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2.2. Consentimento e poder fiduciário

2.2.1. Soberania Popular

A atribuição, por meio do consentimento da maioria dos membros da comunidade, do poder executivo da lei natural a uma autoridade formalmente constituída não é realizada, pois, de forma irrevogável pelos membros da sociedade política, ficando condicionada à finalidade para a qual a autoridade foi instituída, isto é, à garantia do gozo pacífico dos direitos naturais de todos os homens, cuja preservação é derivada diretamente da lei natural, sobrepondo-se, portanto, à autoridade constituída.

A supremacia do povo em relação ao governo constitui-se, assim, no pressuposto da relação de confiança211 entre os membros da sociedade política e os governantes, que exercem o poder exclusivamente em nome dos indivíduos e para a garantia da liberdade de todos.

2.2.1. Soberania Popular

Conforme descrito no item precedente, o processo de formação da sociedade política depende, segundo Locke, da observância de duas etapas sucessivas. Na primeira etapa, todos os homens celebram entre si um acordo por meio do qual o poder executivo da lei da natureza é coletivizado, o que dá origem à comunidade. Na segunda etapa, a comunidade transmite, pela

210 Cf. op. cit., p. 173, § 149.

211 Para Locke, conforme será analisado no tópico seguinte, não obstante o poder legislativo seja o poder supremo “ao qual todos os outros estão e devem estar subordinados”, ele é “um poder fiduciário e se limita a certos fins determinados”. Cf. op. cit., p. 173.

90 maioria de seus membros, o poder executivo da lei natural a uma autoridade formalmente constituída, instituindo, assim, a sociedade política e o governo. Para Locke, nesse sentido, a comunidade é formada por todos os homens que renunciaram, por seu consentimento, ao poder executivo da lei da natureza, tratando-se da única entidade apta a instituir ou dissolver legitimamente o poder político.

O processo de instituição do poder político pela comunidade desenvolve-se para Locke, nesse passo, de acordo com os princípios da regra majoritária, ainda que, evidentemente, os atos desse processo sejam realizados de maneira informal, dada a inexistência, nesse momento, dos órgãos que comporão o aparelho estatal212.

É o que resulta da exposição de Locke sobre o início das sociedades políticas, realizada no capítulo VIII do “Segundo Tratado”:

“Pois quando um número qualquer de homens formou, pelo consentimento de cada indivíduo, uma comunidade, fizeram eles de tal comunidade, dessa forma, um corpo único, com poder de agir como um corpo único, o que se dá apenas pela vontade e determinação da maioria. Pois sendo aquilo que leva qualquer comunidade a agir apenas o consentimento de seus indivíduos, e sendo necessário àquilo que é um corpo mover-se numa certa direção, é necessário que esse corpo se mova na direção determinada pela força predominante, que é o consentimento da maioria. (...)

Deve-se entender, portanto, que todos aqueles que abandonam o estado de natureza para se unirem a uma comunidade abdicam, em

212

THOMAS cita como exemplos desse processo democrático informal a instituição da constituição inglesa, além da dissolução do último governo da Alemanha Oriental. Cf. op. cit. , p. 28.

91 favor da maioria da comunidade, a todo o poder necessário aos fins pelos quais eles se uniram à sociedade, a menos que tenham expressamente concordado com qualquer número superior à maioria. (...)

Para concluir, porém, estando a razão claramente do nosso lado quando afirmamos que os homens são naturalmente livres, e mostrando os exemplos da História que os governos do mundo, que começaram em paz, tiveram seu início apoiado nessa base e foram formados pelo consentimento do povo, não pode haver muito espaço para dúvidas, quer onde reside o direito, quer sobre qual tenha sido a opinião ou a prática da humanidade quanto ao estabelecimento dos primeiros governos”213

(os destaques em negrito não constam do texto original).

Assim, para Locke, o governo só pode ser legitimamente instituído com o consentimento do povo, que, com a formação da comunidade, passa a ser o único ente soberano, cuja vontade deve ser expressada, como corpo político, por meio da manifestação da maioria dos indivíduos que o compõem.

A despeito dessa categórica defesa da soberania popular e da regra majoritária, Locke não empreende, contudo, conforme salienta Ashcraft, uma minuciosa exposição acerca do conteúdo do termo “povo”, que é utilizado no “Segundo Tratado” de forma bastante ambígua, a fim de permitir a adesão à teoria de um maior espectro de convicções políticas, diminuindo em parte as inafastáveis resistências ao radicalismo de seu argumento214.

213

Cf. LOCKE, op. cit, p. 469-476, §§ 96, 99 e 104.

