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Sartre: a consciência de ser visto

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Academic year: 2021

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Rafael Trindade

Sartre: a consciência de ser visto

Este trabalho teve orientação da professora Maria Carolina M. M. Vicente de Azevedo (mc. azevedo@terra.com.br) e se tornou possível com

o apoio do Pibic Mackenzie/MackPesquisa. E-mail para contato com o autor: rafaeltrindade10@gmail.com.

Resumo

Este estudo pretende investigar a teoria sartreana sobre o Outro para melhor compreender as relações humanas. Sartre desenvolve em seu livro, “O Ser e o Nada”, a teoria sobre o Outro, e também o conceito da consciência de ser visto. Nela, os conceitos de Em-si e Para-si entram em uma relação estreita ante o olhar do outro, dando origem a uma nova forma de manifestação do ser: Para-outro. O conceito de Ser-Para-outro implica, primeiramente, em reconhecer sua existência, mas além de existir como objetidade e poder ser visto, o outro pode também me olhar, se utilizando, assim, de sua transcendência para me transcender. Deste modo, tenho que admitir a possibilidade de ser transformado em um objeto para o Outro. Através da consciência de ser visto, passo a ter a consciência de existir, assim, através do olhar, constituo minha própria essência.

Palavras -Chave

Sartre; Outro; Olhar.

Abstract

This study intends to investigate Satre’s theory about the Other for a better understanding of human relationships. Sartre develops in his book “Being and Nothingness” the theory about the other, and also the concept of the awareness of being seen. In his ontology the concepts For-Itself and In-Itself engage an intrinsic interconnection in relation to the Other’s eyes originating a new way to reveal oneself: For-The-Other. This Being-For-The-Other concept implies first of all in the recognition of the existence of the Other who besides existing as subject and able to be seen, can also look at me, using his transcendence to transcend me. In that way, I have to admit the possibility of being transformed into a subject for the Other. It is through the consciousness of being seen that I develop the consciousness of existing therefore through the Other's eyes I compose my own essence.

Key words

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Introdução

Quando Sartre, ainda estudando filosofia

na École Normale Supérieure, foi introduzido

ao método fenomenológico, Raymond Aron, apontando para seu copo, lhe disse "estas vendo, meu amigo: se tu és fenomenologista, podes falar deste coquetel, e é filosofia". Simone de Beavoir nos conta que Sartre empalideceu de emoção, era isso que ele ambicionava há anos, falar do concreto, do real, e foi assim que, se utilizando do método fenomenológico, desenvolveu o Existencialismo, conhecida corrente filosófica do séc. XX. Sartre publicou sua obra principal, O Ser e o Nada - ensaio de ontologia fenomenológica, no

fim da segunda guerra mundial, e nele procurava falar do mundo de uma forma mais clara, realista, evidenciando suas contradições e descartando as abstrações metafísicas que prevaleciam na tradição filosófica até então. Neste livro, Sartre examina a relação do Eu com o Outro e, mais especificamente, sobre a consciência de ser visto. É nosso propósito, aqui nesse artigo, expô-la e caracterizá-expô-la de maneira cexpô-lara, usando, assim como Sartre, exemplos do cotidiano e evidenciando o caráter existencialista das relações.

Esta pesquisa pretende contribuir, com temas desenvolvidos por Sartre, para as discussões sobre o olhar, vergonha, orgulho, medo, amor, ódio, temas esses amplamente estudados pela psicologia. Entendemos que a filosofia de Sartre, por ser profundamente focada no indivíduo e no mundo que o cerca, tem condições de contribuir nas discussões que tratam das relações humanas.

Antes de desenvolvermos a teoria sobre a consciência de ser visto é necessário enfatizar o caráter acumulativo com que são apresentados os conceitos em sua obra, concatenados e desenvolvidos extensamente ao longo da mesma. Portanto, antes de entendermos como Sartre vê a

relação com o Outro, é necessário apresentar uma análise de dois conceitos básicos de sua filosofia, o Em-Si e o Para-si, e depois, com esses conceitos definidos, daremos prosseguimento à teoria sartreana do Outro e finalmente à consciência de ser visto.

Referencial Teórico

O referencial teórico enfocou obras que tratam dos conceitos específicos que procuramos abordar como, o outro, a consciência e a consciência de ser visto. A principal referência para o trabalho foi a obra de Sartre, “O Ser e o Nada, Ensaio de Ontologia Fenomenológica”. Existe uma grande quantidade de autores que tratam da obra de Sartre e do existencialismo, mas demos preferência para Gerd Bornheim, “Sartre: metafísica e existencialismo”, e Paulo Perdigão, “Existência e liberdade: uma introdução à filosofia de Sartre”, este, o principal tradutor da obra de Sartre para o português. Nos dois últimos autores buscamos embasar conceitos gerais e essenciais para a composição do texto e em Sartre, buscamos especificamente responder às perguntas deste trabalho sobre o olhar, o outro e a consciência de ser visto. Também usamos a obra teatral “Entre Quatro Paredes” e “Jean Genet, Ator e Mártir”, de Sartre e “Primeiro Fausto” de Fernando Pessoa para dar exemplificar os conceitos expostos.

