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As juremeiras da nação Xambá: religião, música e poder

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Gênero, Religião e Poder - ST47 Laila Andresa C. Rosa

UFBA

Palavras-chave: Jurema – Música – Poder

As juremeiras da nação Xambá: religião, música e poder

1. O culto da jurema: “Comadre Florzinha chegou...”i

A naçãoii Xambá é um culto afro-brasileiro dedicado aos orixás. Seu terreiroiii chamado Ilê Axe Oyá Meguê, fica situado em Olinda – Pernambuco e carrega mais de sete décadas de história protagonizada por mulheresiv. Além do culto aos orixás, no mesmo terreiro ou em outras ‘casas’ abertas por uma maioria constituída por filhas-de-santo desta nação, é realizado o culto da jurema, definida por MOTTA (1997, p. 11) como um culto dedicado aos caboclos, mestres e curandeiros de origem Luso-Brasileira. Posteriormente, este adicionou ao seu panteão outras entidades como exus (entidades masculinas do candomblé) e pombagiras (entidades femininas da Umbanda, consideradas exus femininos). Esta religião acontece em torno da bebida mágico-terapêutica de mesmo nome, feita com a raiz da árvore sagrada homônimav, e em certos casos, com o acréscimo de outras ervas e da cachaça. Considerada de origem indígena, que em contexto brasileiro escravocrata além de ter adicionado traços europeus ao seu universo religioso também foi ‘assimilada’ ao universo das religiões afro-brasileiras, integrando até hoje o calendário religioso de vários terreiros de candomblé tradicionais, porém, muitas vezes a jurema fica reservada à parte mais ‘discreta’ e menos divulgada da esfera religiosavi. Esta assimilação ocorreu por diversas razões como o culto africano dedicado aos ancestraisvii e principalmente pelo compartilhamento de estruturas religiosas similares entre o candomblé, a umbanda e a jurema (ASSUNÇÃO, 2006; SALLES, 2004).

O culto da jurema transitou do contexto rural para se acomodar aos centros urbanos do nordeste do Brasil como Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte onde sua presença é muito representativa (SALLES, 2004). Por várias razões como individualismo, capitalismo, desigualdades sociais, etc. a ‘cidade grande’ é concebida como um contexto onde não há lugar para religiões como esta. No entanto, Brandão e Rios (2001, p. 161) reforçam o seu ‘trânsito’ e sua capacidade de adaptação a novos contextos:

Este culto se difundiu dos sertões e agrestes nordestinos em direção às grandes cidades do litoral, onde elementos das outras matrizes étnicas entraram em cena. Desse modo, o símbolo da árvore que liga o mundo terreno ao além, e, embora amarga, dá sapiência aos que dela se alimentam, ganha novos significados, surgindo um mito com traços cristãos.

Os propósitos mágico-terapêuticos da jurema também couberam muito bem no espaço urbano, onde “mediunidade, concentração, “ciências”, fumaça e cânticos são elementos que articulados em um

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procedimento ritualístico adequado podem permitir a comunicação com o mundo sobrenatural” (LUZURIAGA, 2001, p. 10). Neste novo universo, experimenta transformações que vão da esfera coletiva à individual, como afirma BASTIDE (2001, p. 148) que “a benção coletiva das cidades dada pela festa da jurema foi sucedida pela benção individual, a luta contra as preocupações particulares, a tristeza das almas solitárias”viii.

Como “ciência” (LUZURIAGA, 2001, p. 8) e dona de uma gama de conhecimentos não reconhecidos pela sociedade em geral e pelas religiões ‘oficiais’, com todos os seus desdobramentos religiosos, a jurema sofreu grande perseguição, pode-se até afirmar que, em relação ao candomblé, este culto ficou relegado a uma posição de prestígio inferior sendo inclusive menos pesquisada, como bem afirma SALLES (2004, p. 12): “O interesse pelo fenômeno da jurema aparece muito tardiamente entre os estudiosos da religiosidade popular no Brasil”. Comparando ambas as religiões, constata-se que o interesse sempre foi mais dispensado ao candomblé, na busca da pureza africana que SEGATO (1995, p. 15) afirmou ser fruto da concepção que também se estendeu aos xangôs pernambucanos, julgados “ilegítimos, marginais e menos merecedores de prestígio”. RIBEIRO (1970), um clássico dos estudos afro-pernambucanos, já na década de cinqüenta afirmou que o xangô não tinha o mesmo “esplendor” dos candomblés baianos pelo caráter ritual mais fechado diante de todas as represálias policiais que sofreu. Mais de quarenta anos depois, SEGATO (1995, p. 18) reforça a afirmação do autor, ressaltando que em Recife esses cultos não tiveram de longe o prestígio baiano em razão do interesse dos intelectuais pelo candomblé daquele Estado. Diante deste panorama, se o xangô já não havia alcançado maior prestígio, a jurema passa a representar o lado “esquerdo” e um tanto marginalizado, onde diferentemente do candomblé, há a presença da bebida alcoólica e da fumaça. Esta marginalização certamente se estende às mulheres que, em sua maioria, estão à frente deste culto, embora no meio religioso elas gozem de muito prestígio, agregando em torno de si e de suas casas afilhados e afilhadas.

