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MESTRADO EM FILOSOFIA SÃO PAULO 2011

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

Fabrina Moreira Silva

O estatuto epistemológico do conceito de ideologia científica

segundo Georges Canguilhem

MESTRADO EM FILOSOFIA

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

Fabrina Moreira Silva

O estatuto epistemológico do conceito de ideologia científica

segundo Georges Canguilhem

MESTRADO EM FILOSOFIA

Dissertação apresentada à Banca

Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação do Prof. Doutor Edélcio Gonçalves de Souza.

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

Banca Examinadora

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Dedicatória

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Resumo

Estatuto epistemológico do conceito de ideologia científica segundo G. Canguilhem.

*Fabrina Moreira Silva

Considerando a intenção de Canguilhem em reunir Epistemologia e História da Ciência, como alternativa metodológica diante de programas de historiografia científica contemporâneas, objetiva-se neste trabalho que esta levou à formulação do conceito de ideologia científica

(1969), para suprir justamente deficiências apontadas pelo epistemólogo, presentes na prática dos historiadores da ciência contemporânea. O projeto epistemológico de Canguilhem consiste em dar à história da ciência um aspecto filosófico, ou seja, um aspecto de enfrentamento das dificuldades que dizem respeito às relações entre o verdadeiro e o falso ou aparente, dos estatutos respectivos da verdade e do erro. Este trabalho se constitui na investigação dos meandros históricos e epistemológicos que levaram Canguilhem à proposição do seu projeto epistemológico no âmbito da historiografia científica. O objetivo não é simplesmente fornecer bases históricas para a exposição, mas indicar, através do detalhamento do seu projeto, o estatuto epistemológico do conceito de ideologia científica. Delimita-se, o estudo de três textos metodológicos de Georges Canguilhem, não tanto como figura imposta do conhecimento acadêmico, mas especialmente como expressão de uma reflexão constante: O objeto da história da ciência (1966), O que é uma ideologia científica? (1969) e O papel da epistemologia na historiografia científica contemporânea (1970). Estes textos reunidos indicam, de certa forma, o alcance de suas reflexões filosóficas no campo da historiografia científica. São três estudos que abordam no sentido ontológico de sua caracterização, a temática da história das ciências no âmbito da constituição das ciências da vida. Canguilhem reage, nesses três estudos, de forma direcionada, contra uma ordem historiográfica pulverizada a partir de uma filosofia da história positivista na tradição de A. Comte. Sinteticamente, o postulado epistemológico que governa a história da ciência positivista segundo Canguilhem é “a anterioridade cronológica é uma inferioridade lógica”. Ou seja, a história das ciências é apenas uma injeção de duração na exposição dos resultados científicos. O grande problema que se coloca por Canguilhem frente a esse aforismo histórico – que busca saber por que caminho a continuidade pode estabelecer e constituir, para tantos espíritos diferentes e sucessivos, um horizonte único – não é mais a tradição e o rastro, mas o recorte e o limite. A mudança de perspectiva da tradição e do rastro para o recorte e o limite contém uma inversão no modo de fazer história das ciências, que implica em uma mudança de objeto e de método. A história das ciências deve ser a análise descritiva e a teoria das diferentes transformações que valem como fundação e renovação dos fundamentos científicos, e por isso deve, portanto, ocupar-se das questões epistemológicas concernentes à ciência que o historiador se dispõe a discorrer. Esquematicamente, o alcance deste trabalho é apontar que: (i) o conceito de ideologia científica está ligado intimamente ao problema epistemológico concernente ao modo permanente da constituição dos conhecimentos científicos; (ii) o entrelaçamento entre ideologia e ciência deve impedir a redução da história da ciência à insipidez de um quadro sem sombra de relevo, e a separação entre ciência e ideologia deve impedir que se considerem em continuidade na história da ciência os elementos que aparentemente se conservaram de uma ideologia.

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Abstratc

Epistemological status of concept of scientific ideology second G. Canguilhem.

*Fabrina Moreira Silba

Given the intention of bringing together Canguilhem Epistemology and History of Science, as a methodological alternative in the face of scientific programs of contemporary historiography, the objective of this work that led to the formulation of the concept of scientific ideology (1969), just to meet deficiencies identified by the epistemologist present practice of contemporary historians of Science. The Canguilhem's epistemological project is to give the story a philosophical aspect of science, or an aspect of coping with difficulties which concern relations between false and true or apparent, of the respective statutes of truth and error. This work constitutes in the investigation of historical and epistemological intricacies Canguilhem that led to the proposal of your project within the epistemological scientific historiography. The goal is not simply to provide historical basis for the exhibition, but to indicate, through the details of your project, the epistemological status of scientific concept of ideology. It is determined, the study of three methodological texts of Georges Canguilhem, not so much imposed as a figure of academic knowledge, but especially as an expression of constant reflection: The object of the history of science (1966), What is a scientific ideology? (1969) The role of epistemology and historiography in contemporary science (1970). These texts indicate gathered in a way, the range of his philosophical reflections in the field of scientific historiography. Three studies on the characterization of the ontological sense, the theme of history of science in setting up the life sciences. Canguilhem reacts in these three studies, as directed against an order historiographical sprayed from a positivist philosophy of history in the tradition of A. Comte. Nutshell, the epistemological assumption that governs the history of positivist science Canguilhem second is "the chronological precedence is a logical inferiority." That is, the history of science is just an injection of life in the exhibition of scientific results. The major problem faced by Canguilhem forward to this aphorism history - which seeks to know which way the continuity can be established and for many different spirits and successive one single horizon - is no longer the tradition and the trail, but the cut and limit. The change of perspective of tradition and to trace and cut out containing an inversion in the way of doing history of science, which implies a change of object and method. The history of science should be the descriptive analysis and the theory of different transformations that serve as the foundation of the scientific foundations and renewal, and so should therefore take care of the epistemological issues concerning science, the historian is willing to talk. Schematically, the scope of this paper is to point out that: (i) the concept of scientific ideology is closely linked to the epistemological problem concerning the permanent constitution of scientific knowledge, (ii) the entanglement between ideology and science to prevent the reduction of history science to the monotony of a frame without a shadow of relief, and the separation between science and ideology must keep themselves as continuing in the history of science that seems to have preserved elements of an ideology.

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Sumário

RESUMO ... 6

INTRODUÇÃO... 9

CAPÍTULO 1 – RUPTURAS E INFLUÊNCIAS NA EPISTEMOLOGIA DE GEORGES CANGUILHEM... 19

1.1CRÍTICA E RUPTURA AO MODELO DE HISTORIOGRAFIA CIENTÍFICA POSITIVISTA NA TRADIÇÃO DE A. COMTE...20

1.2INFLUÊNCIA DE GASTON BACHELARD...28

1.3UMA ALTERNATIVA AO MODELO DE HISTORIOGRAFIA POSITIVISTA...38

CAPÍTULO 2 – RELAÇÕES E CONTROVÉRSIAS ENTRE EPISTEMOLOGIA E HISTÓRIA DA CIÊNCIA COMO PROJETO EPISTEMOLÓGICO DE GEORGES CANGUILHEM ... 45

