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PSICANÁLISE E MEDIAÇÃO: UMA ARTICULAÇÃO ENTRE A ÉTICA E A TEORIA DO GOZO

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PÓS GRADUAÇÃO LATO SENSO

COGEAE

PSICANÁLISE E MEDIAÇÃO: UMA ARTICULAÇÃO ENTRE A

ÉTICA E A TEORIA DO GOZO

Tamara Dias Brockhausen

Orientadora: Profa. Dra. Sandra Dias

Monografia apresentada como parte dos requisitos para o certificado do curso de especialização: “Psicanálise e Linguagem: uma outra psicopatologia”

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SUMÁRIO

RESUMO...3

I INTRODUÇÃO...5

II O CAMPO PSICANALÍTICO: SEUS FUNDAMENTOS 2.1. O CONCEITO DE GOZO EM LACAN...11

2.2. A ÉTICA DA PSICANÁLISE...28

III MEDIAÇÃO: 3.1. MODELOS DE MEDIAÇÃO...47

3.2. CONCEITOS E PRINCÍPIOS DA MEDIAÇÃO...49

3.3. ATRIBUÍÇÕES DO MEDIADOR...52

3.4. O PROCESSO DE MEDIAÇÃO...54

3.5. O ENFOQUE TRANSDISCIPLINAR DA MEDIAÇÃO...57

3.6. A MEDIAÇÃO NO FORO DE SANTANA...59

IV CASO DE MEDIAÇÃO...64

V ANÁLISE DOS RESULTADOS DA MEDIAÇÃO SOB A ÉTICA DA PSICANÁLISE 5.1. PRIMEIRO ENCONTRO...102

5.2. SEGUNDO ENCONTRO...103

5.3. TERCEIRO ENCONTRO...105

5.4. QUARTO ENCONTRO...107

5.5. QUINTO ENCONTRO...107

5.6. SEXTO ENCONTRO...109

5.7. SÉTIMO ENCONTRO...110

5.8. OITAVO ENCONTRO...112

5.9. NONO ENCONTRO...113

5.10. DÉCIMO ENCONTRO...115

IV. CONCLUSÃO...117

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Tamara Dias Brockhausen: Psicanálise e mediação: uma articulação entre a ética e a teoria do gozo. 2006.

Orientadora: Profa. Dra. Sandra Dias

Palavras-chave: psicanálise, mediação jurídica, modelo transformativo, vara da família

RESUMO

Cada época na historia da humanidade inventou uma forma de solucionar conflitos de acordo com suas crenças e costumes. Foi na mudança de paradigma das teorias e práticas das ciências modernas que surgiu a mediação como solução alternativa de conflito. Ela é um instrumento recente capaz de transformar os modelos de pensamento que não mais se adequam a realidade complexa da atualidade. Neste novo modo de pensar o conflito não é visto como bom ou mal, estas seriam apenas formas de encará-lo, modo este que pode agudizar o conflito, produzindo verdadeiras guerras. Surge então a mediação com técnicas de manejo para a busca de novas soluções. Quando as pessoas decidem abandonar os processos formais e adotam a mediação, um processo mais informal, há o abandono de posições rígidas.

É exatamente nesse ponto da Mediação que é possível fazer uma articulação com a psicanálise: ao visar o conflito e propor instrumentos para sua elaboração para evitar sua reedição ela se aproxima do ponto central da teoria freudiana assentada sobre o conceito de conflito e de elaboração.

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dimensão que permite ultrapassar as paixões de amor e ódio que comparecem nas disputas entre o eu e o outro, disputas narcísicas e mortíferas porque na rivalidade se exige o reconhecimento de sua posição desejante na negação do desejo do outro (Lacan, 1979, 309), isto é : aniquilando a posição subjetiva do outro, transformando-o em objeto de gozo. É por isso Lacan redefiniu o Inconsciente como discurso do Outro, lugar no qual se localiza seu desejo é que é acessível pela função narrativa/discursiva, isto é: a retomada da história para eliminar as cristalizações imaginárias e simbólicas que impedem a criação do novo e acesso à verdade desejante. Para o mediador a história de vida é criada por ele próprio e ao mesmo tempo criadora dele, o que nos permite estabelecer o paralelo com a psicanálise.

O trabalho portanto, pretende relacionar a prática e teoria da mediação transformativa com os conceitos de ética e gozo em psicanálise através do referencial teórico de Freud e Lacan.

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I. INTRODUÇÃO

Cada época na historia da humanidade inventou uma forma de solucionar conflitos de acordo com suas crenças e costumes. Tomemos como exemplo a comunidade dos bosquímanos (Ury, 2000) que vive no deserto de Kalahari. Durante a briga, os amigos e parentes são convidados a uma conversa pacificadora com os disputantes. Um membro da comunidade relata que todos se evolvem muito e sempre podem falar o que desejam, levando algumas vezes dias para resolverem a contenda. Os membros se empenham em descobrir quais as regras sociais desrespeitadas que levaram a atual situação e o que é necessário para restabelecer a harmonia social. Há um tribunal popular, mas o veredicto não é dado pelo juiz, a decisões são tomadas em consenso de tal forma que ambas as partes aceitem e a comunidade também. Eles não se retiram enquanto não tomarem uma decisão.

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possíveis, dificulta a relação entre as pessoas e gera custos econômicos, afetivos e relacionais” (1999, 17).

A mediação nasceu na década de 70 nos Estados Unidos como uma nova instituição encaminhada à solução alternativa de conflitos. Ela parece inicialmente atrelada ao movimento de “acesso à justiça” que impulsionou o sistema judicial a implementar mecanismos ágeis capazes de desafogá-lo. Seu crescimento foi tão rápido por causa dos bons resultados que foi incorporada legalmente, até mesmo obrigatoriamente, em alguns estados. A Grã Bretanha desenvolveu a mediação consecutivamente aos Estados Unidos devido o fato ter a mesma língua como instrumento e teve seu encorajamento decorrente do movimento “Parents Forever”. Em 1978 já havia o primeiro serviço de mediação familiar, que espalhou o movimento para o resto deste país, em seguida, a Austrália e o Canadá implementaram serviços de mediação. Em 1997 o governo de Quebec promulgou uma lei que crianças e casais envolvidos em conflito familiar teriam acesso a sessões gratuitas de medição.

Por intermédio da língua francesa usada no Canadá, a mediação chega à França em 1980 e poucos anos mais tarde é regulada nos termos da lei. A França foi responsável pela estruturação da mediação no campo da interdisciplinaridade. Ali, o pensamento binário foi substituído pelo pensamento ternário. No pensamento binário ou clássico (cartesiano) a alternativa se resume entre certo ou errado, bom ou mal, culpado ou inocente, procedente ou improcedente. No pensamento ternário há possibilidade de alternativas em virtude de ser levada em conta a diferença dos protagonistas (costumes, cultura, crenças, etc).

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construtivas. O relatório final incluía um valioso resumo dos princípios para uma cultura de paz (transcrito na monografia Cultura de Paz).

Há uma necessidade de o homem ser compreendido de acordo com um novo paradigma que leve em consideração os fenômenos contemporâneos. Nesse sentido a atenção para novos modelos de pensamento vêem se disseminando principalmente em relação a questão das relações humanas (violência exacerbada, novos modelos de famílias, o sistema jurídico como meio legítimo de resolução de conflitos, guerras, etc). Essa complexidade da era moderna se inclui também na dinâmica dos conflitos que para serem resolvidos requerem novos sistemas, ou seja, mediações que auxiliem as partes na busca de seus interesses reais, por meio de um trabalho cooperativo. Isso implica em recuperar poderes individuais, soberania de vontades e na conseqüente retomada da responsabilidade sobre o desfecho de litígios e disputas, antes transferidas a juízes, advogados e árbitros.

A mediação como um novo instrumento capaz de transformar o modelo antigo das ciências e práticas se faz extremamente importante no mundo todo. Quando as pessoas decidem abandonar os processos formais e adotam a mediação, um processo mais informal, há o abandono de posições rígidas. O protagonismo tão falado é a capacidade de fazer-se responsável pelas próprias ações e conseqüências. Assim a mediação parte do pressuposto que as pessoas são capazes de enfrentar e solucionar seus próprios conflitos, já que foram elas mesmas que criaram. É nesse sentido que a chance de sucesso de resolução de um conflito aumenta pois diminui as chances de reedição da disputa.

É exatamente nesse ponto da Mediação que é possível fazer uma articulação com a psicanálise: ao visar o conflito e propor instrumentos para sua elaboração para evitar sua reedição ela se aproxima do ponto central da teoria freudiana assentada sobre o conceito de conflito e de elaboração.

