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A Fiocruz do futuro e o futuro da Fiocruz
José Victor Regadas Luiz
O documento que serve de referência ao IX Congresso Interno da Fiocruz, con- forme indicado nos vários encontros dos grupos de trabalho da EPSJV, é marcado por várias debilidades, que abrangem dimensões distintas, e que, no conjunto, podem tanto fragilizar, em maior ou menor grau, uma série de áreas específicas de atuação da instituição, quanto pôr em risco muitos dos próprios objetivos estratégicos enunci- ados nas suas teses e diretrizes. Todas essas críticas estão sendo reunidas num docu- mento de contribuição de nossa unidade ao debate do congresso e se somarão a ou- tras feitas pelas demais unidades e instâncias da fundação nas semanas que prece- dem sua realização. A maioria delas, no entanto, por conta da própria dinâmica de deliberação congressual, tenderão provavelmente a se concentrar na tarefa de ajustar e remendar as teses e diretrizes apresentadas, ou mesmo substituir ou suprimir algu- mas e propor outras inteiramente novas. O objetivo deste texto, que ofereço como contribuição pessoal ao debate interno da EPSJV (embora tenha se beneficiado de diálogos coletivos), tem um sentido, todavia, diferente.
Adiante, instigado por colegas com quem compartilho inquietações semelhan-
tes, proponho algumas reflexões críticas acerca dos fundamentos teóricos e políticos
mais gerais que, me parecem, embasam as análises contextuais do documento, orien-
tando o conjunto de suas questões estratégicas e conformando grande parte de suas
teses e diretrizes. O texto de crítica da EPSJV ao documento base do congresso, ela-
borado a partir dos encontros de seus trabalhadores, dentre os equívocos, fragilida-
des e lacunas que ali encontra, em certa altura destaca sua falta de clareza analítica e
de coesão temática, argumentando, contudo, muito corretamente, que esta caracte-
rística de forma alguma denota ausência de unidade teórica e conceitual. Ao contrá-
rio, sob a ostensiva bricolagem textual repousa latente uma visão demasiadamente
totalizante e unidimensional do que venha a ser esta “Fiocruz do futuro” a que o do-
cumento tanto alude. É a partir dessa observação central que procuro problematizar
nas páginas a seguir o sentido desta unidade que se esconde sob a aparente confu-
são do documento de referência ao IX Congresso Interno da Fiocruz.
2 Realmente, basta pinçarmos qualquer uma das pontas daquela movediça colcha de retalhos para flagrarmos por baixo dos panos (não tão à vista quanto necessário, nem tão às escondidas quanto desejável) o fantasma que a agita – o fantasma do neo- desenvolvimentismo. É esse espectro, que perpassa todo o documento, remendando seus fragmentos dispersos com o fio que retira do emaranhado novelo do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (conhecido por seu simpático acrônimo, CEIS), que busco apreender nas páginas que seguem – páginas de um texto que era para ser breve e pontual, mas que, de polêmica em polêmica, acabou se esticando muito além da conta...
Para melhor organizar a exposição dos argumentos, dividi o texto em duas ses- sões. Na primeira, abordo o neodesenvolvimentismo de modo amplo, tentado pro- blematizá-lo a partir de sua contextualização histórica. Na segunda, trato mais especi- ficamente de como esta perspectiva está presente no texto base do congresso, nota- damente a partir da centralidade conferida ao projeto CEIS (agora com seu novo afixo
“4.0”).
A fantasia desenvolvimentista desfeita, refeita, desfeita novamente e... mais uma vez refeita?
Já não é novidade que o discurso desenvolvimentista, tão vivo em meados do século passado, quando alimentou esperanças de soberania nacional, pujança eco- nômica e justiça social, foi ressuscitado neste início de século – após ter sido declara- do morto no final do último – por inúmeros intelectuais acadêmicos e tecnocratas que viram nos governos petistas a chance de retomar aquele antigo programa de refor- mas para dar jeito nos velhos problemas de dependência e subdesenvolvimento bra- sileiros, agravados pela marcha acelerada da globalização neoliberal.