2.1UMA ABORDAGEM HISTÓRICA DA RELAÇÃO ENTRE EPISTEMOLOGIA E HISTORIOGRAFIA CIENTÍFICA CONTEMPORÂNEA...45

2.1.1 Primeira posição: história da ciência que ignora a epistemologia. ...46

2.1.2 Segunda posição: História da ciência que critica a epistemologia. ...48

2.1.3 Terceira posição: A história da ciência como laboratório da epistemologia...50

2.1.4 Quarta posição: A história epistemológica ...56

2.2O PROJETO EPISTEMOLÓGICO DE GEORGES CANGUILHEM...81

CAPÍTULO 3 – IDEOLOGIA CIENTÍFICA: UM ESTUDO DE CASO... 84

3.1CONCEITUANDO O TERMO:IDEOLOGIA MARXISTA VERSUS IDEOLOGIA CIENTÍFICA...84

3.2 O CONCEITO DE IDEOLOGIA CIENTÍFICA SEGUNDO G. CANGUILHEM: UM ESTUDO DE CASO DO EVOLUCIONISMO SPENCERIANO...88

3.2.1 Controvérsias entre o conceito de desenvolvimento e evolução ...89

3.3 – EVOLUCIONISMO SPENCERIANO: A EPIGÊNESE COMO MODELO DE UMA TEORIA GERAL DA EVOLUÇÃO...100

3.4–À GUISA DE CONCLUSÃO...103

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Introdução

Georges Canguilhem é ainda um nome relativamente desconhecido, no cenário intelectual brasileiro, como comprova o reduzidíssimo número de publicações e de pesquisas sobre esse autor desenvolvidas em nossas universidades, bem como a ausência de obras traduzidas para o português. É um filósofo e epistemólogo brilhante, porém de pouca publicação. Michel Foucault foi seu orientando, na Sorbonne, e comenta que o mais marcante é o fato de que, "na França, poucos saibam o que foi, inclusive para além dos muros universitários, um trabalho como o de Canguilhem" (FOUCAULT, 2005, p. 353). Na esteira das reflexões desenvolvidas por esse epistemólogo e historiador da ciência, os seminários de pesquisas, no Institute de l’Histoire de la Science, na Universidade de Sorbonne, aparecerão certamente decisivos, pois os conteúdos reflexivos preencheram destes seminários, direta ou indiretamente, grande parte das personagens que participaram dos debates políticos, sociais e científicos nos anos de 1950 até 1970.

Dominique Lecourt tece um comentário, no prefácio de uma obra coletiva1 intitulada

Du développement à l’evolution au XIX siècle (1962) sobre o papel preenchido pelos

seminários dirigidos por Canguilhem, indicando o quanto eles eram um lugar de reflexão e de formação privilegiada para os que tiveram a sorte de frequentar: "Lugar antes de tudo de trabalho, que [...] nos permitiram chamar a epistemologia francesa contemporânea de biais epistemologique", ou seja, um viés epistemológico, "uma fonte de conhecimentos, um ponto agudo de racionalidade" (LECOURT, 1962).

Na entrevista intitulada "Uma história como aventura", François Delaporte comenta que Canguilhem se tratava de alguém mais preocupado com a formação das pessoas do que com as publicações. Nessa entrevista, Delaporte relata que "Canguilhem publicou pouco, mas o pouco que publicou é de uma qualidade quase inigualável" (SALOMON, 2002, p. 12).

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Georges Canguilhem foi nomeado Diretor do Instituto de História da Ciência em 1955, sucedendo a Gaston Bachelard, destacando-se, no campo da filosofia e da história das ciências pela austeridade e pela precisão de suas análises. Segundo P. Bourdieu, Canguilhem destaca-se "por reagir contra a imagem ao mesmo tempo fascinante e rechaçada do ‘intelectual total’2 que se fazia presente em todas as frentes de pensamento" (BOURDIEU, 2005, p. 45).

Os turbulentos anos 1960 e 1970, na França, contextualizaram três estudos metodológicos, especialmente interessantes para o presente, para este estudo do conceito de ideologia científica de Georges Canguilhem. Tais estudos de Canguilhem chamam a atenção não tanto como figura imposta do conhecimento acadêmico, mas especialmente como expressão de uma reflexão constante.

Estão eles em ordem cronológica: "O objeto da história da ciência" (1966) [OHC] foi fruto de uma conferência realizada por Canguilhem, em outubro de 1966, em Montreal, por convite da Sociedade Canadense de história e filosofia das ciências. "O que é uma ideologia científica?" (1970) [IC] foi fruto também de uma conferência proferida, em outubro de 1969, em Varsóvia e em Croácia, no Instituto de história da ciência e da técnica da Academia Polaca das Ciências. E o terceiro: "O papel da epistemologia na historiografia científica contemporânea" (1976) [PEHCC], é uma edição francesa do texto publicado em italiano com o título "Il roule de l’epistemologia nella storografia scientifica contemporânea" em Scienza e Thechinica 76, Annuario della Enciclopedia

della Scienza e della Techinica (p.427-436), Mondadori Ed., Milão, 1976.

Os dois últimos estudos foram escolhidos por Canguilhem para compor parte de uma compilação, reunida em 1977, intitulada Ideologia e racionalidade nas ciências da vida [IRCV].

São três estudos que abordam a temática da história das ciências no âmbito da constituição das ciências da vida. Canguilhem reage, nesses três estudos, de forma direcionada, contra uma ordem historiográfica popularizada a partir de uma filosofia da história positivista na tradição de Auguste Comte.

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É preciso ressaltar que não pretendemos desenvolver de modo preciso os conceitos que surgem na filosofia de Comte, pois uma exposição exaustiva dos conceitos positivistas fugiria do escopo do trabalho.

Sinteticamente, o postulado epistemológico que governa a história da ciência positivista, segundo Canguilhem, é que "a anterioridade cronológica é uma inferioridade lógica" (CANGUILHEM, 1965, p. 44). Ou seja, a história das ciências é apenas a história dos resultados científicos ao longo do tempo. O grande problema que se coloca por Canguilhem frente a esse postulado positivista não é mais a tradição e o rastro na historiografia científica, mas o recorte e o limite como conceitos operantes na historiografia científica. Essa mudança proporciona uma inversão no modo de fazer história das ciências. Este postulado nos remete a busca de saber por que caminho a continuidade pode estabelecer e constituir, para tantos espíritos diferentes e sucessivos, um horizonte único.

A mudança de perspectiva da tradição e do rastro para o recorte e o limite contém uma inversão que implica uma mudança de objeto e de método. Na perspectiva do rastro pressupões-se uma concepção tácita aceita continuísta do progresso na história das ciências e na perspectiva do recorte e do limite pressupõe-se uma concepção tácita aceita descontinuísta do progresso na história das ciências. Na segunda perspectiva para o historiador conseguir discernir os limites entre a ciência e a não-ciência, teria que se munir de regras epistemológicas que o cientistas se dispõe a investigar.

A história das ciências deve ser a análise descritiva e a teoria das diferentes transformações que valem como fundação e renovação dos fundamentos científicos, e por isso deve, portanto, ocupar-se das questões epistemológicas concernentes à ciência que o historiador se dispõe a discorrer. No estudo OHC, Canguilhem configura um estado atual da historiografia científica contemporânea através de um recenseamento feito em seu artigo "O papel da epistemologia na historiografia contemporânea", descrevendo três razões para fazer história das ciências,

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uma epistemologia uma teoria do conhecimento seria uma meditação sobre o vazio e que sem relação com a história das ciências uma epistemologia seria um duplo perfeitamente supérfluo da ciência sobre a qual ela pretenderia discorrer (CANGUILHEM, 1966, p.8-9).

Considerando a terceira razão como a central, na mudança de perspectiva com relação aos modelos positivistas de história da ciência, é, na razão filosófica, que encontramos as condições de possibilidade para a efetivação de todas as potencialidades concernentes ao desenvolvimento pleno da história das ciências. Essas condições de possibilidades são: a filosofia e a epistemologia.

