não é “mais autora dessa lei do que sua intérprete”90

.

Desse modo, a lei natural é, para Locke, o decreto divino que pode ser percebido por todos os homens pela luz da natureza e interpretado pela razão, e que possui todos os requisitos de uma lei propriamente dita, pois “estabelece o que se deve e o que não se deve fazer”91

, obrigando a todos.

Para Locke, a existência da lei da natureza pode ser provada por cinco diferentes argumentos, que são descritos nos “Ensaios sobre a lei de natureza”.

O primeiro deles é derivado da “Ética a Nicômaco”92, de Aristóteles, em que se reconhece, de acordo com Locke, que “a função própria do homem é agir de acordo com a razão, de tal modo que o homem deve, necessariamente, fazer o que a razão prescreve”93

. Por esse argumento, a existência de princípios morais universais pode ser constatada pela uniformidade das definições de virtudes, que são invariáveis entre todos os homens a despeito das eventuais discordâncias sobre alguns princípios. Para Locke, a grande semelhança entre as leis positivas dos diferentes povos demonstra a existência de um “conceito ou obrigação antecedente a tais leis”, pois se não houvesse uma obrigação moral comum a orientar a edição das leis, não haveria tanto acordo

90 Cf. op. cit., p. 102.

91 Cf. op. cit., p. 102. 92

Cf. ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco. São Paulo: Atlas, 2009, p.25-28.

(43)

43 entre as leis dos mais diferentes povos, e a “virtude seria uma coisa entre os índios e outra entre os romanos”94

.

O segundo argumento que atesta a existência da lei natural advém, segundo Locke, da constatação de que os homens julgam suas condutas e a si mesmos de acordo com sua própria consciência, o que não seria possível se não existisse uma lei a que reconhecidamente devessem prestar obediência, pois “na ausência de lei não é possível proferir julgamento algum”95

.

O terceiro argumento destacado por Locke decorre da percepção de que todas as coisas do mundo possuem, por sua própria constituição, “um modo de existência próprio à sua natureza”96, um conjunto de atribuições e tarefas inerentes à sua particular posição na ordem da criação. Neste argumento, Locke remete à noção convencional de “grande cadeia do ser”, segundo a qual o cosmos é fruto da obra de Deus, que criou cada parte do universo com propósitos especificamente determinados para a finalidade do todo. Por esse motivo, não seria razoável afirmar que “somente o homem seja independente de leis, enquanto tudo o mais se encontra subordinado”97

, sendo incompatível com a sabedoria do Criador que ao animal dotado do maior grau de perfeição e situado na posição mais elevada na cadeia da ordem criada não tenha sido atribuída nenhuma obra, ou que lhe tenha sido concedida uma lei “precisamente para que ele possa não se submeter a lei alguma”98

. Ao destacar 94 Cf. op. cit., p. 104. 95 Cf. op. cit., p. 107. 96 Cf. op. cit., p. 107. 97 Cf. op. cit., p. 107.

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