Método

Esse trabalho foi composto por uma pesquisa teórica com foco na obra “O Ser e o Nada” de Sartre e como bibliografia complementar: “Sartre: metafísica e existencialismo” de Gerd Bornheim, “Existência e liberdade: uma introdução à filosofia de Sartre” de Paulo Perdigão.

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Coleta e análise dos conceitos: primeiro definimos sistematicamente os conceitos chaves que se integram às idéias gerais e ajudaram na exposição de nosso projeto central. Depois, elaboramos a interpretação dos conceitos adquiridos. O trabalho foi dividido em duas partes: Na primeira parte, desenvolvemos a ideia da consciência. Na segunda parte, definimos “O Outro”, “O Olhar” e “a consciência de ser visto”. Neste segundo momento, vários conceitos essenciais para desenvolvimento do tema já foram esclarecidos e tivemos condições de explorar mais a fundo o tema do trabalho. A obra principal de Sartre, O Ser e o Nada, foi utilizada durante todo o processo como ferramenta principal. Algumas obras literárias também foram utilizadas para exemplificar suas teorias, como, por exemplo, “Entre Quatro Paredes”, “Jean Genet: Ator e Mártir”, as duas de Sartre e “Primeiro Fausto” de Fernando Pessoa.

Resultado e Discussão A consciência

Para Sartre, “Toda consciência é consciência de alguma coisa”, logo, sem mundo, não seria possível haver consciência. Ela é esse deslizar contínuo para a realidade, é esse mergulho na existência. Portanto, a consciência faz contraponto com o mundo, gerando assim, segundo Sartre, duas manifestações de ser, a saber: Ser-Em-Si e Ser-Para-Si. O ser existe por si só, no mundo, e é apreendido por nós. Já o ser humano existe, mas pode ser entendido como uma manifestação dupla do ser, um ser cindido. Sartre é econômico em sua definição do Em-si: o Em-si é o que é. “o ser é, o ser é em si, o ser é o que ele é” (Sartre, 1999). Não há distância do Em-si para com ele mesmo, ele é o que é, um ser acabado e fechado em si mesmo. O Em-si

não permite filosofia, não permite nada mais do que é (pois qualificá-lo seria dizer que é mais do que é). Ele é positivo em si mesmo e nada mais. Por isso é difícil falar do Em-si, porque não há o que ser dito. O Em-si é o mundo, o mundo material, com seus objetos e seus corpos. Toda ciência é ôntica e estuda o Em-si, estuda as coisas como são e como se manifestam em seu existir. Quando estudamos o movimento de uma pedra, usamos fórmulas e temos como resultado nada além daquela positividade que ela é; por isso seu movimento será sempre o mesmo, ela é puro existir apreendido.

O Em-si não tem segredo: é maciço. Em certo sentido, podemos designá-lo como síntese. Mas a mais indiscutível de todas: síntese de si consigo mesmo. Resulta, evidentemente, que o ser está isolado em seu ser e não mantém relação alguma com o que não é. (Sartre, 1999).

Nada se esconde atrás do Em-si, e não há nada a ser apreendido além dele mesmo. Por isso: é o que é.

Apenas uma coisa se diferencia do Em-si: a consciência. A consciência é Para-si. Se o Em-si é pura positividade e deve ser apreendido pelo que é, a consciência, ou Para-si, é pura negatividade e deve ser apreendido pelo que não é. “se o Em-si é o ser, então o Para-si, sendo fundamentalmente outro que não o Em-si, só pode ser nada” (Bornheim, 2003). O Para-si surge do Em-si, depende dele, é negação direta dele. Como o Em-si não se relaciona com nada além dele mesmo e não depende de nada, sua existência é completa, pura positividade; mas não podemos dizer o mesmo do Para-si, porque ele só pode ser definido em relação ao Em-si, não sendo Em-si. O Para-si surge através de um distanciamento do Em-Para-si, uma distância “separada por Nada” (Perdigão, 1995), e é através dessa negação que descobrimos

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o mundo, olhando-o a distância. O Para-si, nossa consciência, descobre o mundo negando-o, ele nega a positividade do mundo para descobri-lo, ele se separa do Em-si para existir como sendo nada. “nas coisas não há distância de si para si: não há ‘si’, a consciência é essencialmente essa distância.

As coisas não têm interioridade, e é justamente pela interioridade que o homem se faz um ser-Para-si.”(Bornheim, 2003). É exatamente esse desprender-se do ser que nos faz surgir como interioridade, é essa distância de nós mesmos que nos revela o mundo, pois somente se nos descolarmos do ser é que poderemos olhá-lo a uma distância segura para que esse se revele a nós. É por isso que Sartre define nossa existência como ôntico-ontológica, temos esse caráter duplo, ao mesmo tempo que somos, também não somos. Somos nosso corpo, somos nossas reações químicas, somos nossa contingência no sentido em que temos exatamente esta estatura, este tom de pele, esta nacionalidade, mas ao mesmo tempo não somos, porque a consciência nega o que é para poder existir; quando me percebo como brasileiro é porque nego as outras possibilidades (americano, francês, chinês), quando descubro minha altura, é porque me desprendo de mim e me vejo a distância para chegar à conclusão que não tenho nem mais e nem menos altura do que a que realmente possuo. Só podemos conhecer o mundo negando-o, o ser não se relaciona com o mundo porque o ser-em-si simplesmente existe no mundo. Perdigão esclarece citando Sartre: é através do nada que o ser vem ao mundo. Através do nada que o ser se percebe como sendo o que não é. E é por isso que o Para-si depende do Em-si, porque o Para-si nega o Em-si para estar em presença do mundo, separado por nada; essa negação deve provir de uma possibilidade absoluta; o contrário, uma afirmação da negação,

é impossível; o Em-si pode existir sem o Para-si, mas o Para-si não pode existir sem o Em-si.

