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Narcisismo e discurso social: impasses para o sujeito

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Academic year: 2021

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UNIJUI – UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

DHE – Departamento De Humanidades e Educação Curso De Psicologia

CRISTIAN ALEXANDER PEREVERZIEFF

NARCISISMO E DISCURSO SOCIAL: Impasses para o sujeito

Santa Rosa 2018

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CRISTIAN ALEXANDER PEREVERZIEFF

NARCISISMO E DISCURSO SOCIAL: Impasses para o sujeito

Monografia apresentada ao Curso de Psicologia da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUI, como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Psicologia.

Orientadora: Profª. Ms. Carolina Gross

Santa Rosa 2018

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UNIJUI – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul DHE – Departamento de Humanidades e Educação

A Comissão Examinadora, abaixo assinada, aprova a monografia

NARCISISMO E DISCURSO SOCIAL: Impasses para o sujeito

Elaborada por

CRISTIAN ALEXANDER PEREVERZIEFF

Como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Psicologia

Comissão examinadora

Prof.ª Mestre Carolina Gross DHE/UNIJUI

Prof.ª Mestre Janete de Aquino Goulart DHE/UNIJUI

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Dedico este trabalho à minha Família, sem a qual estaria perdido no labirinto de mim mesmo.

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Trocar likes é inerente ao que é humano. É um sintoma dessa nossa necessidade de pertencer, de significar pro outro. A carência de si é o que nos faz querer completar em outras coisas.

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RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo uma investigação histórica e bibliográfica sobre como se dão as alterações subjetivas dos indivíduos inseridos no meio social, e como este tem influência na produção de sofrimento psíquico e mal-estar e nas formas de subjetivação dos sujeitos, a partir dos discursos produzidos em determinadas épocas e culturas. Com isso, pretendo demonstrar por pesquisa bibliográfica de referencial teórico psicanalítico e sociológico, que temos na contemporaneidade uma caracterização narcísica subjetiva exacerbada, que se apresenta como mecanismo de defesa frente às exigências do social e que podem produzir desfechos que ainda necessitam de maior trabalho no campo da Psicologia.

Palavras chave: Contemporaneidade. Mal-estar. Narcisismo. Sofrimento.

ABSTRACT

The present work has a historical and bibliographical investigation goal about how the individual’s subjectivity changes while inserted in social environment, and how does it influence the production of psychic suffering and malaise and affects the forms of subjectivation of the individuals, from the discourses produced in certain eras and cultures. With this, I intend to demonstrate by bibliographic research of psychoanalytic theoretical reference that we have in contemporary an exacerbated subjective narcissistic characterization, which presents itself as a defense mechanism against the demands of the social environment that may produce outcomes that still require more work in the field of Psychology.

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Sumário

INTRODUÇÃO ... 8 CAPÍTULO I – A CONTEMPORANEIDADE E O SUJEITO CONTEMPORÂNEO .... 11 CAPÍTULO II – UMA (RE) INTRODUÇÃO AO NARCISISMO – MECANISMO DE DEFESA DO SUJEITO?... 16

2.1. O conceito de narcisismo em Psicanálise ... 16 2.2. A cultura do narcisismo em Christopher Lasch e a relação com as questões subjetivas da contemporaneidade ... 19

2.3. O narcisismo como mecanismo de defesa frente o discurso social ... 23 CAPÍTULO III – O PROCESSO DE INDIVIDUALIZAÇÃO DOS SUJEITOS – HÁ LUGAR PARA SOFRIMENTO? ... 33 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 42 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 45

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INTRODUÇÃO

[Des]construção. As transformações pelas quais passam os acadêmicos durante o percurso universitário são inúmeras. Complementaria apresentando que no Curso de Psicologia ao permitir se apropriar do que os conteúdos apreendidos transmitem – neste caso específico as teorias psicanalíticas – se inicia uma movimentação subjetiva que, talvez, não irá se encerrar até que se complete o ciclo vital enquanto ser humano.

As infinitas ideias que passam como relâmpagos, que são criadas e esquecidas (diga-se recalcadas), retornando a posteriori, insistindo para comporem a construção da formação, ou que, por vezes, se fixam como raízes no pensamento compõem o trabalho que será desenvolvido. Isso porque, na profissão escolhida e absorvida, se fala de uma coisa, mas não algo de que se falaria em Matemática ou nas Engenharias, e sim uma coisa que não é possível nomear, mas que nos cerceia durante todas as nossas vidas e que resiste à ação do tempo, que carrega os sujeitos para o vazio inexorável do esquecimento ou os transforma em signos e significantes. Falar do ser humano sendo um ser da mesma espécie se apresenta como uma tarefa difícil. Escutar o outro sem ser tomado pelas vivências que são narradas, e sem deixar que as próprias vivências influenciem o discurso do outro, é muito difícil. Em um planeta com mais de sete bilhões de pessoas, onde cada indivíduo é único em sua subjetividade, pensar as relações construídas e mantidas por tantos seres singulares – sendo que conviver com poucos às vezes é quase impossível – também configura-se como uma tarefa que requer todo um cuidado e aperfeiçoamento constante de si, e atenção ao outro, que nos propomos a escutar.

Partindo desse pressuposto, buscar-se-á desenvolver, a partir de teorias de viés psicanalítico e sociológico, os efeitos disso na vida dos sujeitos estruturados na neurose, confrontando a resiliência e a capacidade dos indivíduos de suportar as angústias contemporâneas que têm relação com o conceito de narcisismo.

O objetivo dessa pesquisa não é o de esgotar as possibilidades acerca do tema, visto que é um conceito abrangente, passível de ser inserido em diversos âmbitos e de ser utilizado para teorizar sobre outras possibilidades dentro do universo psicológico.

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Para falar de patologias ou modos de ser contemporâneos, é preciso que tenhamos uma noção acerca da contemporaneidade e do sujeito contemporâneo. Para isso, no primeiro capítulo desse trabalho embasar-se-á o desenvolvimento do texto principalmente em Birman (2012), que, em seu livro “O sujeito na contemporaneidade” descreve não só o sujeito, mas a contemporaneidade como um todo, elencando as responsabilidades e os desafios que temos nós, profissionais psicólogos, agora e nos anos que virão, levando em conta o fato de que já é possível observar novas formações do inconsciente decorrentes de novas formas de subjetivação. Até o momento tem sido suficiente a teoria psicanalítica deixada por Freud e freudianos, e as contribuições de Lacan e dos lacanianos. Mas até quando conseguiremos dar conta desse sujeito psíquico que faz contínuos movimentos, em um ambiente social que também não para de se movimentar?

Caracterizados sujeito e contemporaneidade, passar-se-á à apresentação e conceptualização do narcisismo e sua relação com a contemporaneidade, bem como o impacto que os laços sociais formados têm na vida dos sujeitos. Para conceituar o narcisismo, no segundo capítulo apresentar-se-ão as ideias de Freud e a releitura que Nasio (1997) fez do conceito, prosseguindo nos subtítulos com a teoria que dá sustentação à hipótese a ser apresentada, e que gira em torno desse conceito. Após a definição do conceito, para apresentar algumas características que têm relação com a sociedade contemporânea, far-se-á uso do estudo de sociologia desenvolvido por Lasch (1983) na década de 70 sobre a cultura dos Estados Unidos da América, no qual o autor apresenta características do sujeito e sociedade narcísica norte-americanos ao introduzir uma noção patológica do narcisismo. O contraponto desta noção será apresentado a partir da tese desenvolvida por Freire Costa (1984), que aponta críticas à teoria desenvolvida por Lasch (1983) no sentido de que não teríamos uma patologia narcísica, já que as características apresentadas por ele são características étnicas da população norte-americana. A partir de Freire Costa (1984) será apresentada proposta semelhante à que o autor buscou em Freud e Laplanche (1980) para o desenvolvimento de sua hipótese, de que o narcisismo se apresenta como mecanismo de defesa diante das angústias causadas pela demanda excessiva do discurso social.