Para melhor compreender o significado da jurema e de suas representantes é importante considerar o conceito de juremeira(o) que versa sobre pessoa “que utiliza o transe provocado pela jurema em práticas de bruxarias”, já bruxaria seria o “suposto exercício de poderes sobrenaturais” (FERREIRA, 1999). O termo catimbó, outrora muito utilizado na literatura (MOTTA, 1997; BASTIDE, 1945 e 2001) tanto quanto o termo Feitiçaria (ANDRADE, 1963; ALVARENGA, 1950) ainda hoje é atribuído a este culto, sendo usado num sentido genérico “encontrado na linguagem corrente do Nordeste, e que pode significar magia negra, feitiçaria, bem como qualquer forma de manipulação do sobrenatural com fins “maléficos” ou “diabólicos”, como “coisa-feita”, “mal-olhado”, entre outros” (SALLES, 2004, p. 63). Todos estes conceitos conduzem o nosso olhar para a relação entre jurema e bruxaria, visto que conhecimentos de origem camponesa, com práticas e

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situações-limite da existência (nascimento, acasalamento, geração, morte), é tido como criminoso e desprovido de qualquer tipo de prestígio e respeito por parte das religiões ‘oficiais’ e da sociedade (GOMES ZORDAN, 2005, p. 332).

2. Música: narrativa do divino

As obrigações são marcadas pela presença da música, através das cantigas entoadas pelas entidades e pelo povo-de-santo, acompanhadas por palmas. A ausência dos tambores representa uma particularidade musical do culto da jurema realizado no terreiro da nação Xambá. Esta é explicada pelo povo-de-santo como uma restrição dos orixás (os donos do terreiro) ao culto, pois estes não permitem o fumo nem a bebida. Por outro lado, não se pode deixar de considerar neste contexto as repressões e adaptações vivenciadas pelas religiões afro-brasileiras para a manutenção de seus cultos, ainda que forçosamente “invisível” aos olhos da polícia (BRAGA, 1995, p. 27). Esta foi uma realidade que marcou a história desta nação afro-brasileira que passou doze anos (1938-1950) com suas portas fechadas sob decreto policial (LEAL, 2000).

As cantigas, também chamadas de ‘linhas’ ou ‘pontos’ representam narrativas das entidades, de suas histórias e características particulares. Assim como no candomblé de caboclo, as entidades ‘trazem’ suas próprias cantigas, que são cantadas em português e carregadas de uma forte dose de ineditismoix. As ‘linhas’ também falam sobre os territórios, as moradas místicas das entidades. Sobre a territorialidade na bruxaria, MALUF (2005, p. 197) destaca que vários lugares são apontados como pertencente às bruxas e, por isso, temidos por todos. Esta territorialidade sagrada na jurema é representada pelas matas, encruzilhadas, mares, rios e até mesmo países, caso dos ciganos e das ciganas.

São entidades masculinas e femininas diferenciadas pelo sexo e por suas posturas, que possuem poderes reverenciados igualmente, podendo ser ‘recebidos’ através do transe ou da ‘incorporação’x por homens e mulheres. BASTIDE (2001, p. 148) afirma que o diálogo individualizado entre adepta(o) e entidades busca a resolução de problemas cotidianos, males humanos como doenças, questões amorosas e profissionais. Embora o forte apelo às entidades femininas seja em relação ao amor, elas também podem ‘trabalhar’ nas demais esferas de atuação. Contudo, as mulheres declaram a identificação com estas poderosas figuras femininas que por também terem sido mulheres quando vivas, bem entendem sua situação. Por outro lado, se agradar com comidas, roupas, bebidas, fumos de sua preferência, as entidades também podem fazer o ‘mal’, isso vai depender do padrinho ou madrinha da jurema, responsável pela condução do culto. Neste sentido, o bem e o mal andam lado a lado. Não há entidade ‘má’, uma mesma entidade pode trabalhar para os ‘dois lados’, e na esfera divina, as entidades não são criticadas por suas ações e