O projeto de unir filosofia e epistemologia à história das ciências permitiu a Canguilhem definir e delimitar o objeto e o método no campo de atuação da história das ciências. A história das ciências para Canguilhem é a "história dos fatos de experimentação ou de conceituação científica apreciados, na relação com os valores científicos recentes" (CANGUILHEM, 1966, p.11). É de inspiração bachelardiana que Canguilhem opõe os conceitos de "história superada" e "historia sancionada" (BACHELARD, 1972 , p.25).

O critério que separa a história da ciência superada e história da ciência sancionada é justamente a epistemologia, que é capaz de atualizar a última linguagem falada pela ciência a ser estudada e, portanto, separar os conceitos ainda válidos cientificamente dos conceitos que já se tornaram obsoletos porque foram ultrapassados ou falseados por novos conceitos científicos, ou técnicas aprimoradas.

A proposta de Canguilhem de uma história das ciência epistemologicamente orientada, se trata de uma história das ciências que mostre as modalidades da ordem científica atual. A atualidade da ciência permite ao historiador agregar elementos de uma realidade instrumentalizada ao qual Bachelard intitula de fenomenotécnica e é justamente ela que permite o avanço do tecido científico. Fazer uma história da atualidade é portanto o objetivo do historiador. Não se trata, portanto, de tomar uma ciência e ver em que medida houve um progresso, na construção de novos conceitos, na criação de teorias que compõe aquela ciência. A história das ciências é um estudo que se esforça por saber de que é feita a ciência contemporânea, a partir de qual a priori epistemológico puderam aparecer as ciências e as ideias atuais?

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A história da ciência não é o progresso das ciências derrubado, quer dizer, colocado em perspectiva de etapas superadas das quais a verdade de hoje seria o ponto de fuga. Ela é um esforço para pesquisar em que medida ações ou atitudes ou métodos superados foram, na sua época, uma superação, e consequentemente em que o passado superado continua a ser o passado de uma atividade a qual é necessário conservar o nome de científica (CANGUILHEM, 1966, p.12).

A intenção de Canguilhem era fazer o encontro entre a história das ciências especializada e as preocupações do materialismo histórico marxista, ao indicar também a preocupação com a razão histórica e a razão científica. Assim, seria importante perguntar tanto sobre o campo epistemológico no qual se faz possível pensar as ciências, como também as configurações históricas que deram lugar às formas discursivas do conhecimento atual sobre as ciências.

Na perspectiva das configurações históricas, Canguilhem não adota uma postura continuísta, pois admite no plano dos discursos científicos a descontinuidade. A História Natural é uma ordem de discurso diversa em relação à Biologia moderna, ou seja, a Biologia não é apenas um discurso mais bem acabado, evoluído de História Natural, pois elas são ciências diversas3. Aparentes continuidades escondem descontinuidades históricas nas configurações discursivas que deram origem ao conhecimento científico atual. Cabe ao historiador das ciências contemporâneas o desafio de identificar os obstáculos epistemológicos que impediram o avanço científico e as descontinuidades causadas por rupturas históricas.

O historiador das ciências teria que deixar de lado, assim, uma "atitude que consiste em alinhar a história sobre a ciência", para poder então "tratar da relação do conhecimento a seu objeto" (CANGUILHEM, 1972, p. 14). Somente desse modo será possível realizar uma efetiva história das ciências da vida.

Podemos reconhecer em Canguilhem, mais precisamente nos três textos mencionados como indicadores, uma contribuição ao processo de construção de um método

3 A Biologia Moderna é altamente matematizada, possui uma linguagem própria construída a partir de

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historiográfico das ciências, mais do que propriamente a finalização de um programa de pesquisa. Com exemplos sempre pertencentes às disciplinas de embriologia, anatomia ou fisiologia, Canguilhem delimita a história das ciências da vida como campo de aplicação de seu projeto epistemológico, que inicialmente atribui à história das ciências – ou melhor, à história de alguns conceitos que pertencem as disciplinas científicas –

uma categoria judicatória. A epistemologia é chamada para ocupar uma função de juiz

na história das ciências.

O projeto epistemológico de Canguilhem consiste em dar à história das ciências um aspecto filosófico, quer dizer, um aspecto de enfrentamento das dificuldades científicas, que dizem respeito aos estatutos respectivos da verdade e do erro. Portanto, é nas "questões teóricas apresentadas pelas práticas científicas em seu devir4" (CANGUILHEM, 1970, p. 19) que o projeto epistemológico de Canguilhem acha seu lugar.

"Fazer história da ciência é uma das funções, não a mais fácil, da epistemologia filosófica" (BACHELARD, 1972, p. 22). Há um aspecto da atualidade dinâmica que é o conteúdo filosófico da história das ciências contemporânea. Esse é um dos aspectos que separam Koyré e Bachelard segundo Canguilhem. "A epistemologia de Koyré está mais próxima daquela de Meyerson do que daquela de Bachelard, mais sensível à continuidade da função racional do que à dialética da atividade racionalista" (CANGUILHEM, 1966, p.12).

Para Bachelard, o conhecimento, ao longo da história, não pode ser avaliado só em termos de acúmulos, mas também de rupturas, de retificações, num processo dialético em que o conhecimento científico é construído através da constante análise dos erros anteriores. O espírito científico julga o seu passado, condenando-o. A sua estrutura é a consciência dos seus erros históricos. Cientificamente, "pensa-se o verdadeiro como retificação histórica de um longo erro, pensa-se a experiência como retificação da ilusão comum e primeira" (BACHELARD, 1996, p.120). O novo espírito científico possui uma característica que os conhecimentos antigos não possuem. O conhecimento atual

4 Cosideremos práticas científicas em seu devir o cotidiano do cientista. Em síntese, o projeto

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não é fruto de uma acumulação progressiva de problemas sempre mais complexos; o conhecimento científico atual tem lugar numa articulação dialética em que o saber científico não atinge a sua verdade pelo aprofundamento gradual das verdades precedentes, mas por rupturas e reorganizações completas.

Para Koyré, diferentemente de Bachelard, houve uma grande ruptura na história do pensamento científico. Ela inicia-se com Galileu Galilei, em meados do século XVI, e se consolida com a síntese concluída por Isaac Newton, no século XVII, que permitiu considerar a ciência como Theoria fundamentalmente matematizada. Para Koyré

a ciência da nossa época, como a dos gregos, é essencialmente Theoria, busca da verdade, e que, por isso, ela tem e sempre teve uma vida própria, uma história imanente, e que é somente em função de seus próprios problemas, de sua própria história, que ela pode ser compreendida (KOYRÉ, 1982, p.377).

A estrutura social em que o cientista está inserido não é o foco, nesse tipo de interpretação da história da ciência, por isso denominam seu método histórico de internalista.

Mesmo considerando diferenças entre Bachelard e Koyré, podemos perceber que ambos possuem uma forte inclinação à valorização da atividade racionalista. A história das ciências é feita, na perspectiva internalista, na valorização do desenvolvimento dos conceitos e das teorias.

Na mesma medida internalista, Canguilhem considera que também não é possível fazer história das ciências sem teoria, pois ela, por natureza, tem de privilegiar o conceito para que seja uma história filosoficamente questionada e, portanto, epistemológica. O "conceito [...] contém uma norma operatória ou judicatória" (CANGUILHEM, 1970, p. 7), ou seja, o conceito é um nome dotado de um sentido capaz de interpretar as observações e as experiências. Para Canguilhem, a história das ciências são as histórias do conceitos e somente através da ciência como teoria é possível definir os conceitos que tem por finalidade a aproximação da verdade; uma teoria é feita por um sistema conceitual e, portanto, o conceito é uma expressão da norma de verdade do discurso científico. Assim, uma história das ciências conceitual, ou seja, epistemologicamente orientada, é normatizada pela atualidade científica do seu discurso.