Com isso, e a partir da leitura de diferentes autores do campo da Sociologia, Psicanálise e Psicologia, no terceiro capítulo será possível observar que esse

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mecanismo de defesa do sujeito é produtor de sintomas, dentre os quais estariam o desamparo, isolamento e exclusão social, decorrentes do processo de individualização dos sujeitos. Prosseguindo com a hipótese desenvolvida, ainda será apresentado o suicídio enquanto resposta final do sujeito, como forma última de lidar com a angústia e o sofrimento provocados pelo sentimento de desconhecimento de si e de desamparo social, provocados pelo discurso capitalista da sociedade de consumo.

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CAPÍTULO I – A CONTEMPORANEIDADE E O SUJEITO CONTEMPORÂNEO

Para tomar a hipótese deste trabalho, é essencial que seja desenvolvida rapidamente uma noção sobre o que conhecemos como sendo a contemporaneidade e o sujeito contemporâneo. Tal tarefa não é simples, visto que esse assunto sozinho poderia ser tema de um trabalho. Os autores Joel Birman, Christian Dunker e Charles Melman – psicanalistas que trabalham ativamente questões relativas aos sujeitos e seus lugares no social – desenvolvem em suas pesquisas elementos necessários à abordagem a ser construída dessa breve noção desujeito e contemporaneidade.

Vivemos à época da informação, da velocidade, do imediatismo e da onipresença, através do advento da internet. Nos angustiamos quando demoram a nos responder no WhatsApp1 ou quando um vídeo tarda a carregar devido à lentidão da conexão da internet, sendo que há poucos anos necessitávamos de dias para que alguém recebesse uma carta de uma unidade da federação a outra. Hoje enviamos notícias e informações à velocidade de um clique; o que há uma década era revolucionariamente veloz, agora consideramos obsoleto e impensável. Como efeito, as formações de vínculos se modificaram, a estrutura familiar e a forma como nos conectamos e comunicamos também. Se por um lado estamos conectados a um grande número de pessoas pela via da internet, por outro estamos mais isolados do que nunca, configurando um exílio conectado.

Na sociedade há o meio individual e o social, sendo ambos fundamentais para o desenvolvimento do ser humano, pois partimos do princípio de que este se desenvolve de acordo com o contexto histórico e cultural, na relação com os outros, sem excluir a necessidade de elaborar individualmente suas experiências. Na contemporaneidade, o meio social e o individual acabam se misturando. O espaço social perpassa o convívio privado e público em um estado quase permanente de ligação, em virtude de um mundo hiperconectado e ao advento das redes sociais. Estamos sempre disponíveis: no trabalho, em casa, na faculdade, no bar, nos jantares em família e, quando estamos sozinhos, não estamos sozinhos. Este espaço, o social, está presente na constituição dos sujeitos desde seu nascimento, tendo importante papel nas vicissitudes às quais o sujeito estará submetido e que são decorrentes de suas identificações e suas escolhas e renúncias.

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É possível dizer que estamos em uma era pós-moderna, visto que estamos ainda em uma fase transicional da modernidade para a contemporaneidade, onde o mal-estar da civilização apresentado por Freud (1930) no século XX, se mantém em alguns de seus elementos, como na questão referente à nossa finitude e do que temos de abdicar a fim de podermos conviver em sociedade. Essas transformações na organização social levam a novos questionamentos, tais como o surgimento de novas patologias sociais, ou em uma reestruturação das formas de mal-estar, como por exemplo, no avanço cada vez maior das tecnologias a fim de impedir a ação do tempo e da natureza sobre a humanidade, no culto ao corpo perfeito e na busca desenfreada da ciência por medicamentos e substâncias que possam suprimir ou retardar o processo de envelhecimento, sendo que este “se transforma numa enfermidade, e a morte deve ser sempre exorcizada” (BIRMAN, 2012, p. 76).

O corpo entregue ao olhar do outro, se torna cultuado, produzindo exageros que vemos nas academias, que, de acordo com Birman (2012, p. 77), “se transformam num dos templos mais prestigiados na atualidade, aonde os usuários vão comungar como fiéis em nome da longevidade e da beleza” e que estão muito além da busca por saúde; na busca por cirurgias estéticas, na febre das selfies e no consumo desenfreado de penduricalhos e bens de consumo em busca da melhor aparência e de uma tentativa de sustentar um status que também é demanda do social. Além disso, a palavra de ordem se resume a evitar o desprazer e extrair o máximo de satisfação possível de todas as atividades e experiências. Não sem aliados, pois os psicofármacos podem auxiliar nessa questão, garantindo que – através de processos químicos desencadeados no organismo pelas substâncias medicamentosas – seja possível para o sujeito se livrar das angústias e ansiedades presentes no dia a dia, possibilitando não ser necessário falar sobre as questões que às vezes não fazem sentido e perturbam, bastando receber a receita do médico, que nomeia os sintomas e aflições com um mínimo de diálogo e esforço auditivo, como aponta Birman(2012):

[...] o clínico não acolhe mais psiquicamente os pacientes, mas tenta suavizar o desamparo destes. Assim, diante do esvaziamento da relação médico-paciente, os clínicos medicam os pacientes com os mais diversos psicotrópicos e antidepressivos. As dores e os sofrimentos dos pacientes são assim medicalizados ostensivamente. (p. 87)

Este esvaziamento da relação médico-paciente acaba por priorizar a medicalização em detrimento de possíveis diagnósticos diferenciais a partir do

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acolhimento do relato dos sintomas pelo paciente. Tais drogas – psicotrópicos e antidepressivos – são uma ramificação da disseminação das toxicomanias, que não se restringe apenas ao consumo das drogas ilícitas, mas também no uso de substâncias aceitas e legitimadas socialmente, como no uso do álcool e tabaco, além destes medicamentos receitados amplamente por médicos. Conjuntamente com o imperativo de felicidade vigente hoje, os medicamentos entram na vida do sujeito sem nenhuma dificuldade ou esforço, através das campanhas de marketing da indústria farmacêutica, já que a tristeza virou sinônimo de doença, e estar próximo de pessoas tristes causa mal-estar e desconforto.

Charles Melman (2003) e Joel Birman (2012) descrevem a época em que vivemos como sendo uma era de compulsões, de excessos e da exibição. As compulsões e excessos encontramos de diversas formas, dentre elas: como nos alimentamos, consumimos e como nos relacionamos com os outros. Podemos tomar como exemplo deste último, a violência gratuita desencadeada hoje através das redes sociais, permitida por uma virtualização do sujeito que fala, possibilitando o excesso de que fala Birman (2012):

Com efeito, a violência sem causa aparente e a violência gratuita se banalizaram no nosso mundo de forma inquietante, e já se transformaram em lugar comum. Mesmo que a violência não seja gratuita e que tenha boas motivações para existir, o que se destaca aqui é a disparidade entre o motivo e a violência desencadeada, como se esta fosse a única possibilidade que se impõe no horizonte do sujeito diante de um impasse e de um obstáculo. (p. 83)

Tal violência aponta para outra característica da sociedade e dos sujeitos contemporâneos: a intolerância e a incapacidade de lidar com frustrações. Incapazes de racionalizar e elaborar simbólica e psiquicamente as questões que os afetam, os sujeitos partem para a ação, que, de acordo com Birman (2012), se configura como “um certo estilo de ser do sujeito na contemporaneidade”.

Como um dos mal-estares desenvolvidos por Freud (1930, p.31), o convívio com outros seres da mesma espécie produz sofrimento pois requer do sujeito um processo sublimatório2 de seus desejos, a fim de que estes encontrem uma via de descarga passível de aceitação pelos indivíduos que coexistem no mesmo espaço.

2 Sigmund Freud conceituou o termo em 1905 para dar conta de um tipo particular de atividade humana

(criação literária, artística, intelectual) que não tem nenhuma relação aparente com a sexualidade, mas que extrai sua força da pulsão sexual, na medida em que esta se desloca para um alvo não sexual, investindo objetos socialmente valorizados. (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 734)

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Este processo hoje acaba se dando por modalidades específicas de ação nas subjetividades, neste caso através da explosividade, onde “tudo se passa como se essas não conseguissem mais conter o excesso no seu território interior, para em seguida simbolizá-lo e transformá-lo naquilo que Freud denominou ação específica” (BIRMAN, 2012, p. 82). Assim, pela dificuldade do sujeito em sublimar os desejos e dar destino às moções pulsionais, este acaba por externalizar de modo explosivo as energias libidinais que têm de encontrar seu destino, de uma maneira ou de outra.

