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No truque: perspectivas queer tropicais

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Academic year: 2021

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No truque: perspectivas queer

tropicais

No truque: tropical queer perspectives

Felipe Padilha

a

; Juliana Justa

b

a Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos - UFSCar,

bolsista CNPq e membro do Quereres – Núcleo de Pesquisa em Diferenças, Gênero e Sexualidade. Contato: felipeapa@yahoo.com.br

b Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos - UFSCar,

bolsista FAPESP e membro do SexEnt – Grupo de Pesquisa Sexualidade, Entretenimento e Corpo. Contato: julianafjusta@gmal.com.

Nunca fomos catequizados! Fizemos Carnaval. Manifesto Antropofágico, 1928

Nos últimos anos, os estudos e a política queer cultivaram mudanças significativas nas questões de gênero, corpo e sexualidade. As compreensões que tomavam a correspondência do tripé sexo-desejo-gênero como inequívocas, paulatinamente passaram a ser tensionadas. Esse movimento desnudou as ligações entre a heteronormatividade e o sexismo implícito a uma perspectiva calcada, sobretudo, no positivismo. Com frequência, as teorias que reivindicaram a neutralidade, o fizeram (e ainda o fazem) minorando o interesse por essas questões, quer fosse porque as considerassem questões menores e, portanto, interessantes apenas para as minorias, ou, talvez, porque encarassem o movimento de inflexão proposto pelo queer como moda passageira.

Xs teóricxs queer compreendem a sexualidade como um dispositivo histórico do poder, como um conjunto heterogêneo de discursos, desejos e práticas sociais; como uma rede que se estabelece entre elementos tão diversos como a literatura, enunciados científicos, instituições e proposições morais (MISKOLCI, 2009, p.154). Nesse jogo, a construção dos sujeitos abjetos expos as marcas dos discursos de poder e experiências de exclusão que estão referidas aos processos históricos, marcando subjetividades (PELÚCIO, 2014, p.20).

Guacira Lopes Louro, reconhecidamente uma das anfitriãs dos estudos queer no Brasil, apresentou essa vertente teórica como reativa à normalização, “venha ela de onde vier” (LOURO, 2001, p.546). Essa reatividade, como crítica à hegemonia normalizadora, se estendeu desde a constituição dos corpos e seus limites, passando pelas sexualidades, desejos, alcançando as bio, tecno e geopolíticas.

Atualmente, explica Richard Miskolci (2009, p.160):

[...] não é mais garantido que a sexualidade seja o eixo principal de processos sociais que marcaram e ainda moldam as relações sociais, mas, ao contrário, emerge a ideia de um ponto nodal de intersecções de diferenças.

Implodidas algumas das muralhas que blindavam o discurso normativo, percebemos também a necessidade de expandir as reflexões tensionando também noções como margem e centro. Essas noções são poderosas, sobretudo, quando percebemos que podem funcionar delimitando de maneira precária os processos tensos de constituição das identificações (BENTO, 2011).

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“Só não há determinismo onde há o mistério”, dizia Oswald de Andrade em seu polissêmico Manifesto Antropofágico, publicado em 1928. E, logo em seguida, lançava a questão: “Mas que temos nós com isso?”.

O truque é um modo travesti, transviado de reapropriação e ressignificação da realidade por meio de um jogo de verdades e ocultamentos, valendo-se astuciosamente do não dito. Buscamos combinar essa astúcia e essa ressignificação ao tropical, a uma produção truqueira, sudaka, transviada, cucaracha, cuír, cu, desconcertante. Um movimento, um deslocamento rumo à pergunta: o que quer o nosso queer?

Berenice Bento (2011), em diálogo com Foucault, comenta que os feminismos, assim como o queer, são teorias pirotécnicas porque nos oferecem instrumentos para a estratégia, para o cerco, para a guerra, para o espanto e para a destruição. O foco destrutivo pode ser mais bem entendido como um esforço teórico para desafiar e implodir os limites pelos quais a cultura dominante estabiliza as diferenças enquanto desigualdades. Acreditamos que, em outras palavras, também podemos considerar o destrutivo como uma forma de lidar com situações hegemônicas “no truque”.