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ciências é, portanto, o pensamento, criado pela mente do cientista (como representação), diferentemente do objeto da ciência que é natural, ou seja, é dado pela natureza e cujas ciências visam descrever.

Para Canguilhem, "a história das ciências é a história de um objeto, que tem uma história, enquanto que a ciência é ciência de um objeto que não é histórico, que não tem história" (CANGUILHEM, 1966, p.14). Para exemplificar tal afirmação, Canguilhem comenta brevemente que a ciência dos cristais é um discurso sobre a natureza dos cristais, considerados minerais diferentes dos vegetais e dos animais. Somente a partir do momento em que a Cristalografia, a Óptica Cristalina, a Química Mineral se constituíram como ciência, a natureza dos cristais passou a ser o conteúdo da ciência dos cristais. Não é tomar o cristal já com as definições dadas por esse conjunto de ciências que reunidas formam as condições de possibilidade de se pensar uma nova ciência, mas sim ver em que medida a reunião da Ótica Cristalina, da Química Mineral e da Cristalografia possibilitaram a efetivação de uma nova ciência, a ciência dos cristais.

A história das ciências para Canguilhem concerne a uma atividade axiológica, a procura da verdade. Assim, a história das ciências é a história das relações progressivas da inteligência com a verdade. O sentido das rupturas e das filiações históricas não podem chegar ao historiador das ciências de fora do seu contato com a ciência recente. A atualidade científica permitirá o historiador discernir aquele conceito que pertence à ciência atual ou àquele conceito que está inoperante. "O contato é estabelecido pela epistemologia, com a condição de que ela seja vigilante, como ensinou G. Bachelard" (CANGUILHEM, 1966, p.18).

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A história das ciências se exerce sobre esses objetos segundos (discursos científicos sobre o objeto natural), não naturais, culturais. De maneira nenhuma a história das ciências pode ser uma história natural de um objeto cultural. Os discursos científicos são objetos que possuem uma condição histórica social determinada pelo cruzamento da ciência e da história geral. Ora, se o objeto da ciência são os discursos científico, então

a história da ciência, na medida em que ela se aplica ao objeto acima delimitado, não tem relação somente com um grupo de ciências sem coesão intrínseca mas também com a não-ciência, com a ideologia, com a prática política social (CANGUILHEM, 1966, p.17).

Canguilhem reconhece que suas análises podem não ser suficientemente sutis e rigorosas, e que ele deixa "por decidir se se trata de reserva, de preguiça ou de incapacidade" (CANGUILHEM, 1977, p.10). Entretanto, qualquer investigação que tenha por finalidade mostrar como a filosofia pode intervir, na formulação de uma problemática histórica que visa às ciências da vida, não é uma complicação inútil: [...] "a função própria filosófica é a de complicar a existência do homem, inclusive a existência do historiador das ciências" (CANGUILHEM, 1977, p. 122).

Canguilhem enfrente essa problemática com o conceito de ideologia científica, que possibilita o trânsito entre a ciência e a não-ciência, e que, portanto, esse trânsito é o objeto da história da ciência – tese enfaticamente afirmado por Canguilhem no estudo OHC. Essa é uma questão, que poderíamos denominar como uma problemática, concernente à historicidade da produção de conhecimentos científicos.

É na relação da ciência e da não-ciência, que há um campo de produções de novos conhecimentos científicos, como também no campo da historiografia científica. Assim, o historiador da ciência que não considerar os aspectos relacionados à não-ciência, na sua prática, corre o risco de fazer a história de uma caricatura obsoleta. A intenção de Canguilhem é, portanto, propor uma alternativa metodológica, inserindo o conceito de ideologia científica, no vocabulário dos historiadores da ciência contemporâneos como conceito chave para se elaborar uma história das ciências da vida mais próxima da realidade.

No prefácio da compilação de 1977, Canguilhem ressalta que, no que se refere às análises relativas à ideologia científica, as ideias de Michel Foucault foram-lhe úteis.

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constitui o nível mais desenvolvido do conhecimento (p. 243-247). Eu não tenho certeza de, nos estudos que publico, ter atingido claramente, como gostaria Michel Foucault, os diferentes limiares superados pelas ciências cuja história vou esboçar (CANGUILHEM, 1977, p. 4).

Uma vez que anteriormente consideramos que o objeto da história das ciências são os discursos científicos sobre objetos naturais, como delimitar então qualquer discurso do discurso científico? É nesse ponto que Canguilhem se concentra, nas análises relativas ao delineamento das formações discursivas com pretensão à ciência. Entendendo os limiares de epistemologização, de cientificização e de formalização, analisados por Foucault, compreenderemos a importância do conceito de ideologia científica e sua operação no projeto epistemológico de Canguilhem de unificar os esforços epistemológicos, históricos e filosóficos das ciências para o entendimento do processo de construção de novos conhecimentos científicos.

Rapidamente podemos entender

Quando, no jogo de uma formação discursiva um conjunto de enunciados se delineia, pretende fazer valer (mesmo sem consegui-lo) normas de verificação e de coerência e o fato de que exerce, em relação ao saber, uma função dominante (modelo, crítica ou verificação), diremos que a formação discursiva transpõe um

limiar de epistemologização.

Quando a figura epistemológica, assim delineada, obedece a um certo número de critérios formais, quando seus enunciados não respondem somente a regras arqueológicas de formação, mas, além disso, a certas leis de construção das proposições, diremos que ela transpôs um limiar de cientificidade.

Enfim, quando esse discurso científico, por sua vez, puder definir os axiomas que lhe são necessários, os elementos que usa, as estruturas proposicionais que lhe são legítimas e as transformações que aceita, quando puder assim desenvolver, a partir de si mesmo, o edifício formal que constitui, diremos que transpôs o limiar da formalização (FOUCAULT, 1969, p.209).

Para Foucault os limiares de transformação possuem uma ordem singular, que são caracteres próprios de cada formação discursiva.

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Os múltiplos limiares que puderam ser demarcados por Foucault permitem formas distintas de análise histórica. É no nível da epistemologização que se dá a relação entre ciência e não-ciência. Nesse nivel "o que se tenta revelarsão as práticas discursivas na medida em que dão lugar a um saber, e em que esse saber assume o status e o papel de ciência" (FOUCAULT, 1969, p.213). Esse é o ponto central que Canguilhem afirma ser o objeto da ciência, este da relação ciência e não-ciência.

Sobre este ponto, da relação entre ciência e não-ciência em Canguihem, Claude Debru escreve uma obra intitulada: Georges Canguilhem, ciência e não-ciência. Debru comenta que Canguilhem "não conseguiu submeter debaixo da bandeira filosófica a história e a sociologia para a análise das ciências, enquanto Michel Foucault o conseguiu magistralmente para a análise dos poderes" (DEBRU, 2004, p. 66).

Capítulo 1 – Rupturas e influências na epistemologia

de Georges Canguilhem

Considerando que esta investigação está inscrita, no campo da filosofia da história da ciência, objetiva-se expor a corrente com a qual Canguilhem dialoga, na realização do seu projeto epistemológico como contexto epistemológico. No que tange à vertente francesa, Paulo Abrantes comenta que:

A História da Ciência enquanto disciplina autônoma é bastante recente. [...] Na França, a primeira cadeira de História da Ciência foi criada no Collège de France, em fins do século XIX e seu perfil à época, foi moldado pelo positivismo de Auguste Comte. Até hoje, o lugar que tal cadeira ocupa no sistema universitário francês evidencia a herança positivista: a História da Ciência se pesquisa e se ensina em departamentos de Filosofia (2002, p. 1).