Assim foi alardeado na imprensa e nas universidades o surgimento do “novo de-
senvolvimentismo”, uma agenda heterogênea de governo, amparada em eclética teo-
ria econômica, que, em linhas gerais, buscava devolver ao Estado brasileiro o prota-
gonismo solapado pela liberalização dos mercados na definição dos rumos do desen-
volvimento nacional. Com isso, os “neodesenvolvimentistas” procuravam remediar os
danos provocados pela adesão do governo FHC ao Consenso de Washington, cujo
receituário imposto para dissipar a crise da dívida externa, a estagnação econômica e
3 a elevada inflação que afligiam o país, acabaram levando, no fim das contas, a baixas taxas de crescimento, constantes crises cambiais, aumento da dívida pública interna, privatizações, desmantelamento de cadeias produtivas, desnacionalização da econo- mia, desemprego, precarização das formas de trabalho, aumento das desigualdades sociais, pauperismo e supressão de direitos sociais – muitos dos quais recém- conquistados com a redemocratização.
O “neodesenvolvimentismo”, contudo, não propôs uma reedição sem modifica- ção do arqueodesenvolvimentismo nascido das experiências políticas, econômicas e sociais das décadas de 1930 a 1960 e teorizadas por intelectuais neokeynesianos vin- culados à Comissão Econômica das Nações Unidas para América Latina e o Caribe (CEPAL), como Raúl Prebisch e Celso Furtado. Na sua versão adaptada aos novos tempos globalizados, os neodesenvolvimentistas, com diferentes ênfases e matizes, e algumas rusgas menores, ao mesmo tempo em que buscaram recuperar antigos te- mas, bastante caros ao desenvolvimentismo original, em suas vertentes “nacional” e
“popular”, como centralidade do Estado no planejamento econômico, autodetermi- nação nacional, integração regional, distribuição de renda, redução das desigualda- des sociais, industrialização e inovação tecnológica, acharam por bem se manter a uma distância segura de qualquer coisa que lembrasse a velha plataforma das “refor- mas estruturais de base” – abortada a golpes de cacetete e choques elétricos pela ditadura militar – pois isto necessariamente colocaria em questão a urgência de orga- nizar as lutas populares contra o imperialismo e as oligarquias, algo que, em tempos cinzentos de “fim da história”, até mesmo para muitos críticos do “pensamento único”
neoliberal, parecia soar desconcertantemente anacrônico, além de desnecessaria- mente perigoso (um receio, diga-se de passagem, que se alimenta por vezes de leitu- ras históricas revisionistas, e conservadoras, que atribuem à radicalização dos movi- mentos populares a principal causa da derrubada de Jango).
Assim, erguendo alto a sua voz contra a ortodoxia neoliberal reinante, mas res-
guardando os punhos prudentemente abaixados, o neodesenvolvimentismo arrogou-
se a tarefa monumental de superar o neoliberalismo sem, todavia, atacar frontalmente
seus alicerces. Numa solução de compromisso que envolveu, de um lado, o fomento
a programas sociais de combate aos efeitos das desigualdades sociais, principalmen-
te a pobreza extrema, a ampliação do acesso aos serviços públicos, o investimento em
setores econômicos estratégicos, o estímulo à criação de empregos, o incremento
4 dos salários e da oferta de crédito visando o fortalecimento do mercado interno, a promoção de políticas de equidade social, o aporte de recursos no desenvolvimento científico e tecnológico nacional e, de outro, a acomodação à abertura comercial, a aquiescência a seus tratados imperiais de propriedade intelectual e o zelo renitente pelos pilares da macroestabilidade econômica (como a defesa intransigente do equi- líbrio fiscal, a perseguição de elevadas metas de superávit primário e o rígido controle inflacionário), o neodesenvolvimentismo – buscando ancorar-se, no plano interno, num amplo arco de interesses de classes, e evitar, no plano externo, demasiados atri- tos com as potências capitalistas –, pretendeu criar as bases para o melhor dos Brasis possíveis, um país de todos, ativo e altivo, rico e sem pobreza (como diziam os slo- gans do governo), onde houvesse, como bem resumiu Theotonio dos Santos (2007, p.