Essa negação do Para-si é que dá o seu caráter de indeterminação, de ser-que-ainda-não-é-completo. Estamos em presença do mundo, e só constatamos sua existência porque nos colocamos a uma distância suficiente para vê-lo (como o leitor se põe à distância do livro para lê-lo). E se negamos o mundo para existir nele, significa que somos incompletos, essa é a essência do Para-si, “ele não é o que é”. A consciência não pode existir por conta própria, ela está presa ao ser, mas ao mesmo tempo, ela nega o ser que é e se lança no mundo para ser o que ela não é. Essa é a definição definitiva do para-si: ele não é o que é e é o que não é. Mas como entender completamente essa definição? Como saber exatamente os limites entre o em-si e o para-si?

Já vimos que o Para-si depende do Em-si para ser, mas um nunca entra em contato com o outro. Por exemplo, quando sinto dor, não é meu corpo que sente dor, é minha consciência que se transforma em consciência (de) dor, o meu corpo é o ser-em-si que existe, com suas terminações nervosas que realizam reações químicas e elétricas para alterar meu estado cerebral. Tudo isso é em-si, tudo isso é o que é e nada mais. De onde vem a dor? A dor é meu para-si que toma distância daquilo que é – corpo que sente dor – para ser aquilo que não é – corpo saudável, corpo na ausência de dor.

O Para-si nega o presente e se lança no futuro constantemente, ele nunca se torna o que é, é sempre descolado do ser por nada e jogado naquilo que não é. Essa nadificação do ser que traz o conceito de temporalidade à consciência. As coisas não têm temporalidade, é por meio da consciência que o tempo existe porque o ser-Em-si só pode relacionar-se com ele mesmo. Tempo

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e consciência são uma e a mesma coisa, por causa do caráter de negatividade do Para-si, ele se lança no mundo buscando ser alguma coisa; ele se projeta no futuro para se tornar algo, fugindo constantemente do passado. Essas seriam as três dimensões do tempo que foram desenvolvidas por Heidegger e ampliadas posteriormente por Sartre: o passado, que é o que é, definitivo e pleno; nesse sentido, assemelhando-se ao si. O passado é o Para-si convertido em Em-si, porque é fixo e não pode ser mudado, nem negado de forma alguma. “O passado é um Em-si que carrego atrás de mim [...] conversão total do Para-si em Em-si” (Perdigão, 1995). O presente, que é nada, separado pelo futuro e pelo passado por um instante inapreensível, onde supostamente encontraríamos o Para-si, se buscando constantemente; mas o para-si se lança no futuro, mesmo estando preso ao presente; o Para-si está separado do presente por um nada de distância, porque se nega e se nadifica para ser o que ainda não é: o futuro. O futuro é apenas uma possibilidade para o Para-si, o para-si busca o futuro, as possibilidades, o que ainda não é. Essa relação se dá perpetuamente, o futuro existe como possibilidade como vir-a-ser, e , logo após acontecer, se torna imediatamente passado, Em-si.

O corpo, como vimos, faz parte do Em-si, e portanto, contém todas as marcas do futuro que tornou-se passado. É impossível negar o corpo, ele está ai, inegavelmente faz parte de nossa contingência e representa tudo aquilo que somos, mas não estou fechado em meu corpo, meu para-si se desprende dele e procura ser algo (porque não é nada). Sartre define isso como o “perseguidor perseguido” porque nosso em-si está constantemente correndo atrás do Para-si, está transformando tudo em Em-si, em passado. Fugimos constantemente de nós mesmos em

busca daquilo que não somos. “assim somos nós: vamos correndo em direção a nós mesmos, o nosso Ser acabado que se encontra no futuro, o nosso ‘Si mesmo’, e somos aquele que não pode jamais alcançar-se” (Perdigão, 1995). Por que o Para-si não pode jamais alcançar-se? Porque senão já não seria a nadificação de algo, mas se converteria num Em-si, sendo que sua própria definição é ser-o-que-não-é. Nesse sentido, só há uma maneira do Para-si transformar-se em Em-si: na morte. Quando morremos, somos puro em-si para os outros, não mais nos lançamos no futuro para sermos o que não somos, somos pura facticidade, corpo inerte; nesse momento, o Em-si alcança o Para-Em-si em sua busca incansável. Mas enquanto somos vivos, vivemos da falta, vivemos para nos completarmos. Esse é o “projeto fundamental” do si, completar-se, ser Para-si-em-si. Para isso, fazemos o que Sartre define como: circuito da ipseidade (do latim ipse: “si

próprio”, ”a pessoa”).