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1.1 Crítica e ruptura ao modelo de historiografia científica

positivista na tradição de A. Comte

Definiremos aqui como modelo de historiografia científica positivista, todo o conjunto de prática e ações que exibem o passado científico como um desenvolvimento contínuo, cujo presente é o ponto de fuga. Segundo Canguilhem, o postulado que governa a história da ciência positivista comteana é: "a anterioridade cronológica é uma inferioridade lógica" (CANGUILHEM, 1965, p. 44).

Observa-se em Comte, na Primeira Lição da obra intitulada Curso de filosofia positiva (1845) um tratamento de superioridade mental atribuído ao terceiro estado denominado espírito positivo. A humanidade teria passado necessariamente por estágios inferiores para alcançar a solidez do espírito positivo. A doutrina fundamental da Lei dos Três Estados, que rege a sucessão dos estágios ou estados do espírito humano,

consiste em que cada uma de nossas concepções principais, cada ramo de nossos conhecimentos, passa sucessivamente por três estados históricos diferentes: estado teológico ou fictício, estado metafísico ou abstrato, estado científico ou positivo (COMTE, 1988, p.25).

Sinteticamente podemos afirmar que o desenvolvimento da inteligência humana, segundo A. Comte, em suas diversas esferas de atividade, desde seu primeiro vôo mais simples até nossos dias, é uma necessidade invariável, que se desenvolve de acordo com a Lei dos três Estados da humanidade. Essa relação necessária de desenvolvimento histórico parece poder ser solidamente estabelecida, quer na base de provas racionais fornecidas pelo conhecimento de nossa organização, quer na base de verificações históricas resultantes do exame atento do passado.

Na verdade, a filosofia da história é o primeiro tema dos três temas do sistema comteano5, visto a afirmativa de que uma concepção qualquer só pode ser bem conhecida por sua história. É, portanto, na filosofia da história, que a Lei dos três Estados foi desenvolvida, na Primeira Lição do Curso de Filosofia Positiva intitulada: "Exposição da finalidade deste curso, ou considerações gerais sobre a natureza e a

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importância da filosofia positiva", em que Comte descreve o funcionamento da sua Lei dos três Estados.

A filosofia da história — primeiro tema da filosofia de Comte — pode ser sintetizada, na sua célebre lei dos três estados: todas as ciências e o espírito humano como um todo desenvolvem-se através de três estados distintos: o teológico, o metafísico e o positivo6.

Esses seriam, portanto, os estados ou estágios que o espírito humano alcançou segundo Comte. E, na cronologia dos fatos, o posterior é sempre superior ao antecedente. Na perspectiva do desenvolvimento das ciências, para Comte "toda ciência pode ser exposta mediante dois caminhos essencialmente distintos: o caminho histórico e o caminho dogmático. Qualquer outro modo de exposição não será mais do que sua combinação" (COMTE, 1988, p.87).

O modo histórico, ou o caminho histórico é evidentemente aquele pelo qual começa, com toda necessidade, o estudo de cada ciência nascente com o objetivo de investigar sucessivamente, na ordem cronológica, as diversas obras originais que contribuíram para o progresso da ciência. O modo dogmático, supondo, ao contrário, que todos esses trabalhos particulares foram refundidos (convertidos) num sistema geral, aplica-se apenas a uma ciência já suficientemente desenvolvida em alto grau.

Na medida em que a ciência progride, a ordem histórica de exposição torna-se cada vez mais impraticável, por causa da longa série de intermediários que obrigaria o espírito a percorrer, enquanto a ordem dogmática torna-se cada vez mais possível, ao mesmo tempo que necessária, porque novas concepções permitem apresentar as descobertas anteriores de um ponto de vista mais direto (COMTE, 1988, p.27).

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A tendência constante do espírito humano, quanto à exposição dos conhecimentos, é, pois, substituir progressivamente a ordem histórica pela ordem dogmática, atemporal. A Lei dos três estados de Comte não fala de uma cronologia linear, mas sim de um avanço progressivo e de ordem específica, do simples ao complexo, do abstrato ao concreto, do estado teológico ao estado positivo, final. Segundo Comte, a ordem dogmática é a única conveniente ao estado aperfeiçoado de nossa inteligência, o estado positivo.

O modo real de exposição é, inevitavelmente, certa combinação da ordem dogmática com a ordem histórica, na qual somente a primeira deve dominar constante e progressivamente. A ordem dogmática não pode, com efeito, ser seguida de maneira inteiramente rigorosa, pois para isso exige nova elaboração dos conhecimentos adquiridos. Não se aplica assim, em cada época da ciência, às partes recentemente formadas, cujo estudo só comporta uma ordem essencialmente histórica (COMTE, 1988, p. 89).

A suposta ordem histórica de exposição, ainda quando pudesse ser seguida rigorosamente, nos pormenores de cada ciência em particular, já seria puramente hipotética e abstrata, sob as ópticas mais importantes, se fosse considerada isolada do desenvolvimento de cada ciência. Mas estamos por certo convencidos de que não conhecemos completamente uma ciência se não conhecemos sua história.

Poderíamos dizer que a história da ciência positivista comteana configura uma relação de subordinação da história da ciência à filosofia da ciência (classificação das ciências). Essa relação que aparece como subordinação, para Canguilhem, tem que ser repensada. Comte "está distante de considerar a história um puro devir no decorrer do qual o homem se crie imprevisivelmente, [...] por uma livre construção de utopias" (CANGUILHEM, 1962, p. 24).

Comte, ao propor a lei dos três estados do espírito humano, revela uma lei da história, no sentido kantiano7, quer dizer, uma lei que expresse a liberdade da vontade, na ação humana, uma vez que a ação humana é considerada um evento natural, em outras palavras, as "necessidades contínuas oriundas de nossa constituição corporal impõem à

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Humanidade uma atividade material que domina o conjunto de sua existência" (COMTE, 1988, p.473).

Longe de ser por qualquer forma incompatível com a ordem real, a liberdade consiste por toda parte em seguir sem obstáculos as leis naturais peculiares ao caso correspondente. Quando um corpo cai, a sua liberdade manifesta-se caminhando, segundo sua natureza, para o centro da terra, com uma velocidade proporcional ao tempo. Assim, para Comte

a verdadeira liberdade é por toda parte inerente e subordinada à ordem, quer humana, quer exterior. [...] Nossa melhor liberdade consiste, pois, em fazer prevalecer, tanto quanto possível, uma maior amplitude do nosso império, contanto que a nossa intervenção se adapte sempre às leis fundamentais da ordem universal (COMTE, 1988, p.417).

Esta questão nos remete pensar a geração dos seres vivos, uma vez que é nela que contemplamos a possibilidade da compreensão da geração do novo. Na filosofia de Comte, a analogia ás ciência biológicas é explícita, considerando especificamente o tema da ordem e progresso. Intitula-se também de darwinismo social, ou organicismo, essa analogia entre ciências biológicas e ciências sociais.

Ampliando, portanto, a reflexão, se a liberdade consiste justamente na adaptação do desenvolvimento às leis da ordem universal, portanto, toda e qualquer variação na natureza contém em si mesma o germe da ordem que a pré-determinou. Consideraremos esta perspectiva fixista ou pré-formacionista da geração dos seres vivos. A partir dessas considerações, pode-se esperar que no domínio da explicação biológica do desenvolvimento das disposições natural do homem tipo fixista, não há inovação.

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Assim, para Comte, "a qualificação de desenvolvimento por sua natureza tem a preciosa vantagem de determinar diretamente em que consiste, de toda necessidade, o

aperfeiçoamento real da humanidade8" (COMTE, 1988, p. 203).