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sim as pessoas que tentam manipulá-las, aí entra a crença Kardecista de doutrinação e do retorno das ações. Cada entidade possui o seu repertório musical específico. São elas:

1. Caboclos e caboclas – de origem indígena, vivem nas matas e são consideradas entidades

curandeiras e por isso “almas elevadas”. Na maioria dos casos são crianças ‘travessas’, diferenciadas pelo sexo, que comem frutas, mel e adoram balas e brinquedos.

2. Mestres e mestras – foram pessoas que geralmente viveram na cidade e tiveram uma morte

trágica. Geralmente brincalhões, alguns mestres eram viciados no jogo e na bebida, quando ‘descem’ através do transe ‘chegam’ bêbados e ávidos por mais bebida e cigarros. Já as mestras foram mulheres de larga experiência amorosa ou mesmo prostitutas. Neste caso a sexualidade é que está em evidência, sendo o corpo um veículo de sua expressão. Elas bebem, fumam, falam palavrão, agem de maneira não correspondente às expectativas sociais vigentes.

3. Pretos-velhos e pretas-velhas – vivem na Bahia, são espíritos velhos de escravos/as africanos/as

relacionados a umbanda, religião afro-brasileira que se baseia também nos preceitos Kardecistas. Entre ambos a distinção é baseada pelo sexo, sendo o poder de aconselhar e curar através da utilização das ervas e da defumação, o mesmo.

4. Exus e pombagiras – os exus são entidades africanas “adotadas” pelo culto da jurema. Vivem

nas encruzilhadas e cemitérios, são os mensageiros entre as pessoas e o divino e, embora atuem como “servos” ou “mestres menos esclarecidos”, são considerados muito poderosos, os primeiros a serem reverenciados juntamente com as pombagiras, consideradas exus femininos. Ambos às vezes são relacionados ao demônio, sobretudo na sua fala, a princípio incompreensível, na coreografia de sua dança, onde as mãos se encolhem como ‘garras’ e também no seu ‘ponto riscado’, gráfico próprio de cada entidade, onde é utilizada a representação ‘diabólica’ do tridente. Assim como as mestras, as pombagiras também se diferenciam pela postura ‘rebelde’, bebe cachaça, fuma, canta, dança, levanta a saia aos presentes, confirmando assim a sua liberdade sexual e insubordinação, o que não as torna menos respeitáveis no culto.

5. Sultões e ciganas – compõem a linha dos “orientais”, vivem na Espanha, Egito, Iugoslávia,

Índia, etc. (LUZURIAGA, 2001, p. 40). Consideradas ‘finas’ e sofisticadas, estas entidades são raras e por essa razão, estão presentes em poucos terreiros. As ciganas lêem cartas, bebem champanhe e comem frutas ‘finas’, sendo muito temidas por seus poderes ‘mágicos’. Muitas pessoas dizem que não confiam muito nesta ‘corrente’ de entidades ‘interesseiras’ outras já ressaltam sua bondade.

A música como narrativa do divino expressa o amor, o sexo, a violência, a morte, o lúdico, o conhecimento da ‘ciência’ da jurema, territorialidade e contexto escravocrata. Nela são narradas as dores das mestras que foram mulheres que viviam nos cabarés, prostitutas assassinadas

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esfera da morte, das caboclinhas que brincam, mas possuem também conhecimentos sobre as sagradas matas, sua morada por excelência e das pretas-velhas, ex-escravas cujo extenso conhecimento medicinal para rezas, chás e defumações é muito requisitado. Há no âmbito místico o domínio do ‘feitiço’ pelas entidades. No caso das caboclas e pretas-velhas por serem crianças ou velhas, e por isso consideradas assexuadas, são marcadas por uma concepção naturalizada de gênero, onde apenas a diferença sexual é a marca da distinção. As mestras, ciganas e pombagiras, consideradas mulheres jovens, bonitas e sensuais, assim como as bruxas, representam figuras “sexualizáveis por excelência” (GOMES ZORDAN, 2005, p. 372), onde a sexualidade e o domínio do corpo, bem como seus poderes e sua insubordinação em relação às regras preestabelecidas é que fazem a diferença.