121), “a possibilidade de uma política de crescimento sem inflação, de uma distribui- ção de renda sem fortes crises sociais, de soberania nacional sem choques internacio- nais muito graves”.
Este canto de sereia, de fato, era tão irresistivelmente sedutor que rapidamente foi alçado ao papel de ideologia semioficial do bloco histórico que parecia então se consolidar, abrigando, além da classe trabalhadora formalizada e das classes médias empobrecidas, representadas por sindicatos e partidos políticos de esquerda e cen- tro-esquerda, setores da burguesia industrial, da própria burguesia rentista, das clas- ses médias abastadas, do agronegócio, representados por partidos de direita e cen- tro-direita, e mesmo de setores importantes das Forças Armadas, preocupados com os efeitos da desnacionalização indiscriminada da economia sobre a Segurança Naci- onal. Não foi absolutamente por acaso que o brado inaugural do “novo desenvolvi- mentismo” foi vocalizado justamente por um ex-dirigente e ideólogo tucano (Bresser- Pereira, 2004), sendo logo seguido – apesar das leves escaramuças, que se acentuari- am com a crise da “nova matriz econômica” no governo Dilma – por uma gama de in- telectuais acadêmicos neokeynesianos (ex: Sicsú, Paula e Michel, 2005) e tecnocratas mais ou menos organicamente ligados ao PT (Barbosa e Souza, 2010; Mercadante, 2010) – não demorando muito a ecoar no campo da saúde coletiva a “busca de uma nova utopia” desenvolvimentista (Gadelha, 2007).
Durante certo período – entre meados do primeiro mandato de Lula e meados
do primeiro de Dilma –, o sucesso desse empreendimento multiclassista pareceu ine-
gável, como atestaram as sucessivas vitórias eleitorais do PT. O PIB cresceu a taxas
5 robustas, a inflação manteve-se baixa, as exportações, sobretudo de commodities, dispararam, as reservas cambiais não pararam de crescer, o fomento à indústria, prin- cipalmente aos “grandes campeões”, ainda mais depois da descoberta do Pré-Sal, foi possante, assim como os investimentos em ciência e tecnologia tornaram-se estrate- gicamente prioritários, e tudo isso, ao contrário do padrão anterior de “modernização conservadora”, que implicava crescimento econômico com segregação social, foi al- cançado com a redução drástica da pobreza, sobretudo a pobreza extrema, a promo- ção do quase pleno emprego, a elevação dos salários a patamares históricos, a ampli- ação do consumo de massas, a expansão do acesso aos serviços públicos, numa pala- vra, a melhoria geral das condições de vida da população brasileira. O Brasil, enfim, parecia andar de cabeça em pé e peito estufado, orgulhoso de suas façanhas recen- tes e esperançoso com o seu futuro.
Naturalmente, tamanho êxito propiciou um formidável lastro de realidade ao neodesenvolvimentismo. Alguns ideólogos do governo, regalados com seus bons frutos, prontamente trataram de rechaçar todas as críticas de esquerda ao governo, e apressadamente anunciaram a emergência de uma nova era “pós-neoliberal” (Sader, 2011); outros, porém, menos afoitos, mais serenos, ainda que apostando alto as suas fichas no “sonho rooseveltiano” de uma social-democracia de primeiro mundo, sou- beram incorporar conscienciosamente aquelas críticas que acusavam o “transformis- mo” em curso, chamando atenção para o “pacto conservador” que permitia e minava ao mesmo tempo o “reformismo fraco” que dava sentido ao “lulismo” (Singer, 2012).
Em ambos os casos, a profecia desarmada, ou melhor, a “fantasia desfeita” pela
ditadura militar – para evocarmos a expressão escolhida como título de um dos volu-
mes da obra autobiográfica de Celso Furtado (1989) para se referir ao ocaso desen-
volvimentista sob o peso dos coturnos –, uma vez refeita, pareceu-lhes – fossem apo-
logistas ou simpáticos apenas – como o caminho que nos levaria a romper definitiva-
mente com a dupla articulação entre o subdesenvolvimento nacional e a dependência
estrangeira, possibilitando a construção de um “círculo virtuoso” (como tanto se repe-
tiu) entre desenvolvimento e soberania. De lambuja, a flor viva da democracia seria
finalmente recolhida dos grilhões da nossa história autocrática, e poderíamos, com
muitas décadas de atraso, celebrar confiantes a vitória da tão sonhada revolução de-
mocrático-burguesa no Brasil.