Uma vez que a história da humanidade que, antes de tudo, é história dos modos de pensamento, sofre transformações, metamorfoses, mas jamais crises verdadeiras, jamais ocorrem rupturas e inovações. É um processo contínuo de mudança que, por acúmulo, solidifica uma ciência atual. Essa concepção de história é, para Canguilhem, um grande retrocesso.

O pressuposto fundamental que rege a lei da história da ciência do tipo positivista é universalmente aplicável às ciências positivas classificadas pela filosofia positiva. Há, portanto, um critério universal aceito que, aplicado, delimita teoricamente as ciências de uma forma geral em uma única categoria: a positiva.

Para Canguilhem definir um conceito significa formular um problema, e, por isso, sua atenção está concentrada, nas condições materiais e históricas que fazem com que o problema resulte em formulação. A teoria dentro da qual esses conceitos funcionam somente aparecem a posteriori.

Para que seja inteligível a constituição do verdadeiro na ciência, [...] é necessário que a aparência e o errado recebam da filosofia um estatuto próprio, original, um estatuto diferente daquele repressivo de infração a ordem do verdadeiro e diferente do outro punitivo do crime de lese-majesté científica. (CANGUILHEM, 1971, p.175)

A proposta de mudança de estatuto do que é aparente e errado, uma vez elaborada pela reflexão filosófica, comenta Canguilhem, propõe uma valorização do erro como solução ao problema enfrentado pela prática dos historiadores da ciência, visto que ambos (erro ou verdade) têm o mesmo direito, pois figuram do mesmo modo na história da ciência.

Canguilhem define o positivismo como sendo uma filosofia da história que generaliza a lei de sucessão das teorias segundo um movimento irreversível que substitui o falso pelo verdadeiro. Nesse movimento irreversível de substituição de teorias falsas por teorias verdadeiras, Canguilhem adverte que "[...] não se deve fazer história como se faz ciência, identificando a lógica da verdade atual com a verdade de sempre" (CANGUILHEM, 1955, p.35).

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A advertência dada por Canguilhem denuncia uma tradição historiográfica, em que o erro é descartado e a verdade atual reconstituída factualmente. Essa reconstituição à luz do presente pode ser de modo contínuo ou descontínuo. Mas em ambos os casos, a história da ciência progride, seja por progresso contínuo, seja por progresso descontinuo, esteja ela – a história da ciência – inscrita no programa externalista ou internalista. Canguilhem, com efeito, recusa duplamente o caráter exterior e o caráter interior dos elementos que constituem o progresso da história da ciência em ambos os programas.

Canguilhem explica que

o externalista vê a história das ciências como uma explicação de um fenômeno cultural através do condicionamento do meio cultural global, e assimila-a, por conseguinte, a uma sociologia naturalista das instituições, desprezando completamente a interpretação de um discurso com pretensão de verdade. O internalista vê nos fatos da história das ciências, por exemplo os casos da descoberta simultânea (cálculo infinitesimal, conservação da energia), fatos dos quais não se pode fazer história sem teoria. Aqui, por conseguinte, o fato da história das ciências é tratado como um fato da ciência, a partir de uma posição epistemológica que consiste em privilegiar a teoria relativamente ao dado empírico (CANGUILHEM, 1966, p. 15).

Canguilhem, com efeito, recusa duplamente o caráter exterior e o caráter interior dos elementos que constituem o progresso da história da ciência em ambos os programas. No texto intitulado Du développement à l’evolution au XIX siècle (1962), Canguilhem propõe, em conjunto com seus colegas de equipe, uma investigação sob o ponto de vista biológico que pertence à problemática do progresso do conhecimento, uma investigação sobre o conceito de evolução. O objeto de estudo de Canguilhem, nesse texto, constitui as principais etapas da elaboração do conceito de evolução, pois é neste estudo que Canguilhem mostra como uma ideologia científica pode fazer parecer uma continuidade histórica os conceitos que pertencem a campos científicos radicalmente diferentes. Este é o caso do conceito de desenvolvimento e evolução que permeia os discursos científicos, no período de 1759 a 1859, com pretensões científicas, no campo da biologia e no campo das teorias sociais.

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Recordemos brevemente essa problemática. Dentro desse amplo tema que é a geração dos seres vivos, a questão central que Canguilhem se coloca, então, é de se saber como os conceitos de desenvolvimento e evolução, que etimologicamente eram sinônimos, passaram a significar para os naturalistas do final do séc. XVIII o oposto do que significavam para os embriologistas do início de séc. XIX?

A teoria da geração por pré-formação considera o conceito de evolução ou desenvolvimento, como um simples acréscimo de partes distintas do qual o conjunto constitui o corpo. Não há transformação por completo de elementos do embrião à fase adulta; há somente um acréscimo de "moléculas orgânicas", como diria o Conde de Buffon, ou uma simples explicação mecânica da matéria. Nessa pré-formação, existe um único elemento de origem, ou uma ideia da pré-existência, que já desde sempre existe como embrião pré-formado dentro do ovo. Essas ideias foram sustentadas ao longo de quase todo o século XVIII.

Para Canguilhem, os embriologistas do século XVIII apenas conseguiam postular mecanismos de geração para explicar aquilo que observavam a um nível mais grosseiro. Entretanto, as descobertas, na regeneração e na reprodução, tornavam insustentável qualquer simples teoria da pré-formação. Até esse momento, o conceito de evolução ainda pertencia à ideia de acréscimo, e a química e a física se incumbiam de explicar materialmente o desenvolvimento do embrião, que já se sabia, não se encontrava pré-formado no ovo.

Nenhuma experiência pode comprovar a teoria da pré-formação dos germes. Quando os embriologistas e anatomistas do início do século XIX levavam a pré-formação ao limite, consequentemente, não podiam esperar nenhum auxílio vindo da experiência. A formulação de uma alternativa à pré-formação é denominada de teoria epigenética da geração dos seres vivos. A teoria da epigênese tem fundamentos conceituais e experimentais sólidos.

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Canguilhem ressalta que os desdobramentos teóricos, na perspectiva da teoria social, explicam as leis do progresso humano analogamente às leis da evolução na embriologia moderna.

É neste ponto que

o conceito (biológico) de desenvolvimento serve de fundamento à filosofia de A. Comte, na medida em que ele estabeleceu a mediação entre os termos opostos de natureza humana e história humana, condição teórica obrigatória da conciliação, sob o plano da prática política, entre as necessidades da ordem e as exigências do progresso. [...] a história humana – do ponto de vista físico, intelectual e moral – é chamada a cumprir as disposições naturais do homem (CANGUILHEM, 1962, p. 24).

O progresso nada mais é do que o simples desenvolvimento da ordem, ou seja, a história humana (a história do progresso) é o simples desenvolvimento da natureza humana (a ordem). Essa interpretação feita por Canguilhem, de certa forma, coloca Comte, na condição de mediador da relação entre história humana e natureza humana, pois ambas, na perspectiva positivista, não constituem aspectos antagônicos, mas sim aspectos de predeterminação. A história humana é pré-determinada pela natureza humana.

Comte fixa as leis do progresso – os quais a lei dos três estados é ao mesmo tempo o princípio e o modelo – levando em conta um a priori que a biologia impõe à história. [...] Podemos ler a história humana na natureza humana, ela ali se encontra predeterminada. [...] Comte estima ser capaz de pressentir no estado da natureza humana entendida como um germe o desenvolvimento notável da humanidade. (ibidem)

Evoluir e progredir pressupõem uma concepção de história semelhante à da biologia quando fala em germe, semente ou larva. O germe, a semente ou a larva são entes que contêm neles mesmos tudo o que lhes acontecerá, isto é, o futuro já está contido, no ponto inicial de um ser, cuja história ou cujo tempo nada mais é do que o desdobrar ou o desenvolver pleno daquilo que ele já era potencialmente. Em resumo, evolução e progresso enquanto desenvolvimento pressupõem: continuidade temporal, acumulação causal dos acontecimentos, superioridade do futuro e do presente com relação ao passado, existência de uma finalidade a ser alcançada, de uma propriedade teleológica.

