TARSO BONILHA MAZZOTI
CYNTHIA PAES DE CARVALHO
MONICA RABELLO DE CASTRO
WANIA GONZALEZ
LAÉLIA MOREIRA
GISELLE FERREIRA
ORGANIZAÇÃOMAGDA MARIA VENTURA
1ª edição
rio de janeiro 2014
Metodologia
Científica
Comitê editorial externo cynthia paes de carvalho e alda judith alves mazzotti Comitê editorial interno magda maria ventura e william nunes martins
Organizador do livro magda maria ventura
Autores dos originais tarso bonilha mazzoti (capítulo 1), cynthia paes de carvalho (capítulo 2), monica rabello de castro (capítulo 3), wania gonzalez (capítulo 4), laélia moreira e giselle ferreira (capítulo 5)
Projeto editorial roberto paes
Coordenação de produção rodrigo azevedo de oliveira Projeto gráfico paulo vitor fernandes bastos
Diagramação paulo vitor fernandes bastos Supervisão de revisão aderbal torres bezerra Redação final e desenho didático roberto paes Revisão linguística pricilla basilio e michele paiva Capa thiago lopes amaral
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por quais-quer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquais-quer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. Copyright seses, 2014.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
M593 Metodologia científica
Magda Maria Ventura [organizador].
— Rio de Janeiro: Editora Universidade Estácio de Sá, 2014. 128 p
isbn: 978-85-60923-10-6
1. Metodologia. 2. Conhecimento. 3. Pesquisa. 4. Formação profissional. I. Título. cdd 001.42
Diretoria de Ensino – Fábrica de Conhecimento Rua do Bispo, 83, bloco F, Campus João Uchôa Rio Comprido – Rio de Janeiro – rj – cep 20261-063
Sumário
Apresentação
7
1. O Conhecimento Científico
9
Princípios e meios organizadores dos raciocínios ou argumentos 14
As situações sociais e suas técnicas para estabelecer o verossímil 16 Como distinguir os conhecimentos científicos de outros também confiáveis? 18 Como apreender os conhecimentos confiáveis pelo exame de seus argumentos? 20
Gêneros ou tipos de ciências 24
Há conhecimentos confiáveis que não são científicos, mas todo
conhecimento científico é confiável 27
Esquemas ou figuras para dizer o que é real: os de ligação, de dissociação
de noções e a ironia 31
Resumindo 33
2. Conhecimento e pesquisa na universidade
37
Conhecimento e Sociedade 38
A prática científica 39
Conhecimento e Educação 43
Conhecimento Científico e Universidade — um pouco de história 45
A universidade e o desenvolvimento da ciência no Brasil 48
Desafios para a Ciência e a Universidade na Sociedade do Conhecimento 54
3. Metodologia para a elaboração de trabalho científico
57
Procedimentos de elaboração do TCC 58
Revisão de literatura 59
Como fazer um resumo 61
Passos para a confecção de um resumo 62
Como fazer um fichamento 63
Exemplo de fichamento 64
Como fazer ou utilizar-se de uma resenha 65
A pesquisa científica e o TCC 67
Explorando a pesquisa bibliográfica 69
Panorama sobre diferentes metodologias 72
O Trabalho de Conclusão de Curso: roteiro para sua elaboração
Roteiro para a elaboração de produtos 74
Roteiro para elaboração de uma monografia: introdução 75
Roteiro para elaboração de uma monografia: escolha do tema 75 Roteiro para elaboração de uma monografia: questão problema
e/ou hipótese 76
Roteiro para elaboração de uma monografia: fundamentos
teóricos e metodológicos 79
Roteiro para elaboração de uma monografia: coleta e produção de dados 80 Roteiro para elaboração de uma monografia: avaliação das questões
e as conjecturas possíveis 80
Roteiro para elaboração de uma monografia: conclusões 81
Roteiro para elaboração de uma monografia: referências bibliográficas 81
4. Técnicas de pesquisa
85
Como a pesquisa está presente no nosso dia a dia? 86
Dados qualitativos e quantitativos 89
Quais cuidados devemos ter ao buscar dados para uma pesquisa na internet,
na biblioteca e nas instituições? 89
Como pesquisar nas bibliotecas 90
Como pesquisar nas instituições 91
Quais as técnicas de coleta de dados mais apropriadas para
o pesquisador iniciante? 92
A pesquisa feita para uma monografia 93
Como obteremos os dados de que precisamos para fazer a pesquisa?
Qual a melhor maneira de obtê-los? 93
Pesquisa documental 93
Pesquisa bibliográfica 95
Pesquisa empírica 96
Observação 96
O que devemos fazer para tornar a observação uma técnica de
coleta de dados que tenha rigor científico? 97
Entrevista 98
Entrevista dirigida ou estruturada 99
Entrevista semidirigida ou semiestruturada 99
Entrevista não dirigida, não estruturada, não diretiva ou aprofundada 100
Quem deverá participar das entrevistas? 101
Questionário 102
A realização de pesquisas na internet: os estudos em redes sociais 103
5. Conhecimento, pesquisa e formação profissional:
projeto pedagógico de curso superior
107
Sobre as atividades propostas 109
Pesquisa, Educação Superior e Formação Profissional 110
A educação superior no Brasil 111
Educação superior, pesquisa e formação profissional 112
Projeto Pedagógico: um guia para sua trajetória acadêmica 116
Conhecendo o Projeto Pedagógico de seu curso 118
Resumo 122
7
Apresentação
A perspectiva de desenvolvimento econômico e social no século xxi tem colocado na agen-da educacional de toagen-das as nações a necessiagen-dade de ampliar a qualiagen-dade agen-da educação e agen-da formação de novos profissionais, em particular no Ensino Superior, de forma articulada ao desenvolvimento da pesquisa científica, da tecnologia e da inovação. O desafio da uni-versidade e do ensino superior em geral, num contexto em constante mudança marcado pelas novas tecnologias que afetam todo o planeta e todas as áreas e condições da atividade humana e da sociedade, é preparar futuros profissionais para uma atitude de permanente aprendizado, atentos e críticos, que possam contribuir com consistência científica e criati-vidade para as transformações num mundo cada vez mais volátil, cujo futuro sustentável é responsabilidade de todos.
Ao longo da sua graduação no ensino superior você usará cada vez mais conhecimento científico nas diferentes disciplinas e áreas de conhecimento para se formar um profissio-nal especializado e atualizado, apto a ingressar e fazer carreira com sucesso no mercado de trabalho. Entretanto, isso é apenas o patamar inicial de sua formação, pois, cada vez mais, a sociedade e o mercado vão exigir que você se atualize, o que supõe uma atitude atenta e crítica às informações e às experiências que se vivencia cotidianamente.
Essa atitude pode e deve ser construída no seu processo de formação, no contato com os processos de construção do conhecimento científico. Sua participação em atividades de pesquisa nesse período vai desafiar sua criatividade e desenvolver sua compreensão do mundo, capacitando-o para nele intervir de forma consistente, inovadora e sustentável.
Este livro pretende guiar o início de seu caminho nessa direção. Ele foi organizado em cinco capítulos que se integram e complementam. Como os capítulos foram redigidos por diferentes autores, você notará que os estilos são individualizados, ainda que todos se ar-ticulem no mesmo sentido. Em cada um deles são propostas atividades para apoiar sua reflexão e o pleno aproveitamento da disciplina.
No primeiro capítulo você encontrará os principais instrumentos para identificar o conhecimento científico, distinguindo-o de outros tipos de conhecimento. Para isto, são apresentados os procedimentos utilizados na produção e validação dos conhecimentos no âmbito da ciência, bem como os meios para identificar os casos mais comuns de comu-nicações enganosas que se definem “científicas”. Saber distinguir os procedimentos uti-lizados pelos cientistas é necessário tanto para evitar a propaganda enganosa e as fraudes quanto para compreender uma ciência, constituindo, portanto, o ponto de partida para a formação universitária.