São inegáveis as várias e importantes conquistas a que chegamos com a internet, os computadores, a inteligência artificial e as redes sociais. Pudemos nos reconectar a familiares com os quais há muito não tínhamos contato; o conhecimento e a informação estão a um clique de alcance; guardamos nossas memórias em fotografias e vídeos e até mesmo fazemos compras online. Mas, assim como toda moeda tem dois lados, nesse caso não poderia ser diferente. Nunca nos sentimos tão vigiados ou sentimos tanta necessidade de pertença aos grupos e interesses que buscamos na rede. As social networks3 como Facebook, Tweeter, Instagram e WhatsApp nos permitem compartilhar tudo o que vivemos e em que temos interesse, ao mesmo tempo em que podemos ter um vislumbre dos interesses e de parte da vida dos amigos, familiares, vizinhos, pessoas famosas que admiramos e até de quem não conhecemos.

Aos textos com menos de cinco linhas é assegurada a leitura, e, quanto mais abreviada e adaptada ao “internetês” melhor –ainda mais se tudo for traduzido e explicado com imagens. Vivemos uma era digital dos símbolos e das imagens, onde o discurso, a conversa e a própria linguagem parecem ter se tornado obsoletos e sofrido movimentos de alteração em suas estruturas e sentido, desprovidas inclusive de valor simbólico, de representação, passando, para fazer uso do termo de Melman (2003, p. 20), a uma “presentação” das coisas, onde o que vale é o objeto em si, e não o que ele representa, onde “a linguagem e o discurso assumem uma feição marcadamente metonímica, e não mais metafórica, e ‘não obstante, a linguagem perde seu poder simbólico de maneira marcante’ ” (BIRMAN, 2012, p. 134).

Pode-se notar também este olhar constante e onipresente que se apresenta como discurso e que impõe aos sujeitos uma fruição excessiva, quando "hoje a questão é exibir[...] não há mais limite algum à exigência de transparência[...] o olhar

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é, hoje, essa espécie de torturador diante do qual nada pode ser dissimulado” (MELMAN, 2003, p. ), tornando vã a tentativa dos sujeitos em escapar à demanda que lhes é imposta.

Assim, carregamos ainda as marcas do mal-estar do século XX, mas que se desenvolveram e sofreram movimentos e alterações em suas formas. O psicanalista Christian Dunker (2017) aponta algumas questões:

A introdução da felicidade como fator de saúde e de realização econômica, a mutação da experiencia privada, notadamente da família, em uma série de novas modalidades de reconhecimento e de autorrealização, a entrada de novas tecnologias biopolíticas, mediada por redes sociais e por outras formas de experiencia pós-humana, criam outras figuras hegemônicas de sofrimento: pessoas que não conseguem narrativizar sua infelicidade, subjetividades pós-traumáticas, que não reconhecem nenhuma hermenêutica nem nenhuma historicidade em suas modalidades de sofrimento, ampliação generalizada das modalidade narcísicas de inadaptação, de inconformidade corporal, de déficit de intimidade ou de massivo isolamento individual não problematizado. (p. 80)

Neste sentido, as figuras de sofrimento podem ser escondidas e sufocadas por trás do falso reconhecimento dos likes4 nas diversas redes sociais. Hoje as relações estão cada vez mais virtuais, onde o corpo é excluído do encontro com o outro para ser inserido como objeto da saúde. O corpo juntamente com a noção de saúde tornou-se mais um objetivo a ser alcançado de acordo com os padrões especificados e ditados pelo discurso social; a felicidade como imperativo; a frustração e tristeza como algo a ser abolido fazem parte de nosso dia a dia, exigindo dos sujeitos deslocamentos que acabam por provocar um desconforto e até mesmo uma falha no autorreconhecimento de sua subjetividade, mantendo o sujeito alienado ao outro.

A partir desta perspectiva, de que os sujeitos buscam o excesso, a felicidade – ainda que superficial –, o prazer e a autorrealização a ser exposta nas redes sociais, ao mesmo tempo em que têm dificuldade de elaborar perdas, experiências traumáticas e lidar com as frustrações, é que se percebe o desenvolvimento de personalidades narcísicas. Como as características da sociedade contemporânea podem influenciar ou não no desenvolvimento de características narcísicas nos sujeitos? No capítulo seguinte buscar-se-á compreender tais características e como elas podem operar como mecanismo de defesa no sujeito.

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CAPÍTULO II – UMA (RE) INTRODUÇÃO AO NARCISISMO – MECANISMO DE DEFESA DO SUJEITO?

No decorrer do tempo, com a popularização da Psicologia e da Psicanálise a partir do século XX, alguns termos passaram a ser amplamente utilizados no cotidiano da população, nem sempre vinculados ao conceito original. No caso do narcisismo, é preciso ressaltar que comumente o termo é empregado no sentido de senso comum, para denotar egoísmo ou para caracterizar sujeitos que não pensam em outra coisa senão em si próprios, servindo ao propósito da categorização e do julgamento moral. Para abordar este tema pelo viés psicológico e psicanalítico, é preciso fazer algumas distinções entre a noção que se tem do senso comum do que se pode considerar como conceito, como aponta Lasch (1983) ao aludir ao fato de que “a precisão teórica sobre o narcisismo é importante não só por ser a ideia tão prontamente suscetível à inflação moralista, mas porque a prática de equacionar o narcisismo com tudo o que é egoísta e desagradável se abranda contra a especificidade histórica” (p. 56).

Em seu trabalho, Christopher Lasch aponta a complexidade do conceito e da teoria acerca do narcisismo, destacando que, da forma como ele é utilizado normalmente, a responsabilidade e importância do conceito para a estruturação dos sujeitos não é empregada.

A partir da leitura de um recorte da teoria psicanalítica, embasada nos textos de Freud e Nasio (1997), encontramos os conceitos que sustentam e articulam o conceito psicanalítico de narcisismo, buscando em Freire Costa (1984) a conclusão da proposta apresentada.

2.1. O conceito de narcisismo em Psicanálise

Freud (1930) desenvolveu o conceito de narcisismo, categorizando-o em narcisismo primário e narcisismo secundário. No narcisismo primário, “o bebê lactante ainda não separa seu Eu de um mundo exterior, como fonte das sensações que lhe sobrevêm” (p. 18), a criança acredita ser sua autossuficiência que a permite obter satisfação nos momentos em que deseja. Segundo Freud (1914), seria característico dessa fase o investimento libidinal pelas pulsões no próprio corpo, configurando o autoerotismo. A saída do narcisismo primário é causada progressivamente pelo

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“deslocamento da libido para um ideal do Eu imposto de fora, e a satisfação, através do cumprimento desse ideal” (p. 33). A constituição desse ideal de Eu exige um movimento complexo que envolve a função materna e paterna na relação com a criança, onde a figura paterna se torna o ideal que a criança deseja atingir, pois tal figura é detentora do desejo da mãe.

A libido narcísica – ou libido do Eu – seria “[...]o grande reservatório, do qual são enviados e ao qual retornam os investimentos objetais; o investimento narcísico do Eu, como o estado original, formado na primeira infância, que é apenas encoberto pelos envios posteriores de libido, mas, no fundo, permanece por trás deles” (FREUD, 1905, p.137), significando que todo investimento libidinal carrega consigo uma parcela de libido narcísica, ou, dito em outras palavras, que “todo amor objetal comporta uma parcela de narcisismo” (NASIO, 1997, p. 53). A libido objetal seria então, a própria libido narcísica enviada aos objetos por meio da meta5 das pulsões. Estes conceitos definem a energia psíquica pela qual os indivíduos buscam obter satisfações ou pelas quais são direcionados em suas escolhas e renúncias subjetivas.

O mecanismo de investimento libidinal do sujeito, de acordo com Nasio (1997, pp. 47-69), funciona da seguinte maneira: a criança enquanto infans6 ainda não faz a diferenciação do que é parte de seu próprio corpo e do que é do mundo externo, investindo sua libido – que neste caso é narcísica – no próprio corpo e obtendo satisfação a partir daí. No momento em que isto não é mais possível devido à falta imposta ao desejo da criança pela inserção de um terceiro na relação dual mãe-bebê, ela passa a direcionar sua libido aos objetos, onde, caso tal investimento seja frustrado ou não tenha resposta, essa libido retorna para o Eu a fim de encontrar novos objetos.