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Canguilhem nos mostra neste texto "Do desenvolvimento à evolução" (1962) que, por um lado, o conceito de evolução está vinculado à embriologia e à genética contemporânea, por outro lado, está vinculado à filosofia da história comteana. Nesse sentido, Canguilhem comenta que "por volta do fim do século XIX, o conceito vulgarizado de progresso compõe essas duas significações" (CANGUILHEM, 1962, p. 24). Assim, o historiador teria que estar atento a esses processos de vulgarização de conceitos, no sentido de compreender a função e o sentido de uma história das ciências distante da ideia de "microscópio mental", introduzida, na interpretação de Bachelard, pelo discípulo de Comte, Pierre Lafite.

Na imagem do microscópio, encontra-se a pressuposição positivista na ideia de que a história da ciência é apenas uma injeção de duração na exposição dos resultados científicos (CANGUILHEM, 1972, p. 10).

A imagem do microscópio representa o modelo de historiografia positivista no qual Canguilhem irá propor uma alternativa metodológica. O projeto epistemológico de Canguilhem consiste justamente em dar à história das ciências um estatuto epistemológico.

A história das ciências, portanto, deveria tratar de saber como um conceito, carregado ainda de ideologias, purificou-se e pôde assumir, assim, uma função de conceito científico. Deveria também saber como uma região de experiência, já demarcada, já parcialmente articulada, mas ainda atravessada por utilizações práticas imediatas ou valorizações efetivas, pôde constituir-se em um domínio científico.

De modo mais geral, a história das ciências também deveria saber como uma ciência se estabeleceu acima e contra um nível pré-científico que, ao mesmo tempo, preparava e resistia ao seu avanço, e como pôde transpor os obstáculos e as limitações que ainda se lhe impunham.

1.2 Influência de Gaston Bachelard

Após explorarmos brevemente o aspecto normativo da atividade científica, cabe aqui um pouco mais de atenção a alguns conceitos necessários para o entendimento da história epistemológica proposta por Canguilhem. São eles os conceitos de

normatividade, recorrência histórica, obstáculo epistemológico, ruptura

epistemológica, história da ciência caduca e história da ciência sancionada, presentes

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Exploraremos brevemente os conceitos acima mencionados de Bachelard que influenciaram a história epistemológica proposta por Canguilhem. Podemos dizer que abordar a história das ciências, na via dos problemas, já é um forte ponto de contato entre a filosofia de Bachelard e a de Canguilhem.

O filósofo francês, Bachelard, enuncia um programa de filosofia da ciência que vincula fortemente três características da cultura científica moderna, que Canguilhem valoriza tanto: objetividade racional, objetividade técnica e objetividade social. "Uma filosofia da ciência que não quer ser utópica deve tentar formular uma síntese desses três caracteres" (BACHELARD, 1951, p. 10), o racional, o técnico e o social.

Bachelard atribui à filosofia da ciência a tarefa de assumir a história e a sociologia da ciência, de efetuar a síntese da razão, da técnica e da sociedade. Esse parece ser um programa ambicioso, pois segundo Debru:

nem a história, nem a sociologia conseguiram as sínteses realizadas por G. Bachelard, pois as metas e os métodos dessas disciplinas ficaram muito diferentes umas das outras, e as oposições se endureceram durante o tempo. (DEBRU, 2004, p. 65)

Gaston Bachelard rompeu com os modelos filosóficos tradicionais, buscando fundamentos e requisitos para o desenvolvimento de um novo espírito científico. As conquistas científicas do final do século XIX e, sobretudo, no decorrer do século XX, inspiraram Bachelard a formular seu tema de "inconformismo intelectual" (BACHELARD, p. 34, 1991) através da obra intitulada: Filosofia do não (1991), apoiado numa interpretação do desenvolvimento histórico das doutrinas científicas. Para ele, a história das ideias não se faz por evolução ou continuísmo, mas sim, através de rupturas, resoluções e "cortes epistemológicos".

Na obra A formação do espírito científico, Bachelard elaborou uma tese sobre o desenvolvimento do pensamento científico que o percorre do passado aos dias de hoje, propondo uma divisão da história em três períodos, ou espíritos, intercalados por rupturas epistemológicas.

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É fundamentalmente entre esses três espíritos que Bachelard afirma existirem rupturas

epistemológicas. Distinguimos em Bachelard dois sentidos, não autônomos, mas

inter-relacionais, da expressão ruptura. Em primeiro lugar, ela designa a descontinuidade existente, em qualquer momento da história, entre a racionalidade científica e o saber vulgar, comum, cotidiano; fazer ciência não é organizar, sistematizar dados da percepção. O objeto científico não é natural, é construído, e uma ida em direção do objeto não é inicialmente objetiva. Assim, para o autor, a ciência tem outras bases que não as da opinião, do senso comum, do saber cotidiano. Em segundo lugar, sua problemática, seus métodos, seus objetos, seus conceitos assinalam uma ruptura entre observação e experimentação. O imediato deve dar lugar ao construído, e a questão da ruptura não se esgota nesse momento, no momento da fundação da ciência. Mesmo depois do seu nascimento, o progresso, que caracteriza essencialmente a ciência, realiza-se por rupturas sucessivas.

Para Bachelard, as ciências físicas e químicas, que constituem a região do seu estudo, podem ser caracterizadas, epistemologicamente, como domínios de pensamentos que rompem nitidamente com o conhecimento imediato, caracterizando um dos aspectos do seu conceito de descontinuidade.

Um exemplo dessa ruptura é

quando se tratava, em um espírito positivista de determinar os pesos atômicos, a técnica – sem dúvida muito rigorosa – da balança, bastava. Mas quando, no século XX, selecionamos e pesamos os isótopos, impõe-se uma técnica nova, indireta (BACHELARD, 1953, p.142).

A necessidade de uma linguagem especial e de ferramentas especiais para elaboração de conceitos, que aparentemente são simples ao senso comum, gera uma ruptura para o autor e essa ruptura marca um progresso científico. O espectroscópio de massa, indispensável para essa técnica, é baseado na ação dos campos elétricos e magnéticos. Trata-se de um instrumento não tão claro para o conhecimento vulgar, criando uma necessidade de um entendimento especializado para a manipulação do mesmo e a produção das mensurações, questionamentos e afirmações acerca dos isótopos. Assim se esclarece que essa especialização é fruto de um rompimento com a noção de balança, que havia antes dessa invenção e que essa ruptura é manifestada sempre em forma de progresso científico. O filósofo Roberto Machado comenta que o progresso da ciência para Bachelard

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atualidade; não é tampouco um aumento de volume por justaposição, o anterior substituindo o novo (MACHADO, 2006, p.35).

Para Bachelard, a reflexão filosófica, com uma análise histórica das ciências, coloca uma questão fundamental para a filosofia: a questão da racionalidade. O racionalismo bachelardiano descarta toda a pretensão de um racionalismo geral, como fez Karl Popper com seu princípio de falseabilidade, criando, assim, uma espécie de critério global para demarcação entre ciência e pseudociência. Nesse ponto, desejamos observar que, apesar de ambos, Popper e Bachelard, terem vivido no início do século XX, não há indícios de que as ideias bachelardianas formam uma crítica direta ao pensador crítico do positivismo. Para Bachelard, ao contrário de Popper, existe um racionalismo regional, ou seja, um racionalismo setorial e aberto, que se modela diante de cada tipo de objeto, tornando-se essencialmente progressivo.