Para reconhecer, é preciso permitir-se conhecer, deixar-se tocar, deglutir, declarar, colocar o performativo em circulação, pô-lo à prova. Para desafiar esses limites, diversas estratégias podem ser mobilizadas. A própria escrita repleta de x, @, *, / pode ser lida como uma tática para graficamente explicitar as questões das quais queremos falar, ainda que por vezes a leitura inevitavelmente acabe se tornando um pouco incômoda. Nesse caso, suspeitamos que o desconforto, talvez, seja um efeito da norma sendo exposta e reflexivamente regurgitada.

Larissa Pelúcio (2014, p.39), em um texto mordaz, comenta que “as experiências concretas, sobre as quais as ciências sociais e humanas se debruçam, têm apontado para a necessidade de tornarmos os termos identitários mais prismáticos, menos reducionistas”. É ao encontro dessa proposta que exploramos, aqui, a dimensão plural das perspectivas. Isso também sinaliza para a amplitude e variedade geográfica das discussões desenvolvidas nos artigos que compõem esse número.

Não temos a intenção de debater sobre as questões que envolvem a tradução do termo queer. De outro modo, seguindo a proposta de Pedro Paulo Gomes Pereira (2014), nos propusemos a provocar o “encontro” e a “invenção” nos questionando sobre a capacidade do queer de se imiscuir às experiências locais, alterar-se, levando-o a outro lugar. A permanência do termo, nesse caso, “obriga a língua a lastrear-se de estranheza (do termo estrangeiro que resiste, dos corpos ex-cêntricos, das práticas diversas), e essas experiências nos trópicos inventariam uma outra gramática e outras formas de agir” (PEREIRA, 2014, p.153).

Com sorte, também esperamos colaborar para as discussões que proliferam em torno da teoria queer, cuiér, sudaka, cucaracha, teoria cu, entre outras, como exercício de pesquisa e epistemológico.

Com todo um potencial para a elaboração não só de novas bandeiras, mas como teoria capaz de propor um outro vocabulário, uma nova gramática que desafie as estreitezas de uma ciência que nos ensinou que para sermos levadxs a sério temos que usar os artigos no masculino. Assim, quando queremos falar de humanidade devemos nos referir ao Homem como abstração com pretensões de neutralidade. Se não o fizermos corremos o risco de ofendermos a audiência (PELÚCIO, 2014, p.36).

Comprometidxs com esse descentramento, queremos torcer essa potente vertente teórica para fazer dela múltipla, mas sem deixar de lado uma construção situada capaz de uma compreensão geopolítica mais afetuosa, provocante, instigante e desestabilizadora. Esse intuito

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se revela na multiplicidade de autorxs que, em suas produções, buscam deglutir esse corpus teórico à margem dos regimes falogocêntricos e heteronormativos da ciência canônica.

É nesse banquete tropical, ao Sul de Equador, que nos abrimos para o inesperado e convidamos x leitorx à mesa, reconhecendo que “as adesões teóricas são também locais políticos capazes de nos instrumentalizar para o bom combate” (PELÚCIO, 2014, p. 41).

Nos textos que compõem esta publicação, xs autorxs desafiam enfrentando a normalização e a naturalização. Seja evidenciando a artificialidade do modelo familiar heterossexual que emerge com a sociedade urbano-industrial; o caráter compulsório da heterossexualidade; as migrações e a constituição de um modo de vida gay-urbano no Brasil; desconstruindo binarismos que enrijecem possibilidades de transformações; politizando o desejo; questionando os limites do feminismo; apontando para as exclusões produzidas pelos discursos hegemônicos ao comemorar a impossibilidade da completude; ou para as estratégias de (in)visibilidade que cercam o desejo.

Mais do que falar “a verdade” sobre como são ou como vivem as pessoas pesquisadas, os textos selecionados para este dossiê comunicam sobre o que podemos apreender com elas, com seus corpos, sexualidades, desejos, trânsitos e como essas esferas se articulam às questões tecno, bio e geopolíticas, sem esquecer que também somos afetadxs nesse processo.