6 Certamente, este não é o lugar para se fazer um balanço crítico extenso daquele que sem dúvida alguma, a despeito de todos seus limites e contradições, foi um dos períodos mais progressistas de nossa história. Tampouco é o lugar para se fazer um meticuloso inventário, apontando rigorosamente todos os prós e contras, do ideário desenvolvimentista ressurrecto, utilizado como arma na luta político-ideológica contra a avassaladora hegemonia neoliberal nesta época de capitalismo global selvagem.
É fundamental, entretanto, identificar ao menos aquilo que, de longe, salta aos olhos como o verdadeiro calcanhar de Aquiles deste gigante de barro, a todo mo- mento desfeito e refeito, chamado desenvolvimentismo. Sem isso, torna-se impossível capturar entre os dedos esse fantasma fugidio que vez ou outra retorna do mundo dos mortos para assombrar os vivos. Pois, se o desenvolvimentismo, como teoria eco- nômica empenhada na compreensão estrutural de nossas mazelas históricas e pro- grama político voltado para a ação transformadora dessa realidade, foi fatalmente golpeado na década de 1960, espezinhado pela modernização conservadora dos anos 1970 (que provou ser possível crescimento econômico sem reformas sociais), velado na década perdida de 1980, e enterrado sob a avalanche neoliberal dos anos 1990, para novamente, pouco depois de reaparecer redivivo nos anos 2000 – bastan- te maltratado, é verdade, numa versão zumbi esquálida, com ossos esfarelados, mús- culos frouxos e nervos amolecidos – ser derrubado por um golpe de Estado (que des- ta vez sequer precisou de tanques) e, por fim, pulverizado pela ascensão galopante de uma direita ultraneoliberal fascistoide (pela via eleitoral), é forçoso indagar: o que, afinal, o faz tão vulnerável? Trata-se apenas da força de seus inimigos, inegavelmente poderosos, ou existe algo irrecuperavelmente roto em sua própria compleição? Se for este o caso, qual seria a grande falha do projeto desenvolvimentista e que o condena a este fado de Sísifo de estar sempre despencando montanha abaixo toda vez que acredita estar se aproximando do cume?
Se tivermos que buscar uma única razão para o desenvolvimentismo, de ontem e
de hoje, velho ou novo, sempre tropeçar nas suas reiteradas “arrancadas” – take-offs,
diriam os gringos – rumo ao topo é que ele está calçado em um mito, um mito tão ar-
raigado no corpo de nosso pensamento político e social, que ciência alguma, nem
mesmo a dura realidade histórica, tantas vezes pedagógica, parece apta a dissipar – o
mito da existência de uma burguesia nacional em países capitalistas periféricos de-
pendentes e subdesenvolvidos capaz de ser, por meio da imposição de sua vontade
7 política ao leme do Estado, o grande agente das transformações estruturais necessá- rias à edificação de uma “ordem social competitiva”, como se referia Florestan Fer- nandes ao modelo, inspirado nos países centrais, de sociedade capitalista politica- mente democrática e economicamente autônoma, verdadeiro objeto de desejo de todas as teorias que se dedicaram a sondar os caminhos da Revolução Burguesa no Brasil (Fernandes, 2020).
Muito já se criticou esse patrimônio do folclore nacional desde que o ciclo das ditaduras militares na América Latina despertou bruscamente os desenvolvimentistas de seus sonhos fantásticos. O principal produto de exportação, por assim dizer, das ciências sociais do que se convencionou chamar atualmente de Sul Global (outrora Terceiro Mundo), isto é, as chamadas teorias da dependência, em grande parte foi uma tentativa de oferecer respostas à derrocada desenvolvimentista – vista não só como consequência da acachapante derrota político-militar dos vários governos “na- cional-populistas” que emergiram na região, mas, sobretudo, como expressão de de- bilidades intelectuais e desvios ideológicos inerentes ao seu projeto.