Essa Filosofia da ciência inovadora criada, no início do século XX, contribuiu para dar uma complexidade ao pensamento científico, sendo que tal complexidade passa a ser necessidade (como exigência metódica) para o pensamento científico, considerando a linguagem como objeto de reflexão e fator importante na produção descontínua do processo racional.

Nas minúcias da produção metodológica, o conhecimento científico se especializa e é através dessa especialização que se faz necessária a sua "regionalização". O rompimento com o senso comum cria uma neolinguagem, a de iniciados da ciência. Como disse o autor: "A linguagem científica é, por princípio, uma neolinguagem" (BACHELARD, 1953, p.162), pois para sermos entendidos no mundo científico, é necessário que se traduzam os termos da linguagem comum em linguagem científica. Uns exemplos são as palavras gota, temperatura e evaporação, que, são postas entre aspas, pois não têm o mesmo significado para os físicos nucleares que possuem um conceito tacitamente definido diferente do senso comum.

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existem critérios universais ou exteriores para julgar a verdade de uma ciência. Apesar das especificidades, a ciência tem a pretensão de verdade e é essa questão da verdade que determina a originalidade das ciências com relação a outras manifestações culturais e desqualifica o projeto de uma história descritiva e factual.

Citaremos outro exemplo de Bachelard que aqui que esclarecerá a noção de descontinuidade:

A propósito da descoberta da radioatividade artificial, Polard e Davidson insistem igualmente no desenvolvimento espantoso, <<de astonishing development>> dos campos dos conhecimentos humanos. Desde 1933, afirmam eles, até 1945 (data da publicação de seu livro) o número de radioelementos artificiais passou de três para trezentos. Esta proliferação extraordinária da ontologia materialista não pode, naturalmente, ser avaliada com justiça a partir do exterior (BACHELARD, 1953, p.140).

Segundo Bachelard, F. B. Moon, ao escrever o prefácio do livro Artificial Radioativity, publicado em Cambridge, em 1949, desculpa-se por não fornecer uma lista completa dos corpos providos de radioatividade artificial. E Moon acrescenta: "o tema desenvolve-se com tanta rapidez que semelhantes listas tornam-se incompletas". Esse pequeno exemplo mostra que a ciência da matéria cresce tão depressa que já não se consegue fazer o seu balanço.

Dessa forma, Bachelard conclui que:

Nunca este racionalismo experimentado, que os métodos novos representam, foi mais variado, mais móvel, mais vigiado. É assim que o racionalismo que deve assinalar os progressos da experiência cresce no sentido inverso do dogmatismo do racionalismo sucinto. Caracterizar o espírito científico como um espírito canalizado no dogmatismo de uma verdade indiscutida é fazer uma psicologia de uma caricatura obsoleta (BACHELARD, 1953, p.248).

Para concluir a polêmica da continuidade científica, a questão da linguagem é essencial, pois a nomenclatura química não pode ser definitiva como a tabela das declinações de uma língua morta. Ela tem que ser constantemente retificada, completada e diversificada. Nas palavras de Bachelard, "a linguagem da ciência está em estado de revolução semântica permanente" (BACHELARD, 1953, p.251).

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Por vezes, o Bachelard adverte: o epistemólogo continuísta se engana quando julga a ciência contemporânea a partir de uma espécie de continuidade das imagens e das palavras. Uma constante transposição da linguagem quebra, assim, a continuidade do pensamento comum com o pensamento científico. É necessário repor constantemente as expressões novas, nas perspectivas das teorias que as imagens e as fórmulas resumem. E a tecnologia é um dos fatores responsáveis pela constante transformação, no conhecimento comum em relação ao conhecimento científico.

Nunca este racionalismo experimentado, que os métodos novos representam, foi mais variado, mais móvel, mais vigiado. É assim que o racionalismo, que deve assinalar os progressos da experiência, cresce no sentido inverso do dogmatismo de uma verdade indiscutida é fazer a psicologia de uma caricatura obsoleta (BACHELARD, 1953, p.256).

A forma na qual a ciência se manifesta é produzida pela tecnologia. A tecnologia (produto da ciência) em sua produção, é dialética, em sua fenomenologia, é "fenomenotécnica9" (BACHELARD, 1991, p.3).

Na perspectiva da fenomenotécnica, "o pensamento científico vai logo aparecendo como dificuldade vencida, como obstáculo superado" (BACHELARD, 1951, p.23). É sobretudo ao aprofundar a noção de ruptura epistemológica que Bachelard confere plena autenticidade a uma história do pensamento.

Na tese de doutorado, em 1927, intitulada "Ensaio sobre o conhecimento aproximado", Bachelard ilustra uma concepção diferente de História das ciências ao inovar no conceito de obstáculo epistemológico. Com esse conceito, Bachelard expressa seu desacordo, no que concerne certa maneira de escrever a história das ciências, na perspectiva da complicação progressiva, ou seja, é, na base de um mesmo plano de fundo, que os problemas científicos aumentam na proporção e no tamanho.

As ignorâncias da tenacidade dos erros obscureceram, segundo Canguilhem, durante muito tempo o problema da autenticidade da história das ciências. Sobre a raiz desses

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erros, a razão dessa tenacidade, Canguilhem afirma que Bachelard expressa a raiz dos erros nela mesma e não fora dela, o que caracteriza, de certa forma, uma postura internalista de história das ciências bachelardiana.

Segundo Canguilhem, "a natureza da epistemologia de Bachelard não é a de evidências imediatamente claras, mas a de instruções trabalhosamente recolhidas e provadas" (CANGUILHEM, 1977, p. 49). O obstáculo epistemológico seria, portanto, toda teoria subordinada somente aos dados empíricos, visto que "[...] a ciência se faz contra o imediato, contra as sensações" (BACHELARD, 1996, p. 250). Para o autor, "[...] a ruptura com o passado dos conceitos, a polêmica, a dialética é tudo o que nós encontramos ao fim da análise dos meios do saber" (BACHELARD, 1972, p. 51).

Para Bachelard a observação primeira é sempre um obstáculo inicial para a cultura científica, e portanto, sua investigação história da ciência começa caracterizando a ideia de obstáculo para mostrar que há ruptura, e não continuidade, entre observação e a experimentação. É preciso também que o pensamento científico abandone o empirismo imediato. O pensamento empírico assume, portanto, um sistema, que mobiliza o pensamento. "A ciência da realidade já não se contenta com o como fenomenológico, ela procura o porquê matemático10" (BACHELARD, 1951, p.6). O novo espírito científico busca conciliar matemática e experiência, leis e fatos.

Para que se compreenda o estatuto do conhecimento matematizado produzido pelo novo espírito científico definido por Bachelard, lembremo-nos rapidamente de como se constituíram as características essenciais do conceito matematizado de átomo.

O elétron foi experimentado em 1897 e o átomo passou a ser imaginado como um objeto em que o elétron é um dos constituintes. Segundo Bohr, em 1913, no modelo atômico planetário, o elétron e o próton possuíam alguma substancialidade, alguma concretude metafísica, medida através da troca de energias, porém se situava no campo da imaginação. Em 1926, todavia, Schrödinger formulou uma equação que rege a função de onda de um sistema descrito pelas leis da mecânica quântica e o átomo deixa de ser substancial, deixa de ser uma imagem estética e passa a ser uma descrição matemática, mesmo que não se apresente, na forma concreta, e sim na forma de uma matemática aplicada. Assim, já se nos apresenta uma forma de ciência racional aplicada,

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