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causaria mal estar, dor ao eu. Mas o recalque tem como preço a repetição indefinida do conflito porque a pulsão não cessa de insistir porque esta foi situada por Freud como uma força constante, impossível de eliminar e como motor do aparelho psíquico. Ao colocar a pulsão na origem do desejo, Freud a instituiu como o fundamento da repetição que se constata na neurose porque o neurótico ao recalcar o desejo sexual estaria condenado a repetição infinita visto que o desejo é indestrutível. A indestrutibilidade do desejo na teoria freudiana se liga ao fato dele ser movido por uma força do qual não se pode fugir e que só se elabora ao se traduzir/ inscrever no aparelho psíquico através de representantes: a pulsão. O destino da pulsão sendo a inscrição em traços mnésicos /representantes implica em que a repetição é o movimento em direção a captura da pulsão pelo representante o que Lacan denomina de significante e constitui o simbólico. Isto é: a repetição só cessa se for elaborada, inscrita na cadeia de representantes pulsionais, no sistema significante que constitui a ordem simbólica.

Lacan segue a orientação técnica coloca por Freud e que pode ser resumida através da frase: o que o sujeito não recorda do que esqueceu e recalcou, expressa-o pela atuação (acting-out), “ele reproduz não como lembrança mas como ação, repete-o, sem naturalmente saber que o está repetindo” (Freud, 1914, 196). O sujeito repete ou atua ao invés de recordar e repete sob condições da resistência ; repete tudo, sua inibições, traços patológicos, atitudes inúteis e seus sintomas (Freud, 1914, 198). Freud aconselha que o primeiro passo para superar as resistências é revelar a resistência, uma vez que o sujeito a desconhece, para que ele se familiarize com ela, sendo esta a diferença crucial entre a psicanálise e outros tratamentos, pois é a parte do trabalho que efetua as maiores mudanças.

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captura seu eu, ali onde ele se vê como objeto amado que representa o eu ideal: o ideal de máxima perfeição (Lacan 1979, 156). O sujeito toma sua imagem da relação com o outro, isto é; “o eu é aprendido numa certa referencia ao outro, que é uma referencia falada. O eu nasce em referência ao tu” (1979, 193) mas ignora que o semelhante encarna o Ideal do Outro. É essa ignorância que existe na relação narcísica eu-outro, que se torna o ponto de onde se origina a agressividade ao semelhante, porque no narcisismo a relação sendo dual, se um ocupa o lugar do eu ideal o outro fica excluído, um ocupa o lugar do mestre e o outro do escravo, relação mortífera, pois que havendo lugar só para um, a luta só acabará com a aniquilação de um dos elementos do par. (1979, 175).

A dimensão simbólica “a que define a posição do sujeito como aquele que vê” (Lacan, 1979, 165) e é a dimensão da palavra, é uma dimensão ternária porque entre eu e o outro há um elemento de mediação que é a palavra, permitindo que a relação intersubjetiva não se encaminhe para o domínio da agressividade. Lacan postula que a palavra é “a função simbólica que define o maior ou menor grau de perfeição, de completude, de aproximação do imaginário” (1979, 165) e é com “a dimensão da palavra que cava no real a verdade” (1979, 261). Esse terceiro elemento que se interpõe entre a díade narcísica eu-outro é o que Freud nominou como Ideal do Eu e que Lacan aponta que “comanda o jogo das relações de que depende toda a relação ao outrem, sendo que dessa relação ao outrem é que depende o caráter mais ou menos satisfatório da estruturação imaginária” (Lacan, 1979, 165).

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de sua posição desejante na negação do desejo do outro (Lacan, 1979, 309), isto é: aniquilando a posição subjetiva do outro, transformando-o em objeto de gozo. A análise não visa a reconstituição narcísica do sujeito mas a enunciação da palavra incluída num discurso que revela ao sujeito os significantes recalcados de sua história que apontam seu desejo e sua alienação no desejo do Outro, permitindo-lhe uma separação dos Ideais do Outro fixadas em imagens e palavras que o cativaram e levam a situar o outro no lugar do estranho e hostil. Também na mediação objetiva-se inserir o sujeito numa narrativa porque só a recolocação de uma narrativa alternativa permite a resolução do conflito uma vez que se postula que há uma história primária que geralmente coloniza as outras histórias que ficam periféricas, histórias que devem ser retomadas para ser criada uma história alternativa e mais flexível onde haja lugar para o reconhecimento da outra parte.

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II. O CAMPO PSICANALÍTICO: SEUS FUNDAMENTOS

2.1. O CONCEITO DE GOZO EM LACAN

Para estabelecer a relação do trabalho de mediação com a ética em Psicanálise é necessário estabelecer uma articulação que leve em consideração o conceito de gozo, conceito pilar nas questões relativas ao sujeito e seus atos. Na releitura da obra freudiana, Lacan distingue a palavra lust (prazer) e genuss (gozo) e passa a utilizar o termo gozo, não mais no sentido da língua corrente, elevará a palavra gozo ao estatuto de conceito que apresentará diversas formalizações, muitas vezes opostas, em função dos diferentes momentos de sua articulação teórico - clinico.

O gozo como conceito não é assimilável à idéia de sensação de prazer apesar de poder estar vinculado a este significado, mas mais frequentemente ele se liga ao desprazer, de forma que se pode afirmar que o gozo não é o prazer. Lacan não retira o termo gozo do dicionário ou da obra freudiana, ele o recorta e elabora até chegar à sua transformação de conceito central em oposição ao desejo influenciado pela filosofia do direito de Hegel, onde o gozo aparece “como algo que é subjetivo, particular, impossível de compartilhar, inacessível ao entendimento e oposto ao desejo que resulta de um reconhecimento recíproco de duas consciências e que é objetivo, universal, sujeito à legislação” (Braustein, 1990, 15). Assim o gozo é aquilo que permanece fora da legislação já que fora da relação possível com os outros, uma experiência subjetiva difícil de ser transmitida. E cita Hegel: “Se digo que gosto de algo ou se me remeto ao meu gozo, expresso somente que a coisa vale assim para mim. Com isso, suprimi a relação possível com os outros, que se baseia no entendimento” (Braunstein, 1990, 16).

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gozo postulado a partir do conceito de das Ding apresentado no texto “ Projeto de uma psicologia científica”. Neste texto, Freud distingue a Sachevorstellung da Dingvorstelungen, enquanto a primeira é da ordem do simbólico, a das Ding se situa em outro lugar, é o fora-do-significado (1988,71), ponto limite além do Lust/Unlust (1988, 77), real lacaniano.

Freud introduziu a Coisa (das Ding) no Projeto para uma Psicologia Científica (1895) para teorizar sobre a lógica da origem. A Definição Freudiana de Coisa segundo Kaufmann (1996): ela opera como eixo em torno do qual se constitui o advento de um sujeito como corpo e como ser falante. A estrutura da linguagem não apreende o corpo porque ele passa necessariamente pela imagem do corpo do Outro e ela se deixa escapar a si mesma para instituir o sujeito como ponto onde essa falta se configura. Ela aparece para o sujeito como objeto absoluto inatingível, é ela que atesta para o sujeito do inconsciente que só há verdade parcial. Assim Lacan dirá que a Coisa é o real do qual o significante padece. O encontro com o real envolve essa coisa impossível de dizer e de delinear e que despertaria a ilusão de uma verdade que se mostraria. O sujeito atribui à Coisa o marco mítico em que se apóia todo o trabalho de seu aparelho psíquico. É em razão do encontro faltoso com a Coisa que a pulsão de morte se exercerá como uma “tendência” a querer encontrar a Coisa através da repetição, quando aquém da reinstauração do desejo não há encontro com nenhum objeto absoluto.

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regulando tudo que passa ao discurso, no nível do significante, da lei do significante. “Das Ding está justamente no centro, e em volta o mundo subjetivo do inconsciente organizado em relações significantes, “está justamente no centro, no sentido de estar excluído” (Lacan, 1988, 91), e portando deve ser estabelecido como exterior, esse Outro pré-histórico impossível de esquecer, a posição primeira que é alheia, estranho. As vorstellungens se regulam pelo prazer/desprazer o que permite situar o bom objeto – das Gute des objekts, enquanto que “das Ding apresenta-se no nível da experiência inconsciente lugar do incesto e como aquilo que desde logo constitui a lei” (Lacan, 1988, 93). Trata-se de uma lei de capricho, arbitraria, de oráculo também, uma lei de signos em que o sujeito não está garantido por nada, lugar desde onde se organiza a cadeia significante e correspondente ao real do gozo.

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deixa um buraco, um vazio de representação, furo que é o índice de que na realidade das Ding deve ser estabelecida como exterior.