O segundo capítulo continua a discussão sobre a ciência e o conhecimento que ela pro-duz, particularmente aquele que é construído nas instituições de ensino superior. Nele você refletirá sobre a prática científica e seguirá um pouco da trajetória da atividade cientí-fica nas sociedades ocidentais. Em seguida, abordaremos o surgimento da universidade e como se desenvolveu historicamente o espaço da pesquisa científica no ambiente universi-tário. O capítulo é concluído com uma discussão sobre a importância da formação científi-ca no ensino superior como parte de sua formação profissional e apresenta sinteticientífi-camente as oportunidades que você encontrará para isso no seu curso de graduação.
O capítulo três retoma as ideias desenvolvidas nos dois primeiros capítulos no que se refere às diferenciações entre trabalhos científicos, mostrando suas implicações práticas.
8
O capítulo apresentará passos para elaboração de um Trabalho de Conclusão de Curso (tcc), mostrando como organizar uma monografia ou desenvolver um produto, por exem-plo. Para isso, discute momentos importantes desse trabalho: a revisão de literatura, como elaborar resenhas, resumos, fichamentos e selecionar bibliografia, entre outros. Coloca em relevo a importância de compreender que, para falar de um assunto, deve-se conhecê-lo e conhecer seus principais autores. Discute a importância de se ter uma parceria na elabora-ção do tcc e, sobretudo, o papel da metodologia para o desenvolvimento de uma pesquisa ou de um produto. Para isso, há exemplos práticos da utilização de diversas ferramentas.
O quarto capítulo busca oferecer indicações para que você possa desenvolver sua pró-pria pesquisa. São fornecidas orientações acerca dos cuidados que o pesquisador iniciante deve ter ao buscar dados para sua pesquisa na internet, na biblioteca e nas instituições. O capítulo privilegia a observação, a realização de entrevistas e a aplicação de questioná-rio como técnicas de coleta de dados mais usadas pelos alunos de graduação. Destaca-se a tendência crescente de utilização da internet nas pesquisas acadêmicas, tanto por meio de informações obtidas nos sites, como do uso das redes sociais. Na parte final, são apresenta-das algumas recomendações do ponto de vista ético, que deverão nortear a coleta de dados, com o intuito de esclarecer o que é considerado fraude acadêmica.
O quinto capítulo apresenta uma análise da relação entre a pesquisa e a construção do conhecimento no contexto da formação profissional oferecida na educação superior. Para isso, além de uma discussão sobre a formação profissional, a pesquisa e o ensino superior, discute a importância do Projeto Pedagógico de curso e explora as possibilidades de apren-dizagem oferecidas durante as aulas e também a partir da participação dos alunos nas di-versas atividades extracurriculares específicas de cada curso. Como se trata de um capítulo de fechamento deste livro, algumas atividades são propostas com o objetivo de apoiar os estudos e auxiliar a consolidação dos conhecimentos construídos ao longo da disciplina.
Esperamos que você aproveite nosso esforço de síntese e se engaje no desafio da participa-ção em atividades científicas como uma oportunidade estratégica de formaparticipa-ção profissional.
alda judith alves mazzotti e cynthia paes de carvalho rio de janeiro, fevereiro de 2014.
O conhecimento
científico
tarso bonilha mazzotti
10 •
capítulo 1
Para compreender o caráter do conhecimento científico, podemos co-meçar com um jogo de perguntas e respostas, como a seguir.
PERGUNTA
Podemos confiar no conhecimento científico?
Nem sempre, pois essa expressão, muitas vezes, é apenas uma eti-queta usada para dar credibilidade a uma afirmação, como as que se en-contram em rótulos de produtos de limpeza e cuidados com o cabelo, pele e saúde, por exemplo.
PERGUNTA
Como saber se é apenas uma etiqueta?
Uma pista é o uso de expressões como comprovado cientificamente para nos persuadir acerca da boa qualidade de alguma coisa sem apre-sentar as fontes ou evidências que sustentam a alegação de cientificidade. Nesse caso, desconfie.
Frequentemente encontramos afirmações de que certo produto garan-te a cura disso ou daquilo, que foi desenvolvido cientificamengaran-te por fulano, mas que a ciência oficial e os laboratórios farmacêuticos não aprovam por-que ganham dinheiro com um produto similar ou por serem conservadores.
Mais uma vez, é preciso desconfiar. É um truque antigo, em vez de mostrar o valor de algo, atacam-se os que mostram que é inócuo ou per-nicioso. Outro truque antigo é fazer uma caricatura da posição dos ad-versários, pois assim fica mais fácil destruí-la. Essa maneira de proceder foi denominada falácia do homem de palha.
PERGUNTA
Certo, mas podemos recorrer ao Google, por exemplo, para encon-trar as referências que faltam e verificar a validade da informação
de que o tal produto foi cientificamente comprovado, não é?
Podemos, mas como saber se as afirmações encontradas são cientifi-camente sustentáveis? Será que esses mecanismos de busca têm filtros para selecionar a validade dos argumentos? Claro que não, nós precisa-mos avaliar, discernir. é preciso selecionar o que tem valor.
1
O conhecimento científico
CURIOSIDADE
Homem de palha
Atualmente, a expressão homem de pa-lha não é muito clara, salvo se lembrar-mos de que na Idade Média os cavalei-ros treinavam para as guerras usando um boneco de palha como oponente. A palavra falácia deriva do latim, que signi-fica falhas, enganos dos mais diversos. Podemos estender a noção e acrescen-tar um termo: são as falácias
argumen-tativas. Há uma falácia muito comum: do consequente afirma-se o anteceden-te, que geralmente tem origem na per-cepção. Por exemplo, como depois da
chuva o chão fica úmido, então quando nos deparamos com a umidade no solo dizemos que choveu. O consequente, a umidade do solo, não decorre necessa-riamente do afirmado, a chuva, pois há outras possibilidades que levam o solo a ficar úmido.
capítulo 1
• 11
Este raciocínio é circular: a pessoa é confiável porque confiamos nela, mas não se diz por que confia. O raciocínio circular é um engano argumentativo ou lógico denominado petição de princípio (ver Weston, 2005, referência completa ao fim do capítulo).
Certo, confiamos em nossos professores e em outros especialistas das disciplinas vin-culadas à informação que recebemos; se for de Biologia, perguntamos ao professor de Biologia, por exemplo. Simples. Mas será que seu professor estudou aquele assunto es-pecífico para poder dar um parecer acerca da validade da comunicação que se apresenta como científica?
Não sabemos. Mas ele dirá se estudou ou não. Não podemos duvidar da integridade de nossos professores. Não é duvidar da integridade de seu professor, mas ter em mente que nem sempre ele domina aquele assunto em que você está interessado.
REFLEXÃO
Nesse caso, é preferível confiar nas comunicações publicadas em periódicos científicos referendados pela comunidade de cientistas do que nas de divulgação e outras similares. Essa confiança procede do modo de operar das editorias dos periódicos científicos: cada artigo é avaliado por, pelo menos, dois cientistas in-dependentes que dão seus pareceres favoráveis ou não à publicação. Mas só isso não é suficiente. Depois de publicado, outros cientistas avaliam a comunicação e procuram verificar a sua validade e pertinência, às vezes replicando a pesquisa, isto é, refazendo o mesmo percurso e usando as mesmas técnicas que o autor disse ter empregado, para verificar se chega aos mesmos resultados.
PERGUNTA
Então, só depois da reavaliação pelos cientistas pode ser admitido um conhecimento como sendo científico?
Exatamente. Por isso, uma das etapas mais importantes no trabalho dos cientistas é o que se denomina revisão bibliográfica, publicada em periódicos especializados. Cabe, aqui, uma dica: leia atentamente as revisões bibliográficas ou os estados da arte, de preferência as mais recentes, pois neles são apresentados os estudos de interpretações anteriores atu-alizadas, que confirmam ou eliminam argumentos até então admitidos. No decorrer deste livro, você aprenderá mais sobre isso.
12 •
capítulo 1
PERGUNTA
Já ouvi dizer que, no fundo, os cientistas sempre defendem suas posições, buscam manter o poder e o status entre seus colegas, e que não há como escapar dessas disputas. Assim, dizem, a decisão
em torno da validade dos argumentos científicos não é racional, mas subjetiva. É isso mesmo?