3. Contexto musical e religioso: narrativas do humano

Como narrativa do humano, a música está intimamente atrelada ao extramusical que envolve as diferentes atuações de homens e mulheres em relação à mesma, poderoso veículo de diálogo com o sagrado. Sem música não há culto e as entidades não ‘descem’ para receber suas oferendas e atender às aflições de filhos e filhas. O ciclo sagrado não se conclui. Por isso, quem canta e toca ganha visibilidade e respeito até mesmo das entidades. Neste caso, os diferentes papéis musicais são exercidos a partir da diferença entre os sexos. Quando presente nos demais terreiros, a dupla de ilús, tambores sagradosxi, é tocada apenas por homens que mesmo que não exijam, muitas vezes recebem um ‘agrado’ financeiro, o que reforça o seu status no culto. Em apenas um terreiro de jurema dentre as filhas-de-santo do Xambá há uma mulher que toca, fato respeitado por muitas/os, mas também criticado por outras/os. As mulheres em coro não se consideram ativamente participantes musicais pois ‘só respondem’ aos cantos puxados pela madrinha/ padrinho, solista cujo domínio do repertório musical é extenso. A partir dos diferentes papéis musicais, emerge a questão do poder que envolve música e gênero, não pensando música apenas como sons, mas partindo do conceito de ‘som humanamente organizado’ (BLACKING, 1974) que abrange suas funções e a participação/valoração das pessoas que estão ligadas diretamente a ela, ou seja, concepções culturais sobre ideal sonoro e sobre o fazer musical.

Na esfera do culto existem momentos sagrados de grande relevância como o sacrifício do animal oferecido à entidade, em que a presença feminina é vetada. Mesmo quando a casa é dirigida por uma mulher, esta deve recorrer a um padrinho externo que sempre é convocado especificamente para a realização de certos preceitos. A proibição do acesso feminino a esferas fundamentais ao culto como a musical, em relação aos ilús, e ao sagrado, como o sacrifício, pode ser de certo modo concebida como o veto ao corpo feminino. Este é um corpo que ‘sangra’ e, por isso, pode tanto estar numa condição ‘impura’, diante das entidades, como também de ‘abertura’ e suscetibilidade a

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energias que podem ser maléficas para a própria mulher, exigindo assim o seu ‘resguardo’. No entanto, as restrições ocorrem independente da mulher estar menstruada ou não naquele período, mas pelo fato dela menstruar. São várias as “configurações sócio-culturais” ou “ordens prático-simbólicas” em torno da menstruação, assim como são também diferentes as experiências femininas pois “pode-se afirmar que, embora ‘sangrar todo mês’ seja destino de toda mulher, a experiência vivida da menstruação será significativamente diferente para mulheres situadas em diferentes contextos históricos, culturais e sociais”, caso da jurema (SARDENBERG, 1994, p. 332). Apenas quando ela ‘deixa de ser mulher’, ou seja, quando não estiver mais em sua fase reprodutiva, na menopausa, é que pode atuar de forma mais intensa na manipulação do sagrado, o que dificilmente vai acontecer em relação à música, exceto por seu canto.

As mulheres são apontadas como as mais dedicadas, seguindo todas as restrições e ‘resguardos’, sendo isto um dos fatores mencionados pelo povo-de-santo do Xambá para explicar a sua liderança na maioria das casas de jurema. Contudo, não há nada na esfera sagrada em que só as mulheres possam fazer, mas existem vários momentos em que sua participação ativa é vetada e entra o prestígio masculino na detenção do poder de atuação do sagrado e da música. ROSADO-NUNES (2005, p. 363) destaca que embora haja o senso comum do alto investimento religioso feminino “as religiões são um campo de investimento masculino por excelência”, visto que são os homens que dominam importantes esferas do sagrado. Esta afirmação nos remete às relações de poder e à constatação de que “não existe algo unitário e global chamado poder, mas unicamente formas díspares, heterogêneas, em constante transformação. O poder não é objeto natural, uma coisa; é uma prática social e, como tal, constituída historicamente” (MACHADO, 2004, p. x). SCOTT (1990, p. 14) que propõe gênero como uma categoria analítica para compreender a história, o define como “elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder”. Desta forma, entrelaçando gênero-religião-música e poder, alcançamos um rico panorama sobre esta religião e suas juremeiras, que, assim como as entidades, representam figuras femininas poderosas, embora em momentos relevantes da esfera do culto não gozem de status igual ao dos homens, o que revela as relações de poder/desigualdade que se estabelecem e se perpetuam através das gerações. Estas são questões fundamentais a serem levadas em conta para entender este culto.