Freud, na primeira teoria pulsional afirma que os cursos do processo de excitações na vida mental são dominados pelo princípio do prazer (que este é o funcionamento primário do aparelho), ou seja, o aparelho se esforça para manter a quantidade de excitação mínima, ou pelo menos mantê-la constante. Em 1920, Freud faz uma nova constatação, de que não é possível falarmos na dominância do princípio do prazer sobre o curso dos processos mentais, pois se assim fosse os processos mentais deveriam ser acompanhados de prazer ou pelo menos conduzir a este. Ele observa que algumas situações desagradáveis são impostas pela mente aos sujeitos em algumas situações, alguns sonhos trazem de volta as situações que desencadearam traumas. Freud se indaga a respeito deste caráter de repetição da experiência desagradável visto que o aparelho mental por ele construído era dominado pelo princípio do prazer. Como poderia a repetição da experiência aflitiva harmonizar-se com o princípio do prazer? Ele conclui que a repetição deste desagradável gera certo tipo de prazer. Ele dá um exemplo de pessoas que em todas as relações humanas tem o mesmo resultado, condenados a comprovar o mesmo final, Freud fala em “perpétua recorrência da mesma coisa” (1920, 36). Assim ele afirma que existe na mente uma compulsão à repetição que sobrepuja o princípio do prazer dando impressão de uma força demoníaca pelo caráter pulsional em alto grau.

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dualismo das pulsões: pulsão de morte x pulsão de vida, em que essa segunda teoria pulsional, situa as pulsões de auto-conservação e sexuais no interior da pulsão de vida (cuja energia é a libido) , que por sua vez se subordina à pulsão de morte (cuja energia é a destrutividade).

A pulsão de morte considerada como pulsão destruição é definida por Freud em Mal Estar na Civilização (1930) como uma disposição autônoma, originária do ser humano, pura dispersão que se situa fora do espaço de representação. Ela opera de modo silencioso e invisível, é um principio disjuntivo, separador das unidades que Eros busca unificar, implica numa destrutividade e agressão não erótica. “Ao lado do instinto para preservar a substância viva e para reuni-la em unidades cada vez maiores, deveria haver outro instinto, contrário àquele, buscando dissolver essa unidades e conduzi-las de volta a seu estado primevo e inorgânico. Isso equivaleria dizer que, assim como Eros, existia também um instinto de morte (Eros x Thanatos). Lacan ressitua Eros e Thanatos na teoria pulsional como força que insiste e que se repete configurando o Real, o irrepresentável.

Das Ding não pertence ao espaço representacional, não habita o aparato psíquico, isto é no nível das vorstellungens algo permanece de não assimilável, um interior excluído em torno do qual as organização psíquica faz mas aí faz presença embora ausente. Mas contudo algo a nível das vorstellungens (dos significantes) sinaliza a coisa, esse vazio que não pode ser preenchido por adequadamente por nenhum objeto, Lacan denomina esse índice ou testemunha de das Ding como objeto perdido, esse furo, esse vazio, o objeto a. A Coisa materna, o exterior, o real primordial, aquilo de que padece o significante (Lacan, 1988, 149), velada por sua natureza, em seus “reachados”, é representada por outra coisa. Ela é assim procurada nas vias do significante (Lacan, 1988, 149) . Dessa forma, Lacan articula o gozo ao significante.

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ainda complementa dizendo que: “A tarefa de evitar o sofrimento relega a segundo

plano a de obter o gozo” (1930, 71). No texto Além do Princípio do Prazer, Freud afirma “impressões frequentemente dolorosas que são, no entanto,

fonte de intenso gozo” (1920, 19) o que permiteconcluir que o principio de prazer funciona como um limite ao gozo. Sendo assim, na obra de Freud o princípio do prazer é exatamente um princípio de não-desprazer por barrar o caminho ao gozo. Lacan conclui que “O gozo é um mal”, é um mal porque comporta o mal do próximo (1988, 225) seguindo o texto de 1930, onde Freud discute um dos ideais da sociedade civilizada “Amarás teu próximo como a ti mesmo”, exigência que vai contra a própria natureza humana que fundada sobre a satisfação pulsional, para o homem o próximo, é “não apenas, um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que o tenta a satisfazer sobre ele sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utiliza-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, tortura-lo e mata-lo” (Freud, 1930, 133). Freud situa uma agressividade, destrutividade e crueldade não erótica fundamento mesmo da natureza humana, por ser habitada pela pulsão de morte; enquanto a pulsão de vida – Eros, “preserva a substância viva para reuni-la em unidade cada vez maiores” , há uma outra pulsão contrária, “buscando dissolver essas unidades e dissolver essas unidades em conduzi-las de volta a seu estado primevo e inorgânico” (1930, 141). A pulsão de morte é uma pulsão silenciosa que desviada do mundo externo, vem à luz como pulsão de agressividade e destrutividade, “a hostilidade de cada um contra todos e de todos contra cada um”, se opõe ao programa da civilização (Freud, 1930, 145).

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pela ação do supereu , tem como efeito o sentimento de culpa, e no plano social gera um mal estar, uma insatisfação permanente pela renuncia feita, preço pago pelo convívio social. A civilização também regula o modo como se dão os relacionamentos entre os homens, isto é: os relacionamentos sociais. “A vida humana em comum só se torna possível quando se reúne uma maioria mais forte do que um indivíduo isolado e que permanece unida contra todos os indivíduos isolados”. “O poder dessa comunidade é então estabelecido como direito, em oposição ao poder do indivíduo, condenado como força bruta”. “A substituição do poder do indivíduo pelo poder de uma comunidade constitui passo decisivo da civilização” (Freud, 1930, 115) “A primeira exigência da civilização, portanto, é a da justiça, ou seja a garantia de uma lei, uma vez criada, não será violada em favor de um indivíduo” (Freud, 1930,116). Restringindo o gozo se encontra a lei.

Assim Freud funda o gozo sobre a lei. É uma lei que ordena ao sujeito gozar o menos possível, ao mesmo tempo em que o sujeito tenta constantemente transgredir as proibições impostas ao seu gozo, e ir mais além do princípio do prazer. Não obstante, o resultado de transgredir o princípio do prazer não é mais prazer sem dor, posto que o sujeito só pode suportar certa quantidade de prazer. Mais adiante deste limite, o prazer se converte em dor, e este prazer doloroso é o que Lacan determina de gozo: “gozo é sofrimento” (1988, 184). “O termo gozo expressa perfeitamente a satisfação paradoxal que o sujeito obtém de seu sintoma, ou para dizer em outras palavras, o sofrimento que deriva de sua própria satisfação (o ganho primário da doença) nos termos de Freud.” (Evans, 1997,103)

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inspirando-se no mito do pai totêmico freudiano. Nesta teoria a idéia central é a de um gozo absoluto possível ao pai primevo, gozo mítico de um pai violento e ciumento que guarda para si todas as mulheres e expulsa os filhos homens à medida que crescem (Freud, 1913, 152). Um pai que goza de todas as mulheres e que é morto pelos filhos. Uma vez morto esse pai é incorporado numa refeição totêmica: “O violento pai primevo fora sem dúvida o temido e o invejado modelo de cada um do grupo de irmãos , e pelo ato de devorá-lo, realizam a identificação com ele, cada um deles adquirindo uma parte de sua força” (Freud, 1913, 170) . Freud identifica esse como o mais antigo festival da humanidade: uma repetição e comemoração do ato memorável e criminoso que foi o começo da organização social, das restrições morais e da religião.

Esse pai que é exceção e excesso, pai morto será substituído por um totem e cultuado. Assim após seu assassinato, em seu nome é promulgada uma lei:”o que fora interdito por sua existência real foi doravante proibido pelos próprios filhos (...) Anularam o próprio ato proibindo a morte do totem, o substituto do pai; e renunciaram aos seus frutos abrindo mão da reivindicação às mulheres que agora tinham sido libertadas” (Freud, 1913, 172). Do sentimento de culpa filial, se originaram os dois tabus relativos a dois desejos recalcados no complexo de Édipo:o parricídio e o incesto. O sistema totêmico, que iniciou a moralidade humana, se faz assim baseado no pacto com o pai. Esses dois interditos: Não matarás e Não desejarás a mãe, constituindo-se como núcleo fundador da civilização e organização da fatria. Após o assassinato desse pai temido do qual nada se pode dizer “se instaura um consentimento inaugural que é um tempo essencial na instituição dessa lei” (Lacan, 1988, 218), lei vinculada ao crime e identificada à ambivalência que funda as relações do filho com o pai, isto é retorno do amor após o ato. À lei que protege o animal totêmico e a que proíbe o incesto se juntou a lei que proíbe matar o irmão (Freud, 1913, 172).