Ah! Sim. Você está se referindo a uma corrente que se autodenomina
pós-moderna, construtivista social ou relativista, cujos defensores alegam
não haver critérios objetivos para decidir a respeito do valor das teorias. Essa posição tem como ponto de partida os estudos de Thomas Kuhn acerca da substituição de uma teoria científica por outra. Kuhn exami-nou essa questão no âmbito da Física em seu livro A estrutura das
revo-luções científicas, no qual afirma que as teorias são deixadas de lado por
não serem capazes de resolver suas anomalias, ou seja, os casos em que suas explicações não se aplicam ao observado (experimentos).
Em uma ciência madura, segundo Kuhn, os cientistas procuram re-solver o quebra-cabeça representado pela dificuldade de relacionar a teoria dominante com os fatos observados e, caso não consigam, surge uma nova teoria, supostamente mais eficaz do que as anteriores. Kuhn denominou paradigma o acordo entre os cientistas acerca do que consi-deram ser os argumentos e modos de fazer apropriados para desenvol-ver a nova teoria, ou seja, a sua matriz disciplinar, que se encontra nos manuais e livros didáticos.
RESUMO
Para Kuhn, a adoção de uma nova teoria não depende da validade de seus argu-mentos, mas da adesão de novos cientistas. Por outro lado, os paradigmas não são comparáveis entre si, os critérios do velho não se aplicam aos novos, por isso são
incomensuráveis, não podem ser medidos uns pelos outros; logo, não há como dizer se um é ou não superior ao outro. Isto conduziu a um relativismo radical.
PERGUNTA
Mas as ciências são feitas por pessoas que têm interesses e defendem alguma causa, alguma ideologia. Assim, a escolha da teoria está condicionada por suas crenças. Tanto é assim que as teorias defendidas em uma época são deixadas de lado em outra.
Não é isso mesmo?
Você tem razão quanto à instabilidade das teorias científicas, bem como quando afirma que os cientistas são pessoas que têm interesses
AUTOR
Thomas Kuhn Thomas Kuhn (1922-1996) for-mou-se em Física pela Universidade de Harvard, onde também fez seu mestrado e doutora-do. Lecionou História da Ciência em Har-vard, tendo sido também professor nas universidades de Berkeley, Princeton e mit. Seu livro, A estrutura das revoluçõescientíficas (1962), é uma obra clássica sobre o pensamento científico e a histó-ria da ciência.
COMENTÁRIO
Relativismo radical
O relativismo radical afirma que se os fatos são estabelecidos pelas teorias e estas são de livre escolha dos cientistas, então não há critérios lógicos ou racio-nais para decidir quanto à validade das teorias, todas têm o mesmo valor. Se for assim, então todo o esforço de Kuhn para apresentar evidências que susten-tam a sua narrativa seria um discurso persuasivo para conquistar adeptos, e não um conhecimento confiável. “O fei-tiço volta contra o feiticeiro”.
capítulo 1
• 13
pessoais e sociais. Exatamente por isso é preciso que exista algumama-neira de controlar os interesses pessoais e dos grupos sociais, assim como para afirmar se uma teoria deve ser substituída por outra.
ATENÇÃO
Recorde-se que uma teoria é composta por um conjunto organizado de argumentos, sendo alguns mais centrais, os ditos fundamentais, sobre os quais os demais se sustentam. Por isso, não há como contraditar teorias, mas se pode contradizer os seus argumentos, especialmente os fundamentais. Contraditar os argumentos de uma teoria para verificar se podem continuar sendo admitidos é o que se diz ser
problema da validação.
Como assim? Por que na vida cotidiana teríamos interesse na validade dos conhecimentos? Vamos usar um exemplo para ilustrar a necessidade de validação em uma situação que deve ser de seu conhecimento.
EXEMPLO
Suponha que alguém seja acusado de ter matado uma pessoa. Se não for possível verificar e validar as evidências acerca desse ato, então o julgamento será inteiramente subjetivo, ou seja, dependente do que cada um considera verdadeiro.
Certo, mas no judiciário um criminoso pode ser considerado inocente porque tem recursos para pagar advogados caros, corromper o júri e assim por diante. Logo, não é objetivo.
Essa afirmação supõe que o réu foi inocentado mesmo sendo criminoso, ou seja, que ele só foi inocentado por ter dinheiro suficiente para corromper o julgamento. Nesse caso, como podemos validar a nossa afirmação de que o réu inocentado era criminoso e deveria ser punido? Não sabemos...
TESE
ARGUMENTO
CONTRA-ARGUMENTO
CONCEITO
Problema da validação
O problema da validação, ou de justifica-ção do que se diz, requer que a contradi-ção não dependa do que essa ou aque-la pessoa diga a seu respeito, mas dos procedimentos necessários para elimi-nar as qualidades contrárias atribuídas ao sujeito de uma proposição, o que é do interesse tanto dos cientistas quanto dos não cientistas na vida cotidiana.
14 •
capítulo 1
COMENTÁRIO
Este é o problema de validação. Para que outros possam ter a mesma certe-za é preciso que haja critérios comuns para examinar os indícios, as evidên-cias e estabelecer uma narrativa que quase todos, inclusive os advogados de defesa, possam concordar que o réu é criminoso. Para estabelecer a legitimidade da acusação são necessários princípios e meios que organizem explicitamente os nossos raciocínios, como veremos a seguir.
Princípios e meios organizadores dos
raciocínios ou argumentos
O primeiro é o princípio da identidade, o qual requer que o sujeito acu-sado de um ato seja perfeitamente identificável, caso contrário, não se poderá dizer: fulano (sujeito da frase) matou beltrano (a acusação ou predicado). Esse princípio vale para outros sujeitos das proposições ou frases de acusação, inclusive os relacionados com os seres naturais não humanos e os entes conceituais, como os das matemáticas.
As disputas entre os cientistas geralmente partem da definição do sujeito de seus enunciados, e estes sujeitos são denominados objetos da
pesquisa, uma vez que é o tema o que se quer saber, logo, é o objeto de discussão para dizer o que é alguma coisa.
Nessa disputa acerca do objeto ou sujeito de um enunciado é preciso obedecer o princípio da não contradição. Esse princípio aplica-se nas definições formalizadas ou lógicas, que são diferentes das argumenta-ções acerca do que se faz ou das práticas sociais, como as que se dão no âmbito da ética (política). Nesses casos, as disputas se dão em torno de opostos incompatíveis.
No exemplo de alguém ter ou não ter cometido homicídio é preciso, como foi dito, que o réu seja individualizado (princípio da identidade), depois se houve homicídio (tipificação, que recorre ao mesmo princí-pio) e que este pode ser legitimamente atribuído ao réu. Nesse, como em outros casos, o sujeito da proposição não pode receber duas qualidades
contrárias na mesma situação de acusação, ou seja, deve obedecer o princí-pio da não contradição.
Sendo assim, pergunta-se: Fulano é criminoso ou não é criminoso? O contraditório, seguindo as regras ou normas próprias de cada situa-ção, deve estabelecer qual das alternativas é a mais plausível ou veros-símil, ou seja, a que se pode confiar na situação. Caso não se consiga excluir uma das qualidades, então os envolvidos no debate ficam em um beco sem saída, ou aporia (impasse).
COMENTÁRIO
Princípio da identidade
Quando usamos o termo acusação para falar de princípio da identidade, equiva-le a qualquer afirmação de que o sujeito da proposição é isto ou aquilo, pois
pre-dicado ou categoria significam o que se
acusa o sujeito de ser. Estabelecer a
identidade do sujeito de uma frase pode ser simples na linguagem cotidiana, mas é mais complicado nas Ciências. Isto por-que o sujeito do enunciado precisa ser tão bem definido que as qualidades ou predi-cados que lhes são atribuídos sejam úni-cos, não podem estar presentes em ou-tros. Por isso, as definições científicas são muito estritas, formalizadas, o que dificulta sua tradução para a linguagem comum.