No circuito de ipseidade, nos lançamos para o futuro (aquilo que não somos) para constatar a falta daquilo que somos no presente, e, assim, podermos negar o presente para suprir essa falta. Tudo parece muito paradoxal, mas pode ficar claro com um exemplo: Quando me sento em frente a uma partitura em branco, e penso em compor uma música, me nego no presente (partitura inacabada, inspiração que será usada, música a ser feita) para me afirmar no futuro (música terminada, notas no papel). O circuito de ipseidade é esse processo do Para-si de fazer-se projeção no futuro para dar sentido às suas ações no presente. O presente por si só, sem relação alguma no futuro, não traz sentido algum, é somente quando quero fazer uma música, tenho vontade de escrever uma música, que posso dar sentido às minhas ações . Mas a música em si não existe, ela é o que busco ser (o ser que não sou).

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E sou eu que dou sentido a ela; a partitura em branco na minha frente seria indiferente se eu não tivesse as noções de harmonia para compor uma música, ou se não tivesse inspiração e vontade de compô-la. O mundo é indiferente em si mesmo, minha consciência, que se desprende de mim e se joga no mundo, é que da essência às coisas. Até mesmo o ato de compor pode ter um sentido diferente dado por minha consciência. Se for um músico contratado para compor uma sinfonia, mas estiver sem inspiração, meu trabalho será uma “obrigação”, algo que “devo fazer”; mas se, ao contrário, faço isso por alguém que estou apaixonado, então farei uma música “por amor”, “para conquistar minha amada”. ”Em todos os meus gestos, minha consciência projetiva serve de mediadora entre duas situações objetivas” (Perdigão, 1995).

Estas constituem as principais diferenças do Em-si e do Para-si. O Em-si é o que é, o corpo, o passado, o definitivo. O Para-si é a consciência, aquilo pelo qual o nada vem ao mundo, o futuro, o vir a ser, ou, em uma frase: “aquilo que não é o que é e é o que não é”. Por meio destes conceitos, agora esclarecidos, temos ferramentas para entender o que acontece quando nos encontramos com o outro, quais são as implicações desse encontro, quais as transformações que se dão nessas duas formas de manifestação do Ser.

A Consciência de ser visto

Para melhor entendermos os processos que ocorrem quando há a consciência de ser visto, vamos analisar o olhar. Para termos a consciência de ser visto precisamos, antes, ter consciência de um olhar sobre nós.

Sartre não procura provar a existência do outro, para ele, esse fato é um fato concreto, uma certeza, do contrário cairíamos num solipsismo

do qual não poderíamos escapar. Não sei da existência do Outro através da objetividade, conheço-o através da intuição. Sei que ele existe, sei que por trás daquele que vejo existe, assim como eu, outro Para-si, outro ego, mesmo que não possa vê-lo ou prová-lo eu o afirmo. Tenho certeza que não estou sozinho no mundo por meio da intuição.

“(...) se devo duvidar da existência de Pedro, meu amigo – um dos outros em geral -, na medida em que esta existência está, por princípio, fora de minha experiência, é preciso duvidar também de meu ser concreto, de minha realidade empírica de professor dotado de tais ou quais inclinações, hábito e caráter. Não há privilégio para meu eu: meu Ego empírico e o Ego empírico do outro aparecem ao mesmo tempo no mundo; e a significação geral de ‘Outro’ é necessária à constituição de cada um desses ‘egos’” (Sartre, 1999)

Deste modo, pulo as provas da existência do outro, porque negá-lo seria o risco de negar a mim mesmo, para compreender o que é o outro e como interagimos com ele. “O outro é aquele que me exclui sendo si mesmo, aquele que excluo sendo eu mesmo.” (Sartre, p. 306), só posso conhecer o outro como não sendo eu mesmo, como sendo aquele que não sou. Meu Para-si conhece o outro como não-sendo-eu, como sendo outro Para-si (do qual não tenho acesso) separado de mim. Portanto, assim como eu, ele também está aí, no mundo, se construindo, ele também possui sua própria contingência, mas, ainda assim, num primeiro momento, apreendo o outro como sendo um objeto, um Em-si.

Vejamos esse exemplo: digamos que um pianista toque toda terça-feira num restaurante, quando ele chega lá, abre suas partituras e começa a tocar. Como mencionamos anteriormente, seu circuito de ipseidade, o Para-si que se joga no