Nós possuímos – assim imaginamos – uma certa medida de capacidade amorosa, chamada libido, que no começo do desenvolvimento se dirigia para o próprio Eu. Depois, mas ainda bastante cedo, ela se dirige para os objetos, os quais, por assim dizer, incorporamos em nosso Eu. Se os objetos são destruídos, ou se os perdemos, nossa capacidade amorosa (libido) é novamente liberada; pode então recorrer a outros objetos em substituição, ou regressar temporariamente ao Eu. (FREUD, 1916, p. 250)

5 Um dos termos utilizados por Freud em sua teoria. A meta de uma pulsão é sempre a satisfação.

(FREUD, 1915, p.58)

6 Termo do Latim que indica aquele que não fala, criança com idade entre o nascimento e um ano de

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De acordo com Freud, como a mãe é o primeiro objeto a partir do qual a criança obterá satisfação, ao ser frustrada em sua investida este objeto será incorporado ao Eu da criança, configurando posteriormente a identificação objetal do sujeito, e constituindo o Eu ideal a partir desse objeto primordial perdido. Esse objeto, que jamais poderá ser alcançado, será busca constante na vida do sujeito.

O Eu ideal (FREUD, 1914) seria aquilo a que o sujeito aspira a ser e que completaria a expectativa que supostamente o Outro7 tem do sujeito, assumindo uma posição de objeto para o Outro; o Eu ideal seria, ainda, o que “representa a possibilidade de uma revivescência da ‘completude’ sentida na infância.” (CRISTÓFARO et al, 2018, p. 166). Posterior a isso (FREUD, 1923 e 1933) no processo de formação da criança e com o declínio do complexo de Édipo8, o ideal de Eu irá se formando aos poucos pelo processo de identificação objetal com os pais e seus substitutos sociais (professores, ídolos). Essa instância será uma função do supereu9, o regulador de nossa moralidade e irá definir as escolhas objetais do sujeito. O investimento libidinal do sujeito se dará com base no quão representativos do ideal de Eu, serão os objetos.

Toda essa relação objetal e identificatória pela qual a criança passa é mediada em princípio pelo complexo de castração10, que virá inscrever a falta na criança e desenvolver o Eu, quando a criança então passa a ser efetivamente um sujeito. Segundo Nasio (1997):

[...] o elemento mais importante que vem perturbar o narcisismo primário não é outra coisa senão o “complexo de castração”. É através dele que se opera o reconhecimento de uma incompletude que desperta o desejo de recuperar a perfeição narcísica. (p.51)

7 Termo utilizado por Jacques Lacan para designar um lugar simbólico — o significante, a lei, a

linguagem, o inconsciente, ou, ainda, Deus — que determina o sujeito, ora de maneira externa a ele, ora de maneira intra-subjetiva em sua relação com o desejo. (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 166)

8 [...] representação inconsciente pela qual se exprime o desejo sexual ou amoroso da criança pelo

genitor do sexo oposto e sua hostilidade para com o genitor do mesmo sexo. (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 558)

9 Conceito criado por Sigmund Freud para designar uma das três instâncias da segunda tópica,

juntamente com o eu e o isso. [...] exerce as funções de juiz e censor em relação ao eu. (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 744)

10 Sigmund Freud denominou complexo de castração o sentimento inconsciente de ameaça

experimentado pela criança quando ela constata a diferença anatômica entre os sexos. (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 105)

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Justamente por a criança ser barrada em seus investimentos libidinais com relação à mãe pelo complexo de castração é que ela buscará constantemente um retorno ao narcisismo primário, onde era onipotente e completa e não necessitava do amparo do outro para obter satisfação. O que proponho com esse capítulo é apresentar elementos de sustentação conceitual do narcisismo que possibilitem o questionamento, na atualidade, desse conceito enquanto mecanismo de defesa do Eu e como forma de subjetivação dos sujeitos.

2.2. A cultura do narcisismo em Christopher Lasch e a relação com as questões subjetivas da contemporaneidade

A partir da leitura de autores como Dunker e Birman acerca das características dos sujeitos e do ambiente social no qual vivemos, e o vigente discurso capitalista da sociedade de consumo, é possível observar certa relação com as características do narcisismo descrito por Christopher Lasch (1983):

[...] dependência do calor vicário proporcionado por outros, combinada a um medo de dependência, uma sensação de vazio interior, ódio reprimido sem limites, e desejos orais insatisfeitos [...] pseudo-autopercepção, sedução calculada, humor nervoso e autodepreciativo [...] temor intenso da velhice e da morte, o senso de tempo alterado, o fascínio pela celebridade, o medo da competição, o declínio do espírito lúdico, as relações deterioradas entre homens e mulheres. (p. 57)

Hoje, mais do que na década de setenta, podemos observar tais características através das redes sociais e da busca desenfreada pela beleza e em sobrepujar os efeitos da velhice e a morte, bem como na veneração de celebridades instantâneas e evanescentes. Em seu livro escrito na década de 1970, “A cultura do narcisismo”, Lasch (1983) discorreu de forma visionária sobre o tema, abordando os aspectos envolvidos na disseminação dos estudos sobre o assunto e os reflexos disso na sociedade como um todo, sendo que podemos vislumbrar ainda nos dias de hoje o que o autor descreveu no cenário norte-americano há quase cinco décadas.

[...] a emergência das desordens do caráter como as mais proeminentes formas de patologia psiquiátrica, junto com a mudança na estrutura da personalidade que este desenvolvimento reflete, derivam-se de mudanças bem específicas em nossa sociedade e cultura – da burocracia, da proliferação de imagens, de ideologias terapêuticas, da racionalização da vida interior, do culto do consumismo e, em última análise, das mudanças na vida familiar, assim como de padrões variáveis de socialização. (p. 57)

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À época, a psiquiatria estava em seu momento de categorização biológico, com a efervescência de novas patologias e rotulações dos sujeitos; o Estado passava a intervir cada vez mais no modo de vida dos cidadãos, as estratégias de marketing ofereciam cada vez mais produtos de consumo, e a saída das mulheres de casa para o mercado de trabalho e para as universidades alterava a formação dos vínculos e da estrutura familiar. Faz-se necessário apontar que algumas mudanças ocorreram desde a época em que Lasch escreveu sua tese. A diferença mais visível hoje está na transição de uma organização familiar e social sustentada pela verticalidade para uma organização horizontal, que, por sua vez, também possui efeitos singulares e expressivos nas relações que são construídas na sociedade e na forma com que o sujeito se relaciona com a Lei simbólica.

A estruturação do sujeito psíquico estava calcada no complexo de Édipo e na culpa como fundamento moral e organizador da vida em sociedade. A culpa como resultante do desejo incestuoso era o elemento ordenador da satisfação. A figura do pai, encarnava o operador dessa função, outro nome da castração, para unir desejo a lei. Na figura do pai, estampava-se o modelo de orientação das identificações e escolhas. (LISE, 2014, p. 513)

Se antes a culpa – calcada pela lei e estabelecida pela figura paterna na estruturação do sujeito – era o organizador social responsável por permitir o convívio harmônico dos sujeitos, agora temos

[...] uma sociedade global e policêntrica, em que, independentemente das fronteiras, as pessoas se relacionam e se organizam sob uma nova ordem política. É um novo laço social que não tem mais um ordenador modelar e vertical, aos moldes paternos. O sujeito vive uma desorientação nos seus modos de satisfação. (LISE, 2014, p. 513)

Tal desorientação poderia ser causada por uma fragilização do referencial simbólico, em decorrência do declínio da autoridade; não a autoridade ou a lei escrita no papel, mas a autoridade enquanto instância simbólica, que vem a inscrever a cisão entre o sujeito e o objeto de seu desejo. Com relação a isso, alguns autores como Birman (2012) e Melman (2003) apontam um vazio subjetivo na contemporaneidade, já que esse vazio “é o correlato do mundo que perdeu o sentido, pois as regras e os códigos anteriormente estabelecidos para a promoção da sociabilidade foram subvertidos” (BIRMAN, 2012, p. 147).