COMENTÁRIO
Contradição x incompatibilidade
A contradição, o dizer contra, ocorre quando duas qualidades contrárias são atribuídas ao mesmo sujeito de uma proposição e na mesma situação de acu-sação. A incompatibilidade, por sua vez, não é um dizer contra, não é lógica, mas quase lógica e se assemelha à contradi-ção. Na incompatibilidade é preciso de-cidir entre duas proposições que dizem respeito a situações contingentes, ou seja, aquelas que não são absolutas, que dependem das circunstâncias, que são relativas ao que se pretende fazer, às leis naturais ou às decisões humanas. Quer um exemplo? Imagine que você torça pelo time A e seu principal rival é o time B. Em um jogo entre B x C (outro time), é possível que, naquela situação, você tor-ça pelo time C. Isso não é contradição, é uma incompatibilidade que deixou de existir durante aquele jogo específico.
capítulo 1
• 15
REFLEXÃO
No judiciário, o beco sem saída favorece o réu; nas ciências, a discussão permanece aberta até que uma solução seja considerada satisfatória ou a melhor possível.
Por fim, é necessário considerar o princípio do terceiro excluído, o qual determina que apenas duas qualidades podem ser atribuídas ao sujeito da proposição, não há uma ter-ceira em disputa. Sendo assim, é preciso reduzir todas as qualidades contrárias a duas e apenas duas, caso contrário, não há como decidir.
RESUMO
Em suma, os três princípios fundamentais para estabelecer a verossimilhança, ou seja, as qualidades (pre-dicados ou categorias) atribuídas ao sujeito da proposição e admissíveis na circunstância do debate são: o princípio da identidade, o princípio da não contradição e o princípio do terceiro excluído.
Por isso, no debate regulamentado é preciso um árbitro que atue, garantindo a lisura dos debates, a pertinência e a validade das evidências, e com poder de veto.
PERGUNTA
Essa é uma descrição resumida de um tribunal de júri, mas o que tem a ver com as ciências?
Tudo, pois as normas éticas e as do debate a respeito de proposições contraditórias são as mesmas. Os cientistas não inventaram a arte do debate, que foi desenvolvida muito antes do século xviii, quando as ciências modernas se afirmaram, como você verá no próximo capítulo. Ela se mostrou eficaz para determinar as disputas acerca dos mais variados assun-tos humanos, particularmente nos julgamenassun-tos de crimes.
ATENÇÃO
Além disso, há um conjunto de normas éticas ou de condutas, sobre as quais destacamos 3 delas:
1) Os envolvidos no debate devem ter o mesmo conhecimento do assunto para estabelecer qual é a qualidade pertinente ao sujeito da proposição.
Para participar do debate científico é preciso conhecer tanto as técnicas necessárias para produzir os conhecimentos, que são as suas proposições, quanto estar atualizado com os seus problemas.
2) No debate é proibido atacar o adversário.
Um cientista não vence um debate ao acusar moralmente o seu adversário: quem faz isso mostra que não tem argumentos para enfrentar o oponente.
3) Qualquer assunto que não tenha vinculação direta com o caso deve ser deixado de fora, vale o que está no processo.
Os juízes nessa situação são os outros cientistas que têm as qualificações necessárias para analisar as comunicações e os procedimentos utilizados pelos oponentes.
16 •
capítulo 1
3) Qualquer assunto que não tenha vinculação direta com o caso deve ser deixado de fora, vale o que está no processo.
Os juízes nessa situação são os outros cientistas que têm as qualificações necessárias para analisar as comunicações e os procedimentos utilizados pelos oponentes.
Algumas pessoas consideram que essas regras restringem demasia-damente a subjetividade. Por isso, elas consideram que as regras do mé-todo são uma camisa de força.
Pense no caso de você ser acusado de um crime que não cometeu. Você reivindicará um julgamento justo, objetivo, não a livre manifesta-ção dos desejos de seus acusadores. De outro lado, você pode ler essas regras pelo avesso: o que hoje é afirmado como necessário expressa os erros de ontem; logo, foram historicamente constituídas.
PERGUNTA
Essa técnica ou arte de debater tem um nome?
Tem, é dialética, qual seja, a arte de estabelecer a verossimilhança ou plausibilidade de argumentos por meio de um debate regulamentado. Ser verossímil ou plausível difere do que se denomina a verdade, cujo sig-nificado comum afirma se tratar de algo absoluto, em si e por si, indepen-dente do espaço e do tempo, que vale sempre, ou seja, que não é relativo.
As situações sociais e suas técnicas para
estabelecer o verossímil
PERGUNTA
Então, os conhecimentos científicos são estabelecidos nos debates?
Isso mesmo, é sempre pelo debate que são estabelecidos os argu-mentos, e há duas situações em que isso ocorre: a situação dialética e a situação retórica. Uma terceira situação é a da exposição (didascália), na qual não há debate e os conhecimentos considerados confiáveis são apresentados aos que não conhecem. Examinemos, de maneira sumá-ria, cada uma dessas situações.
COMENTÁRIO
Camisa de força
A metáfora camisa de força condensa essa concepção que considero inade-quada, uma vez que as regras metódicas libertam as pessoas de seus preconceitos e permitem a intersubjetividade ou a obje-tividade, o que é do interesse comum.
CONCEITO
Verdade
Há muita discussão acerca do signifi-cado da palavra verdade. Atualmente admite-se que apenas nas lógicas e matemáticas é admissível utilizar aquela palavra, nas demais ciências é preferível considerar que seus argumentos são plausíveis ou verossímeis.
capítulo 1
• 17
SITUAÇÃO
DIALÉTICA
Debate que pode se dar entre duas pessoas, por um tempo extenso, ou mesmo por uma pessoa quando pensa os prós e os contras a respeito de algum problema; é a que predomina na produção de conhecimentos científicos. Nessa situação há um conjunto de técnicas ou modos de fazer que visam eliminar a contradição estabelecida pela afirmação de duas qualidades contrárias; logo, seu objetivo é estabelecer o verossímil.
SITUAÇÃO
DE EXPOSIÇÃO
Também denominada didascália, tem por objetivo apresentar o considerado conhecimento confiável aos que precisam ou querem aprendê-lo; logo, é uma comunicação unilateral, e os aprendizes não estão autorizados a decidir a respeito do exposto. Para produzir a comunicação é preciso analisar os conhecimentos estabelecidos nas situações retórica e dialética para eliminar incongruências, contradições e organizar a exposição de maneira encadeada. Estes procedimentos deram origem ao que atualmente denominamos lógica.
SITUAÇÃO
RETÓRICA
É a contraparte da dialética, requer técnicas que têm por objetivo persuadir ou convencer um público amplo, em um tempo curto, a adotar os posicionamentos apresentados pelo orador, os quais serão admitidos (ou não) pelo auditório que é o juiz do que dizem os oradores.
Essas três técnicas não são estanques. É admissível usar técnicas retóricas para persu-adir o auditório acerca do valor conceitual de argumentos científicos, ainda que isso im-plique modificações relevantes naqueles e, em muitas situações, resulte em importantes distorções conceituais. Além disso, em um debate dialético é possível introduzir argumen-tos formados com base na Lógica ou na Matemática, desde que os demais admitam, para eliminar argumentos contrários.
EXEMPLO
Técnicas retóricas
Na situação de julgamento de fraudes científicas, por exemplo, recorre-se à retórica judicial, em que os cientistas são instituídos dos poderes de juízes e de jurados.
RESUMO
Em resumo, na técnica dialética a situação social requer uma decisão a respeito de duas qualidades contrárias que se afirma pertencerem ao sujeito de uma proposição. Essa situação social envolve poucas pessoas, as que conhecem bem o tema, e, no limite, apenas uma pessoa; além disso, não há um tempo predeterminado para obter uma decisão.
A técnica retórica tem por objetivo propor alguma decisão a muitas pessoas, por isso os seus argumentos precisam ser breves e diretos, pois o auditório não tem como acompanhar longos desenvolvimentos argu-mentativos. Além disso, o tempo concedido aos oradores é bem demarcado, o que exige argumentos muito bem escolhidos e breves. Algumas restrições que cabem na situação dialética, como é o caso das ciências, não são impostas na situação retórica. Por exemplo, pode-se atacar a pessoa para destruir as propostas do adversário, caso o auditório admita este procedimento.