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futuro, está fechado em si mesmo no sentido de terminar-a-música-sem-errar, lembrar-daquela-passagem-complicada. Ele está ciente dos clientes que estão jantando, está ciente de que são pessoas comuns, como ele, que estão à procura de um jantar agradável, mas ele os ultrapassa, os transcende definindo-os como ouvintes, como aqueles-dos-quais-depende-meu-couvert. O que isso significa? Nosso músico nega a eles a existência como seres reais? Ele os vê como marionetes, como robôs? Num primeiro momento, sim. Apesar de saber que existem pessoas por detrás, ou por debaixo, de suas peles e roupas, ele não os “vê” como tais. Tudo gira ao seu redor, é ele quem dá as regras do jogo, todas as distâncias são suas distâncias no sentido de que este piano é o piano que ele toca, a música é a música que ele proporciona, os ouvintes são seus ouvintes. Mas, se posso observar o outro, e sei que o outro é um ser como eu, isso significa que o outro também pode observar-me. Nesse momento toda minha maneira de ser se transforma, “se há em verdade um Eu para o qual o outro é objeto, é porque há um Outro para quem o Eu é objeto” (Sartre, 1999). É nesse momento que o ser-Para-outro se manifesta, através do olhar do Outro. Porque da mesma maneira que posso olhar o outro e defini-lo através de minha subjetividade, sei que o outro pode olhar-me e definir-me através de sua subjetividade. Nesse momento, sou um ser-Para-outro, sou objeto do olhar de outra pessoa, ele me vê como objeto no mundo, ele dá suas distâncias para mim, o jogo inverte e ele passa a dar as cartas do jogo. Sartre define isso como uma forma de escoamento de meu mundo para fora de mim, uma “hemorragia interna; é o sujeito que a mim se revela nesta fuga de mim mesmo rumo à objetivação” (Sartre, 1999).

Mas o outro que me olha não é seus olhos, seus olhos fazem parte do Em-si, assim

como seus braços e suas pernas, o outro que me olha não se define por sua retina, ou seu nervo óptico, isso apenas dá suporte para seu olhar. O olhar é muito mais que isso, está além disso. Captar um olhar é mais que captar um objeto-olhar, é transcender o olho para ter consciência de ser visto. O olhar me remete a mim mesmo, não no sentido de Para-si, não no sentido daquele que é o que não é e não é o que é, mas no sentido de ser-no-mundo, ter-de-ser-alguém. O outro faz essa mediação entre mim e eu mesmo; de certa forma, é através do outro que passo a existir no mundo no modo de ter-de-ser. Por isso a analogia com a hemorragia, porque o outro me transforma em objeto, passo a ser algo, não mais sou aquilo que não sou, definição primordial de Para-si, não mais me lanço no futuro; o outro me capta com seu olhar e me prende em mim.

Corro constantemente esse perigo, sou escravo do olhar do outro, e através de seu olhar passo ao mesmo nível dos objetos do mundo1. Ser visto constitui-me como um ser sem defesa para uma liberdade que não é a minha. É mais como uma solidificação, uma estratificação; fico congelado perante um olhar. ”Se me olham, tenho consciência de ser objeto” (Sartre, 1999), e é apenas o outro que me permite captar-me como tal. Através de meu Para-si não posso deixar de me lançar no futuro e me negar no presente, fujo constantemente de meu Em-si, mas através do olhar do outro, quando tenho consciência de ser visto, meu ser-Para-si escorrega para o mundo, meu Para-si cai no mundo e eu não sinto isso, eu sou isso. E não importa o que o outro me diga que sou algo, não posso ver-me como tal, não posso ver-me como Em-si, mas sei que o outro me capta assim. Portanto, através do Outro capto a última estrutura de meu ser. “Meu ser-Para-outro é uma queda através do vazio absoluto em direção à objetividade” (Sartre, 1999).

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É preciso deixar claro que o ser-Para-outro não deriva do Para-si. Existe três maneira de existência do ser: Em-si, Para-si e ser-Para-outro. Elas são independentes, e no caso das duas primeiras, independentes da existência de um terceiro para existir. Mas o ser-Para-outro necessita de Outro para existir, não do Para-si. Prova disso é que somo Para-outro antes mesmo de sermos Para-si. Quando nascemos já éramos Em-si e Para-outro, já no útero de nossa mãe éramos Para-outro: ganhamos um nome e fomos vistos no ultra-som. É nesse sentido que sou Para-outro, existo no mundo, o outro me olha e me faz existir no mundo. A partir de então, constituímo-nos e interiorizamos o outro em nós de modo que, num dado momento, o olhar do outro cai sobre nós sem que necessariamente esteja lá. Então, ao ouvir um barulho atrás de mim, sentirei que estou sendo olhado, e me darei conta de meu ser-Para-outro. Posso me virar e descobrir que não havia ninguém, nesse caso, o meu ser-Para-outro era menos real do que se houvesse alguém? Não, diria Sartre, através da consciência de ser visto, tenho consciência de mim no mundo, através dela passo a existir como facticidade, mesmo que o outro não esteja lá de fato, essa terceira maneira de ser (Para-outro) já se realizou. Num sentido mais amplo, podemos dizer que, para os religiosos, o conceito de Deus é um Outro constantemente presente, que nos observa e no julga. Posso sentir-me constantemente observado por Deus e sentir minhas possibilidades e referências todas a partir de um ser superior.

Sartre expõe três modos de captar meu ser-Para-outro: a vergonha, o orgulho e o medo. Para expor esses sentimentos, voltaremos ao exemplo do músico: ele abre uma nova partitura e se dá conta de que está em face de uma música muito difícil. Então, começa a tocá-la ao modo de tocar-sem-errar, ele transcende as notas e o

movimento dos dedos nas teclas do piano para ser (ao modo de não ser o que é e ser o que não é) aquele-que-não-erra-a-música. Nesse momento ele se utiliza do circuito de ipseidade, seus movimentos presentes só têm sentido porque ele se lançou no futuro; “aquilo que não é” é o que dá sentido ao seu presente. Mas ele erra. Então, imediatamente, alguém na plateia olha para ele. Subitamente seu ser se esvazia e cai na realidade, o outro o temporaliza, o joga no presente (que ele negava) fazendo-o ser. O outro nega sua transcendência para jogá-lo no real, transforma todas as suas possibilidades, para ele, o músico é simplesmente aquele-que-errou. Para o Outro, não há diferença entre o músico que erra e um disco riscado, os dois são apenas objetos, sem transcendência alguma. Então, se dá a vergonha.