92 Com efeito, conforme propõe Thomas, o “Segundo Tratado” deve ser lido também como um trabalho de persuasão política e não apenas como um texto acadêmico, o que fez com que Locke deixasse em aberto, nas passagens mais polêmicas – entre as quais se destaca a exposição sobre a titularidade do poder de instituir e dissolver o governo – a sua posição, de modo a evitar o afastamento de possíveis aliados215.

Em um contexto permeado pela posição conservadora dos autores que defendiam o absolutismo monárquico, para os quais a participação política deveria estar restrita aos proprietários de terra e os despossuídos de bens deveriam simplesmente obedecer ao governo como forma de evitar a anarquia, a exposição ambígua e cautelosa de Locke sobre a temática da soberania popular deve ser entendida como um importante recurso capaz de permitir a manutenção da coerência de sua teoria, sem intensificar ainda mais as disputas já tão inflamadas do momento.

Assim, por exemplo, George Hickes, notável defensor da supremacia do rei em relação ao parlamento, sustentou, contrariamente à visão de que o poder político está original e radicalmente situado no povo, que a compreensão defendida por Locke introduziria inúmeras “questões incômodas”, tais como a necessidade – inaceitável no século XVII – de que também as mulheres devessem participar da organização política. Para Hickes, “se o poder supremo pertence a todo o povo de forma promíscua” isso levaria à conclusão de

215 Cf. THOMAS, op. cit., p. 10.

93 que todos os homens, “sem distinção de sexo, condição ou qualidade”, estariam legitimados a participar da instituição do poder político, o que seria inadmissível216. A tentativa de refutar a posição defendida por Locke e outros autores por meio da utilização de um argumento de “redução ao absurdo” demonstra, conforme bem postula Thomas, a abrangência e a ousadia da teoria de Locke, que foi compreendida, a despeito de todas as cautelas, como excessivamente radical para um contexto em que as questões políticas eram vistas como domínio reservado apenas à “melhor parte do povo”, isto é, aos proprietários de terras, aos letrados e aos ricos217.

De fato, até mesmo os autores que defendiam a supremacia do parlamento em relação ao rei e apregoavam o papel da comunidade como legítima instituidora do governo sustentavam a necessidade de que o termo “povo” fosse concebido de forma restritiva, devendo referir-se apenas aos proprietários de bens ou de terras.

É esse o caso de Tyrrel, que escreveu que os homens “sem nenhuma propriedade de bens ou terras não tiveram razão para votar na instituição do governo”, embora, prossegue o autor, mesmo os “que não possuem uma parcela dos bens ou das terras de um reino, ainda assim podem usufruir dos benefícios comuns do governo, motivo pelo qual devem do mesmo modo obedecer a ele e mantê-lo”218

.

216 Cf. George HICKES. A discourse of the Sovereign Power, 1682, p. 22-24, Apud Richard ASHCRAFT, op. cit., p. 236.

217 Cf. THOMAS, op. cit., p. 30.

218

Cf. James TYRRELL. Patriarcha non Monarca.1681, p. 84, 86-87. Apud ASHCRAFT, op. cit., p. 236, em tradução livre.

94 Embora reconheça que a submissão ao governo pelos pobres possa “aparecer como um inconveniente para eles, e a propriedade estabelecida aparente ser contrária a seus interesses, dada a pequena participação que possuem tanto em terras como em bens”, tais indivíduos devem, ainda assim, obedecer ao governo constituído, pois a desobediência seria uma ofensa à paz, o que representa uma violação da lei natural, e poderia levar ao estado de guerra e à anarquia219.

Assim, conforme descreve Ashcraft, os autores ingleses que defendiam, na Inglaterra do século XVII, a supremacia do parlamento em relação ao rei, sustentavam, de maneira geral, assim como Tyrrell, uma perspectiva que enfatizava a propriedade de terras como pressuposto para a participação política, deixando indeterminado o status político que deveriam possuir os não proprietários220.

Segundo Ashcraft, nesse sentido, os autores que precederam Locke na abordagem do tema da instituição e dissolução do governo, tais como Lawson e Hunton, ainda que tenham se referido ao “povo” como o único titular do direito de instituição do poder político, fizeram-no por meio da descrição de uma “comunidade amórfica”, incapaz de ser identificada com qualquer segmento social e desvencilhada de toda identidade política. Conforme bem analisa Aschcraft, foi apenas Locke quem elaborou um argumento radical de soberania popular, que

219

Cf. TYRRELL, op. cit., p. 147.

95 estende o significado do termo “povo” até as mais baixas classes da sociedade, conferindo a todos uma igual responsabilidade moral e política221.

Dessa forma, ao mesmo tempo em que não descreve o conteúdo do termo “povo”, deixando de identificá-lo com um grupo político específico, Locke não exclui desse conceito segmento algum da sociedade, levando à compreensão de que a participação política deve ser estendida a todas as categorias sociais.