Essa perda de sentido ou a falta de um ordenador acabam por produzir uma fragilização do referencial simbólico em que se sustentar, levando os sujeitos a

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alienações subjetivas e de si. De acordo com Melman (2003), “O que se torna o suporte do eu não é mais a referência ideal, é a referência objetal. E o objeto, contrariamente ao ideal, para ser convencido, exige que não se pare de satisfazê-lo” (pp. 11,12). Da maneira colocada pelo autor, seriam tão somente os investimentos objetais que sustentariam então o sujeito, já que o que seria mandatório seria a busca incessante pelo prazer, tendo como consequência o constante investimento nos objetos, que perdem seu valor referencial a partir do momento em que deixam de ser únicos, não sustentando mais o prazer obtido por possuí-los. Melman (2003) segue dizendo que

[...] a carência das identificações simbólicas só deixa como recurso, para o sujeito, uma luta incessante para conservar e renovar insígnias cujas desvalorização e renovação são tão rápidas quanto as evoluções da moda, e isso enquanto ele mesmo está inexoravelmente entregue ao envelhecimento, como seu carro. (p. 41)

Em outros termos, no mundo veloz em que vivemos os pontos de referência para os sujeitos são constantemente desprovidos de seu valor referencial, tanto que essa tentativa do sujeito em se agarrar a essas referências se revela insuficiente para manter um equilíbrio ou estabilidade psíquica, onde as catexias libidinais ficam em um estado excessivo de repetição de investimento e retirada de libido dos objetos. As ideias apresentadas por Charles Melman (2003) propõem uma nova economia psíquica e uma progressão do processo subjetivo, que estão amarradas por uma tese central da livre expressão do gozo11 e do desejo, e que podemos correlacionar com novas formas de subjetivação, dentre elas o narcisismo, que veremos adiante. Essa liberdade dada à expressão do desejo – consequência de uma força recalcadora fragilizada devido ao declínio da Lei – seria paralela ao progresso de que fala o autor em seu livro quando diz que “a evolução social em curso participa da busca de uma defesa diante da castração” (p. 45). Como a ordem é fruir sem que se ceda à culpabilidade imposta pelo supereu, os sujeitos estariam encontrando ou evoluindo para novas formas de subjetivação a fim de evitar o desprazer causado pela inscrição simbólica da Lei.

A subjetividade carrega em seu próprio nome sua característica fundamental, em que cada sujeito tem sua peculiaridade e modos de agir e ser únicos. Quando

11 A palavra pode ser utilizada para designar o próprio funcionamento de um sujeito enquanto aquele

que repete infatigavelmente tal ou qual comportamento sem de modo nenhum saber o que o obriga a assim permanecer – como um rio – no leito desse gozo. (MELMAN, 2003, p. 204)

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esse sujeito é inserido no meio social, onde irão variar as atribuições e demandas que lhe são impostas, essa subjetividade passa por movimentos a fim de que o sujeito possa se adequar à realidade onde está inserido. Esse processo é inerente a todo ser humano e ocorre por toda sua existência. Então, as “novas formas sociais [sempre] requerem novas formas de personalidade, novos modos de socialização, novos modos de se organizar a experiência.” (Lasch, 1983, p. 76). O autor defende que “o conceito de narcisismo proporciona-nos não um determinismo psicológico feito sob medida, mas um meio de compreender o impacto psicológico das recentes mudanças sociais [...]” (p. 76).

Logo, o narcisismo não funcionaria como determinismo dos sujeitos ou do meio social no qual eles estão inseridos, mas sim algo que refletiria as características de determinado momento sociocultural. Da mesma forma, Nelson da Silva Junior (2018) aponta que “as categorias fundamentais da reflexão clínica, como narcisismo e corporeidade, são organizações extremamente sensíveis a mudanças sociais, e suas formas de alteração constituem preciosos indícios a respeito do que se passa na cultura” (p. 56).

Ora, se estamos hoje inseridos em uma sociedade e em uma cultura na qual, de acordo com Birman (2012), se cultua o corpo, onde as campanhas de marketing e o capitalismo oferecem produtos fantásticos e vendem promessas de felicidade e de um corpo jovem por muito mais tempo, ao mesmo tempo em que as indústrias farmacêuticas vendem o apagamento do sofrimento com a ingestão de pílulas, o que fazem os sujeitos que, fora do enquadramento socioeconômico discursivo vigente, não têm condições de participar e se inserir ativamente nesse contexto?

Se para uma grande parte da população não há retorno do investimento libidinal nos objetos de consumo ou no corpo perfeito, resta-lhes investir no próprio Eu e no próprio corpo, em uma tentativa de fazer-se notar e pertencer às demandas sociais impostas de fora.

O narcisismo parece realisticamente representar a melhor maneira de lutar em igualdade de condições com as tensões e ansiedades da vida moderna, e as condições sociais predominantes tendem, em consequência, a fazer aflorar os traços narcisistas presentes, em vários graus, em todos nós. (LASCH, 1983, p. 76)

Assim, em uma produção de via dupla entre os sujeitos e o social, o narcisismo aflora enquanto produção subjetiva dos sujeitos para dar conta das

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barreiras intransponíveis e das questões impossíveis de ressignificação impostas pelo discurso social. De forma prognóstica ao longo de sua tese, Lasch (1983) discorre sobre as características da sociedade e dos sujeitos narcisistas no zeitgeist12 norte americano da década de setenta. Quase cinco décadas depois podemos observar aspectos semelhantes em território brasileiro, visto que o clima político-social nas duas situações se assemelha, com a classe média formando-se e criando sujeitos emergentes e deslocados de suas posições “de largada” frente à sociedade, já que foi somente na última década que isso aconteceu de forma expressiva no Brasil, sendo que cada cultura em “cada época desenvolve suas próprias formas peculiares de patologia, que exprimem, em forma exagerada, sua estrutura de caráter subjacente” (p. 66).

Apesar de a tese de Lasch (1983) destacar pontos importantes para compreendermos a dimensão do narcisismo inserido no contexto social e na subjetividade do sujeito, além do fato de podermos presenciar muitos dos seus aspectos atualmente, diferentemente de Lasch, a proposta mencionada anteriormente não é a de trabalhar sobre o narcisismo à guisa de uma patologia do social, visto que seria incabível tal generalização perante as subjetividades. Para tanto, farei uso da análise que Jurandir Freire Costa (1984) fez da tese de Christopher Lasch – a qual parece ser a que melhor se enquadra no atual momento que vivemos.

2.3. O narcisismo como mecanismo de defesa frente o discurso social Mesmo sendo inconcebível a ideia de um narcisismo patológico tomando conta do social e presente na maioria dos sujeitos, as características e o clima social apresentados por Lasch (1983) em seu livro são de grande valia para o desenvolvimento da hipótese pretendida. Jurandir Freire Costa (1984) complementa o que pretendo demonstrar nos próximos parágrafos. Apesar de contestar a teoria do narcisismo patológico de Lasch, o autor se apropria da descrição apresentada pelo autor para chegar ao ponto de ligação entre o narcisismo moderno e o discurso social vigente à época do cenário norte-americano com o cenário brasileiro da década de oitenta. Se compararmos as características das décadas de setenta e oitenta com os dias atuais, podemos observar o que Lipovetsky (2004) defende ao dizer que não

12 Conjunto do clima intelectual e cultural do mundo, numa certa época, ou as características genéricas

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rompemos com a modernidade, mas que, ao contrário, estamos em uma era hipermoderna, apontando justamente a exacerbação de algumas características, tais como o individualismo e o consumismo. As características da contemporaneidade e do sujeito contemporâneo apresentadas no primeiro capítulo deste trabalho, bem como as acerca do narcisismo e sua conceptualização, apresentam ligação direta com a hipótese proposta por Freire Costa (1984), tendo maior pertinência para o tema aqui desenvolvido as que descrevem um discurso abrangente que hipervaloriza o corpo, as questões relacionadas ao imperativo de gozo dos sujeitos, e que exacerba o profundo medo da decadência do corpo e o medo da morte.