A vergonha é esse apreender-se no mundo, à deriva, para que o vejam. Ter vergonha é, com efeito, ter vergonha de si para alguém, é escorregar para fora de mim para ser apreendido. Com a vergonha passo a viver, e não conhecer, a situação de ser-visto, perco-me de mim. O outro, quando me olha, passa a dar suas distâncias, seus valores, sua transcendência; por isso me constituo como objeto, sou objeto sobre fundo do mundo de outrem. Minha transcendência é transcendida, fico alienado. O outro é um lugar inacessível onde não posso entrar, como um buraco negro onde tudo entra e nada sai. Sartre nos trás a ideia de escoamento porque não posso reaver o que me foi tirado com o olhar do outro, está perdido dentro dele. Mas ao mesmo tempo, é esse olhar que me remete a mim como aquele-que-errou, é necessário esse olhar para poder constituir-se essa essência, porque o Para-si não pode definir-se. Com efeito, o Para-si nem se via tocando, ele estava se jogando constantemente no futuro, ele negava o presente para ser aquele que acertava a música inteira até o último acorde. Mas de

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alguma forma, o Para-si não pode constituir-se, a música era muito difícil, os acordes eram muito complicados, seus dedos (Em-si) não acompanharam a velocidade do andamento da música. Ele errou, e nesse momento, toda sua transcendência se desvaneceu e ele caiu como chumbo na realidade ao ser olhado pelo Outro.

A vergonha é apenas o sentimento original de ter meu ser do lado de fora, comprometido em outro ser e, como tal, sem qualquer defesa, iluminado pela luz absoluta que emana de um puro sujeito; é a consciência de ser irremediavelmente aquilo que sempre fui. (Sartre, 1999).

A vergonha é a porta pela qual temos condições de formular um juízo sobre nós mesmos no mesmo sentido que formulamos juízos sobre objetos, porque, através do Outro, tenho condições de aparecer como objeto a mim mesmo. É o conhecimento que vem do outro, na forma de juízos, que possibilita-me conhecer-me. O saber que vem do outro é o fator principal para formar o conceito de mim mesmo, na forma de Em-si. Na obra “Saint Genet: ator e mártir”, Sartre descreve a metamorfose que se dá com a palavra vertiginosa: ladrão. “A vergonha do pequeno Genet descobre para ele a eternidade: é ladrão de nascença, será assim até a morte. [...] Genet é um ladrão: essa é a sua verdade, a sua essência eterna” (Sartre, 2002). A vergonha provém do contato com o outro, o contato com o olhar, e o olhar sobre Genet o condenou a ser algo, no sentido de ter-de-ser. Genet não podia ser mais nada além de ladrão, ele se tornou a essência dessa palavra. A vergonha o jogou no mundo e ele foi engolido pela essência que lhe deram.Se existisse apenas eu no mundo, todas as distâncias partiriam de mim, todas as essências viriam de mim, mas eu não saberia quem sou, porque o Para-si não pode voltar-se para si mesmo, afinal,

ele é nada. Também não poderia conhecer-me através do Em-si, ele é fechado nele mesmo, não se relaciona com nada além dele mesmo.

O orgulho é segundo modo de reconhecer meu ser-Para-outro. Ele deriva da vergonha, no sentido em que me sei visto pelo Outro e que me encontro no mundo como objeto para ser visto; mas, nesse caso, o orgulho assume a postura oposta: suponhamos que nosso já citado músico agora toque de maneira sublime e maravilhosa aquela música difícil que dissemos anteriormente e no fim receba uma salva de palmas esfuziante. Como não se sentir orgulhoso numa situação dessas? Ele se levanta e faz uma reverência, agradecendo o reconhecimento. Ele se sente orgulhoso, mais do que isso, ele é orgulho. De que modo isso difere da vergonha? Num sentido original, nada. Ele vive a mesma situação, mas de maneira oposta. Ao se sentir orgulhoso, ele também é apreendido no mundo, ele também é olhado, também é alienado de seu Para-si, mas ao modo de músico-talentoso, de grande-pianista. A diferença essencial é que, nesse caso, ele quer ser aquilo que dizem que ele é, resigna-se com sua condição. Tem orgulho de ser o que é, mesmo que seja Para-outro; nega sua transcendência, que é nada, para afirmar-se como aquilo que é Para-outro. Veste a carapuça que lhe dão, mas põe essa carapuça sobre nada, porque nunca será o que quer ser. Nega seu vir-a-ser para perder-se nesse Em-si que lhe foi dado. Mas essa situação não pode sustentar-se, o Para-si se joga constantemente no futuro, se desprende e foge do Em-si o tempo todo. Só podemos ser aquilo que somos na morte, quando o Para-si é finalmente alcançado pelo Em-si e, somente nesse caso, somos plenamente objeto, mas deste modo já não podemos nos revelar como sujeito.