18 •
capítulo 1
O estabelecido nas situações dialética e retórica pode ser ensinado aos que não sabem. Nesta situação, a relação social é muito diferente, pois quem sabe expõe o que sabe aos que aprendem, os quais não deliberam acerca da validade do apresentado, mesmo que não concordem. É uma situação unilateral e o tempo da exposição é muito variável.
Essas três situações sociais sustentam as três técnicas argumentati-vas que foram aperfeiçoadas desde o século v a.C., constituindo o solo comum da argumentação racional, ou seja, pensada, refletida. Esses procedimentos são comuns, mas raramente pensamos a seu respeito, ou seja, fazemos sem pensar. Por isso, é preciso estudar essas técnicas para se tornar hábil tanto na análise quanto na produção de argumentos a favor e contra alguma proposta ou proposição em uma situação social e, em particular, na situação em que se busca admitir e produzir conhe-cimentos científicos e outros conheconhe-cimentos confiáveis.
Como distinguir os conhecimentos
científicos de outros também confiáveis?
EXEMPLO
Considere o seguinte exemplo: na medicina tra-dicional prescreve-se a infusão (chá) da casca do salgueiro-branco ou chorão (Salix alba) ou das fo-lhas e flores rainha-dos-prados, também conhecida por erva-das-abelhas (Filipendula ulmaria ou
Spira-ea ulmaria), para tratar os sintomas da gripe, bem como do reumatismo e dores de cabeça. Este é um conhecimento prático muito antigo e confiável, mas não é científico.
Você deve estar se perguntando por que não é científico esse conhe-cimento, não é? Provavelmente você já deva saber a resposta. A explica-ção da eficácia terapêutica sustenta-se em um conjunto de afirmações não verificáveis, que se referem à semelhança entre a doença e a planta. Essa explicação, conhecida como teoria das assinaturas, afirma que há um sinal, um signo que liga um órgão humano a uma parte de alguma planta, assinalando que ali se encontra o remédio para suas doenças.
O conhecimento empírico acerca do valor terapêutico do salgueiro -branco e da erva-das-abelhas é confiável, mas tem limitações incontor-náveis. Uma das limitações é que não é possível saber qual a dosagem adequada para o tratamento; outra limitação, não há como verificar
COMENTÁRIO
Teoria das assinaturas
Os defensores da teoria das assinatu-ras (o semelhante cura o semelhante) dizem que apenas algumas pessoas especiais conseguem ver os sinais. Sendo assim, não há como estabelecer um conhecimento intersubjetivo ou obje-tivo, apenas seus adeptos podem ver os sinais, logo, é preciso converter-se em uma pessoa especial.
capítulo 1
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ou controlar as afirmações acerca da semelhança entre os órgãos e asdoenças. Logo, não se tem uma explicação confiável do que produz a redução dos sintomas das doenças para as quais são indicados.
PERGUNTA
Há uma explicação científica para a eficácia desse fitoterápico?
A explicação científica foi constituída ao longo dos séculos xviii e xix pelo exame das substâncias químicas dos extratos de casca do sal-gueiro-branco. A primeira descrição desse fármaco foi apresentada por Edward Stone em 1763, no Reino Unido, indicando que o seu princípio ativo é o ácido salicílico, que, em 1828, foi isolado em sua forma cristalina. Em 1897, o laboratório farmacêutico Bayer juntou o ácido salicílico com acetato e criou o ácido acetilsalicílico (aas), que é menos tóxico do que a substância original. O aas foi o primeiro fármaco sintetizado.
Esse exemplo mostra que um conhecimento prático confiável pode ser explicado de muitas maneiras, mas a melhor explicação permite am-pliar e aperfeiçoar o que se sabia. Ao isolar o ácido salicílico deu-se um passo para ajustar a dosagem e verificar seu nível de toxicidade, e a sín-tese com o acetato reduziu essa toxicidade, bem como permitiu a sua produção em tabletes com dosagens definidas e controláveis. O AAS é um produto sintético, não se encontra na natureza, e, portanto, destrói a sustentação da teoria das assinaturas.
O conhecimento científico parte de uma hipótese testável: se o pó do extrato produz um efeito terapêutico, qual é a substância que pro-duz esse efeito? Essa questão implica analisar, separar os elementos do composto para identificar o que nele é eficaz, descrevendo-o de tal ma-neira que outros possam produzi-lo e testá-lo.
ATENÇÃO
Essa condição é fundamental, pois as proposições de um cientista precisam ser analisadas e testadas por outros para serem admitidas. Essa revisão por pares, ou seja, por outros cientistas que não têm relações diretas entre si, descarta muitas comunicações e retém algumas que são as defensáveis.
Aqui aparece outra diferença entre o conhecimento científico e os demais: o científico sempre se sustenta no conjunto de conhecimentos validados de uma área, não é a manifestação dos desejos e crenças de uma pessoa, de um sujeito. Daí se dizer que o conhecimento científico não é subjetivo, mas intersubjetivo ou objetivo.
AUTOR
Edward Stone
Edward Stone (1702-1768) nasceu na Inglaterra e estudou na Universidade de Oxford, entre outras. Seu procedi-mento científico que deu origem ao ácido salicílico foi criar um pó a com base na casca da Salix alba, sendo esse extrato aplicado a 50 indivíduos inicialmente. Após várias tentativas e observações, conseguiu determinar a quantidade exata do composto e o in-tervalo de aplicação, obtendo resulta-dos comprovadamente eficazes.
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capítulo 1
Como apreender os conhecimentos
confiáveis pelo exame de seus argumentos?
As explicações a respeito de alguma prática bem-sucedida são afirma-ções organizadas de tal maneira que as pessoas são convencidas da sua validade. De fato, seja qual for a prática, as pessoas procuram justificar tanto o sucesso quanto o fracasso.
EXEMPLO
No exemplo do salgueiro-branco, a explicação antiga apoiava-se em uma concepção bem ampla: Deus dispôs no mundo os remédios para todos os males, os quais são encontrados por quem é capaz de identificar os seus sinais (signos). Nessa cos-movisão há uma ordem no mundo, nada ocorre por acaso, tudo está em seu devido lugar, inclusive a doença e seus remédios. Essa explicação total, ou holística, tem inúmeros defeitos. Um deles foi mostrado antes: há fármacos que não se encontram livremente na natureza, foram sintetizados. Outro defeito é afirmar que o mundo é perfeitamente ordenado, em que nada ocorre por acaso.
PERGUNTA
Por que é um defeito, afinal tudo tem uma causa?
Porque basta um caso em que alguma coisa tenha ocorrido aciden-talmente para destruir essa afirmação muito geral. De fato, as afirma-ções gerais, as que usam o operador lógico todo, são facilmente destru-ídas pela apresentação de um caso não congruente com o que foi dito.
PERGUNTA
Há evidências de que o mundo não é perfeitamente ordenado?
Você, como eu, já assistiu a partidas de futebol em que o locutor en-tusiasmado afirma, com autoridade, no início do jogo: “A Seleção bra-sileira jogou N vezes contra a Seleção argentina; venceu X, perdeu Y, empatou Z; então, hoje, a Seleção brasileira deve vencer.” Será? Só sabe-remos no apito final.
PERGUNTA
É verdade, jogo é jogo, mas tudo tem uma causa…
COMENTÁRIO
Operador lógico todo
Por exemplo, a afirmação Todo cisne é
branco foi destruída quando se encon-trou um cisne negro. Como dito, afirma-ções absolutas ou singulares tendem à imprecisão. A título de curiosidade, o cisne-negro (Cygnus atratus) é originá-rio da Austrália.
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Muitos dizem isso, afirmam que não foi por acaso que aconteceu istoou aquilo, por isso que o jogo foi ganho por uma das equipes. Essa afirma-ção supõe que há algo como uma mão invisível que a tudo comanda, o que exige a fé nessa afirmação. Isso pode ser adequado para as religiões, mas não para produzir conhecimento científico. O uso do salgueiro-branco mostra que a explicação pré-científica sustenta-se na fé, e que a científica permite uma melhor explicação e uso do fármaco.
PERGUNTA
Isso quer dizer que das práticas é possível produzir conhecimentos científicos?