4. Conclusão – “E o cruzeiro da Paulina clareou este gongá...”xii

São várias as esferas presentes neste ‘complexo-jurema’, onde o culto como o contato com o ‘outro’ lado, a ‘esquerda’ também chamada de catimbó, ‘baixa magia’ e macumba, traz equilíbrio às pessoas, respostas existenciais e terapêuticas. Neste universo é estabelecido o diálogo direto com entidades divino-humanas que carregam em sua fala, suas cantigas e em sua corporalidade, as

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marcas das vidas passadas, das dores, das contradições, mas sobretudo dos poderes/saberes religiosos que são igualmente reverenciados, independente do sexo. As entidades femininas neste complexo, além do divino-humano, pessoas que já viveram, mas que depois de terem se ‘passado’xiii adquiriram uma morada mística, representam uma narrativa que elabora suas relações de gênero construídas na comunidade religiosa, como já destacou MALUF (1992, p. 193) em suas narrativas de bruxaria. Estas narrativas dialogam também com a esfera humana, onde os conflitos não deixam de compor o seu quadro. A partir da ‘incorporação’ da pessoa pela entidade, há uma inversão de papéis, da ordem preestabelecida, onde mães de famílias e donas de casa, tornam-se pombagiras ou mestras, mulheres que romperam com as regras socialmente estabelecidas e chocaram a sociedade, assim como as bruxas ‘insubordinadas’ e ‘sexualizáveis’. Por outro lado, estas podem se manifestar de forma assexuada na representação de crianças e velhas, cujos poderes da ciência da jurema não ficam a desejar.

No Xambá assim como sua fundadora Maria Oyá, sua sucessora Mãe Biu tinha um envolvimento com o culto da jurema, legando a filhos e filhas a concepção de que para viver bem é preciso trabalhar com os dois ‘lados’ da vida e do sagrado. Este sagrado assim como na bruxaria, está intimamente ligado à natureza, à ciência das ervas e aos conhecimentos ‘outros’ não oficiais e que foram por tanto tempo perseguidos, sendo até hoje de certo modo, marginalizada e por isso, realizada discretamente no âmbito de terreiros tradicionais de candomblé. Esta marginalização pode ser entendida também a partir do conflito entre a medicina popular, de aspectos prático e mágico, cujas praticantes eram em grande parte mulheres, e a medicina oficial, por tanto tempo monopolizada pelos homens (TOSÍ, 1998, p. 375). Conseqüentemente, o ‘desprestígio’ por vezes gozado pela jurema se estende a suas representantes femininas que compõem a maioria na liderança do culto. Das dez casas abertas por pessoas que também cultuam os orixás no Xambá, oito tem mulheres à sua frente. Por outro lado, nos recônditos do sagrado, a participação masculina goza de um status, sendo muitas vezes indispensável à manutenção da tradição, elaborando assim um conflito de poderes religiosos entre ambos os sexos que também se estendem ao âmbito musical e precisam ser avaliados para o alcance de uma compreensão mais abrangente a respeito do culto.

Referências

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i

Comadre Florzinha é a primeira entidade a ser reverenciada na obrigação dedicada as/os caboclas/os, cerimônia restrita ao povo-de-santo na nação Xambá e também presente nas demais casas de Jurema das filhas deste terreiro. Acontece no mês de janeiro, sendo a primeira realizada no ano com o objetivo de ‘abrir os caminhos’ do ano novo. Esta figura feminina representa a poderosa “dona da mata” e por isso tem de ser reverenciada para que ao realizarem as

obrigações (também sinônimo de oferendas) na mata as pessoas não se percam. Sua cantiga “Oi siu, siu, siu, siu, a Comadre Florzinha chegou. Oi, siu, siu, siu, siu, a ciência da mata chegou...” narra a relação entre poder e saber

feminino desta entidade que domina “a ciência da mata” e que não deve ser negligenciada. ii

‘Nação’ é o termo utilizado para designar os diferentes grupos religiosos afro-brasileiros num sentido teológico (LÜHNING, 1990; COSTA LIMA, 1984 e CACCIATORE, 1977).

iii

O lugar sagrado onde os cultos são realizados. Também pode ser chamado ‘casa’. iv