Por meio do conceito do orgulho, Sartre tem condições de desenvolver um importante

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estudo sobre a vaidade, a sedução e o amor. Nos dois primeiros casos me mostro como objeto positivo, me construo e me apresento como Em-si, e utilizo isso como “moeda de troca” para ganhar a admiração do Outro, para tentar seduzi-lo ou fazê-lo me admirar. Seguindo esse raciocínio, poderíamos dizer que “pela sedução, busco constituir-me como uma plenitude de ser e fazê-lo reconhecido como tal.” (Sartre, 1999). Reduzo-me à simples facticidade, mesmo sabendo que não sou isso, para me mostrar melhor do que sou realmente e assim conquistar o Outro. Procuro me afirmar e me limitar ao meu ser-Para-outro. O mesmo acontece com o amor, porque este “é o projeto de fazer-se amar” (Sartre, 1999); quando amo alguém, busco o amor dessa pessoa, busco transformar-me numa totalidade– objeto; quero, aos olhos do Outro, ser melhor do que sou. Mas não podemos nos manter como ser-Para-outro indefinidamente, esta postura fatalmente acarretará num fracasso. O orgulho e seus derivados (amor, sedução) estão fadados ao fracasso porque não somos Em-si.

“o conflito é o sentido originário do ser-Para-outro [...] se partir-mos da revelação inicial do outro como olhar, devemos reconhecer que experimentamos nosso inapreensível ser-Para-outro na forma de uma posse. Sou possuído pelo outro; o olhar do outro modela meu corpo em sua nudez, causa seu nascer, o esculpe, o produz como é, e vê como jamais o verei. O outro detém um segredo: o segredo do que sou. Faz-me ser e, por isso mesmo, possui-me, e essa possessão nada mais é que a consciência de me possuir. E eu, no reconhecimento de minha objetidade, tenho a experiência de que ele detém essa consciência. Atitude consciência, o outro é para mim aquele que roubou meu ser e, ao mesmo tempo, aquele que faz com que ‘haja’ um ser que é o meu.” (Sartre, 1999)

Outra vez, vemos que o olhar do Outro também pode cair sobre nós sem que o queiramos, dando a nós uma essência, contrária a que queremos. Sartre também mostra bem isso em sua obra “Entre Quatro Paredes” onde Inês afirma:

“Você é um covarde, Garcin, porque eu quero que você seja um covarde. Eu quero, compreende? Eu quero! No entanto, veja que fraquinha eu sou: um sopro. Sou apenas o olhar que está vendo você, o pensamento incolor que está pensando em você” (Sartre, 2005)

Inês procura dar uma essência a Garcin, transformá-lo em Em-si, tudo isso com o olhar, que mostra o ser-Para-outro. Logo em seguida Inês afirma “Eu estou vendo vocês, vendo vocês! Eu sozinha sou toda uma multidão!” (Sartre, 2005), Inês sabe da força que seu olhar tem sobre Garcin, e é isso que o faz dizer a frase mais importante da peça: “O inferno são os outros!” (Sartre, 2005)

O medo é o terceiro modo de captar meu ser-Para-outro. Consideremos agora que após mais uma noite tocando no bar, nosso músico se dirija para sua casa. Ele passa por uma rua escura pelo caminho e então escuta um barulho no beco ao lado. Ele sente medo, seu corpo se enrijece, suas pupilas se dilatam e sua freqüência cardíaca aumenta. O medo é mais que as reações fisiológicas proporcionadas pela adrenalina que é liberada pela supra-renal. Tudo isso está no nível do Em-si: é o que é. Tudo isso são reações que não dizem respeito a nada além delas mesmas; o seu corpo não se importa se a adrenalina foi liberada por medo ou por uma injeção aplicada por um médico porque as condições químicas só se relacionam com elas mesmas. Também podemos dizer que o seu ser-assaltado, seu Para-si, que nega a realidade para se jogar num futuro

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sendo assaltado, não é seu medo. O que constitui o medo é o fato de saber que se possui um corpo que pode ser ferido, saber que se corre um perigo real de ser assaltado porque se está no mundo; é seu ser-Para-outro que se manifesta através do olhar-do-ladrão e que se percebe como vítima. Saber da existência do Outro, e saber que se existe para esse outro, é isso que dá medo, o fato de se descobrir no mundo, um mundo onde um possível agressor transcende sua transcendência. E este possível ladrão não está mais à distância, ele está aí. Ao ouvir o barulho no beco ao lado, é possível sentir o olhar do ladrão sobre si, é possível sentir sua transcendência transcendendo nossa transcendência e nos dando a essência de homem-com-dinheiro ou como homem-indefeso; somos objeto para este outro que nos dá suas utilidades. O mundo nos supera e nos encontramos no meio dele, indefesos. Através do medo, nos damos conta de nossa fragilidade e nossas limitações e o olhar do outro não faz nada além disso: limitar nossa liberdade frente aos nossos possíveis. Uma possível derivação do medo é o ódio. Em face de um mundo que nos ultrapassa e nos ameaça, podemos negá-lo odiando-o. O ódio é a tentativa de negação do mundo, ou melhor, a tentativa de negação do Outro. Se é o Outro que me traz o conhecimento de mim, na forma de Em-si, negar o outro é, com efeito, negar meu Em-si, é uma tentativa de constituir-me apenas como Para-si. Quando tenho medo de ser assaltado, vejo meu corpo como objeto em perigo; se, com efeito, for assaltado, verei meu corpo como objeto transcendido pela transcendência do Outro; é dessa situação que pode vir o ódio, ódio daquele que me transcendeu. O ódio busca negar minha objetidade tentando negar o Outro.