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interdição” (Lacan, 1988,216). “Todo aquele que se aplica em submeter-se à lei moral sempre vê reforçarem-se as exigências , sempre mais minuciosas, mais cruéis de seu supereu” (Lacan, 1988, 216). O mito da origem da lei se encarna no assassinato do pai porque é de lá que se tiram todos os protótipos que sucessivamente se chamam de animal totêmico, depois de um tal deus e o deus único, Deus, o Pai (Lacan, 1988, 217). Essas figuras encarnam a idéia de que o gozo está proibido e interditado seja pela lei de Deus, seja pela lei dos homens, figura que representam proibições de ordem externa. Mas Lacan destaca no texto freudiano “o retorno do amor após o ato” não como uma coerção externa mas como uma coerção interna ao desejo, como limite interno ao gozo.

Passar a teoria do gozo para o social implica assim na possibilidade de vida em comum, o processo civilizatório, se dá sobre um pacto de renúncia ao gozo. O gozo que se trata de renunciar aqui é, portanto, o gozo de um bem (Lacan, 1988, 93), o gozo da posse das mulheres do pai, gozo proibido aos filhos que levou ao parricídio que gerou a culpa, o remorso e o pacto de exogamia. Aquilo que era imposto pelo pai passa ser regulamentado pelo pacto surgindo a lei, que estipula a interdição do gozo e ao mesmo tempo que só se tem acesso a ele via transgressão. Assim junto com a civilização segue um mal estar: tudo aquilo que transpõe a interdição torna-se objeto de uma divida, daí a culpa. E aquilo que passa do gozo à interdição cai na exigência superegóica “não deves, não faça”. A lei funda a transgressão , a oposição entre a civilização e pulsão institui um paradoxo: quanto mais se renuncia a satisfação da pulsão mas se alimenta o sentimento de culpa. Haveria ai uma satisfação paradoxal, entre prazer e dor, na própria renúncia à satisfação. Para situar essa satisfação paradoxal, Lacan cria o conceito de gozo (1988, 235). Dessa forma Lacan delimita o gozo como diferente do prazer já que ele supõe prazer na dor, opõe o desejo ao gozo em equivalência com o par lei-transgressão; o gozo puro correspondendo a morte, o desejo incluindo um gozo e o mal estar advindo das exigências do supereu.

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desejo a vigorar como lei. A entrada do sujeito no simbólico está condicionada por certa renuncia inicial ao gozo no complexo de castração em que esse sujeito renuncia a suas intenções de ser o falo imaginário para a mãe: “A castração significa que é preciso que o gozo seja recusado, para que possa ser atingido na escala invertida da Lei do desejo”. (Lacan, 1998, 841) Assim “o gozo está vedado a quem fala como tal” (Lacan, 1998, 836); o gozo proibido é um mito criado pelo neurótico pelo fato de ter passado pela estrutura simbólica da linguagem uma vez que é o destino de toda pulsão se inscrever no aparelho, ser capturada pela rede significante, a própria linguagem é que barra o gozo - a descarga total, restauração do principio de Nirvana. O gozo se define como algo fora de medida, excessivo que paradoxalmente guarda relação com a lei, com o pecado, o proibido.

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A teorização lacaniana sobre o gozo ao estabelecer uma relação da lei do incesto com das Ding, onde o principio de prazer entra em ação impondo ao sujeito uma busca incessante cujo fim não pode ser alcançado, permite situar que o objeto do incesto – das Ding, é um bem proibido. O que é interditado é o desejo primordial que circunscreve o percurso do sujeito, devendo o principio de prazer regular a distância do sujeito em relação a “das Ding” (Lacan, 1988, 93). Lacan sublinha “que o passo dado por Freud, no nível do princípio do prazer, é o de mostrar-nos que não há Bem supremo – que o Bem supremo, que é das Ding, que é a mãe, objeto do incesto, é um bem proibido e não há outro bem. Tal é o fundamento, derrubado, invertido em Freud, da lei moral” (1988, 90). Das Ding – a Coisa materna, o objeto proibido na antropologia, o Bem supremo em Aristóteles , o pecado no campo da religião, é o que funda a lei moral.

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Se a lei moral se funda na Coisa, então a lei moral se funda contra o prazer, o conforto, o bem estar. A lei moral tem seu fundamento no gozo, na dor, no além do principio de prazer: “A lei moral como princípio de determinação da vontade, pela mesma razão que ela causa danos a todas nossas inclinações , deve produzir um sentimento que se pode chamar de dor” (Lacan, 1988, 102). O princípio do prazer como princípio do desprazer ou de menos padecer é feito para manter afastada a possibilidade de acesso ao gozo. Assim a repetição encontrada na brincadeira com o carretel, mostra que se retorna sempre ao excesso e ao pulsional, quando se trata de gozo. A repetição do mesmo na brincadeira, da dor teria como função retornar ao traumático ( a separação e perda do objeto) , para captura-lo pelo par significante Fort (Fora) – Da (Aqui), repetição que através da dor permitiria extrair um prazer pelo acesso ao gozo via simbólico. Nesse sentido a lei moral, a instância moral é aquilo por meio do qual, em nossa atividade enquanto estruturada pelo simbólico, se presentifica o real –o real como tal , das Ding, o gozo aqui compensando o sujeito da satisfação não obtida na vida cotidiana.

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apontado no Mal estar, então é a ética sadiana que revela a verdade da ética psicanalítica. Aqui se trata de um sujeito que quer ultrapassar todos os limites impostos pelas leis humanas e realizar os limites últimos do humano, ali onde se procede a aniquilação da ordem simbólica, um retorno a mãe Natureza.

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No seminário XX “Mais Ainda”, Lacan opera uma transferência conceitual da teoria do direito (campo das interdições) e da moral (campo dos deveres) para o campo psicanalítico, constituindo o terceiro momento na teorização do gozo que nos interessa na articulação Psicanálise e Direito. Juridicamente o gozo pode ter duas acepções: como propriedade e como usufruto. Uma no sentido da subjetividade, da experiência íntima, daquilo para o qual não há legislação possível – o sentido de usufruto. E a segunda, pelo contrário, que trata da legislação sobre o gozo, definido sobre a posse de bens e dos vínculos sociais que estabelece: a propriedade. Para se usufruir plenamente de um objeto é necessário que o outro renuncie às suas pretensões sobre esse objeto. Nesse ponto há uma interseção entre o campo jurídico e o campo psicanalítico num espaço comum que é a ética.

É no sentido do Direito que gozar é usufruir de algo. O usufruto no Direito regulamenta o gozo de modo a preservar o bem que se goza. Porém na psicanálise temos uma especificidade, não se trata do gozo do objeto de uma necessidade. Lacan esclarece que ao se considerar a acepção de usufruto deve-se distinguir o útil e o gozo. “O usufruto quer dizer que podemos gozar de nossos meios sem enxovalhá-los”. (1982, 11). Isto significa que se pode usufruir de um bem, uma herança, pode-se gozar dela, à condição de não gastá-la demais. Está aí a essência do direito diz Lacan “repartir, distribuir, retribuir, o que diz respeito ao gozo” (1982,11). Mas o gozo é para Lacan, uma instância negativa : “O gozo é aquilo que não serve para nada” (1982, 11). O direito não é um dever, o que força alguém a gozar é o superego. “O superego é o imperativo do gozo – Goza!” (1982, 11).

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pois a meta do desejo humano é o prazer, isto é, a finalidade na vida é perseguir o prazer e escapar da dor. A teoria de Bentham se opôs as teorias que postulavam uma lei moral que supunha que existiam direitos, deveres e obrigações independentes e anteriores, isto é, algo dado de modo natural. Ele propõe um cálculo hedonista da felicidade para buscar o valor de um bem: a soma dos prazeres contidos numa ação. A ação mais ética é a que expressa uma medição quantitativa mais alta de prazer. Essa quantidade de prazer obtido numa ação é de natureza qualitativa e constitui o seu valor, permitindo então que se meça os benefícios produzidos por uma ação e listar os prejuízos da mesma e deste modo determinar qual a ação produz mais benefícios ou reduz o custo. Como doutrina, o utilitarismo ao distinguir o bom e o útil, situa o bom como o útil para os demais, independente de que coincida ou não com o nosso próprio bem-estar. Enquanto no egoísmo ético o bom é o que responde ao meu interesse pessoal, o bom coincide com o bem estar pessoal, no altruísmo ético , exclui-se o interesse pessoal e só é bom o que responde ao interesse geral assim como valor moral , o bom é o útil ou o proveitoso para o maior numero de homens, entre cujos interesses figura também o meu próprio (Bentham, 1984, 14-34).