O rechaço ao mito de origem desenvolvimentista, a despeito das contrastantes e mesmo antagônicas vertentes teóricas assumidas por seus críticos, foi então unânime.
Adeptos da corrente “interdependentista”, como Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto (1970), embora evitassem à época soar categóricos, asseveraram que a de- pendência era inevitável no processo histórico capitalista, uma vez que a internaciona- lização do mercado interno dos países periféricos colocava limites estruturais ao pro- cesso de industrialização nacional, o que fazia da interdependência entre estes e os países centrais algo inevitável, e em muitos sentidos até desejável. A livre concorrên- cia entre capitais seria a única saída restante para superar os entraves do subdesen- volvimento, não havendo mais espaço para burguesias nacionais, somente para “bur- guesias associadas”. (Anos mais tarde, já presidente da república, FHC coroaria sua teoria com uma frase de sabor thatcheriano mais do que categórica: “Fora da globali- zação não há salvação, dentro da globalização não há alternativa”).
Já os teóricos marxistas da dependência, como Ruy Mauro Marini (2012), Vânia
Bambirra (2012) e Theotonio dos Santos (2018), ressaltavam que, justamente por seu
caráter “integrado” ou subordinado ao mercado mundial, as chamadas burguesias
nacionais jamais poderiam levar os países periféricos ao desenvolvimento mais iguali-
8 tário e autônomo, mas precisamente ao seu oposto. Temente à ascensão das massas populares (em parte por ela mesma incitada em sua disputa contra as oligarquias agroexportadoras pela apropriação dos excedentes para a indústria), e incapaz de fazer frente por muito tempo ao capital imperialista, a burguesia nacional, sentindo seu poder de classe em perigo, não encontraria outro caminho senão aliar-se aos seus concorrentes internos e externos, a fim de intensificar a superexploração do trabalho, aprofundar a dependência, e restringir ainda mais a participação popular nos regimes democráticos, apelando, sempre que preciso (isto é, sempre), para violentos regimes autocráticos como boia de salvação de seus privilégios. Deste ponto de vista, as tare- fas democráticas da tão acalentada revolução burguesa na periferia subdesenvolvida e dependente não poderiam de forma alguma ficar a cargo da burguesia nacional, mas apenas das classes trabalhadoras organizadas.
O próprio pensamento desenvolvimentista, no decorrer dos anos 1960 e 1970, não passaria incólume a essas e outras críticas, e mesmo Celso Furtado precisou pro- mover uma revisão de várias de suas teses, a fim de lhes expurgar a mitologia da bur- guesia nacional redentora, que, do alto do olimpo estatal, se colocaria acima das lutas de classe para agir em nome do “povo” e da “nação”. Era necessário reconhecer que esta abstração era um obstáculo a qualquer análise consequente das forças políticas e sociais em jogo, como ficou claro pelas insuficiências de suas apreensões iniciais so- bre o modelo de industrialização concentrador de riqueza e promotor de desigualda- des posto em prática pela ditadura militar, cujo mote, contrariando as suas previsões sobre a impossibilidade de crescimento econômico sem reformas políticas e sociais, e, portanto, sem democracia e distribuição de riqueza, era “crescer primeiro para di- vidir depois”.
Assim, admitindo o “sucesso” deste modelo modernizador excludente, que
usurpou parte do programa econômico do nacional-desenvolvimentismo, banindo,
porém, todo seu potencial emancipador, Furtado passou a adotar uma postura muito
mais severa em relação à burguesia nacional dos países periféricos. Sem descuidar do
exame do subdesenvolvimento no nível das relações de produção (como insistiam,
com razão, os marxistas), ele pôs em evidência uma questão crucial relativa à esfera
da circulação das mercadorias, qual seja, o fato de que, nos países periféricos (com
baixa poupança), a existência de uma classe dirigente com padrões de consumo simi-
lares aos de países centrais (com elevado nível de acumulação de capital e impregna-
9 dos por uma cultura baseada no progresso técnico), há muito se tornara um fator bá- sico na reprodução das estruturas sociais do subdesenvolvimento e da dependência.
