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Nova semiótica pós-Covid para humanos e outras criaturas melhores

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Academic year: 2021

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Nova semiótica pós-Covid para humanos e outras criaturas

melhores, por Elvira Seminara

Literatura Italiana Traduzida ISSN 2675-4363 ​CORONAVIRUSELVIRA SEMINARAPANDEMIA em ​maio 22, 2020

René Magritte - Golconde - 1953

“Não vejo ninguém. […] um guarda-chuva de mulher, aberto e revirado, no chão, e uma bolsinha. Um táxi está na calçada […] Vim à procura de alguns milhares de desaparecidos […] Um evento (inimaginável) surpreendeu aqui a gente que dormia […] mas na verdade não fugiram […] partiram de outra maneira. Raptados. Arrastados….”.[i]

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Quem está falando é o protagonista de Dissipatio H.G. – o romance de ficção psicológica de Guido Morselli – recém resgatado do próprio suicídio e retornado a um mundo vazio. Aflito, abatido? De modo nenhum: “​O mundo nunca esteve tão vivo quanto hoje, que

uma certa raça de bípedes deixou de frequentá-lo. Nunca esteve tão limpo, luminoso, alegre”[ii]​.

Muitas vezes pensei, embaraçada, no hipocondríaco (e antropófobo) homem de Morselli em minhas breves e cautelosas excursões à cidade em quarentena. Embaraço, mas também sentimento de culpa, sim, porque eu também acho belíssimas e metafísicas as praças esvaziadas de nós humanos, restituídas a uma inédita completude de espírito e formas. Mas é lícito um olhar estetizante, eco-decadente, dentro de uma crise que produziu centenas de milhares de mortos e novas pobrezas? E porque em nós humanos mascarados vejo os manequins das gélidas praças de De Chirico, ou as figuras estupefatas de Magritte?

Mascarados. Com as luvas mediando a relação com o mundo (humanos e coisas), a uma distância segura. E se é verdade que cada época produz e exprime a sua doença, o Covid-19 responde perfeitamente, tanto na dimensão estética e formal quanto na dimensão simbólica. Toda doença – como a Aids dos anos 1990 ou o Alzheimer no início dos anos 2000 – parece realmente responder também a uma fatalidade semiótica, que distorce os sinais e a sintaxe social, invertendo-os como em um malicioso e punitivo contrapasso.

O vírus Corona nos revelou, porém, com zombeteira perversão, o rosto obscuro da era do “contato”, que com euforia e alguma indecência nos pertence. Repentinamente e em poucos dias, o “contato” que até agora evocou trocas relacionais e profissionais, em que é ao mesmo tempo moeda social e sistema de valores, ou mesmo índice de carreira ou carisma pessoal, saiu do uso metafórico para se tornar outra coisa: um perigo, um instrumento de contágio.

E mais. A ressemantização em curso onera todo um leque de palavras da esfera social, restituindo-as ao seu valor de origem. O que dizer da “viralidade”, até agora associada enfaticamente a vídeos ou posts de enorme difusão? E não havíamos usado até ontem “contágio” com respeito a ações ou modelos emulados e reproduzidos pelos consumidores, com júbilo do mercado – “look contagioso”, “espírito contagioso”? Até o “influencer”, para o qual em italiano não encontramos uma tradução, não é mais do que um grande Contagiador,

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visto que seu sucesso está ligado à quantidade de sujeitos “influenciados”, contagiados? Por outro lado, a própria palavra “epidemia”, antes de ocupar, desde março, toda frase e legenda dos telejornais, circulava na linguagem midiática e publicitária para evocar o paraíso de largo consumo, com mercadorias ou fenômenos imitados e compartilhados.

De modo que aqui estamos. Com luvas para evitar o contato, à distância de um metro, a máscara aprisionado as ​droplets​. Esta é a palavra nova que faltava, graciosa e ágil no som. ​Droplets​. Gotículas de saliva voláteis e dispersas no ar, acidentais e involuntárias. Partículas assassinas expulsas pelos espirros e pela tosse, mas também dentro das palavras, o fôlego. Na era da comunicação expandida, o demônio ​Droplet nos impõe calar. Conter nossas manifestações, reduzir nossos gritos. Atenuar nossa presença, o peso do nosso estorvo no mundo. E o volume da nossa voz. Os nossos gestos.