A partir da leitura de Freire Costa (1984) depreende-se que o narcisismo moderno – e, por minha proposta, também o contemporâneo – seria efeito de uma violência sofrida a nível psíquico pelo sujeito, onde esse narcisismo viria a se inscrever enquanto defesa para a preservação da integridade psíquica do Eu. Diz ele que “o narcisismo moderno [...] é um narcisismo defensivo, voltado para o investimento do corpo, que se tornou foco de sofrimento e ameaça de morte pela ação da violência” (p. 178).

Esse corpo que sofre com a ação da violência pela contínua demanda social acaba por se tornar bode expiatório do social e alvo de descarga pulsional do próprio sujeito, já que “para que o capitalismo moderno possa ser poupado, culpa-se o sujeito” (FREIRE COSTA, 1984, p. 184). Essas demandas que se apresentam através do discurso social acabam por produzir conflito psíquico no sujeito, como veremos mais adiante. Cabe relembrar ainda que o clima social descrito por Lasch (1983), e que muito se assemelha ao que vivemos hoje, está no cerne dessa questão. Logo, ao transcrever e reescrever aqui o que Freire Costa precisou ao estender a teoria de Lasch, que se tenha em mente que é um processo complexo onde estão amarradas todas as características sociais e subjetivas descritas até agora neste capítulo.

Esta amarragem conceitual apresentada por ambos autores tem relação direta com o capitalismo e o discurso produzido a partir dele, bem como suas extensões, que vão desde as campanhas de marketing até a produção e fabricação de produtos, ambas baseadas nas demandas que são criadas na relação de consumo entre sujeito e capitalismo. O constante criticismo à família burguesa tradicional também teria uma parcela de responsabilidade na criação desse sujeito narcísico moderno, visto que a função e autoridade paternas se veriam desestabilizadas e

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destituídas de valor simbólico, onde “o indivíduo narcisista é a criatura fabricada pela violação capitalista daquilo que a família burguesa tradicional, real ou idealmente, sempre quis preservar como sendo a essência de sua função: "um refúgio no mundo sem compaixão" (FREIRE COSTA, 1984, p. 145).

Esse processo de desautorização da imago paterna e desconstrução da estrutura familiar seria consequência da intervenção do Estado e do capitalismo em conjunto com as diversas áreas profissionais técnicas nas formas de educar, criar e manter os filhos, diga-se: pedagogos, médicos, psicólogos, etc., ao passo que, em paralelo, foram criadas estratégias capitalistas e de marketing a fim de eximir o sujeito de sua culpa e de seu sentimento de impotência frente ao poder do Estado, induzindo-o ainduzindo-o cinduzindo-onsuminduzindo-o para preencher induzindo-o vaziinduzindo-o da falta e mascarar a angústia decinduzindo-orrente desse processo.

À medida que a família perde não somente suas funções produtivas, mas também muitas de suas funções reprodutoras, os homens e mulheres não mais conseguem criar seus filhos sem o auxílio de especialistas garantidos. A atrofia das tradições mais antigas de auto-suficiência minou a competência cotidiana, em uma área após outra, e tornou o indivíduo dependente do Estado, da corporação e de outras burocracias. (LASCH, 1983, p. 30)

Além disso, a pregação de liberdade individual e da livre expressão do gozo como direito fundamental e objetivo primordial, na contramão da estruturação psíquica dos sujeitos, acaba por produzir indivíduos artificiais em seus modos de ser.

O homem narcísico descartou-se de seu ancestral puritano, culpado, moralista, reprimido e individualisticamente competitivo, para dar vez a um novo homem. pretensamente liberado, permissivo e tolerante. A permissividade e a tolerância de fato existentes não significam respeito e aceitação do outro em sua diferença e sim profunda indiferença para com tudo que não seja do interesse exclusivo do próprio indivíduo (FREIRE COSTA, 1984, p. 144)

Para o autor, seria a relação entre esse discurso liberal e a Lei simbólica um dos motivos para a emersão da configuração narcísica. Isso configura um choque entre o simbólico, representado pela Lei e executado pelo supereu do sujeito, e a realidade que surge em uma tentativa de negar a função do supereu, que não deixa de exercê-la ao limitar o desejo e o prazer do sujeito. Desse conflito resulta que:

Esta incapacidade em obter o prazer, sempre adiado em nome do prazer absoluto fabricado pelo consumo, é a fonte de violência, matriz da preocupação narcísica. O corpo tornou-se um objeto persecutório, que ameaça constantemente a integridade egóica. O prazer buscado visa, primordialmente, a proteger o indivíduo da marginalização sócio-cultural ou,

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o que é mais dramático, da ameaça de morte pelo stress. Este corpo, insaciável, não é mais para o Ego o objeto que realiza o desejo de prazer. É o objeto que o Ego tenta dominar e controlar, à custa de um crescente sentimento de culpa e de uma ansiedade infindável. (FREIRE COSTA, 1984, p. 187)

Desta relação do sujeito com o discurso da sociedade de consumo, resulta uma impossibilidade de enquadrar-se na ordem de gozo e satisfação, seja através da aquisição de bens de consumo, da construção do corpo perfeito ou até mesmo pela inviabilidade de inserir-se em determinados grupos sociais – isso inscreveria na psique do sujeito uma experiência violenta na forma de trauma. Dessa forma, o questionamento de Freire Costa sobre a teoria de Lasch apresenta estatuto de validade, visto que não teríamos, como sugere Lasch, uma patologia narcísica, mas sim um mecanismo de defesa do sujeito, que, frente ao sofrimento que se impõe por não corresponder às demandas externas, buscaria no investimento em si a defesa contra uma agressão sofrida a nível psíquico.

Aqui chegamos ao ponto central da tese apresentada por Freire Costa (1984), que faz a conexão entre a violência dirigida ao sujeito pelo discurso da sociedade de consumo e, como resultado, o narcisismo como mecanismo de defesa frente a essa violência. Segundo ele:

Violência, a nosso ver, é toda a ação traumática que induz o psiquismo ou a

desestruturar-se completamente ou a responder ao trauma através de mecanismos de defesa, análogos à economia da dor. Violenta é toda

circunstância de vida em que o sujeito é colocado na posição de não poder

obter prazer ou de só buscá-lo como defesa contra o medo da morte. (p. 173) Assim, de um lado o sujeito teria um imperativo de gozo e de liberdade, e do outro lado o supereu, instância reguladora das ações do sujeito em prol do equilíbrio e preservação psíquicos. Esse gozo adquirido através desse tipo de relação com os objetos tem a característica de ser artificial e temporário, visto que precisa manter o sujeito sempre em uma posição de consumidor insatisfeito. Além do mais, o capitalismo oferece ao sujeito produtos e serviços com a promessa de que ele se tornará excepcional, singular. Quaisquer semelhanças com a atualidade não são mera coincidência.

O autor se apropria da teoria de Freud acerca das neuroses de guerra e eventos traumáticos para continuar sua proposição, descrevendo esse momento da teoria freudiana como um retorno da conceitualização do narcisismo por outra ótica. Da leitura de Freud, Freire Costa (1984) depreende que “ele (o narcisismo) é, a nosso

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ver, definitivamente colocado como efeito de traumatismo e não como causa” (p. 165). Para explicar isso o autor baseou-se no texto Além do princípio do prazer, de 1920, onde, segundo ele, Freud teria revisto alguns pontos de sua teoria. Com isso, “temos a tradução econômica, em termos metapsicológicos, da forma como a realidade exterior torna-se realidade psíquica” (FREIRE COSTA, 1984, p. 166).

O ponto que interessa à minha proposição reside em como a realidade exterior se apresenta nas demandas impostas pelo discurso social vigente, no caso o discurso da sociedade de consumo e o discurso capitalista13, que se configurariam enquanto ameaça violenta à integridade psíquica do sujeito, que precisaria investir a energia libidinal no próprio Eu, buscando então o prazer como mecanismo de defesa por medo da ameaça que o evento representa. Esse é um processo psíquico, onde o Eu do sujeito sente-se ameaçado por demandas às quais não consegue dar conta, retirando a libido para si. Essa energia retida no Eu será direcionada ao corpo a posteriori, visto que não pode ficar estagnada no Eu e o investimento nos objetos é inviável ou inconcebível para o sujeito. Ainda segundo o autor, essa energia libidinal investida no próprio corpo só é narcísica porque “antes, estava investida no Eu” (FREIRE COSTA, 1984, p. 168).