Não há a pretensão de reificar o queer tropical, mas de criar espaços potentes para novos vocabulários e para a discussão sobre as implicações da criatividade tanto na academia, quanto nas políticas do cotidiano.

Anna Paula Vencato abre o Dossiê problematizando as inquietações acumuladas durante a sua experiência como docente no curso Gênero e Diversidade na Escola, promovido pela UFSCar. A autora se pergunta como suas percepções sobre família impactam na relação com xs estudantes. Em um importante contexto de sociabilidade, a escola, no qual há variadas possibilidades de “família”, Vencato percebe as resistências aos modelos que ultrapassam aquele considerado nuclear (pai-mãe-filhos) e historicamente hegemônico. São deixadas de fora as famílias formadas por LGBTs, por netos e avós ou mesmo as chefiadas por mulheres. Esse debate sobre o respeito às diferenças é uma contribuição indispensável para a produção de práticas pedagógicas e processos de escolarização mais democráticos e que não reproduzam os estereótipos vigentes que com frequência articulam a família, o gênero e o fracasso escolar. Em seguida, Marcelo Augusto de Almeida Teixeira interpela os estudos migratórios e a ideia comumente propagada de que os migrantes seriam uma massa de sujeitos heterossexuais e sem gênero que se deslocam os centros urbanos exclusivamente por questões econômicas. Desconfiando da literatura que reifica os migrantes como trabalhadores e a metrópole como

habitat por excelência para homossexuais, sobretudo, no século XX, o autor chama a atenção

para a proporção de casais do mesmo sexo em pequenas cidades brasileiras, com ênfase nos anos 2000. A supervalorização do ambiente urbano na formação identitária homossexual, portanto, é avaliada a partir do conceito “metronormatividade”, cunhado por Jack Halberstam, explicitando a crítica ao urbano como referência absoluta para uma suposta vida de liberdade e satisfação sexual.

Jonas Alves da Silva Junior discute os conceitos de travestilidade e transexualidade partindo do diálogo entre as teorias de Michel Foucault e Judith Butler. Afinado com a produção queer nacional e internacional, Silva Júnior busca compreender a pluralidade sexual e de gênero no contexto escolar, já que as experiências transexuais e travestis na escola são múltiplas e singulares. Sua análise mostra como os processos de subjetivação são configurados como modos de normatização e de singularização que se estabelecem tanto no sujeito individual como nos múltiplos espaços sociais em vive.

Com o propósito de fornecer elementos para a pesquisa das sexualidades online, Kaciano Barbosa Gadelha faz uma revisão do conceito de performatividade em relação ao conceito

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de espaço. A discussão é pautada no estudo de caso tomando as páginas e os aplicativos para homens gays que buscam por parceiros online. Interessado na configuração das novas geografias eróticas online, em uma perspectiva simétrica, sua reflexão explora o conceito de performatividade sob a lente do neomaterialismo de Karen Barad, descentrando a agência humana para uma compreensão dos processos que envolvem a participação de atores não humanos na produção da sexualidade.

Marcelle Jacinto da Silva traz o universo simbólico de jogos eróticos de poder e o conjunto de rituais específicos elencados sob a denominação de “feminização forçada”, no universo do sado-fetichismo. Além de contextualizar as performances de gênero nessas práticas eróticas, Silva reflete sobre as ambiguidades como produtoras de erotismo. Mobilizando o vocabulário êmico, sua análise evidencia a circulação e a transformação de conceitos que culminam no “espetáculo da ambiguidade”, não restrita apenas ao gênero, mas em termos como disciplina, poder, domesticidade e entrega.

Carolina Ribeiro discute categorias como homossexualidade, feminismo e corporalidades a partir da pornografia feminista de Erika Lust, diretora, produtora e escritora sueca, radicada na Espanha. A partir de um grupo focal, no qual foram exibidos dois filmes de Lust e seguidos por um debate aberto, Ribeiro traz uma interessante mirada sobre a percepção de “mulheres modernas” sobre os significados do feminismo. Sua análise questiona quais seriam as principais mensagens da pornografia feminista de Lust; como essas mensagens foram compreendidas pelas mulheres do grupo focal; bem como o que esses dados podem nos dizer sobre sexualidade, corporalidade e subjetividades.