Sim, das práticas é possível constituir conhecimentos científicos, pois em qualquer prática há duas dimensões, uma delas se refere às ex-plicações, logo aos argumentos que justificam as relações em questão. Quando tudo corre como o esperado, ficamos satisfeitos, geralmente não nos preocupamos em explicar os procedimentos que funcionam, salvo quando alguém nos pede para ensinar como fazer. Seja para re-solver um problema na execução, seja para ensinar os procedimentos, quem se dedica à explicação sabe que as práticas têm duas dimensões: (a) a da efetividade e (b) a inferencial.
PERGUNTA
O que é inferência?
Usarei um exemplo utilizado pelos antigos gregos: um cachorro per-seguia uma presa por uma estrada e a perdeu de vista em uma encruzi-lhada. O cachorro, então, farejou o caminho à direita, ao centro e dis-parou pela esquerda. Essa decisão é uma inferência, uma dedução que excluiu as alternativas ou as hipóteses.
REFLEXÃO
O esquema geral da inferência é denominado silogismo, palavra grega que significa tanto inferência quanto dedução. Mesmo se você não se lembrar do termo formal (silogismo), você o conhece, pois o utiliza. Veja o exemplo:
• Todo homem é mortal – premissa maior ou proposição afirmativa inicial;
• Sócrates é homem – premissa menor, termo médio, pelo qual se chega à conclusão; • Logo, Sócrates é mortal – conclusão.
Observe que o dito na premissa maior acerca dos homens, o predicado mortal, apa-rece na conclusão porque o particular Sócrates é caracterizado como homem (que é
COMENTÁRIO
Efetividade e Inferencial
A efetividade é avaliada pela realização dos objetivos do fazer. Se os objetivos foram alcançados, então se diz que foi efetivo, ou seja, eficaz e eficiente. Um procedimento pode ser eficaz e muito dispendioso, logo, ineficiente. A relação custo/benefício refere-se à eficiência de um processo de produção eficaz. Assim, a efetividade é constituída por
duas qualidades: a eficácia e a eficiên-cia. Já o aspecto inferencial é de outra natureza, refere-se aos argumentos
uti-lizados para explicar porque são efica-zes e eficientes.
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capítulo 1
o sujeito da premissa maior, o qual recebeu o predicado mortal), por isso a premissa menor, também denominada termo médio, transfere os significados da maior para a conclusão. O valor de verdade das premissas determina a qualidade da conclusão. Isso você pode estudar nos manuais como no de Weston, indicado no final deste capítulo.
Geralmente os argumentos não aparecem nessa forma, e a sua expli-citação depende da situação, a qual é muito importante quando avalia-mos uma comunicação. Observe que a palavra premissa pode ser subs-tituída por princípio.
É preciso observar a forma da premissa maior, caso seja universal (todos e cada um), então pode ser enganosa ou mesmo falsa. Por exem-plo, afirmar que os brasileiros (o mesmo que todos os brasileiros) são
faná-ticos por futebol é demasiado, uma vez que muitos brasileiros sequer se
interessam por esse esporte.
EXEMPLO
Jogo é jogo
Vamos a um exemplo a respeito de inferência a partir de uma prática humana. Mui-tos afirmam que a disposição dos jogadores de futebol na forma 4, 4, 3 é melhor
porque (esta palavra é um marcador da inferência sustentada por quem fala) nesta
é possível defender e atacar eficazmente. Esse argumento decorre do exame das partidas com aquela e outras disposições, o que levou a julgar, inferir, ser a melhor disposição dos jogadores. Como se trata de jogo, não há muito o que discutir acerca da validade lógica dessa inferência, isso porque pode ser eficaz na maior parte das partidas e não em outras; logo, é plausível ou verossímil.
Por falar em jogo, essa palavra pode ser utilizada para designar ativi-dades muito diversas, por isso Ludwig Wittgenstein disse que ela apre-senta um ar de família de significados.
Aqui nos interessa o uso da palavra jogo na expressão teoria dos jogos, por meio da qual se procura formalizar as situações em que os adversá-rios ganham ou perdem, reexaminando dilemas dos mais diversos para encontrar uma solução. Não cabe, aqui, apresentar essa teoria. Cabe, no entanto, apresentar pelo menos duas situações de decisão a partir de ar-gumentos que são tratados na teoria dos jogos, a dita decisão salomônica e o dilema do mentiroso.
REFLEXÃO
Você conhece a célebre história do bebê atribuída a Salomão? Nela, duas mulheres reivindicaram a maternidade de uma criança perante ele, e este, para resolver o dilema, ordenou a um soldado que cortasse a criança ao meio e distribuísse as partes entre as mulheres. Uma delas abriu mão da criança,
AUTOR
Ludwig Wittgenstein Ludwig Joseph Johann Wittgens-tein (1889-1951) é considerado um dos filósofos mais im-portantes do século xx. Publicou um livro em vida (TractatusLogico-PhilosophicusI, 1922);
Investi-gações Filosóficas (1953) foi publicado após sua morte, com base em escritos compilados do autor.
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dizendo que prefereriria ver o filho nos braços de outra mãe a vê-lo morto. Salomão,então, entregou a criança a essa mulher por considerar esta a mãe verdadeira. O problema, nesse caso, é que esses tipos de declarações não permi-tem uma decisão lógica, racional, pensada. Por quê? Porque os
argumen-tos acerca deles mesmos ou autorreferentes não se resolvem pela escolha de uma das afirmações.
REFLEXÃO
Um exemplo similar é conhecido como o dilema do mentiroso:
Todos os minoicos são mentirosos (disse o minoico Epimênides).
Se quem disse todos os minoicos são mentirosos é um minoi-co então: (a) ou diz a verdade, logo nem todos são mentirosos; (b) ou mente, então não é verdade que todos os minoicos sejam mentirosos.
Voltemos ao caso da disputa da maternidade. Será que a decisão de Salomão resolveu corretamente o dilema? Na narrativa, sim; mas pode-mos nos perguntar se a mãe que abriu mão da criança o fez por ser mais esperta do que a mãe biológica, que ficou tão chocada que não soube re-agir. Nunca saberemos. A lição é: os argumentos que falam a respeito deles
mesmos não são resolvidos por meio de uma análise lógica, são necessários outros recursos.
PERGUNTA
Está dizendo que um argumento racional, bem constituído, pode não ter validade prática, empírica?
Exatamente. Há argumentos perfeitamente lógicos que não são váli-dos do ponto de vista experimental ou empírico. Considere o argumen-to: Duas esferas, uma pesando dois quilos e a outra um quilo, são soltas
si-multaneamente: a de dois quilos cai duas vezes mais rápido. Lógico, mas
errado. Galileu demonstrou que os corpos caem na mesma velocidade caso se desconsidere o atrito do ar.
Esse é um exemplo de como um conhecimento científico é contrain-tuitivo, e mostra que um argumento perfeitamente lógico pode não ser pertinente ao que se refere.
PERGUNTA
Então não é suficiente que um argumento seja lógico para ser admitido como científico?
AUTOR
Galileu Galilei Galileu Galilei (1574-1642), con-siderado o precursor do método científi-co, reuniu as observações astronômicas com a geometria e cálculos descreven-do as órbitas de maneira mais acurada. Seus cálculos permitiram definir que o Sol é o centro do sistema e não a Ter-ra, confirmando o heliocentrismo de Co-pérnico, o que contrariou as posições da Igreja Católica. Além disso, Galileu Ga-lilei demonstrou que corpos com pesos (massas) diferentes caem com a mesma velocidade quando não há atrito. Dentre seus livros destacam-se Discorsi eDi-mostrazioni Matematiche Intorno a Due Nuove Scienze (1638), na Holanda, considerada a sua obra mais importante, na qual discute as leis do movimento e a estrutura da matéria (ver foto).
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capítulo 1
Exatamente, ser lógico não implica ser pertinente a uma situação. Não fosse assim as ciências seriam um encadeamento de argumentos perfeitamente lógicos.
PERGUNTA
Mas a Matemática é assim, ela então não é uma ciência?
Sua pergunta requer que eu introduza uma distinção entre as ciências, caso contrário, ficaremos em um beco sem saída (aporia, lembra?). Va-mos então explorar a próxima seção deste capítulo para falar do assunto.