De fato, ao considerar que a comunidade é formada por “todos aqueles que abandonam o estado de natureza”222

, Locke não faz qualquer ressalva ou restrição, conduzindo a interpretação ao sentido mais abrangente em que o termo “povo” pode ser considerado, de maneira a incluir a universalidade dos indivíduos.

Ainda que não efetue uma detalhada exposição do conteúdo da participação politica concedida ao “povo”, Locke assume, portanto, uma posição muito mais ousada que a postura de seus contemporâneos, reconhecendo que o direito de participação política na comunidade pertence a todos os homens livres, sem fazer qualquer distinção entre proprietários ou não proprietários.

Desse modo, para Locke, o “povo” deve ser compreendido, conforme sustenta Thomas, como o conjunto de todos os homens que estejam em pleno gozo de seus direitos naturais, reunindo, portanto, todos os homens livres. É formado, em sua maior parte, de membros das classes mais baixas, tais como

221

Cf. ASHCRAFT, op. cit., p. 311.

96 comerciantes, artesãos, empregados e trabalhadores rurais. Para Locke, são eles que, em última análise, se constituem nos titulares fundamentais do direito de participação política223.

Todavia, conforme salienta Thomas, a maior parte dos defensores da supremacia do parlamento em relação ao rei, inclusive Shaftesbury, era contrária a essa concepção ampla do direito de participação política, e viam com grandes ressalvas a extensão do voto às classes mais baixas da sociedade. Com o objetivo de conciliar essa concepção abrangente e radicalmente democrática de participação política com as ideias defendidas por esses autores, é que Locke sustenta, segundo Thomas, que o espaço ocupado pelo povo na instituição do governo não significa, necessariamente, que o governo a ser instituído deva ser invariavelmente democrático224.

É esse, portanto, de acordo com Thomas, o motivo subjacente à descrição das formas que a comunidade pode atribuir, pela maioria de seus membros, à sociedade política:

“Tendo a maioria naturalmente em suas mãos, conforme demonstrado, todo o poder da comunidade desde o momento em que os homens originalmente se uniram em sociedade, pode empregar tal poder para baixar leis para a comunidade de tempos em tempos e fazer executar essas mesma leis por meio de funcionários por ela mesma designados – caso em que a forma de governo que se tem é uma perfeita democracia. Ou, ainda, pode depositar o poder de elaborar leis nas mãos de um pequeno número de homens seletos e de seus herdeiros ou sucessores, quando então

223

Cf. THOMAS, op. cit., p. 30.

97 se tem uma oligarquia. Ou, ainda, não mãos de um único homem, quando se tem uma monarquia. (...) Assim, conforme todos esses modos, a comunidade pode adotar formas composta e mistas de governo, segundo julgar mais conveniente”225

(os destaques são do original).

Assim, a segunda etapa do processo de formação da sociedade política, pelo qual o poder executivo da lei da natureza é confiado a uma determinada forma de governo, deve ser realizada de acordo com os ditames da regra majoritária, embora a forma de organização do governo a quem esse poder venha a ser confiado não tenha de ser, necessariamente, democrática. Dentre as diferentes formas de governo consideradas por Locke como aptas a serem adotadas pela maioria da comunidade, não está, no entanto, conforme destaca Thomas, a monarquia absoluta, pois a escolha dessa forma implicaria a aceitação de que a autoridade política fundamental não repousa no consentimento do povo, mas na vontade arbitrária do monarca226.

A admissibilidade da instituição, pela comunidade, de formas de governo não democráticas na sociedade política deve ser interpretada, nesse sentido, como mais uma concessão de Locke à elite dos defensores da supremacia do parlamento, que eram relutantes em partilhar o poder político de maneira mais ampla e viam como uma ameaça o reconhecimento da legitimidade da participação do povo na instituição do governo, tal qual defendido por Locke. É em busca da adesão desses setores que Locke sugere, conforme analisa

225

Cf. LOCKE, op. cit., p. 500, § 132.

98 Thomas, que o espaço ocupado pelo povo na instituição do governo não precisa, necessariamente, ser reproduzido após a instituição do governo, a depender da forma de governo à qual o poder político vier a ser confiado pela comunidade227. Ainda que a forma de governo atribuída à comunidade seja uma forma menos democrática e participativa, isso não significa, segundo Locke, que o governo tenha recebido o poder para exercê-lo de maneira absoluta e arbitrária. Como recurso contra os abusos do governo exercido em desconformidade com o encargo a este confiado, Locke reconhece, como um direito de toda a comunidade, independentemente da forma de governo adotada, o direito de resistência e de revolução.

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