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O deprimido e o seu pecado

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Academic year: 2021

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O deprimido e o seu pecado

Gisela Sette Lopes

Palavras-chave: perda, corpo, lei, pai.

Na época em o “Outro não existe” e onde se deu um declínio da função paterna, o “pecado” disseminou-se.

Por esse viés abordaremos a temática da depressão, que solidária aos impasses da civilização avolumou-se afetando os sujeitos de nosso tempo – os deprimidos.

Começamos com Freud em “Luto e Melancolia” onde ele desenvolve um estudo estabelecendo um paralelo entre a tristeza e a melancolia, situando-as frente à perda do objeto de amor. Enquanto que o luto representaria um período onde essa perda seria elaborada, na melancolia, se daria uma identificação narcísica com o objeto perdido: “A sombra do objeto recai sobre o eu” (Cf. Freud, 1915, 242). Freud insiste em colocar o que chama distúrbios do humor – luto, tristeza, depressão, melancolia - no registro das vicissitudes narcísicas, domínio do imaginário lacaniano. O que desse registro imaginário nos interessa destacar?

Que ele é o campo da imagem, lugar onde se organiza a gestalt corporal - onde o corpo, o corpo próprio, toma forma, marca seus limites, sua linha de contorno, o que lhe confere uma integridade. Por outro lado, é o lugar de onde surge o movimento - o corpo adquire leveza, a imagem dança, afasta-se e aproxima-se, executa coreografias. É o domínio do espelho, cifrado pelo dois que rege a lei do duplo, do igual, do si mesmo. Registro do olhar onde, lamentavelmente Narciso se perdeu tragado nessa contemplação mortífera de sua imagem - i(a). 1

Lacan, reportando-se à depressão, em “Televisão” (Cf. Lacan, 1973, 44), a articula à tristeza, dimensão do afeto. Diz ele: “A tristeza, por exemplo, é qualificada de depressão ao lhe conferir como suporte a alma... Não se trata, porém, de estado d’alma, é simplesmente uma falta moral...: um pecado, o que quer dizer, covardia moral, que só se situa, em última instância, do dever de bem dizer ou de orientar-se no inconsciente, na estrutura.”.

Os afetos são próprios do sujeito, e se distinguem das emoções que pertencem ao registro animal, representando uma reação frente ao que ocorre no mundo. Avançando um pouco mais Lacan, fiel a Freud delimita os afetos como as paixões da alma – a tristeza é uma

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delas, o mau humor, o entusiasmo. O afeto depressivo, não constitui uma estrutura, mas atravessa todas elas, por isso podemos dizer que ele é transclínico (Cf. Recalcati, M,).

Nesse ponto Lacan dá um salto da psicofisiologia das emoções para a ética, conforme Miller acentua (Miller, J-A) e por isso a depressão passa a ser uma questão que envolve a falta moral e o pecado.

Foi no seminário da “Ética da Psicanálise” (1959/60) que, Lacan articulou essa noção de pecado ao registro da Lei.

Citação – “ Foi a Coisa, portanto, que, aproveitando-se da ocasião que lhe foi dada pelo mandamento, (mandamento da fala) excitou em mim todas as concupiscências; porque sem a Lei a Coisa estava morta.” (Cf.Lacan, 1959/60, 106).

Mais adiante continua – “.. Coisa no lugar de pecado” e diz “este é o discurso de São Paulo, concernindo às relações da lei e do pecado Epístola aos Romanos, capítulo 7, parágrafo 7.” Termina a citação.

Fazemos a leitura dessa citação - Sem a Lei, configurada através dos mandamentos da fala, não haveria o pecado - este se produz em sua transgressão. Sublinho - mandamentos, para interrogar:

O que mandam esses mandamentos? Eles ordenam uma ética do bem dizer que, para Miller (cf. Miller, J-A) não corresponde a um puro manejo do significante, porém a “ um acordo entre o significante e o gozo, uma ressonância”.

A ética do bem dizer consiste em encerrar num saber aquilo que não se pode dizer. Por esse viés, a depressão se implica numa questão de saber que aponta um impossível.

O que é esse impossível?

Ele é o produto, o que sobra da operação de inscrição do Nome do Pai, quando os sujeitos são capturados na linguagem. 2 Esse resto, se desdobra num impossível triplicado :

1) “não há relação sexual” - buraco no Real;

2) um impossível de se visualizar, algo não é dado ver-se - buraco no imaginário; 3) um impossível de se dizer, próprio do buraco no simbólico.