Tornando o corpo e o sexo objetos de consumo, o capitalismo moderno obrigou o indivíduo a adotar uma “estratégia de sobrevivência narcísica” que pouco tem a ver com o prazer e muito a ver com a dor. O indivíduo moderno é um indivíduo violentado, antes de ser narcisista. É esta violência que explica seu narcisismo e as aparências “patológicas” que ele assume. Seu corpo e seu sexo monopolizam a libido objetal porque [...] tornaram-se fontes de sofrimento, dor e ameaça de morte para o Eu. (FREIRE COSTA, 1984, p. 169)

Aqui novamente se pode observar a configuração de um conflito entre o psíquico do sujeito e a realidade. As demandas impostas pelo social acabam por criar um desejo no qual o sujeito não se reconhece, tornando-se quem não é a fim de se ver livre do desejo que o cerca, transformando o corpo, como foi dito anteriormente, em um “objeto persecutório”.

13 Jacques Lacan (1969-1970 – seminário 17) propôs inicialmente em sua teoria quatro formas de fazer

laço social, que se apresentariam como discursos, sendo eles: o discurso universitário, o discurso do analista, o discurso do mestre e o discurso da histeria. Mais tarde Lacan desenvolveu mais uma ideia acerca dos discursos, o discurso capitalista. Para evitar estender ainda mais o trabalho, remeto o leitor ao texto de Jacques Lacan (1972), da conferência de Milão, onde o autor viria a trabalhar sobre uma nova configuração de discurso que estaria se apresentando nos laços sociais apresentados pelos sujeitos.

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A fim de lograr êxito no prosseguimento da hipótese, é preciso que entendamos a relação entre o trauma produzido e a violência a que o sujeito é submetido psiquicamente. Sumariamente, no processo dito normal, o trauma primordial (infantil) é estabelecido quando o recém-nascido se dá conta da falta que o objeto – no caso, a mãe e o seio – produz. Essa experiência da falta investe o objeto como fonte de prazer, donde que:

A experiencia de satisfação[...]significa o movimento da pulsão em direção do objeto perdido, cuja falta provoca desprazer, pelo acúmulo da tensão libidinal não satisfeita. Este objeto é evocado através da reativação de seus traços mnésicos e, uma vez reencontrado, permite a descarga pulsional ou prazer. (FREIRE COSTA, 1984, p. 170)

Esse processo persiste na vida psíquica do sujeito, onde o supereu impõe uma substituição não incestuosa para esse objeto, resultando em um investimento objetal que encontre traços identificatórios com o objeto primordial perdido. Segundo Freire Costa (1984) o trauma produzido pela falta e pela interdição ao objeto inicialmente “é experimentado como puro afluxo de excitação que necessita escoar-se” (p. 170). Esse escoamento se dá posteriormente através do objeto substituto, “permitindo a descarga pulsional que faz cessar o desprazer e surgir o prazer” (p. 170). Na neurose traumática esse processo se daria de maneira diferente, caracterizando-se “pela natureza e pela intensidade do impacto do fator traumático contra o aparelho de ‘paraexcitação’ ou barreira protetora do Ego” (p. 171).

Resumidamente, na neurose traumática o sujeito não se encontra solidificado psiquicamente perante o evento que ocorre e que se inscreve como violento, desencadeando uma cadeia sintomática onde o sujeito experimenta “pânico, terror, confusão, estupor ou fenômenos conexos, até que medidas defensivas sejam ativadas” (FREIRE COSTA, 1984, p. 171). Superada essa fase, o sujeito inicia um processo de repetição do evento traumático, oposto ao princípio do prazer, já que a revivescência do evento é causadora de sofrimento. De acordo com Freud (1920), em eventos como esse o sujeito “[...] se acha então, psiquicamente fixado ao trauma [...]” (p. 169). Diferentemente desse pensamento, e pertinente à proposta desenvolvida, Freire Costa relendo Laplanche diz que “não existe, como pensava Freud, uma simples “fixação ao trauma”, mas uma tentativa de “fixação do trauma” (FREIRE COSTA, 1984, p. 172).

À diferença do traumatismo infantil, que não chega a romper a “para-excitação” egóica, este segundo tipo de traumatismo não se resolve conforme

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o princípio do prazer-desprazer, ou seja, evacuando a carga libidinal. O modelo resolutivo deste traumatismo é o modelo da dor (grifo meu). O psiquismo despreparado, em confronto com o estímulo de grande intensidade, lança-se à tarefa de “ligar” psiquicamente a excitação, para não ser invadido e desestruturado por ela. O Ego fixa-se ao trauma porque, antes de mais nada, tenta fixar o trauma. (FREIRE COSTA, 1984, p.172)

Essa movimentação é feita pelo aparelho psíquico, que “mobiliza sua energia para fixar e localizar o trauma, de acordo com o modelo da dor” (FREIRE COSTA, 1984, p.172). Para fins de esclarecimento, esse modelo da dor como economia psíquica foi descrito por Freud (1914) no texto “Introdução ao narcisismo”, onde afirma:

[...] que alguém que sofre de dor orgânica e más sensações abandona o interesse pelas coisas do mundo externo, na medida em que não dizem respeito ao seu sofrimento. Uma observação mais precisa mostra que ele também retira o interesse libidinal de seus objetos amorosos, que cessa de amar enquanto sofre. A banalidade desse fato não pode nos dissuadir de lhe dar uma tradução em termos da teoria da libido. Diríamos então que o doente retira seus investimentos libidinais de volta para o Eu, enviando-os novamente para fora depois de curar-se. (p. 17)

Essa introjeção da libido no Eu seria, então, o mecanismo utilizado pelo sujeito para dar conta do sofrimento causado pela dor, que nesse caso seria orgânica, mas que também pode ser qualitativamente psíquica, causando um desvio no fluxo normal da libido, que, como já foi dito anteriormente, ao invés de ser direcionada aos objetos é investida no Eu e no próprio corpo, caracterizando-se como narcísica.

Consoante Freire Costa (1984), a ação traumática que desencadeia os mecanismos de defesa do Eu possui natureza não-sexual, escapando ao princípio do prazer-desprazer, pois configura-se como violenta, já que coloca o sujeito “na posição de não poder obter prazer, ou de só buscá-lo como defesa contra o medo da morte” (p. 173).

A violência, portanto, radica num estímulo de natureza não-sexual. E a sexualidade que emerge no sujeito violentado como consequência desta violência é sempre narcísica na medida em que é uma sexualidade defensiva [leia-se: energia libidinal defensiva]. (p. 173)

Essa sexualidade é defensiva justamente à medida que o sujeito se vê confrontado com um estímulo externo ao qual não consegue responder. Para esclarecer melhor o que isto quer dizer, Freire Costa (1984) faz uso do exemplo da violência sexual, como nos casos de estupro ou de pedofilia, onde o sujeito, “adulto ou criança, é invadido e desestruturado não por um desejo sexual do objeto

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violentador, mas por um desejo de morte” (p. 173). Tal abuso seria vivenciado pelo Eu como ameaça e como risco de “desagregação do núcleo da identidade egóica” (p. 173), onde a angústia que toma conta do sujeito não é a de castração, mas sim a angústia de morte. Para exemplificar, o desejo sexual mencionado acima é representado, em outros termos, pelo investimento libidinal da mãe na criança, que provoca um movimento no instinto inerente ao animal humano, transformando-o em pulsão e diferenciando-o do instinto dos outros animais. O desejo de morte seria, em oposição ao desejo sexual, desprovido de sentido para o sujeito, partindo de uma noção onde a demanda não seria passível de resposta pelo sujeito, não deixando espaço para posterior elaboração psíquica disso, da forma como ocorre no trauma primordial.