Já Marco Antônio Gavério cartografa os debates existentes entre deficiência e sexualidade pelo prisma dos posicionamentos críticos dos disability studies e da teoria queer, estabelecidos após os anos 2000. Sua recuperação oferece uma leitura sobre os pontos históricos que permitem compreender como se deu essa articulação entre as vertentes chegando aos profícuos questionamentos da teoria crip. Gavério aponta para o potencial do que chama de “ameaças crí(p)ticas” para pensar e criar cada vez mais espaços aleijados no mundo que rondem e assustem as normalidades.

Por fim, Rodrigo Melhado nos apresenta a síntese de sua monografia, interessada nos perfis de usuários do sítio de encontro entre homens Manhunt.net nas cidades de Araraquara e São Carlos, situadas no interior paulista. Seu trabalho é instigante, sobretudo porque busca formular uma explicação que articula as perspectivas quali e quantitativas para entender a sexualidade. A pesquisa traz referências dos estudos brasileiros sobre sexualidade, dos estudos queer e de pesquisas recentes sobre o uso de mídias digitais. Ao buscar desvendar quais os componentes de gênero, geração, classe social, concepções de masculinidades e construção do corpo são acionados nesse mercado amoroso, Melhado destaca os procedimentos envolvidos na construção dos perfis online, bem como seus valores e as convenções de gênero, sexualidade e outros marcadores sociais das diferenças nele acionados.

A ideia de organizar essas reflexões em torno do queer tropical como antropofágico emergiu durante o processo de construção do próprio número. Com ele, pretendemos sinalizar para essa mistura calorosa e diversa de influências de variadxs autorxs e contextos, mas atenta às especificidades locais. Contemplar essa mistura é uma estratégia política, pois, apesar de a teoria queer possuir uma perspectiva não identitária e despatologizante (principalmente em relação aos gêneros, sexualidades, corpos e desejos), sua propagação e apropriação por vezes canoniza uma teoria supostamente anticanônica e arrefece a postura crítica e criativa de novas formas de produzir.

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Referências

ANDRADE, Oswald de. O manifesto antropófago. In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda

européia e modernismo brasileiro: apresentação e crítica dos principais manifestos

vanguardistas. 3ª ed. Petrópolis: Vozes; Brasília: INL, 1976. Disponível em: <http://www.ufrgs. br/cdrom/oandrade/oandrade.pdf>.

BENTO, Berenice. Política da diferença: feminismos e transexualidades. In: COLLING, Leandro (Org.). Stonewall 40 + o que no Brasil? Salvador: EDUFBA, 2011. v. 1. p. 79-110. Disponível em: <http://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/2260/ 3/Stonewall%2040_cult9_RI.pdf>. LOURO, Guacira Lopes. Teoria queer: uma política pós-identitária para a educação. Revista de

Estudos Feministas, Florianópolis, v. 9, n. 2, p. 59-90, 2001. Disponível em: <https://periodicos.

ufsc.br/index.php/ref/article/view/S0104-026X2001000200012/8865>.

MISKOLCI, Richard. A Teoria Queer e a Sociologia: o desafio de uma analítica da normalização.

Sociologias, Porto Alegre, ano 11, n. 21, p. 150-182, jan./jun. 2009. Disponível em: <http://seer.

ufrgs.br/sociologias/article/view/8863>.

PELÚCIO, Larissa. Traduções e torções ou o que se quer dizer quando dizemos queer no Brasil?

Revista Periodicus, v.1, n.1 maio-outubro, 2014. Disponível em: <http://www.portalseer.ufba.

br/index.php/revistaperiodicus/article/view/10150/7254>.

PEREIRA, Pedro Paulo Gomes. De corpos e travessias: uma antropologia de corpos e afetos. São Paulo: Annablume, 2014.

Referências

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