“Ademais”, conforme assinala Celso Furtado num dos textos centrais de sua revi- são crítica, “se se tem em conta que a situação de dependência está sendo permanen- temente reforçada, mediante a introdução de novos produtos (cuja produção requer o uso de técnicas cada vez mais sofisticadas e dotações crescentes de capital), torna- se evidente que o avanço do processo de industrialização depende de aumento da taxa de exploração, isto é, de uma crescente concentração da renda. Em tais condi- ções o crescimento econômico tende a depender mais e mais da habilidade das clas- ses que se apropriam do excedente para forçar a maioria da população a aceitar cres- centes desigualdades sociais” (Furtado, 1981, p. 88-9). Em resumo, mantida a depen- dência fundamental, econômica e cultural, das classes dirigentes das nações periféri- cas em relação ao padrão de modernização, na produção e no consumo, estabeleci- do nos países capitalistas centrais, o subdesenvolvimento não apenas seria mantido, mas agravado.
Sem dúvida, este alerta de Celso Furtado deve ser encarado de frente por todos aqueles que evocam a urgência dos países periféricos em alcançar os países centrais na sua desenfreada corrida tecnológica sem atinar detidamente para os riscos de tal empreitada. Esta preocupação, como veremos, está longe de ser ignorada pelos ad- vogados neodesenvolvimentistas do CEIS. De fato, é até bastante recorrente em seus escritos, o que era de se esperar vindo de discípulos aplicados. Todavia, esse pro- blema, tão central na obra do mestre, é, por alguma razão, omitido ou muito tangen- cialmente referido no documento de referência do congresso da Fiocruz. Assim, o projeto do CEIS, aparentemente livre de qualquer contradição mais grave digna de menção ou exame cuidadoso, é tão somente embalado na fraseologia das soluções fáceis que acomodam o “social” com o “capital” no seio do Estado.
Como procuro argumentar mais a frente, a proposta neodesenvolvimentista (ou
“social-desenvolvimentista”, como preferem alguns de seus proponentes) que embala
o projeto de “arrancada” do Complexo Econômico-Industrial da Saúde na era da
quarta Revolução Industrial – ária entoada ao longo de todo documento de referência
do congresso da Fiocruz – padece da mesma debilidade central do projeto desenvol-
vimentista original (ou arqueodesenvolvimentista) – isto, todavia, com o agravante de
10 que estas duas últimas experiências históricas ao menos puderam contar, por breve período que fosse, com algum resquício mínimo de sustentação material para almejar um “grande salto adiante”, ao passo que o mesmo já não se pode afirmar atualmente acerca do Projeto CEIS 4.0 – afinal, basta uma rápida mirada ao redor para perceber- mos que estamos ainda totalmente perdidos no deserto ultraneoliberal fascistoide, muito distantes, pois, do oásis democrático-social-desenvolvimentista que a nova utopia do CEIS precisaria para poder florescer.
Os dilemas da utopia neodesenvolvimentista do CEIS 4.0
O documento base do próximo congresso da Fiocruz lista três “temas centrais”:
a defesa de um SUS público e universal; a defesa de um sistema de Ciência, Tecnolo- gia e Inovação (CT&I) em Saúde, e o papel da Fiocruz na construção do “desenvolvi- mento com justiça social”. Em uma primeira olhada, além de cada uma dessas bandei- ras parecerem corretas por si só (e, de fato, o são), também não parece haver conflito algum entre elas, nem mesmo hierarquia que pudesse tornar qualquer uma delas mais relevante do que as demais. Estaríamos diante de uma tríade em perfeita “siner- gia”, como se costuma dizer hoje: cada um desses “temas” fortaleceria e seria fortale- cido pelos outros dois simultaneamente. Eis o mote da “transversalidade”. Ninguém perderia, e todos sairiam ganhando, “sem deixar ninguém para trás”, acrescentaria talvez alguém, não nos deixando esquecer a mundialmente aclamada “Agenda 2030”
(que, conforme nos lembra o documento, foi “considerado como estratégia inteligen- te do futuro das ações dos Estados” por ninguém menos que o insuspeitabilíssimo Fórum Econômico Mundial). Contudo, um exame mais atento do documento logo mostra que as coisas não se passam bem assim.