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próprio homem, rejeita o princípio ético cristão de “Amar o próximo como a ti mesmo”, rompe com a perspectiva hedonista e afirma que o homem busca um mais além do prazer, que tem a ver com a Coisa – das Ding, o gozo. O bem, Lacan o situa como a barreira que protege o sujeito do confronto com o real do gozo, que comporta o Mal do sujeito.

No livro “Mais, ainda”, Lacan utiliza a teoria das ficções de Bentham porque no estatuto do utensílio, demonstra o valor de uso através da linguagem (1982, 12). O filósofo distingue o valor de troca do valor de uso de um objeto, pois no homem não há necessidades naturais “que determinem naturalmente a produção deste ou daquele objeto para satisfazê-la” (Julien, 1996,44). Os bens são produzidos segundo seu valor de troca e de distribuição entre os semelhantes , e a opinião pública que determina seu valor de uso para cada um. Ou seja, o serviço de bens é um artifício cultural , uma ficção que não sendo nem o ilusório nem o engano, é da ordem simbólica, isto é da ordem da linguagem na medida em que a opinião pública diz o que deve ser, e não o que é. A utilização dos bens se dá na base do direito de privar o outro dos mesmos e por outro lado o privador será o pequeno outro, o semelhante, aquele que é dado na relação com o espelho. Assim o fato de dispor dos bens, institui o direito do outro gozar à sua vontade, conduzindo-nos a dimensão da maldade que lhe é inerente. Por isso Freud sustenta um mal estar na Civilização , segundo Lacan o sintoma na cultura, que desfaz a harmonia postulada por Bentham entre cada indivíduo segundo a lei de maior felicidade para o maior número. A filosofia utilitarista não realiza seu ideal – a felicidade porque existe algo, num mais além, que lhe escapa: o que é recusado pela cultura: o gozo (jouissance). Em síntese: o valor de gozo de um bem não está no nível do uso mas está ligado ao fato do homem poder dele dispor, dispor de seus bens, é ter o direito de privar dos outros e se liga ao poder. O gozo sendo então “aquilo que não serve para nada” (Lacan, 1982,11).

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não gasta-la demais. É nisso mesmo que está a essência do direito – repartir, distribuir, retribuir, o que diz respeito ao gozo” (1982, 11). O uso é o poder que o outro tem de gozar de seus bens, isto é de dispor deles como bem lhe aprouver, sem prestar contas a quem quer que seja. Essa despesa, esse gasto não utilitários, esse direito de gozar a seu bel prazer, tem uma parte maldita, “que se afigura como o direito de me privar” (Julien, 1996, 45). O gozo do Outro para além de seu bem não está sujeito à partilha, mas a privação. Vivo o Outro em pleno gozo como tendo a intenção de me privar, um gozo que suponho nele a partir de meu olhar (invidia) o que não me permite amá-lo por estar na posição de um privador e não de um semelhante com quem possa me identificar, meu próximo quer o meu mal. Mas essa maldade que o outro comporta nada mais é do que o gozo que desconheço em mim, verdade que me leva a querer o mal do outro.

Com o conceito de gozo Lacan operou a passagem da libido à pulsão de morte e à agressividade , permitindo então que esse conceito unifique a libido e pulsão de morte, como um nó que constitui a clivagem interna do sujeito. O gozo em si é destruição, destruição que impõe a repetição e a criação e não tem estatuto de utilidade como um bem, retomando-o no seminário “Mais, ainda, para situá-lo como outra satisfação, satisfação que se sustenta da linguagem (Miller, 1999, 167). O direito ao gozo é diferente da obrigação ao gozo, isto é, do dever, este é função do supereu. O supereu “é o imperativo do gozo – Goza! ( Lacan, 1982, 11). Relendo o mal estar na cultura como um mal no sentido que comporta o mal do próximo, e que o valor de uso é a linguagem, Lacan marca a distinção da ética psicanalítica que não se baseia num Bem supremo, afirmando que não há linguagem do ser, no sentido de que a linguagem não tem garantia última para a verdade do ser.

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há puro prazer, só há diferentes regimes do gozo; mesmo no nível homeostático, o prazer supõe a inscrição significante, mesmo o gozo a nível do corpo supõe o significante (Miller, 1999, 168). Gozo do corpo e gozo significante estão conectados, são duas do mesmo gozo. A tese no seminário XX aponta que não há gozo antes do significante. Coloca-se como questão fundamental diante da questão da posse, a propriedade primeira de cada sujeito, seu corpo e as relações desse corpo com o corpo do outro tal como é assegurado por um discurso e laço social. Segundo Braunstein, cabe então a pergunta: “meu corpo me pertence ou está consagrado ao gozo do Outro, de um Outro do significante e da lei que me despossui desta propriedade” (1990,14). A teoria do direito teria entre suas atribuições a regulação das restrições impostas ao gozo dos corpos, regularia portanto o contrato social e os limites do uso do corpo do outro e de seus bens. Se o liame social se funda sobre a renúncia à satisfação da pulsão, é exatamente porque esta implica o gozo, aqui no sentido jurídico do termo, de objetos que poderiam pertencer a outros, ou privá-los, a esses, de seu gozo, o que situa o gozo no campo do Outro.

2.2. A ÉTICA DA PSICANÁLISE

Freud rejeita a suposição da existência de uma capacidade original do homem de distinguir o bem do mal, ele acreditava que os juízos éticos não estavam fundados na razão mas sim nos “desejos” de felicidade dos homens constituindo uma tentativa de apoiar com argumentos as suas ilusões. A questão da felicidade para Freud relaciona-se antes à economia da libido do que a regras éticas que assegurem, pelo seu exercício, o advento do “Supremo Bem”.

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tudo – seja pessoa ou lugar, uma coisa ou uma condição transitória – que é o veículo ou fonte deste misterioso atributo. Também denota as proibições advindas desse mesmo atributo” (Freud, 1913, 42) e ainda apresenta as características de sagrado, acima do comum, perigoso, impuro e misterioso. As duas leis básicas do totemismo são: não matar o animal totêmico e evitar relações sexuais com membros do clã totêmico do sexo oposto (Freud, 1913, 52). A violação das proibições e dos tabus constituem um perigo social que deve ser punido ou expiado por todos os membros da comunidade. O tabu é uma proibição primeva forçosamente imposta de fora e dirigida contra os anseios mais poderosos a que estão sujeitos os seres humanos. O desejo de violá-los persiste no inconsciente (Freud, 1913, 55).

Freud estabelece um paralelo entre o tabu, uma instituição social e uma criação cultural e a neurose a partir da semelhança entre as proibições dos tabus e os princípios morais (1913, 93). A neurose e a sociedade, ambas se assentam sobre desejos poderosos e proibidos porque ameaçam a sociedade - os desejos incestuosos: dormir com a mãe e matar o pai porque ambas são edificadas sobre proibições. Ele estabelece a tese de que onde há algo proibido, há algo desejado (1913, 91), isto é: onde há proibição, há um desejo subjacente, ele afirma que a existência de uma lei como o incesto ou de um mandamento como “Não matarás” não seria necessária se não houvesse o desejo de cometê-los (Freud, 1913, 92), se existem é porque os desejos sexuais são poderosos e trazem discórdias aos homens. A consciência moral é que faz com que os homens obedeçam às leis e é “a percepção interna de um determinado desejo a influir dentro de nós” (Freud, 1913, 90)

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imperiosamente satisfação, e as restrições da moral civilizada e conclui que a civilização é erigida sobre a renúncia das pulsões e dissemina a neurose (Freud, 1930, 118). Mas a moral não é o único fator responsável pela não satisfação da pulsão: “Algo de nossa própria constituição psíquica que nega satisfação completa e nos incita a outros caminhos” (Freud, 1930, 126) É a própria pulsão que é atribuída a impossibilidade de satisfação completa, o princípio do prazer não tem nenhuma chance de se realizar. Para Freud a moralidade não é algo que no âmbito das relações sociais se sobrepõe aos desejos individuais com um caráter repressivo, a necessidade da moral está inscrita na própria constituição psíquica do homem, na sua forma específica de obter satisfação, o que lhe permite ultrapassar a oposição simples entre indivíduo e sociedade.

Freud vincula a satisfação pulsional à relação do sujeito com o próximo. Através do semelhante, do próximo, se dá a primeira apreensão da realidade para o sujeito. Parafraseando Freud: “um outro ser humano (...) semelhante foi, ao mesmo tempo, o primeiro objeto hostil e também sua única força auxiliar. É por esse motivo que é em seus semelhantes que o ser humano aprende a (re) conhecer” (1895, 438). Assim o sujeito humano está indelevelmente marcado pela relação com o outro e por isso ele afirma que o desamparo inicial “é a fonte primordial de todos os motivos morais” (1895, 439). É o registro da alteridade que se institui simultaneamente ao da formação subjetiva, alteridade essa, que não se restringe à presença do outro semelhante, mas indica algo mais radical – que esta presença encobre e desvela ao mesmo tempo o complexo do próximo.