O significante inscrito vai tecendo um saber, se reproduzindo e se combinando, obedecendo a uma lei. É assim que o simbólico incorpora, e é sonorizado pela língua – advento da palavra.

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Essa lei é comandada por uma outra Lei maior - aquela que estrutura a linguagem, e que marca a passagem da natureza para a cultura. Lacan a escreve com ele maiúsculo - a Lei da interdição do incesto, inscrita no inconsciente, do qual é fundante, via Nome-do-Pai.

O que acontece de diferente com os sujeitos deprimidos?

O que se compromete para os deprimidos é a dimensão da fala e com ela o sentido da vida se esvazia. O corpo arqueia reduzido a sua realidade de pura matéria, de peso morto. O sujeito de desejo desaparece, nessa segunda morte. Morte do sujeito, no significante, suposto realizar sua própria história - cumprir um destino, fazendo seu o desejo do Outro, para poder então, imprimir no desejo seu próprio selo.

A palavra como efeito de estrutura se vê, assim, afetada pelo que chamamos tristeza, – por que isso acontece!

Retomamos, novamente, o seminário “A Ética da Psicanálise” (1959/60), onde Lacan recorre a um mito.

Com ele queremos evidenciar nas passagens do assujeitamento do falasser aos diversos registros de leis, isso que configura o pecado, a covardia moral. Porque a cada registro - Real, Simbólico, Imaginário corresponde uma lei. 3

A primeira - lei do Real - é a da gravidade, lei geral que rege a queda dos corpos. Lei, também, que assujeita, o corpo quando ele se demite das prerrogativas de se reproduzir pela imagem, quando ele se torna puramente matéria susceptível à pressão que vem de baixo, e o arrasta para o chão - depressão.

A lei especular, por sua vez, captura o sujeito na imagem e ameaça tragá-lo, absorvê-lo através de uma grande boca aberta de um grande Outro primordial, caprichoso. Risco de penetrar no espelho e lá se aprisionar.

A lei simbólica é a lei da palavra que liberta das anteriores, mas aliena numa estrutura de linguagem - alternativa que produz um sujeito, na medida em que através dos poderes da palavra, veicula nela e por ela um desejo demandado.

Ainda com Lacan, no seminário VII, recorremos ao texto bíblico para explicitar o processo de escrituração da Lei.

Fragmento do mito - “Moisés desceu da montanha segurando na mão as duas tábuas da Lei, que estavam escritas dos dois lados, sobre uma e outra face.... Aproximando-se do acampamento, viu o bezerro (de ouro) e as danças. Sua cólera se inflamou, arrojou de suas mãos as tábuas e quebrou-as ao pé da montanha.” (Ex.32, 15-16-19).

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Esse trecho testemunha uma passagem que vai da idolatria, da captura de um povo na imagem que fulgura que reluz com o brilho do ouro, para a dimensão de uma lei escriturada na pedra - o Decálogo. Leis, todas elas formuladas por um Não inicial, mas que traduzem, na repetição, a positivação da Lei maior que lhe dá suporte.

Lacan comentando essa passagem assim se expressa:

Citação - “Quero fazê-los observar isto - nesses dez mandamentos, que constituem aproximadamente tudo o que é admitido como mandamento pelo conjunto da humanidade civilizada -...em parte alguma está assinalado que não se deve dormir com a mãe. ...Os dez mandamentos, não poderíamos... interpretá-los como algo muito próximo daquilo que funciona efetivamente no recalque originário? Os dez mandamentos são interpretáveis como...uma condição e uma só, que é a de nos darmos conta de que a interdição do incesto não é outra coisa senão a condição para que subsista a fala. ... Esses dez mandamentos, por mais negativos que pareçam...direi que talvez sejam apenas os mandamentos da fala, quero dizer que explicitam aquilo sem o que não existe fala- eu não disse discurso - possível.” (Sem VII - pág./89).

Nesse registro da fala está o sujeito da psicanálise, dividido, barrado em seu desejo. E os deprimidos, onde estão?

O que ocorre com os deprimidos é que, ao nível da função paterna, comprometem a inscrição, não a Lei maior fundante do inconsciente, mas os mandamentos da palavra, que condicionam a fala.

Por que isso acontece?

Voltemos ao mito bíblico lugar de um saber que escreve uma verdade, para encontrarmos pistas de esclarecimento.