É importante essa discriminação dos termos e da teoria acerca do trauma e da experiência traumática violenta pois “tanto na sexualidade implantada ‘de fora’ quanto na sexualidade exigida pela ‘ordem vital’ a criança, ao apropriar-se da sexualidade, liga-se libidinalmente e de modo inelutável ao objeto-fonte da excitação” (FREIRE COSTA, 1984, p. 175), e é isso o que o autor entende (em resposta à ação violenta contra o psiquismo) pela fixação do trauma ao invés de uma fixação ao trauma, como propunha Freud (1920), e é daí que o autor depreende que “a sexualidade provocada pela violência é uma sexualidade regeneradora, defensiva e, por conseguinte, inevitavelmente narcísica” (FREIRE COSTA, 1984, p. 175). Isso levaria o sujeito “ao desinteresse pela função [vital] (anorexia e o hospitalismo), ou a seu superinvestimento narcísico (bulimia, hipocondria)” (p. 176), e, além desses exemplos trazidos pelo autor, temos ainda contemporaneamente a hipervalorização do corpo, como discutido no primeiro capítulo.

Por esse motivo é que afirmamos o caráter narcísico da sexualidade “liberada” pelo impacto da violência. A sexualidade é compulsoriamente

narcísica porque não pode ligar-se ao objeto traumático. A violência impede

o surgimento da sexualidade objetal, dada a especificidade do estímulo

não-sexual que veicula. O sujeito violentado vai procurar lidar com o objeto de

outra maneira. Em vez de investi-lo sexualmente tenta afastá-lo, anular sua existência, inibir o ressurgimento de seus traços mnésicos ou evocá-lo para fixá-lo, assim como anticorpos diante de um corpo estranho. Este é o modelo da dor. (FREIRE COSTA, 1984, p. 176)

Acompanhando o pensamento do autor, inversamente ao processo normal de investimento no objeto, ao qual o sujeito se liga inelutavelmente, nessa ação específica o objeto será fixado em algum ponto do psiquismo para evitar a

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desestruturação do Eu. De acordo com o que foi exposto até agora da teoria de Jurandir Freire Costa (1984) e Christopher Lasch (1983) e relembrando a época em que ambas teses foram publicadas, cabe analisar o fato de que tanto a subjetivação como o processo estrutural dos sujeitos não é imutável no tempo nem no espaço, passando por movimentos contínuos a fim de se adequar à realidade social à qual pertence e não sendo algo súbito ou repentino, mas sim algo pelo que várias gerações vêm sendo acometidas. Dessa forma, não seria tão somente a relação dos sujeitos com a Lei, como apontado anteriormente, que viria a inscrever de forma violenta o evento da imposição da demanda social para o psiquismo do sujeito, mas também a incidência de um discurso desprovido de investimento libidinal, um ataque à estrutura mesma do sujeito, que, incapaz de reagir frente à solicitação se vê acuado em si mesmo a fim de proteger a integridade subjetiva do Eu.

Podemos dizer que o objeto-fonte da violência (coisa, representação ou representação-coisa) é sempre representado pelo sujeito violentado como agente de uma ameaça de morte ou aniquilação, e não de simples frustração libidinal. Este objeto não é mau ou persecutório porque se furta ao desejo do prazer. Um objeto que se torna mau ou persecutório porque se ausenta, falha ou falta é, no fundo, um bom objeto. O Ego pode atacá-lo, cindi-lo, projetá-lo, aluciná-lo oniricamente, identificar-se com ele ou convertê-lo em instância ideal, mas sempre deseja trazê-lo de volta à cena psíquica ou reencontrá-lo na realidade. (FREIRE COSTA, 1984, p. 176)

Conseguinte, o objeto alvo de investimento do sujeito não se apresenta como traumático porque frustra e barra o desejo do sujeito, mas porque demanda excessivamente, esgotando as possibilidades do Eu, sendo “[...] um trauma em si excessivo e capaz de desorganizar o aparelho psíquico, sem a força crescente da repetição” (FREIRE COSTA, 1984, p. 172), que, impedido de efetuar a descarga libidinal através do objeto substituto, resultará em uma mobilização da libido para “fixar e localizar o trauma, de acordo com o modelo da dor” (p. 172).

Dessa forma, temos um discurso na sociedade atual de consumo que demanda excessivamente do sujeito, a todo tempo e o tempo todo, não restando outra alternativa para o sujeito a não ser retirar-se de cena, investindo no próprio Eu. Cabe relembrar que tal investimento se apresenta como mecanismo de defesa, que pode, por sua vez, produzir sintomas caso a carga libidinal recolhida ao Eu não consiga escoar-se para outros objetos.

Assim, a resposta que se apresenta é uma defesa do sujeito frente ao que lhe causa angústia, culpa e desconhecimento de si, fazendo com que ele se volte para si

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a fim de preservar o que conhece como sendo seu Eu e para evitar sua desestruturação.

Quando o interesse de poucos prevalece sobre o interesse de muitos temos como resultado mudança nas formas de subjetivação apresentadas pelos sujeitos. O capitalismo sem dúvida nos trouxe muitos avanços científico-tecnológicos, mas cabe questionarmos: a que custo? Os sujeitos debatendo-se e lutando contra sua própria subjetividade a fim de pertencerem a um mundo cada vez mais excludente nos mostra como é preciso rever alguns pontos do positivismo pelo qual passamos, onde são tamponadas ou mascaradas as negatividades produzidas pelo discurso capitalista de consumo, a fim de que este possa perseverar. O mal-estar que sentimos hoje é, em parte, efeito desse discurso, já que:

O mal-estar não é apenas uma sensação desagradável ou um destino circunstancial, mas o sentimento existencial de perda de lugar, a experiência real de estar fora de lugar. [...] toda a força e a originalidade da noção de mal-estar residem no fato de que ela engloba tanto o sofrimento quanto o sintoma, mas não se reduz a nenhum dos dois. (DUNKER, 2015, p. 196)

Consoante o que o autor aponta na citação acima, o efeito do discurso social enquanto produtor do narcisismo como mecanismo de defesa será um processo de individualização ou individuação dos sujeitos, que se apresentará como sintoma e que, por sua vez, será produtor de sofrimento psíquico e de formas de mal-estar, visto que hoje temos um discurso onde impera a felicidade e o bem-estar, ficando excluídos os sujeitos que não respondem dessa maneira, como veremos no próximo capítulo.

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CAPÍTULO III – O PROCESSO DE INDIVIDUALIZAÇÃO DOS SUJEITOS – HÁ LUGAR PARA SOFRIMENTO?

Como visto no capítulo anterior, o processo narcisista de defesa do sujeito frente às excessivas demandas sociais pode ter como corolário um desencadeamento sintomático. A partir das leituras realizadas, foi possível compreender que um desses sintomas seria a individualização decorrente do narcisismo, onde o sujeito transformar-se-ia em um exilado, à parte do discurso social vigente e dos grupos de pertença gerados a partir disso, sendo tal sintoma produzido a partir do discurso capitalista da sociedade de consumo. O processo de individualização a que me refiro diz respeito ao isolamento do sujeito da malha social justamente por se contrapor ao discurso vigente, causando sofrimento psíquico e outras consequências que veremos mais adiante, e não o individualismo, que é definido pela ação do sujeito que carece de empatia.

O autor e psicanalista Christian Dunker (2014 e 2017) apresenta questões ligadas aos discursos sociais e como os laços estabelecidos entre os sujeitos são afetados por eles. Dunker (2017) trabalha sobre como o processo de individualização da sociedade e dos sujeitos acaba por produzir o que denomina de “experiência de sofrimento”. Ele diz que “sofrer é algo que depende essencialmente de três condições: a narrativa na qual está inserido; os atos de reconhecimento que fixam sua causa e a transitividade que o torna uma experiencia coletiva e indeterminada” (p. 11).

O sujeito, de acordo com o autor, estaria inserido na narrativa – ou discurso social – específica e identitária de seu meio sociocultural e subjugado às determinações ou indeterminações de tal discurso e das relações com os outros, onde “a forma como contamos, justificamos e partilhamos nosso sofrimento está sujeita a uma dinâmica de poder” (DUNKER, 2017, p. 12). Isso teria ligação com o processo defensivo do narcisismo porque:

Déficits e excessos de individualização revelam-se na própria experiência de sofrimento e na forma de fugir e negá-la. Isso aparece, por exemplo, na tendência à hipersocialização, a disposição a ficar permanentemente ligado, ocupado ou disponível, como na impotência para constituir situações e percursos de real solidão ou intimidade. (DUNKER, 2017, p. 13)

A partir desse recorte do autor, é possível identificar a fuga às demandas excessivas que vimos no capítulo anterior, sobre o narcisismo. A retirada da libido

Referências

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