Com efeito, o eixo estruturante de todo o documento, verdadeiramente “trans- versal” a suas análises de conjuntura, suas questões estratégicas, suas teses e diretri- zes, é a implementação no Brasil do chamado Complexo Econômico-Industrial da Sa- úde (de agora em diante CEIS – que bem poderia ser apenas CES, já que nunca ficou muito claro porque o “I” da sigla já não estaria contemplado pelo “E”, uma vez que a ideia seria abrigar todas as atividades econômicas possíveis relacionadas à saúde).
Esta proposta, evidentemente, não é nova, e já vem sendo propagada há quase duas
décadas. No auge do burburinho “novo desenvolvimentista”, ela deixou de ser ape-
11 nas uma ideia acadêmica e foi alçada à projeto de governo, encontrando espaço nos Ministérios da Saúde, da Integração Nacional, e do Desenvolvimento, Indústria e Co- mércio Exterior, chegando a constituir uma das grandes linhas de ação do ambicioso Plano Brasil Maior, mais ou menos à mesma época do aparecimento da chamada “no- va matriz econômica”.
Portanto, não estamos diante de um projeto estreante, muito ao contrário. A grande novidade parece ser a sua absoluta centralidade como “ideia-força” no deli- neamento das análises contextuais e na definição de grande parte das teses e diretri- zes de um congresso interno da Fiocruz. Nesse sentido, o que realmente importa questionar é até que ponto tamanha centralidade (apologética) do CEIS, revestido com as roupas genéricas de “defesa do sistema de CT&I”, é, de fato, plenamente con- vergente com a “defesa de um SUS público e universal”, bem como do papel da Fio- cruz na promoção do “desenvolvimento com justiça social” – ou se haveria nessa jun- ção, a princípio tão virtuosa, contradições e perigos embutidos que poderiam colocar a perder o conjunto dos próprios objetivos enunciados.
O projeto de implementação do CEIS parte de uma avaliação fundamentalmen- te correta: falta ao SUS bases materiais produtivas que lhe assegurem completa efeti- vidade. Nas palavras de seus principais arquitetos, “A construção de um sistema de saúde que permita concretizar os preceitos constitucionais de universalidade, integra- lidade e equidade precisa estar associada à consolidação de uma base produtiva e de inovação em saúde para que o sistema nacional de saúde se sustente estruturalmen- te” (Gadelha et al., 2017). “Contudo, a base produtiva da saúde ainda é muito frágil, o que prejudica tanto a prestação de serviços em saúde quanto uma inserção competi- tiva nacional em ambiente globalizado” (Gadelha, Costa e Maldonado, 2012, p. 21).
Nesse sentido, prosseguem os idealizadores do CEIS, a fim de “superar a vulnerabili- dade sanitária do SUS”, de modo que “o sistema de saúde brasileiro atenda à deman- da da população, é necessária a expansão da base produtiva da saúde e a consolida- ção de uma dinâmica de inovação endógena ao País” (idem, p. 23).
Todavia, há riscos consideráveis nessa empresa, conforme nos faz lembrar Celso
Furtado, e isto, como dito antes, não é de modo algum ignorado pelos proponentes
do CEIS, como se lê na profusa literatura em torno do tema – o que lamentavelmente
não impediu que tais ameaças deixassem de ser problematizadas com a merecida
12 atenção no documento base do congresso (por quê?). É bastante conhecido pelos partidários do CEIS que “a transposição direta deste padrão tecnológico-produtivo para os países da periferia, desdobra a dualidade verificada na arena internacional para dentro das sociedades locais, reforçando a situação da desigualdade no acesso e no descompasso entre a estrutura da oferta e da demanda da sociedade. Em países como o Brasil, esta dinâmica das inovações e do conhecimento acentuam e se mos- tram funcionais para um nível de desigualdade da renda muito perverso” (Gadelha, 2007, p. 9). Em linhas gerais, pois, o grande perigo que paira sobre o CEIS é de que não seja possível harmonizar as demandas sociais por bens e serviços em saúde e os interesses capitalistas envolvidos no desenvolvimento tecnológico-industrial nesta área tão propícia ao processo intensivo de acumulação.