Talvez devamos acatar, como disse Julia Kristeva, o apelo para aceitarmos a nossa finitude. Para reduzir a nossa exuberância e insolência: para “ ​exprimir o sentido da precaução”.

Olhemos ao nosso redor. Nossa proxêmica mudou, a postura no mundo. Alterou-se a medida instintiva das distâncias entre nós, consolidada nos séculos pelas práticas e pela geografia social, e talvez não volte a ser a mesma. Nos movemos cautelosos e desconfiados, com uma linguagem não verbal que mostra nossas reservas. Somos sujeitos “evitantes”, como os psicólogos definem as personalidades fugazes e um pouco associais. A máscara nos disfarça e, subtraindo-nos ao olhar do outro, nos absolve de reconhece-lo, deixar-nos reconhecer. É um diafragma que nos mimetiza ao cenário, zera os detalhes, nos torna pano de fundo. Uma nova estética – apagados dois terços do rosto – nos uniformiza e neutraliza numa autorrepresentação simplificada e básica, em que até a roupa e o corpo se desdobram numa dimensão anônima, perdido ou reduzido temporariamente o desejo-necessidade de se mostrar.

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O outro/a pode ser um inimigo, infeccioso mesmo se assintomático, como eu. A máscara torna-se um auxílio autodefensivo, para represarmos nossas expressões no mundo. Nossos extravasamentos.

Em uma palavra, nosso ​Spillover​. Transbordamento.

Até nossos gestos, mediados ou não pelas luvas, revelam uma nova parcimônia, uma prudência funcional – pegar, largar, cumprimentar de longe – nunca exprimidas. Porque mesmo tocarmos o nosso rosto é um risco.

Atravessamos as ruas oxigenadas e livres, até na perspectiva, que revela cúpulas e terraços nunca vistos. O pinheiral no Etna, as praias, a areia das praias têm as cores brilhantes e frescas da criação, a superfície sem rastros, ou rabiscos. O passo natural – mas também esquivo e tímido – dos cervos, javalis e patos que assomam nos espaços desocupados mostra sua incredulidade.

Agora entendo melhor Annamaria Ortese, quando vê a nostalgia nos olhos dos animais, “as pequenas pessoas” como os chama. Nostalgia de um mundo perdido em que eram parte do todo, um ​todo​ livre e puro.

Talvez a nova gramática social será permeada de prudência, paciência, senso de limite. Talvez aprenderemos uma nova reciprocidade, feita de cautelas e sensibilidade às normas. E deixaremos de “ordenhar furtivos o cosmo”, para citar Tranströmer. Talvez entenderemos o custo da nossa covardia em relação à terra e aos animais. E de nossa avidez predatória e irresponsável. Não é mais o Desconforto da civilização, mas o contágio da vilania que nos assedia. Desmascararmo-nos, sair ao aberto, encontrar uma nova linguagem? Tentaremos, ao menos.

 

Tradução de Francisco Degani   

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Elvira Seminara é jornalista ​free lancer desde 1991, antes de se dedicar inteiramente à narrativa, foi redatora do jornal ​La Sicilia e colabora atualmente com ​L'Espresso. Seu romance de estreia,

L’indecenza [A indecência] foi publicado pela Mondadori em 2008 e venceu o Prêmio Literário Nino Martoglio. Seguiram-se os romances ​I

racconti del parrucchiere [Contos do cabeleireiro] (2009), ​Scusate la polvere [Desculpem o pó] (2011), ​La penultima fine del mondo [O penúltimo fim do mundo] (2013) e ​Atlante degli abiti smessi [Atlas das roupas aposentadas] (2015).

O presente artigo foi publicado em Letteratitudine News 

 

[i] MORSELLI, Guido. Dissipatio H. G. O fim do gênero humano. ​Trad.: Maurício Santana Dias. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001, pp. 17-18.

Referências

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