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de esquecer apontado por Freud no projeto (1895) que jamais é igualado por ninguém posteriormente. Esse Outro, alteridade radical cujo fundamento é a Coisa (das Ding), assimilável no reconhecimento do próximo, e que comanda o desejo do sujeito. Esta é a via explorada por Lacan para falar de uma ética da psicanálise: das Ding, a coisa freudiana, ou a causa freudiana, causa do desejo. A lei fundamental em psicanálise é a lei da interdição do incesto, e a lei do incesto situa-se na relação do inconsciente com das Ding (Lacan, 1988, 86-87), lugar onde se situa o real, enquanto que o lugar Sache é a coisa colocada na questão jurídica, ou no nosso vocabulário, a passagem à ordem simbólica de um conflito entre os homens (Lacan, 1988, 59). Das Ding, esse Outro pré-histórico, alheio e exterior, o qual o sujeito tem que estar à uma certa distância, “apresenta-se no nível da experiência do inconsciente como aquilo que desde logo constitui a lei” (Lacan, 1988, 93), mas uma lei do capricho, uma lei arbitraria, lei de signos em que o sujeito não está garantido. Das Ding, como lugar primeiro, a que sempre se retorna, é o lugar desde onde se elabora a ética (Lacan, 1988, 96). “A lei moral se articula com a visada do real, na medida em que ele pode ser a garantia da Coisa”, tese defendida por Lacan (1988, 97). Das Ding, é tomada no prisma kantiano como a coisa em si, o incognoscível que só se deixa apreender pela representação e como tal permanece, sendo o núcleo do real, do impossível simbolizar, mas que origina toda operação de simbolização.

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novamente, o segundo mal surgiu novamente. Dessa maneira foram impulsionados, para trás e para frente de um problema para outro, até descobrirem uma distância intermediária na qual podiam mais toleravelmente coexistir” (Freud, 128, 1921).

As relações sociais articulam-se, nesse sentido, à constituição subjetiva, o que redimensiona a oposição sujeito x sociedade, levando Freud a afirmar que a psicologia individual é ao mesmo tempo psicologia social. Como diz Assoun (1989, 113) o laço social nesta via da elaboração freudiana, institui-se, assim, não pela disputa ou partilha de algum objeto social, mas se alimenta justamente da falta de objeto. Em Totem e Tabu é sobre o sentimento de culpa derivado do parricídio originário que se funda o laço social, no Mal estar Freud segue a tradição filosófica de Hobbes e Rousseau sobre a origem da sociedade num contrato. Mas a originalidade de Freud é que este contrato é fundado em um crime, uma violência primordial “um ato memorável e criminoso, que foi o começo de tantas coisas: da organização social, das restrições morais e da religião” (Freud, 1913, p170).

A sociedade passa a existir a partir de um ato fundador, inaugural – “no princípio foi o Ato” – do qual deriva o contrato suscitado pelo sentimento de culpa, em virtude do crime cometido em comum e pela necessidade de impedir sua repetição. O contrato não resulta de uma vontade comum racional, que avalia as desvantagens da violência permanente, mas tem raízes inconscientes, na ambivalência que caracteriza a relação dos filhos com o pai, no remorso que surge após o ato, como retorno do amor, nos processos de identificação e idealização que vão nortear o aparecimento da organização social e das leis morais.

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estrutura as relações humanas, à qual nos referimos anteriormente como a Coisa freudiana.

Além disso, não se pode negar que a aplicação de determinados conceitos psicanalíticos à análise das práticas sociais é proveitosa, na medida em que incorpora a dimensão desejante inconsciente, em geral desconsiderada pelos cientistas sociais. O conceito de libido certamente pode ser útil na análise de alguns aspectos dos fenômenos sociais, assim como os conceitos de identificação e idealização. O exame da questão da identidade social, por exemplo, onde a delimitação de um determinado grupo é feita por oposição a outros, pode ser enriquecido pela utilização do conceito freudiano de identificação. Freud observa que a identificação, como processo narcísico, se faz a partir da construção de algum ideal comum, ou mesmo de traços comuns, e pelo recalcamento da hostilidade entre os membros do grupo. Esta hostilidade é desviada para fora, e se situa na origem de diversos tipos de racismo, onde pequenas diferenças assumem um papel importante na distinção de grupos. É o que ele denomina “narcisismo das pequenas diferenças”, que exemplifica através da rivalidade existente entre povos aparentados, como os alemães do sul e do norte, o inglês e o escocês, o português e o espanhol. A construção do “nós” se dá por oposição aos “outros”, o que remete à discussão, no campo da ética, das possibilidades de solidariedade.

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pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes pulsionais se deve levar em conta uma poderosa cota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utiliza-lo sexualmente sem seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilha-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo. ‘Homo homini lupus’” (Freud, 1930, 133).

É em 1930 que Freud dá ênfase a esta face visível da pulsão de morte, que é a agressividade humana, entendida como disposição inata, inclinação original do

homem para a crueldade e para o mal. Em oposição aparente às suas próprias afirmações sobre a inexistência de uma capacidade natural do homem para distinguir o bem do mal, Freud parece alinhar-se aos filósofos que postulam algo a respeito da natureza moral do homem. A noção de pulsão de morte, tratada em diferentes momentos de sua obra após 1920, coloca em pauta a idéia de destrutividade que as observações antropológicas revelam como associada às noções do mal, e indica esse ponto de abismo que aparece sob a forma da inexplicabilidade do mal. Freud admite o lugar de irracionalidade, irredutível, como na referência ao “umbigo do sonho” de onde parte o desejo. Diante dessa racionalidade inconsciente, Freud esbarra nesta célula de irracionalidade que não se submete a nenhuma ordem.

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estabelecidas. A destrutividade autônoma que ele define em o mal estar aparece como disjunção de laços, dissolução de nexos, recusa das permanências subvertendo as forças conservadoras. Assim ela atua como força criadora e produtora da diferenças. A pulsão de vida por outro lado atua no sentido do reforço dos laços, da união dos indivíduos em grupos cada vez maiores pela indiferenciação. Ele aponta para das Ding, a Coisa, esse nada que impulsiona o

desejo, esse “mais além do princípio do prazer”.

A falta de objeto determinado faz com que a sexualidade humana seja perversa por excelência, na medida em que esta ausência abre uma multiplicidade de vias de satisfação parcial, vias essas que são simbólicas. Pode-se pensar a destrutividade como algo que indica basicamente esse ponto de ruptura da ordem simbólica. Para Lacan essa destrutividade não é destrutividade das coisas do mundo mas tem como função principal desfazer laços e por isso mesmo é potência criadora “vontade de criação a partir do nada, vontade de recomeçar”. (1988,153-154). A criação simbólica se dá a partir desse vazio central da coisa. Em relação a este vazio que possibilita a criação que Lacan se refere a ética da psicanálise. “A ética da psicanálise está centrada neste vazio, Real, momento trágico de afirmação da diferença, como ética do desejo” (1988, 338) . Nesse sentido opõe-se a qualquer tipo de universalização moral. Não há nenhum Bem a atingir, como disse Freud.

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Para ele, a ética está além do sentimento de obrigação, do mandamento, da lei e da sociedade, não podendo ser resumida à coação social.

No centro da discussão ética situa-se a questão da verdade, e a psicanálise não se furta a ela, entendendo-a, entretanto, como a verdade do desejo, imperioso e irredutível. Como tal, é sempre parcial, não toda, vinculada que está à metonímia do desejo, e, principalmente, particular, apresentando-se para cada um em especificidade íntima. Esse desejo que não se submete à normatização não tem o caráter de uma lei universal, constituindo-se na lei mais particular, “mesmo que seja universal que essa particularidade se encontre em cada um dos seres humanos” (1988, 35). Ao fazer essa afirmação, Lacan indica a diferença da ética psicanalítica em relação à reflexão moralista, uma vez que ela parte da universalidade do desejo justamente para enfatizar a sua particularidade – a diferença que o constitui – e não como uma forma de universalização moral, fundada em algum ideal. O que é universal é a diferença, o que coloca a questão ética em novos termos.

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pode servir. A apreensão se dá, assim, de uma forma escolhida, marcada por uma subjetivação onde o que predomina é a fantasia. Essa fantasia é simbólica, e não

há outro modo de constituição da realidade para o homem. Como afirma Juranville: “É a fantasia que suporta o mundo para e pelo sujeito, pois torna o mundo ‘interessante’ ao reencontrar em seus diversos elementos o objeto a

(objeto causa do desejo)”. (Juranville, 1987, 170).A experiência humana caracteriza-se pela distância entre a articulação do desejo e sua realização, uma vez que a satisfação é sempre parcial. Isto, para ele, constitui-se na mais profunda experiência moral.