Nele, as Tábuas da Lei são obra de um Deus – o da Tora - que se coloca como um Pai legislador, terrível que castiga, pune e cobra. Nele predomina seu viés real/imaginário, sua arbitrariedade. Amado e odiado, simultaneamente, deve ser ultrapassado para se aceder à castração, operação, simbólica.

Por todos os atributos com o qual o filho o reveste, esse pai é aquele que está destinado ao crime que marca uma origem. É ele que é assassinado pelos filhos, cabendo a estes elaborarem seu luto, fazendo-o advir na palavra - na lei interditora. Foi o que Freud nos disse através desse outro mito que inventou em “ Totem e Tabu.” (Freud, S – 1912).

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Moisés, egípcio, desce do Horeb com as tábuas da lei. Um novo mediador assume a condução do povo e a nova aliança, intermediada pelos mandamentos da palavra.

Os deprimidos revelam a impossibilidade de elaborar esse luto originário, a “enterrar o morto”, e permanece maldizendo a vida, odiando um Deus que, no dizer de Lacan, fez tão mal todas as coisas. Recusa de se submeter à lei da palavra. Recusa de um bem dizer do inconsciente – seu pecado.

Porque a questão da perda que se coloca é aquela originária de um pai assassinado, repleta de tamanha angústia e sentimento de culpabilidade, que paralisa o sujeito, fixando-o na relação a um pai terrível que não se consegue matá-lo. Não se consegue mata-lo porque se fracassa na assunção dessa culpa originária e do gozo – decorrente da autoria do crime. Nesse contexto, o luto pelo objeto perdido se infinitiza.

Essa fronteira precisa ser atravessada para se galgar à castração simbólica. 4

Os deprimidos, nessa travessia, permanecem capturados no campo do imaginário, não metaforizado. Por não conseguirem assumir o gozo pelo “assassinato” o pai, matam-se a si mesmo, no desejo e, eventualmente também, na realidade.

Falhou a operação de construção de um pai, nessa passagem que enlaça um real e faz nó. Lacan, nesse contexto, deslizando de real para réus, que no latim quer dizer culpável acrescenta que - “se é mais ou menos culpável do Real”(Cf.Lacan, 1976/77, 47). Ou mais ou menos somos culpados do Real.

Para onde Lacan aponta? Para uma culpa que assinala o que falha no processo de simbolização, onde está implicada conseqüentemente a função paterna, o que em relação à proliferação de deprimidos em nossa época revela exatamente esse ponto de fracasso.

É o Real, portanto, que resta e reveste essa figura aterrorizante de um supereu arcaico, “pai imorrível”, tirano que acompanha e determina a dor de existir levada a seus extremos nos deprimidos. Trata-se daquele supereu que se representa, pelos pecados do pai, por tudo aquilo que, escapando à via da palavra, retorna nessa figura obscena que cobra os ritos funerários, e remete o sujeito à sua dor de existir.

Desaparecer, calar ao significante, tornar-se morto-vivo fugindo a ética de bem dizer, eis o sentido da covardia moral, que se abate sobre os deprimidos e os captura num imaginário

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que, por não ser atravessado os confronta ao Real – o porquê de sua dor de existir. (nesse desejo)5.

Recife, outubro de 2004. Gisella Sette Lopes gmsl@terra.com.br

Bibliografia

- Didier-Weill, A (1989) – “Ley Simbólica, Ley Metafórica, Ley Superyoica”, Actas de la Reunión Lacanoamericana de Psicoanálisis- Mar del Plata -Ediciones Nueva Visión, Buenos Aires

- Freud, S (1915) – “Tristeza e Melancolia”, Obras Completas Sigmund Freud, vol VIII, p. 235, Editora Delta S/A, Rio de Janeiro.

- “Lacan, J (1959/60) – “O Seminário”livro 7 – A Ética da Psicanálise”, Jorge Zahar Editor, 1988, Rio de Janeiro.

- Lacan, J – (1973) –“Televisão”, Jorge Zahar Editor, 1993, Rio de Janeiro. - Lacan, J – (1976///) “L’Insu que Sait d’Une-Bevue S’Aile a Mourre” inédito. - Miller, J-A – “A Propósito de los Afectos en la Experiencia Analítica”

- Recalcati, Massimo (2003) – Clínica del Vacío: anorexias, dependências, Editorial Síntesis S/A, Madrid.

5 Lacan “retoma de um sonho relatado por Freud a frase ‘ele não sabia que ele estava morto” e na decifração

Referências

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