Diante disso, o que propõe a “nova utopia” desenvolvimentista do CEIS? Resu- midamente, que, “Para reverter essa situação é necessário que o processo de incorpo- ração tecnológica seja regulado pelo governo para promover sua racionalidade, ade- quando-o às necessidades de saúde da população e não simplesmente a interesses meramente comerciais” (Gadelha, Costa e Maldonado, 2012, p. 26). Parte-se do pres- suposto de que “o caráter sistêmico do CEIS, ao relacionar as dimensões social e pro- dutiva, apresenta potencial para a superação da dicotomia observada entre a lógica econômica e a sanitária no que se refere a políticas de desenvolvimento para a saúde.
Ao contrário de antagônicas, essas duas dimensões são complementares, uma vez que para que o sistema universal de saúde atenda às crescentes demandas sanitárias da população é necessária a expansão de sua base produtiva” (idem, p. 28).
O argumento é nitidamente circular e beira à tautologia: se o SUS necessita de
uma base produtiva para atender às necessidades da população e esta base só está
disponível através dos mercados, logo estão dados os fundamentos para a superação
da dicotomia entre a lógica econômica e sanitária, bastando, para que a mágica acon-
teça (e os ingredientes mercantis e sociais da poção encantada do CEIS diluam os
antagonismos em complementariedade), que saquemos a varinha de condão do Es-
tado, e... puf!... faça-se a “articulação virtuosa entre a dimensão social e a econômica
da saúde”. Afinal, “Cabe ao Estado nacional mediar os diferentes interesses com o
13 objetivo de estabelecer uma agenda virtuosa na geração e incorporação de inovação e na reconfiguração dos serviços em saúde (...)” (idem).
1É preciso que se diga que esta fórmula ilusionista foi proferida em tempos idos quando se acreditava que “a conjuntura atual estimula a articulação virtuosa entre po- líticas de saúde universais e integrais e aquelas direcionadas ao adensamento do Sis- tema Nacional de Inovação em Saúde (SNIS) e de sua base produtiva (CEIS)” (idem). E hoje, com a atual conjuntura, como fica essa utopia? Possui ela ainda algum substrato material? Ao que parece, lendo o documento que embasará as discussões sobre o futuro da Fiocruz no próximo congresso interno, ela se mantém firme e inabalável. A despeito das várias considerações sobre a grave crise nacional e internacional em que estamos metidos, o tom geral do documento é de surpreendente otimismo e idealis- mo.
Lá aprendemos que “O momento é de oportunidade para a atualização do desa- fio institucional, com foco na transformação digital, na revolução científica e tecnoló- gica em curso, orientados pela preparação da instituição para enfrentar as mudanças no quadro demográfico e epidemiológico, pela preservação e avanço do SUS frente aos desafios atuais e do futuro e pelo fortalecimento da ciência, tecnologia e inovação a serviço da sociedade brasileira” (Fiocruz, 2021, p. 16). E o CEIS, onde ele entra nes- se “momento de oportunidade”? “O Complexo Econômico e Industrial da Saúde (CEIS) tem significativa importância nacional não apenas no seu papel de garantir o acesso a insumos para a população e sustentabilidade do SUS como também na agenda de desenvolvimento nacional. Portanto o CEIS representa as dimensões social e econômica, produzindo impacto no PIB, tendo reflexo na geração de empregos e na competitividade nacional” (idem, p. 8). Mas seria tudo isso possível mesmo no atual cenário de agravamento das disparidades internacionais com o advento da quarta revolução industrial? Claro, “O CEIS 4.0 tem potencial para ser o motor socio- industrial tecnológico da economia brasileira. É necessário que o Brasil desenvolva urgentemente uma indústria de saúde forte e inovadora alicerçada nas modernas tec-
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