Para Lacan, esse bem, que é inconscientemente buscado nas estruturas sociais, não existe. O âmbito dos bens é aquele do nascimento do poder, o que denomina de “serviço dos bens”. A ética da psicanálise está mais além, pois , como afirma, garantir que o sujeito possa encontrar seu bem é uma espécie de trapaça. A ética psicanalítica é uma ética da castração, uma vez que não há nenhum bem, pois a Coisa não há. Não se trata, entretanto de uma ética da resignação ou de uma abdicação. Ao contrário, trata-se de, a partir do reconhecimento da castração, levar o desejo a seus limites, para além dos quais não há nenhuma ética possível. É nesse sentido que se pode dizer que a ética da psicanálise, como ética do desejo fundada no referenciamento da ação humana ao real, não parte de ideais. Ela não propõe regras, nem normas de conduta, mas prepara para a ação moral, sem contudo, estabelecer os seus caminhos. Como diz Lacan, ela se detém nesse limiar, sendo apenas o “prelúdio da ação moral” (1988, 32).

A Coisa designa aquilo que, no ponto inicial da organização lógica e cronológica do mundo no psiquismo, aparece como estranho e alheio. Em torno dela giram as vorstellungen (os atributos, as qualidades) que constituem o mundo

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não é nada, e tudo o que se articula como bom ou mau relaciona-se sempre à mesma Coisa, diz Lacan. A qualificação do objeto, assim como daquilo que pode ser considerado pelo sujeito como seu “bem”, opera no nível do que “nunca deixará de ser apenas representação”, no campo simbólico e imaginário. É nesse sentido que, no âmbito das culturas, como mostra a antropologia, as noções de bem e de mal variam, não estando vinculadas a nenhuma essência ou à “natureza das coisas”.

A Coisa, porém, situa-se em outro nível, além do universo da linguagem, fora do espaço da representação, definindo-se como ausente, como realidade muda que regula a trama significante e o caminho do sujeito em relação ao mundo do desejo. Ela determina a espera de algo “que está sempre a uma certa distância da Coisa”. Referindo-se ao texto de Freud de 1925 (“A denegação”), Lacan identifica das Ding à tendência a retornar que caracteriza a orientação do sujeito humano em direção ao objeto. O encontro do objeto como diz Freud é sempre um reencontro, uma vez que o objeto absoluto do desejo não existe. O que se reencontra está irremediavelmente “a uma certa distância da Coisa”, o que impõe o caminho da repetição. O Outro absoluto do sujeito, real, das Ding não é reencontrada, mas apenas suas “coordenadas de prazer”. Ele é, assim, a fonte de todo bem e de todo o mal, em relação ao qual o sujeito se mantém à distância. Para Lacan, “o sujeito não pode suportar o “extremo bem” ou o “extremo mal”, o que é o mesmo, que lhe pode trazer das Ding, e por isso se mantém a distância, segundo a regra do desejo indestrutível, que surge com a palavra bem x mal que constitui o âmago do moralismo.

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como um vazio. No texto “ O Estranho” Freud analisa a palavra em alemão

heimlich que vai de familiar, doméstico e do até algo escondido, secreto, obscuro,

inacessível ao conhecimento coincidindo com seu oposto Unheimelich. É,

portanto, o estranho que, de alguma forma, se apresenta no mais familiar. A elaboração freudiana aponta para a ambivalência da linguagem que, para Lacan se explica a partir do nó que articula Real e Simbólico. A Coisa, esse núcleo do Real, ainda que alheia ao mundo se presentifica a cada momento na própria linguagem, que não é linguagem do ser mas ficção de palavra, palavra que serve sempre para dizer outra coisa diferente do que ela diz. É daí que Lacan parte para falar de sua ética.

Ao situar a ética da psicanálise a partir de uma ética elaborada a partir da referência à Coisa, ao Real, Lacan pretende mostrar no que a teoria freudiana avança em relação ao pensamento moralista, pois ela dissolve a oposição Bem x Mal ao situar a Coisa como algo que está para além do bem e do mal. De uma maneira semelhante, Lacan afirma que no nível do inconsciente, enquanto estruturado pelo simbólico, o sujeito mente, esta é a sua maneira de dizer a verdade, daí a importância do mandamento “Não mentirás”, onde se observa o laço estreito do desejo com a Lei (1985, 132).

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princípio do prazer em Freud, na medida em que institui a distância em relação à Coisa.

A Lei constitutiva do desejo é a Lei da castração, inscrita na fala, e não na proibição tal como se apresenta no mito de Édipo. Nesta, o sujeito se vê imerso na rivalidade imaginária com o pai que interdita a mãe. A mãe não é proibida, mas impossível, e essa é a verdadeira castração que o Édipo recobre. O objeto absoluto do desejo, o Bem, a Coisa, não existe, e a rivalidade edipiana dissimula isso. O pai de que se fala na Lei é o pai morto, como no mito freudiano de Totem e Tabu, unicamente como função simbólica, o Nome-do-Pai para Lacan. Esse caráter de impossibilidade que marca a Lei, no sentido que lhe confere Lacan, afasta-o de Freud, onde a noção de lei indica basicamente a proibição. Lacan menciona os Dez Mandamentos como destinados a manter a distância do sujeito em relação à Coisa, como leis da fala, próximo do que funciona no recalque do inconsciente. Eles não são puramente negativos, demonstrando o lado positivo da moral, uma vez que essa distância é condição para que subsista a fala e portanto o desejo.

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lado, mentindo há alguma verdade que ela promove (1985, 104). E é essa função antinômica, que a fala condiciona, entre o desejo e a lei, que reside o móvel primordial que faz desse mandamento, entre os outros dez, uma das pedras angulares do que podemos chamar de a condição humana, na medida em que ela merece ser respeitada” (Lacan, 1988, 105). Os mandamentos são expressão, assim, esse nó entre o desejo e a interdição, uma vez que a transgressão organizada, como diz Bataille, constitui a própria vida social.

Outro mandamento objeto de preocupações morais “Amai ao próximo como a ti mesmo “escandalizava” Freud pela impossibilidade de ser cumprido”. A identificação narcísica é a identificação com o outro, em que o eu se constitui em relação ao outro. “O eu é um outro”, diz Lacan citando Rimbaud. Cabe ressaltar que é nessa primeira forma de individuação que Lacan localiza a agressividade, como tendência impressa numa relação fundada no imaginário. A agressividade aparece assim, como correlativa à estrutura narcísica, manifestando-se na relação entre o eu e o outro. O mandamento “amar o próximo como a si mesmo”, nesse sentido, ao fundamentar-se na identificação imaginária, traz em si essa agressividade. Freud quando fala em narcisismo das pequenas diferenças exemplifica que por meio das rivalidades existentes entre os povos aparentados, a formação de “nós” a partir da identificação se dá por oposição a Outros.

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pela própria existência da Lei, enquanto Lei da castração. Para Lacan, Freud resiste em uma questão pessoal ao afirmar seu horror diante do mandamento, ele toma o mandamento somente como um gozo indizível, insuportável. Freud toma ao amor como um bem, situando-o assim no nível da rivalidade imaginária com o outro. Para ele o mandamento indica um gozo e assim ele perde o aceso ao gozo, gozo parcial de onde surge todo desejo. Como diz Lacan é preciso consentir num certo gozo para que surja o desejo.

Assim o próximo é ao mesmo tempo o familiar e o estranho, esse outro que está em mim, mas que não se confunde com o semelhante, que faço à imagem do meu eu. É nesse sentido que afirma que é preciso distinguir o “próximo” do “semelhante” e redescobrir o espaço do próximo como tal. É a partir disso, do reconhecimento pelo homem liberto da sociedade moderna de seu dilaceramento original, que se pode pensar não só o rompimento da couraça narcísica, com a abertura para o próximo enquanto diferente e talvez a recuperação de uma “fraternidade discreta, à medida da qual somos sempre mais desiguais” (Lacan, 1948, 124).

Em 1929 em "O mal estar na cultura" Freud se indaga a respeito do futuro da civilização. Ele se retém numa passagem a respeito do mandamento judaico-cristão "Amarás a teu próximo como a ti mesmo" e questiona a impossibilidade de realização do mesmo assim como os perigos implícitos nessa enunciação. Freud desenvolve a reflexão de que a história nos mostra que esse preceito conduz à intolerância já que é fundada numa fraternidade sobre a segregação - ao incentivar o amor ao semelhante cultiva-se o ódio ao diferente - a paixão pela unicidade, pela semelhança exclui qualquer parceiro. Para ele esse preceito nada mais significa que para amar o outro ele precisa se parecer tanto comigo que eu acabo amando a mim mesmo nele, ou seja, se esse outro é meu espelho assim é muito fácil amá-lo e nem mesmo precisaria de um mandamento para fazê-lo. Ora, porque existe então esse preceito?