Gêneros ou tipos de ciências
Há dois grandes tipos, ou gêneros, de ciências: (a) as construtivas; e (b) as reconstrutivas. Vejamos um primeiro quadro geral de distinção:
CIÊNCIAS
CONSTRUTIVAS
As construtivas são as Matemáticas e as Lógicas, que se caracterizam por desenvolverem seus argumentos uns sobre os outros com base em axiomas ou hipóteses de partida, construindo os argumentos válidos.
CIÊNCIAS
RECONSTRUTIVAS
As reconstrutivas são todas as demais. Nelas se procura reconstruir ou reconstituir os fenômenos para explicá-los.
Como foi dito acerca das práticas, o aspecto inferencial é uma re-constituição do que se fez e faz para explicar a razão do fracasso, logo, saber como realizar algo de maneira eficaz e eficiente. Os argumentos
uti-lizados nas ciências reconstrutivas não são válidos por serem lógicos, mas por serem adequados e pertinentes ao que se está estudando. O exemplo
anterior acerca da queda dos corpos na superfície da Terra, na escala humana, mostra o que acabo de dizer.
PERGUNTA
Acontece que a Física, por exemplo, usa muita matemática, então ela é uma ciência construtiva?
Essa confusão decorre de como a Física é ensinada, não de seu caráter epistemológico. É fato que os físicos descrevem os fenômenos utilizando instrumentos emprestados da Matemática. Por exemplo, você estudou que a força é definida pela multiplicação da massa pela aceleração (f = m.a). Essa relação define a força, logo estabelece uma identidade (princípio da identi-dade) em que o sujeito da proposição (força) não é em si e por si (absoluto), é definido pela relação multiplicativa da massa pela aceleração. Essa relação
COMENTÁRIO
Epistemológico
A palavra epistemologia resulta da reunião de dois vocábulos gregos:
epis-temé, com o significado de conheci-mento verdadeiro, confiável, científico; e, lógos, na acepção de discurso, nar-rativa, estudo. Os gregos antigos não utilizavam essa palavra, que foi criada pelo filósofo escocês James Frederick Ferrier (1808-1864) para designar o estudo de problemas tais como os exa-minados neste capítulo.
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é bem simples: a força é a medida do deslocamento/aceleração da massa,quanto maior a massa mais força é necessária para a acelerar/deslocar.
REFLEXÃO
A fórmula é uma abstração reflexiva, raciocinada, acerca dos fenômenos físicos da mecânica na escala humana. Caso mudemos de escala, aquela fórmula não descre-verá adequadamente os fenômenos, sendo necessárias outras reconstruções.
Considere outra reconstrução contraintuitiva de fenômenos, agora no âmbito da Biologia. Intuitivamente, os seres vivos parecem que sem-pre foram tal como os conhecemos. No entanto, criadores de animais e agricultores modificam as espécies que criam e cultivam. Logo, pode-mos afirmar que os seres vivos nem sempre tiveram a forma e os com-portamentos que conhecemos, uma vez que os domesticados foram mo-dificados pela ação intencional dos homens.
PERGUNTA
Como os homens fazem isso?
Em um grupo de animais ou de plantas há indivíduos que têm as ca-racterísticas que interessam ao criador ou ao agricultor. Então, eles os separam e os mantêm para reprodução, desprezando os demais. Esse processo de seleção de alguns indivíduos que interessam aos homens produziu e produz novas espécies: as que só reproduzem entre si; ou va-riedades, as que se reproduzem com outras espécies.
Com base nessa constatação, Jean-Baptiste Pierre Antoine de Monet, Cavaleiro de Lamarck (1744-1829), sustentou que as espécies existentes procedem das anteriores que se modificaram para se adaptarem ao
ha-bitat ou meio. A explicação de Lamarck foi refinada por Charles Darwin que propôs que a sucessão das espécies em um habitat decorre da
sele-ção natural e da selesele-ção sexual.
ATENÇÃO
A seleção natural é similar à realizada pelos agricultores e pecuaristas, salvo por um aspecto: não é intencional, se dá por acaso. Logo, a seleção natural é uma metáfora resultante da comparação entre o tema (o assunto que está em exame, para o qual ainda não se tem um conjunto de propriedades definidas, neste caso, a variedade das espécies observadas em diversos lugares do mundo); e o foro (uma noção da qual se extrai os significados a serem transportados ao tema, fornecendo as proprie-dades que permitam defini-lo, atendendo ao princípio da identidade, aqui definido como a seleção de animais e plantas intencionalmente realizada pelos homens).
AUTOR
Charles Darwin
Charles Robert Darwin (1809-1882) alcan-çou notoriedade ao publicar o livro A
origem das espécies
(1859), no qual propôs a evolução a com base em um ancestral comum por meio de seleção natural. Essa obra e demais trabalhos de Darwin consolida-ram a posição de um cientista influen-ciou inúmeros desenvolvimentos cientí-ficos, em especial no campo da Biologia.
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capítulo 1
Como a seleção natural não é intencional, então é impróprio dizer:
A natureza fez isto ou aquilo, pois não há intenção na natureza. A seleção
natural ocorre por mudanças ambientais (até a primeira metade do sé-culo xx usava-se a expressão habitat) que forçaram o desaparecimento de indivíduos bem adaptados ao meio e permitiram a sobrevivência dos não muito adaptados ao anterior. Assim, não é preciso evocar alguma explicação mais complicada a respeito da sucessão das espécies.
Darwin utilizou um dos critérios da argumentação científica conhe-cido como a navalha de Occam (princípio da parcimônia). O sentido des-sa recomendação é que as explicações concides-sas e conclusivas (rigorodes-sas) apresentam poucas hipóteses que podem ser verificadas ou testadas, enquanto as explicações complexas, com muitas premissas e pressu-postos, são impossíveis de serem verificadas.
No entanto a teoria da sucessão das espécies (este é o nome correto da teoria de Charles Darwin) em um habitat não se deve apenas à seleção na-tural, uma vez que o autor precisou de outro princípio argumentativo para explicar o que aquele não consegue. Esse outro princípio, ou hipótese ex-plicativa ou premissa, é a seleção sexual, segundo o qual as fêmeas selecio-nam os machos, mantendo as características da espécie. Não se trata de uma escolha intencional, mas sensorial (estética, de aistethesis, sensação, percepção), de apreensão das características próprias da espécie.
Assim, de um lado há a conservação pela seleção sexual e de outro, as mudanças acidentais no ambiente aniquilam grande número de in-divíduos adaptados ao anterior e, com sorte, alguns que não eram tão adaptados sobrevivem na nova situação.
ATENÇÃO
De um mesmo ponto de partida, as espécies não são fixas, chega-se a pelo menos duas explicações: a de Lamarck e a de Darwin. A decisão a respeito do valor argu-mentativo de ambas não depende da fama de seus autores, mas das investigações que permitam dizer qual delas é mais completa ou, para dizer de maneira técnica, qual delas é concisa e conclusiva ou, o que significa a mesma coisa, rigorosa.
Uma explicação concisa, em que os argumentos são claros e diretos, sem volteios e ornamentos, apresenta claramente a hipótese sobre a qual se sustenta e conclui com base nessa premissa, ou seja, cumpre as recomendações de Occam (princípio da parcimônia).
Assim, os adversários podem testar a validade da hipótese apresen-tada. Como as hipóteses são apresentadas como questões, nas quais é preciso apresentar duas respostas contrárias (princípio do terceiro ex-cluído), então a forma da pergunta é decisiva, considerando-se a preocu-pação de evitar perguntas ambíguas.
Temos, então, mais um critério para saber se um conhecimento é ou não científico. Caso o conhecimento apresente explicitamente a hipótese ou
CONCEITO
Princípio de parcimônia
É um princípio atribuído a Guilherme de Occam (1285-1347), frade fran-ciscano, filósofo e lógico inglês, o qual recomenda recorrer apenas às pre-missas estritamente necessárias para explicar algum fenômeno. Tal princípio surgiu com base na máxima “plurali-dades não devem ser postas sem ne-cessidade” (em latim, pluralitas non est
ponenda sine neccesitate).