São essas as situações em que se revelam o Outro, o olhar e o ser-Para-outro. Mas ainda vale lembrar que “minha certeza da existência do

outro independe dessas experiências, e é ela, ao contrário que as torna possíveis” (Sartre, 1999). Sei que o outro existe, não posso duvidar disso; sei também que assim como posso apreender o outro como objeto sobre fundo do mundo, também posso ser apreendido por ele através do olhar e isso o torna “o mediador indispensável entre mim e mim mesmo” (Sartre, 1999). Ante o olhar do outro, o Para-si corre o risco de perder-se de sua liberdade esperder-sencial, esperder-se lançar-perder-se ao futuro. Mas é parte dele ser essa incógnita, o que o define é, precisamente, não ter definição, “não-ser-o-que-é-e-ser-o-que-não-é”. O homem deve superar sua transformação em objeto para apropriar-se de seu projeto fundamental. O Para-si não pode ser determinado pelo exterior, já vimos como sua tentativa de transformar-se em Em-si é impossível, e, portanto, deve prosseguir com sua busca, responsabilizando-se por ela. Conclusão

Se na filosofia de Sartre o Para-si é esse constante se lançar no futuro, essa fuga do que se é, Em-si, para o que se não é, então só podemos entender o ser-Para-outro como o fracasso do Para-si, que se torna algo, passa a ter a definição que o Outro lhe dá. O perseguidor-perseguido é paralisado pelo olhar. Através da consciência de ser visto, eu experiencio meu ser-Para-Outro, sou transformado em objeto, ele transcende minha transcendência. Quando o Outro me olha, ele não mais se mostra como objeto para mim, não posso mais tratá-lo como uma máquina, ele se torna seu olhar, que faz o mundo escoar para fora de mim em direção a ele, uma hemorragia. Deste modo, minha relação como o Outro é e sempre será cindida: ou eu o apreendo como objeto - sem que, nesse caso, possa apreender seu ser - dando-lhe minhas significações e situando-o em relação a mim; ou o apreendo como olhar,

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me transcendendo e me limitando, situando-me em relação a ele. Não há síntese possível entre essas duas posições e me relacionarei com o Outro como num jogo sem fim onde estarei ora nesta ou naquela posição, saindo de uma para inevitavelmente cair na outra. A consciência de ser visto é esta primeira relação, na qual me encontro com o outro e me torno objeto para ele. O outro é aquele que me possibilita conhecer-me, aquele que traz meu conhecimento de mim para mim. Ele me traz ao mundo, ou melhor, ele me joga no mundo, me prende a ele. Com o outro passo a ser limitado, sou um ser acabado por ter minha transcendência transcendida. Sou o que sou, ao modo de ter-de-ser. Posso ter vergonha do conhecimento que o outro me traz ou posso orgulhar-me dele, ou ainda, posso ter medo, e odiá-lo. Essa relação de conflito não tem fim, é um jogo eterno, cheio de jogadas e viradas. A consciência de ser visto, o instante que avisto o olhar, é apenas o começo, o movimento inicial.

Nota:

1 É importante notar como muitas vezes a literatura aborda

a ideia do Outro de forma semelhante a Sartre. Fernando Pessoa em seu poema “Primeiro Fausto” afirma: “O horror metafísico de Outrem!/ O pavor de uma consciência alheia/ Como um deus a espreitar-me/ Quem me dera/ Ser a única [cousa ou] animal/ Para não ter olhares sobre mim! [...] Sinto horror/ À significação que olhos humanos/ Contêm”. Através de meios poéticos, Fernando Pessoas expressa o horror que é ser visto por outro, ter todas as suas possibilidades transformadas em mortipossibilidades. Esse trecho mostra muito bem como podemos chegar às conclusões de Sartre não só através dos meios filosóficos, mas artísticos também.

Referências Bibliográficas:

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HÜBNER, Maria Martha. Guia para elaboração de monografias e projetos de dissertação de mestrado e doutorado. São Paulo: Pioneira, Ed. Mackenzie,

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MACIEL, Luiz Carlos Junqueira. Sartre: Vida

e Obra. 5ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

MARCONI, M. A.; LAKATOS, E. M. Metodologia científica. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2008.

PERDIGÃO, Paulo. Existência e Liberdade: Uma

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PESSOA, Fernando. Obra Poética. 3ª ed. Rio de

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SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada: Ensaio de

Ontologia Fenomenológica. 7ª ed. Petrópolis: Vozes, 1999.

______. Saint Genet: ator e mártir. Petrópolis:

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______. Entre Quatro Paredes. São Paulo:

Referências

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