Freud afirma que o preceito existe em função da maldade do próximo.

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sempre possível unir entre si pelos laços do amor uma massa maior de homens, sob a condição de que restem outros fora dela para receber golpes" (1930, 68). É nesse sentido que o homem de Freud reúne grande parcela de agressividade e a bondade do ser humano não é inata. Esse recuo de Freud se faz a partir do que se encobre em tal mandamento - a maldade do próximo. Freud se indaga sobre a maldade a partir de então, e isso que ele vê no próximo segundo Lacan , "remeteria para algo no interior do próprio sujeito que, sendo-lhe extremamente íntimo, lhe é, contudo, estranho" (Julien, 1998, 10). Para Lacan esse é o gozo, a maldade que o sujeito vê no outro mas não a reconhece em si mesmo, pois sendo-lhe extremamente íntimo, lhe é estranho. Isso é, aquilo do qual não ousamos aproximar do outro é o nosso próprio gozo, onde o outro se faz diferente deixando de ser o semelhante ao qual é possível amar. “Esse trecho coloca o gozo em articulação com o gozo desse outro, meu semelhante, isto é, o coloca no centro da questão da relação especular com esse semelhante (...) levanta a questão da articulação entre aquilo que o sujeito pode apenas ignorar de si mesmo e aquilo que ele nota e ataca em seu semelhante” (Laznik-Penot, 1992, 9).

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Essa alteridade que me escapa e me escandaliza é de uma proximidade de mim mesmo" (Julien, 1998, 52) Quando Lacan iniciou seus estudos em Freud, debruçou-se sobre o aforismo "o inconsciente é estruturado como uma linguagem". Até este momento tudo se tratava de significante na experiência analítica. Porém o que Lacan retoma em Freud é que ele diferencia a die Sache e das Ding, enquanto a primeira é representável pois se encontra no registro do

significante, a segunda é inominável, assim ele conclui que nem tudo é significante. É nesse ponto que Lacan procede numa evolução introduzindo o conceito de gozo.

"A lei do bem extrai sua força da identificação com o outro que é meu semelhante, e revela sua fragilidade no ponto mesmo em que essa identificação fracassa, com a revelação do gozo do Outro" (Julien, 1998, 47) Assim sendo, o bem que quero para o outro é aquele mesmo que quero para mim e quero que o bem do outro se realize através de mim. O problema se dá na medida em que o Outro não é esse outro semelhante, ele recusa o que quero para ele. Daí decorre duas maneiras típicas de resistir. Numa rompo a relação e me retiro pois o Outro não quer minha boa vontade e vou em busca do semelhante com quem posso me identificar. Ou mantenho firme minha vontade deste bem para você, forço o Outro contra a sua vontade a realizar esse bem a ponto de me tornar mal com relação ao próprio gozo. “O gozo é um mal pois comporta o mal do próximo. Lacan, em sua leitura do Mal estar na Civilização de Freud, aponta que o que faz barreira ao mandamento de amar o próximo como a si mesmo é o horror diante da maldade que habita o próximo. Mas daí, ela habita também em mim diz ele. Não ouso me aproximar de meu gozo, meu âmago” (Péchy, 1999, 18).

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próprio gozo nocivo ao outro e como dizia Freud, aquilo que nos surpreende em certos atos que não reconhecemos... Mas que são nossos.

Nesse sentido, encontrando o vazio central em seu íntimo estabelece-se um ponto, não de uma fonte de angústia ou paralisação, mas um ponto que indica o sentido de um começo, de uma criação. A partir de então, a sublimação se faz presente delineando a ética psicanalítica. A sublimação abre uma via de reconciliação com o Outro na sua estranheza deixando de se guiar sobre aquilo que é semelhante no espelho e alimenta o narcisismo. Assim, a psicanálise inventa um caminho que permite ao sujeito fazer-se "vizinho o bastante da sua própria maldade para aí encontrar o próximo" (Lacan, 1998,801). Essa orientação implica num desafio que é o da ética do bem dizer.

No seminário 7 trata-se do gozo a partir da identificação com o gozo do Outro. O campo do gozo aqui é o campo do Outro, da relação ao semelhante. Trata-se do gozo de um bem, passível de disputa na relação ao semelhante. É o gozo legislável. Existe um outro gozo que não o da rivalidade, mas a partir da identificação com o gozo do Outro, o semelhante. Visa-se não somente o Outro, mas o gozo que se supõe no parceiro, isto é, segundo Freud o gozo no sadismo. Ao alienar-se na imagem do semelhante, acede-se ao gozo identificando-se a ele, gozar desde o lugar do outro, é distinto de aliená-lo de seus bens e privá-lo de seu gozo. Trata-se de gozar de um gozo e não de gozar de um bem. A identificação ao semelhante, faz com que o sujeito retroceda em direção do gozo. Pelo viés da definição de gozo como satisfação da pulsão, o gozo deve ser situado no campo do Outro. Ele pode ser compreendido como realização da demanda do Outro, o que situa, de saída, como gozo do Outro. E talvez possa ser alcançado apenas enquanto tal. Por esta razão de estrutura o gozo está interditado ao ser falante, o que equivale dizer que o sujeito está alienado em relação ao seu gozo. O sujeito está fundamentalmente alienado em relação ao seu gozo. O gozo é sempre o gozo do Outro.

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III. MEDIAÇÃO

3.1. MODELOS DE MEDIAÇÃO

A mediação não possui um terreno próprio enquanto campo profissional. Ela se beneficia da transdisciplina, embora para alguns autores possa ser considerada uma inter-disciplina (direito, psicologia, comunicação entre outros) ou até mesmo multidisciplinar. Embora existam diferentes modelos de mediação, a prática da mediação depende muito da natureza do conflito e da experiência e formação do profissional. Assim, a natureza do conflito e a capacitação do mediador é que definem diferentes estilos de prática da mediação. A tática de um mediador diplomata para resolver conflito entre nações certamente será muito diferente da tática de um mediador psicólogo para resolver problemas familiares referente à guarda de filhos.

Nos Estados Unidos temos quatro modelos de mediação. O modelo tradicional, modelo tradicional-linear (Harvard), é proveniente do campo empresarial e se aproxima mais da negociação. Ele é centrado na satisfação das partes e busca chegar a um acordo. Os quatro princípios dessa técnica são: separar as pessoas do problema, focalizar os interesses e não as posições, criar opções para o benefício mútuo, insistir no uso de critérios objetivos. Tem-se como causa do conflito somente uma causa ao invés de várias. Também não é levado em conta como determinante do conflito, o contexto no qual ele se produziu. Como método se considera importante a expressão no começo do processo para que as emoções possam sair e não impeçam adiante o processo. Seria como uma catarse. As partes se comprometem a deixar de fazer algo que faziam sem que seja trabalhado as mudanças na relação e sim o conteúdo da comunicação.

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centrado no aspecto relacional entre as partes. Neste, a principal meta é a modificação das partes. O acordo é um desenlace possível. Acreditando que o conflito é uma oportunidade de mudança, e não algo negativo, busca desenvolver o empowerment (fortalecimento) das partes no qual as pessoas potencializam

seus recursos que permitem ser um protagonista em sua vida e ser responsável por suas ações. Também promove-se a postura de consideração pelo outro

(regocnition), isto é, o reconheciento do outro como parte do conflito

(reconhecimento do co-protagonismo). Assim, transformação é alcançada através de uma revalorização pessoal e reconhecimento do outro. O método é a causalidade circular que foca transformar os padrões de interação que mantém o problema ao invés de focar em eliminar a causa, o foco não é o indivíduo mas o problema. Não existe uma causa única. Existem ainda outros modelos de mediação como por exemplo o modelo circular-narrativo de Sara Cobb, que busca tanto as modificações na relação como o acordo. Seu método articula muitas técnicas do campo da teoria sistêmica provenientes do campo da terapia familiar sistêmica. Ela utiliza a comunicação circular na qual se considera as pessoas e a mensagem que se transmite trabalhando-se em cima dos conteúdos e dos elementos pára-vebais da comunicação (corporais, gestuais, etc) e também utiliza a causalidade circular. Ela permite com que as diferenças sejam manifestadas até certo ponto para que o sistema se torne mais flexível ao introduzir alternativas que não puderam ser previstas. Como conseqüência constrói-se um lugar legítimo para as pessoas dentro da situação (legitimação) e também permite mudar o significado da história “verdadeira” que as partes construíram e que impedem de ver o problema a partir de outra óptica.

Referências

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