O terreiro foi fundado em 1930 por Maria das Dores da Silva, a Maria Oyá (1900 –1939+) e reaberto em 1950 por Severina Paraíso da Silva, a Mãe Biu (1915-1993+). Atualmente é dirigido por Adeildo Paraíso, o Pai Ivo, filho consangüíneo de Mãe Biu, que apesar de ser o primeiro homem a dirigir a casa, é filho do orixá feminino Oxum, fator sempre ressaltado pelo povo-de-santo para explicar que, de alguma forma, a tradição feminina se perpetua.

v

São dois tipos de jurema: a preta (Mimosa hostilis benth) e a branca (Vitex agmus castus). Além do preparo da bebida sagrada, ambos os tipos são também empregados para o preparo de banhos, remédios e defumadores, utilizados com fins mágico-terapêuticos “a fim de curar os males físicos e espirituais” (ASSUNÇÃO, 2006, p. 19).

vi

Na cartilha da nação Xambá, escrita pelo historiador e filho-de-santo Hildo Leal (LEAL, 2000) é sempre destacado que ambos os cultos não se ‘misturam’, ou seja, ocorrem em espaços sagrados distintos e seguem calendários religiosos distintos (ver também BASTIDE, 2001; VANDEZANDE, 1975; GARCIA, 2001; BRANDÃO e RIOS, 2001).

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vii

O povo africano até hoje guarda a tradição do culto aos ancestrais, familiares que já faleceram ou reis de castas das quais faziam parte. Em solo brasileiro, o povo africano reconheceu esta ancestralidade na figura do(a) índio(a) e do(a) caboclo(a), que passou a ser reverenciado(a) como ancestral brasileiro(a).

viii

Sobre o contexto urbano OLIVEN (1985, p. 13) afirma que “por se constituírem nos centros mais dinâmicos de sociedades complexas, as cidades representam também espaços nos quais as contradições deste tipo de sociedade se tornam mais evidentes. A cidade passa, assim, a se constituir no contexto no qual se desenvolvem vários processos e fenômenos sociais. Ela não é a principal causa destes fenômenos (embora possa intervir no seu desenvolvimento), mas se constitui no centro de convergência de processos das mais variadas ordens.”

ix

Na Bahia há o culto similar à jurema que é exclusivamente dedicado aos caboclos e por isso é chamado de candomblé de caboclo. A diferença significativa entre ambos os cultos consiste na presença das caboclas na Jurema, enquanto que no candomblé de caboclo a predominância é de caboclos homens e adultos, sendo rara a presença de caboclas. Diferentemente dos orixás que possuem um repertório pré-estabelecido cantado em iorubá e transmitido oralmente de geração a geração, no candomblé de caboclo as entidades ‘trazem’ suas ‘linhas’ que podem ser completamente inéditas (GARCIA, 2001, p. 133).

x

BASTIDE (2001, p. 148) define transe como uma mudança da personalidade num contexto místico que significaria a perda do “eu” (a consciência) encontrando um outro “eu” (que seria outra consciência). De acordo com o autor, o transe neste contexto poderia ser causado por processos físicos de intoxicação com a fumaça e a bebida jurema. MOTTA (1997, p. 15) usa a expressão “possessão verbal”, pois as entidades falam diretamente com o povo-de-santo em língua vernácula, diferentemente dos orixás, que não falam, salvo raras exceções. ROUGET (1985, p. 3) define transe como um estado de consciência composto por dois componentes diferentes e ao mesmo tempo complementares: psicofisiológico e cultural. O transe indica a mudança da condição relacionada ao ato de ‘passar’ da consciência à inconsciência. Para o povo-de-santo, a “inconsciência” apontada pelos autores corresponde à atuação direta da entidade que seria uma outra consciência, personalidade, geralmente oposta à pessoa que a recebe.

xi

Membranofones de pele dupla e formato cilíndrico que são tocados diretamente (com as mãos). Como instrumentos sagrados, estes ‘recebem’ obrigações anualmente para renovar os seus poderes religiosos de convocar as entidades. Em cada casa de jurema os ilús pertencem às entidades que são donas da casa (correspondentes às entidades específicas da madrinha/padrinho), o que varia de terreiro em terreiro.

xii

Trecho da ‘linha’ da mestra Paulina:“Campos tão verdes/que correm águas cristalinas/e o cruzeiro da

Paulina/Clareou este gongá”. Gongá é o lugar sagrado onde ficam os ‘assentamentos’ das entidades, ou seja, os seus

objetos sagrados. É lá também onde são colocadas ou ‘arreadas’ suas oferendas. xiii

‘Passar’ é um termo muito recorrente entre o povo-de-santo, e também nas letras das cantigas da Jurema como sinônimo de morte.

Referências

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