COMENTÁRIO
Peguntas ambíguas ou complexas
Imagine a seguinte pergunta sendo fei-ta a você: “Você parou de beber?”. Se você responder “sim”, pressupõe-se que você bebia, provavelmente em grande quantidade (subentendido). Se respon-der “não”, pressupõe-se que você conti-nua bebendo, provavelmente um alcóla-tra (subentendido).
Para bem conduzir o raciocínio, é preciso perguntar quais as qualidades que legiti-mamente podem ser atribuídas ao sujei-to de uma proposição. Uma das armadi-lhas envolvidas nas perguntas é o duplo significado, como vimos no exemplo.
capítulo 1
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premissa sobre a qual sustenta a conclusão, então ele pode ser confiável. Podeser não significa que é, pois é preciso que outros especialistas corroborem, tendo verificado a pertinência da hipótese e da conclusão por meio de obser-vações controladas ou experimentos. Logo, o conhecimento científico não é a expressão da subjetividade de uma pessoa, mas o resultado de um coletivo.
Há conhecimentos confiáveis que não
são científicos, mas todo conhecimento
científico é confiável
A explicação rigorosa, concisa e conclusi-va própria das ciências é testável por qual-quer pessoa que domine os procedimen-tos metodológicos e técnicos necessários. Além disso, os conhecimentos cien-tíficos reconstrutivos referem-se a fe-nômenos delimitados no espaço e no tempo, e têm validade na escala
estabe-lecida em cada ciência; logo, não são generalizáveis para além ou aquém do que dizem. Isso significa que as explicações ou teorias constituídas para a escala humana não são aplicáveis às escalas micro ou macro. Um exemplo de impropriedade de passagem de uma escala para a outra é a alquimia, que dominou o horizonte intelectual dos séculos xvii e xviii.
Essa concepção holística, como vimos nos alquimistas, aparece em muitos discursos contemporâneos, como a afirmação de que a Terra
vin-ga-se das ações dos homens, ou que a Terra, Gaia, é mulher, uma mãe. São
concepções animistas, pois consideram os seres inanimados como se fos-sem dotados de alma e afirmam que tudo está ligado a tudo, censurando as ciências por recortarem a realidade de tal maneira que se perde o todo.
PERGUNTA
Haveria um método geral para produzir conhecimentos confiáveis?
Há regras gerais de conduta e de análise dos argumentos, pois elas são necessárias em qualquer situação que tem por objetivo estabelecer a verdade ou verossimilhança do que se diz acerca do sujeito de uma pro-posição, como vimos. Mas não há um e apenas um método científico. Isso porque o método é um conjunto de procedimentos vinculados ao objeto, sujeito das proposições, de cada ciência.
As ciências reconstrutivas estabelecem os seus objetos por meio da comparação entre o tema, assunto que se quer explicar, com alguma noção que se conhece ou o foro da comparação.
A diferença
entre um e outro
decorre dos
procedimentos
utilizados para
validá-los.
COMENTÁRIO
AlquimiaPara os alquimistas, as explicações que temos para a vida na escala hu-mana valiam para o universo inteiro, para o cosmo. Assim, eles diziam que
os raios do Sol fecundam a Terra como o esperma fecunda a fêmea, em uma cosmovisão integralmente vinculada à reprodução sexual. Essa concepção holística (totalizante) sustenta que a
Terra é como uma mulher, e o Sol é como um homem.
EXEMPLO
Procedimentos
Os procedimentos experimentais da Fí-sica, por exemplo, nem sempre são úteis nas pesquisas a respeito de seres vivos.
28 •
capítulo 1
PERGUNTA
Por que é preciso estabelecer o foro de comparação?
Porque o tema ou o objeto da investigação precisa ser definido
(princí-pio da identidade), o que requer um conjunto delimitado de propriedades
ou categorias para falar a seu respeito: as proposições utilizadas nas ex-plicações (princípios da não contradição e do terceiro excluído). Recorde-se que proposição é uma frase que afirma ou nega alguma coisa.
Por exemplo, na afirmação A Terra é como um organismo vivo, tal como
o corpo humano, compara-se duas noções diferentes para transportar os
significados admitidos acerca do corpo humano (foro da comparação) para o tema que se quer significar ou ressignificar, o planeta. Transfe-re-se, por exemplo, os significados de sentimentos humanos ao planeta para afirmar: A Terra se vinga.
PERGUNTA
Não se pode confiar nessa comparação, não há evidências de que o planeta tenha sentimentos.
Você pôs em dúvida a comparação que deu origem àquela proposi-ção, logo utilizou um esquema de pensamento denominado ironia. Esse tipo de questionamento é necessário tanto para produzir conhecimen-tos científicos quanto para avaliar os apresentados sob esse rótulo.
Retornemos ao que foi apresentado no início deste capítulo, o es-quema dialético necessário para estabelecer se alguém cometeu ou não homicídio e acrescentando outro que permite decidir acerca da melhor explicação ou hipótese: o modus tollens (modo de tirar).
Vamos ver como isso se daria em um caso hipotético, a título de ilus-tração. No exemplo de uma acusação de homicídio, o esquema poderia ser o seguinte:
PREMISSA MAIOR Fulano está morto PREMISSA MENOR E PRIMEIRA HIPÓTESE PREMISSA MENOR E SEGUNDA HIPÓTESE PREMISSA MENOR E TERCEIRA HIPÓTESE
Fulano foi assassinado Fulano morreu
naturalmente
Fulano não morreu, mas, sim, seu irmão gêmeo CONCLUSÃO
Não há conclusão enquanto não se excluir as hipóteses concorrentes restando apenas uma, a que melhor explique o fato fulano está morto.
CONCEITO
Modus tollens
Modus tollens (modo de tirar) é uma for-ma de organizar o raciocínio que exclui sucessivamente as hipóteses até que reste apenas uma, a que melhor explica o afirmado na premissa maior.
capítulo 1
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Esse exemplo é muito simples, pois só apresenta três hipóteses contrárias edelimita-das. A decisão acerca da pertinência de se admitir a hipótese que melhor explique o cons-tatado (a premissa maior) é estabelecida pelos especialistas que argumentam acerca dos indícios, comparando com as situações conhecidas para alcançarem uma conclusão de-fensável e confiável. Esse debate pode ocorrer, como já foi dito, na situação social denomi-nada dialética.
PERGUNTA
Afinal, por que você diz situação dialética e não método dialético?
Porque as técnicas argumentativas estão condicionadas pelo que se quer e se pode fazer
em uma situação social, não no mundo aquém ou além dos humanos. É a instituição ou a
situação social que permite avaliar e estabelecer conhecimentos admissíveis para todos os interessados, e isso requer que os envolvidos tenham ampla liberdade para discordar, para contraditar os argumentos. Certamente os envolvidos precisam ter os mesmos conheci-mentos acerca do assunto, caso contrário a discussão não será produtiva.
PERGUNTA
Por que é preciso que seja assim?
Para evitar que as conclusões sejam a expressão dos desejos e crenças de uma pessoa ou de um grupo. Essa regra é uma extensão daquela que estabelece que a verdade não depende de alguma autoridade, seja ela qual for, mas das evidências estabelecidas pelos argumen-tos acerca dos indícios e evidências.
PERGUNTA
Ah! Então trata-se de um consenso, de um acordo entre as partes?
Uma vez que o plausível foi estabelecido por meio de um debate em que as partes tive-ram ampla liberdade para discordar, então o seu resultado não é um consenso, pois muitos
argumentos foram destruídos, o que não ocorre em um consenso político, por exemplo.
PERGUNTA
Por que o conhecimento científico não é um consenso? Kuhn não afirmou que o pa-radigma é um consenso?
É certo que Thomas Kuhn afirmou que as ciências constituem-se sobre consensos. Mas esse consenso sustenta-se no quê e no como fazer, não é análogo aos estabelecidos nas situações parlamentares, por exemplo, em que os enunciados são ambíguos o suficiente para que todos concordem. Há consenso acerca da teoria que estabelece o tema a ser estudado, como investi-gar e sobre os procedimentos, mas os resultados das pesquisas caracterizam-se pela destruição de